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Da criação
Eu já quis fazer várias coisas. Já quis fazer Enfermagem, uma ideia absurda para alguém como eu, que chega a passar mal quando vê agulhas. Também já quis fazer Direito, Design, já quis até ser aeromoça, e não me pergunte o motivo. Mas foram várias vontades que vieram e foram, com o passar dos anos e das minhas mudanças. Mas um dos interesses que se manteve ao longo desse tempo é pela escrita. Bom, ainda gosto muito de desenhar. Também fiz, por um tempo, um curso de teatro, mas por alguns motivos, acabei abandonando. Quem sabe, um dia, eu volto.
Mas, voltando para a escrita, acho algo fascinante. Sempre sonhei em escrever algo, de preferência romances (thriller, terror, drama, entre outros gêneros), ter o poder de criar um universo paralelo onde eu pudesse entrar, mexer todas as suas estruturas, combinar e recombinar todos seus elementos para surgir algo novo. Mas, sempre que eu tento escrever algo mais sério, para além dos textos sobre cotidiano ou apenas para exercitar a escrita, sinto que tudo sai muito clichê. Ou apenas mais do mesmo. Tudo parece ser algo que já vi em algum filme, que já li em algum livro, como uma cópia sem graça. Penso numa personagem, mas ela parece uma caricatura. Penso numa motivação, mas parece muito infantil ou raso.
Mas não é como se eu tivesse desistido disso. Lá no fundo, ainda tenho algumas ideias, ou ao menos, um esboço amorfo de uma ideia que, talvez, seja promissora. E é comum termos algumas ideias que parecem absurdas ou mesmo nada inovadoras, e quando pensamos nelas, as descartamos. Mas, e se essa ideia (ou “proto-ideia”, enfim) puder ser lapidada para algo mais concreto? Ou se pudermos guardar essa ideia até que emadureça, para gerar mais frutos doces? Eu sempre joguei fora tudo que dava errado, algum desenho que não me agradou, textos que eu achava muito melodramáticos ou mal escritos, tentativas frustradas de aprender algo. Minha vó costura e, em um belo dia, tentou me ensinar a mexer na máquina de costura. Mas eu simplesmente estraguei aquele pedaço de pano, não consegui e deixei pra lá. Fui para meu quarto estressada, pensando que não era para mim. Mas eu deixei pra lá na primeira tentativa. E se eu persistisse por mais algumas vezes, eu teria conseguido costurar uma calça, ou um remendo qualquer?
Já estou pensando há algum tempo em aprender bordado. Também tenho me interessado mais em voltar a escrever, mesmo que eu fique um longo período sem escrever nada; em desenhar, em aprender a criar algo com as minhas mãos. Pode ser bobo e só ilusão da minha parte em achar que posso ter algo de especial (para além dessas reflexões se somos especiais ou só mais alguém nesse imensidão do universo...), mas às vezes, assim como todo mundo, eu sinto algo dentro de mim, que precisa ser expressado, transbordado. Mas não basta simplesmente sentir isso e esperar que esse processo ocorra de forma perfeita, que basta sentir para escrever um grande livro, ou para pintar uma gloriosa tela, uma bela arte pronta para ser exposta e apreciada. Até mesmo a expressão de algo que parece natural exige trabalho e dedicação. Não basta sentir, deve-se saber a melhor forma de suportá-lo, de transmiti-lo. Não basta ter uma ideia, deve-se aprimorá-la, alimentá-la, cuidar como um filho, sua própria criação, e saber como colocá-la no mundo. Portanto, quando tiver uma ideia, não descarte-a por impulso, mesmo no primeiro momento de frustração. Guarde-a bem, cuide bem daquilo que tem muito de você.
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As cidades e o nome #2
ZWEDRU
Cidade numa planície africana, de vegetação espalhada e não muito alta. O horizonte é de tom alaranjado que remete a um por-do-sol constante, ao longo de todo o dia.
A briza nos traz o perfume da ausência da chuva, e a ausência da chuva fez com que as águas do principal açude dessem lugar para a poeira.
Escuta-se à distância o cantarolar de crianças à saída da escola, completamente alheias à paisagem que, à distância, está a lhes contemplar.
(Bruno Lessa)
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Elas
Ela é uma mulher, mas ainda aprendendo sobre o que é isso. Ela também pensa, em muitos momentos, se mudaria algo de seu passado, se lhe fosse dada a permissão de voltar com a mesma “cabeça” que ela tem hoje. Mas, depois de alguns segundos, tal ideia lhe parece um tanto absurda, e mesmo com tal chance, pensa que não mudaria nada. Não que nunca tenha feito algo de que se arrependeu - aliás, seu caminho foi ladrilhado com muitos arrependimentos - mas porque não sabia muito bem quais seriam os resultados de toda essa mudança no seu “tempo”. Preferia não mexer com o que não conhecia tão bem.
Ela também tentava se desprender de seu passado. Mas, por outro lado, era ele quem lhe fornecia certa bagagem, algum aprendizado sobre o que se deve evitar e quais atitudes não tomar. Já havia passado por situações extremamente desagradáveis e, se por um lado, gostaria de esquecê-las, por outro, gostava da ideia de poder evitá-las. Gostava de seu amadurecimento, ainda que este ainda seja um tanto imaturo. Ela mesma, que já teve tantas certezas quando mais nova, hoje percebia que, na verdade, não sabia de tanta coisa. Mas fica satisfeita quando vê em quem ela está se transformando, esse processo de “vir a ser” em eterna metamorfose - mas que, de certa forma, preserva uma certa essência, que torna possível reconhecê-la.
Ela também tem testado novas cores. Novos estilos, comidas, hipóteses, ideias. Lembra de sua versão adolescente e pensa no quanto caminhou para chegar a ela mesma, adulta. E ainda, no quanto caminhará para conhecer sua “eu” senhora, que lhe olhará com certa ternura e, assim ela espera, com orgulho. Aliás, Ela espera por esses (re)encontros, e fica divagando sobre isso com o café esfriando na xícara. Ela, que por tanto tempo passou evitando espelhos, com medo do que veria em seu reflexo e dos sentimentos que isso lhe traz, passou a querer saber mais sobre aquela que a via do outro lado. Ela, que evitava falar de si, por julgar ser uma arrogância - oras, ninguém tem interesse pelo que penso ou pelo que faço - passou a ter mais interesse em si mesma, em saber sobre o que pensava, sobre seus gostos, ideias, paixões. Quase um estudo antropológico, ou talvez uma matéria jornalística, gostaria de saber mais sobre si, sobre suas “eus”, que também são suas amigas e irmãs. Sentia a necessidade de convocar uma reunião entre todas ali presentes, para fazer um balanço geral e colocar todos os pingos em seus respectivos “is”.
Mas, Ela também tem obrigações fora de si. Ela tem que trabalhar, Ela tem que estudar, Ela tem casa para cuidar, Ela tem talvez cachorros, gatos, passarinhos, ou até mesmo filhos, para olhar. Ela tem atividades para entregar, documentos para autenticar, roupas para vender, pacientes para atender, pesquisas para serem feitas. Ela também tem todo um mundo fora de si, mas que também está nela e a atravessa, com notícias - boas e ruins - decisões que a atravessam, conjuntura, economia, política, Ciência. Tem também os conflitos em casa, no trabalho, no condomínio, na família, com vizinhos ou mesmo com “colegas” dos mais variados, nos mais diversos espaços. Tudo isso, antes era julgado como distrações. Ela sempre pensava que tudo era tão banal e servia apenas para tirá-la dela mesma, para amargar seu café. Mas, aquilo era seu mundo, era ela, era o barro do qual foi construída.
Somado a tudo isso, estava o seu ser “mulher”. Era-lhe tão natural que fosse feminina, gostava de suas roupas acinturadas, de suas sandálias delicadas e de suas unhas carmim. Era-lhe tão comum a preocupação com seus cabelos, com sua pele com poros dilatados, com seu peso - que estava sempre “acima” de alguma coisa. Mas, conforme ela se via no espelho com um pouco mais de lucidez, com os olhos bem abertos, via mais nítida sua silhueta. Ela vê suas pernas, suas estrias e manchas, suas linhas de expressão - e que expressão viva! - que não lhe davam uma aparência cansada, mas sim um certo ar de força. Passou a sentir com calma cada parte de seu corpo, de seu cabelo, de tudo aquilo despido de seu uniforme diário de “mulher”, sem seus brincos, seus sapatos apertados, sem o sufoco de ter que ser algo ou alguém. Sua única preocupação, agora, é ser. Ser ela, ser uma personagem criada por ela mesma, ser sua própria história, de forma amorfa, mas ser.
Com toda essa matéria, maturada por seus poucos anos de mulher experiente, esculpiu a si mesma e tornou-se artista, pensando em suas atividades, suas obrigações, todos os fios que conduzem sua vida, além do bom papo de fim de tarde com suas outras “eus”, em lembranças do passado e projeções do futuro.
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O 26 de julho
No dia 26 de julho, colei grau e recebi uma medalha de prata, pelo meu desempenho acadêmico. Já posso dizer que sou Bacharela em Ciências Sociais. Agora, minhas preocupações são outras e tenho novos desafios, como procurar por processos seletivos para mestrado com bolsa, porque na minha situação, é impossível continuar estudando sem ter uma bolsa para me manter. Mas, ainda assim, o dia 26 foi incrível. Minha vó veio de SP para me ver formando e recebi várias mensagens e abraços de pessoas queridas. Minha professora/ orientadora estava lá, outra professora também foi homenageada e estava lá, meu professor que participou da minha banca estava na cerimônia de homenagem aos alunos que receberam as medalhas. Também estavam meus tios, amigos e meu namorado, que sempre me deu forças nos momentos mais difíceis.
Outra pessoa que estava lá é minha prima de 14 anos. Ela mora na mesma cidade onde estudo, então acabo tendo um pouco mais de contato com ela do que com meus outros primos, que ainda estão em SP. Apesar de não nos vermos toda semana, somos bem próximas e dizem até que ela se parece comigo. No dia da colação, ela chorou e disse que estava muito orgulhosa de mim, porque entrei de um jeito na faculdade e saí de outro, completamente diferente. Eu fiquei realmente surpresa com o que ela me disse, porque nunca pensei que eu seria algum tipo de modelo para ela, ou motivo de orgulho. Saber que minha prima vê em mim uma irmã mais velha, que ela sente orgulho de mim e se vê em mim, é realmente gratificante. Aliás, isso me fez ver o quão importante é pensar naqueles que se espelham em nós, nos mais jovens. Principalmente, no caso de nós, mulheres, influenciarmos positivamente garotas mais jovens.
A formatura foi uma grande vitória. Sei que muitas outras pessoas enfrentaram maiores obstáculos na universidade, mas, para além dessas comparações, só eu sei o que tive que enfrentar nessa trajetória. Depois do meu tio, fui a segunda da família a conseguir formar. Já passamos por momentos difíceis, de perdas irreparáveis, e estar ali formando, recebendo meu diploma e minha medalha, foi de uma alegria imensa. Daqui para frente, terei novos caminhos a seguir, mas um deles foi concluído. E eu não teria conseguido sem o apoio, a dedicação e o amor daqueles que me acompanharam. E que venha o mestrado.
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Aniversário
Recentemente, mais precisamente no dia 14 de agosto, completei 26 anos de idade. Para além das crises dos meus “vinte e poucos anos”, quando paro para pensar que estou cada vez mais próxima dos 30, também fico pensando nas diferenças entre as minhas “versões” de diferentes idades. Em outro texto, contei como minha prima de 14 anos ficou orgulhosa de mim no dia da minha colação de grau, e que ela disse que eu entrei de um jeito na universidade e saí completamente diferente. Sabe, eu tenho que concordar com ela.
Todos passam por mudanças, e que bom! Temos contato com outras pessoas, ideias, deixamos de falar com algumas pessoas por afinidades, passamos a adquirir novos hábitos, gostos e posturas. Comigo, não foi diferente. Sair da casa da minha avó, trabalhar, mudar de estado, entrar para a universidade, morar em alojamento, conhecer alguém especial, foram algumas coisas que me mudaram bastante. E quando eu olho para trás, penso onde estou agora, fico tentando imaginar onde estarei daqui a alguns anos. E se eu tivesse o poder de voltar no tempo, eu faria tudo diferente? Ou faria tudo exatamente da mesma forma? A questão é que, apesar dos arrependimentos (porque sim, tenho muitos deles), eu não sei se teria coragem de alterar meu passado, de não estar onde estou hoje. Apesar dos pesares, cá estou, e estou bem.
Nunca fui muito de gostar das mudanças, principalmente as mais radicais e que fogem do meu controle. Sempre preferia estar na minha zona de conforto. Mas, precisamos lidar com certos eventos repentinos, por piores que sejam ou aparentam ser. Afinal, os dias continuam a correr e precisamos acompanhá-los. Não significa que eu soube lidar muito bem com todas elas. Em muitas vezes, desanimei, tive medo, angústias e passei por momentos de raiva. Lidar com pessoas não é fácil, com novas responsabilidades, menos ainda. Mas, aos poucos, vamos aprendendo. E aquele caminho que parecia terrível, quando o passamos e olhamos para trás, percebemos que nem era tão terrível assim. Ou era, mas saímos de lá vivos.
Eu deixei muitas coisas para trás. Uma delas era a visão que eu tinha sobre muitas coisas. Muitos preconceitos, dúvidas, receios. Também deixei de me arriscar com coisas que não valiam a pena, que hoje percebo como fui imprudente e descuidada comigo mesma. Também mudei meu estilo, o jeito de pensar, de me vestir, algumas amizades, mas, felizmente, também mantive muita coisa comigo. A “eu” que formou em julho é bem diferente de mim, quando entrei na universidade, ainda de cabelo colorido, uma imagem romântica do mundo e muitas ilusões na mala. O processo de crescer e mudar pode ser doloroso, mas é extremamente necessário e benéfico. E, claro, também depende da forma como o encaramos.
Aos 26, ainda tenho muitas questões e mais estrada pela frente. Mas, quando olho para trás, de certa forma, fico orgulhosa de estar onde estou agora. Alguns sonhos se realizaram, outros já não fazem mais sentido para mim, que estou agora mais velha e em outros contextos. Aquela eu mais nova, adolescente, ou mesmo criança, são outras faces, memórias, que não foram descartadas, mas já não se encaixam em mim, e fico feliz por isso. Até mesmo minha relação com aniversários tem mudado. Por um longo tempo, passei a não gostar mais de comemorar aniversários, pois já não fazia sentido mais. Aniversário era bom com a minha mãe, que fazia festa, era animada e estava comigo. Depois dela, tudo parecia meio sem graça. Agora, com meu namorado, sempre fazemos algo, comemoramos, celebramos mais um ano de vida juntos. O dia do aniversário, agora, tem um sabor diferente, voltou a ter cor.
Que bom que as coisas mudam.
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Ester
Ainda de frente para a tela brilhante do notebook, ela encarou o branco da ausência de palavras. Frustração, seria uma palavra possível, ao menos para começar. Estava prometendo para si mesma que, assim que começassem suas férias, empenharia-se em escrever. Mas, escrever o quê? Nada lhe vinha! Ela sentia sempre que tinha um potencial, uma possível história grandiosa ou um pequeno esboço de uma personagem carismática e complexa. Em seu âmago, sentia-se especial, com muito para contar. Mas nada se desenvolvia.
Já havia tomado quase toda a garrafa de café, mais pela força do hábito. Era uma forma de ocupar-se, para se sentir menos improdutiva. Já havia dado várias voltas pela sala, pela casa, verificou a caixa de e-mail. Mas que bela escritora! Sem ideias, sem conteúdo algum. Uma casca oca, onde apenas havia ecos de uns pensamentos rasos. O que poderia escrever? Tudo lhe parecia tão clichê. Ela tinha muito medo de parecer brega ou repetitiva, de apresentar “mais do mesmo” e cair em esquecimento. Seu maior pesadelo era apresentar algo medíocre. E nesses momentos de bloqueio criativo, sentia que era apenas mais uma. Não possuía nada de especial e, de fato, não teria nada de incrível para escrever sobre.
Nessas ocasiões, nenhum esforço mais valeria a pena. Todo seu mundo já havia perdido o encanto. Sua vida era enfadonha, sem grandes personagens, e ela mesma, constantemente, assumia o papel de coadjuvante. Nada de novo sob o sol, dia após dia, em sua rotina monótona de trabalho. Havia tempo que sentia sede de algo diferente, mal podia esperar por suas férias, para que pudesse, finalmente, sentir-se. Mas quando passou a ter tempo, faltou-lhe experiências. Sempre sonhou em ser escritora, mas tudo parecia agora uma grande ilusão. “Não sirvo pra isso. Não é minha vocação”. Parava para analisar sua vida, pensando o que serviria de material para uma boa história. Quem se interessaria por ela? Por aqueles dias quentes e lentos atrás de um balcão de um bar caído? Quem compraria um livro sobre uma mulher comum do interior?
Passadas mais algumas poucas horas, ela já estava absorta em outros devaneios. Por fim, começou a pensar em uma velha amiga, com quem já não batia papo havia um bom tempo. Era muito simpática e muito determinada, e uma de suas frases favoritas era “A parte mais difícil sempre é o começo”. Quando ouviu em sua cabeça a voz alegre de sua amiga lhe dizendo isso, sentiu uma leve pontada no peito. Onde andaria aquela mulher? O que estaria fazendo? Sentiu uma imensa vontade de falar com ela, convidá-la para sua casa para fazer-lhe companhia. Imaginou como seria ter a amiga para rir juntas nas férias, tomar um café enquanto conversariam sobre assuntos banais ou pitorescos.
Deitada no sofá, voltou a olhar para o notebook que estava na escrivaninha, um escritório improvisado. Agradeceu mentalmente à amiga pelo conselho, logo procuraria seu contato. Sentou-se novamente para escrever, repetindo para si mesma “a parte mais difícil sempre é o começo”, quase como um mantra. Se é a parte mais difícil, teria que superá-la. Talvez sua vida não fosse tão rasa, por mais trivial que poderia parecer. Decidiu narrar seus dias, começando por seu nome: Ester.
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Contemplação
Andando pela rua, numa tarde cinza e chorosa, ela seguia em direção à cafeteria. Havia acabado de sair do escritório, no qual trabalhava como secretária. Depois de um dia de cão, tudo o que ela mais queria era um café revigorante e quente num dia frio. Mas, misturado ao seu cansaço, havia algo que nem mesmo café mais forte poderia curar. Ela estava frustrada. Olhava para os lados, para a mesma calçada que desgastava as solas de seu sapato todos os dias, para as mesmas vitrines embaçadas que via todos os dias, e se sentia perdida. Até quando aquela vida, meu Deus?
Nesse dia, ela que andava sempre apressada, decidiu andar mais vagarosamente. Não porque gostaria de apreciar a paisagem urbana do centro daquela cidade, que já lhe era muito familiar, mas porque, naquele dia, nada parecia valer seu tempo. Quando enfim chegou ao seu destino, tirou o casaco e buscou uma mesa isolada, onde ela pudesse apenas tomar seu café em paz. Na verdade, ela já era meio que invisível. Sempre que ia a algum lugar, raramente era importunada por rapazes (ou mesmo por alguma moça). No máximo, alguém lhe perguntava se poderia pegar alguma cadeira por perto, ou pedia-lhe o porta-guardanapos. Nada mais. E essa invisibilidade lhe despertava um sentimento ambíguo de alívio e solidão. Por um lado, gostava da ideia do refúgio, de poder seguir sua vida sem interrupções. Por outro, sentia-se a mais solitária das criaturas, como se fosse apenas um pesinho de porta ou algum enfeite barato numa mesa da cafeteria ou num balcão de um bar.
A tudo isso, somava-se o sentimento de estagnação. Sempre naquela rotina, naquela mesma cidade, no mesmo emprego com o mesmo salário e ouvindo as mesmas reclamações de seu chefe, que também a tratava com desdém. Com tudo isso, ela se questionava por alguns momentos se era alguém especial. Teria algum talento? Saberia fazer algo belo, inovador ou mesmo útil? Pois às vezes, sentia-se como um ciborgue. Uma ideia ridícula de início, mas depois isso foi ficando mais fixo em sua cabeça. Um ciborgue programado para fazer as mesmas coisas, para seguir ordens e deixar sua parte viva de lado. Não viva, apenas sobrevivia dia após dia, numa correnteza massante. Mas, naquele dia, a frustração parece que lhe despertou algo. Para além de fios, microchips e um sistema falho, o peso daquela tarde nublada e dos muros de concreto a sua volta, que lhe davam essa sensação de asfixia, causaram-lhe a frustração que, apesar dos pesados, ainda se trata de um sentimento. Aquilo doía-lhe a carne, causava-lhe um incômodo, como um cisco nos olhos.
E bastou aquele cisco, aquela última gota, para transbordar-lhe a alma e seu café que já esfriava na xícara. Sentada ali, na mesa isolada num canto escuro, sentiu que uma lágrima caiu sobre seu colo. Não sabia explicar se era de raiva, de tristeza ou de alívio, pelo fato de seus sentimentos emaranhados encontrarem um canal por pode fluir. Algo estava adormecido e frio, inerte e enterrado em seu peito. Até que, numa tarde qualquer, ela pôde tocar nas próprias feridas e fazê-las sangrar, expulsando todas as enfermidades. Não sabia se tudo seria diferente no dia seguinte, se teria coragem suficiente para causar uma grande revolução, mas uma grande mudança havia sido plantada. Algo floresceria em algum momento e já estava fortificando suas raízes. Por fim, pediu outro café, mais quente e saboroso, e decidiu sentar numa mesa mais próxima à janela, contemplando cada rosto engolido pelos dias que passava por ali. O sol, enfim, jorrou um pouco de sua luz.
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Mães
Hoje, dia das mães, deixando de lado um pouco as críticas sobre ser uma data comercial e tudo mais, pensei um pouco não só sobre minha mãe, mas sobre as mães que apareceram na minha vida.
Posso dizer que sou muito sortuda por ter mulheres incríveis na minha vida. Desde minha mãe e minha vó - ou mãe-vó - até outras mulheres que tive o prazer de conhecer. Todas elas, em alguma medida, foram também minhas mães, minhas amigas e minha inspiração. Em um “dia das mães”, não posso deixar de mencionar as minhas tias, que sempre foram tão presentes e queridas comigo, além de serem mães maravilhosas e mulheres fortes. Também não posso deixar de mencionar mães que conheci, das mais variadas idades e histórias. Uma delas, amiga de minha mãe, que esteve presente também na minha infância e sempre me tratou com muito amor.
Outra mulher que me “adotou” é minha sogra. Não achem que é ser “puxa-saco”, mas eu realmente fui acolhida e abraçada por ela, como uma filha é pela mãe. Eu a admiro muito mesmo, como mãe, como mulher, como trabalhadora e todo o carinho que ela tem pra oferecer. Da mesma forma, as avós - minhas e de meu namorado - que têm tanta história.
Também devo falar sobre minha madrasta. Já tivemos nossos momentos difíceis, mas, apesar de tudo, sei que ela tentou, sei que para ela também foi um aprendizado - assim como foi para mim - e que, de certa forma, foi algum tipo de mãe. Apesar de não ter filhos, ela cuida e ensina. Aliás, gostaria aqui de “expandir” um pouco essa data, estendê-la a todas as mães-solos, a todas as mulheres que cuidam, que amam e que ensinam, enfrentando todas a agressividade do mundo. A todas aquelas mulheres que tiveram a dor de perder um filho. A todas as famílias, de todos os tipos e formas, que se dedicam aos seus filhos, de sangue e de coração. A todas as mulheres que, de certa forma, inspiram e são mães, que acolhem mesmo aqueles que não saíram de seu “ninho”. A todas aquelas que vivem a maternidade de diversas formas, de maneira real, uma maternidade que não é romântica e ideal. A todas as mães que erram, que se sentem inseguras, que aprendem.
A todas vocês, só tenho a agradecer pela criação que me deram.
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Aprovação e aceitação
Às vezes, pensamos em nós mesmos como tão autênticos e descrevemo-nos como pessoas que não se importam com a opinião alheia, mas a verdade é que sempre queremos nos encaixar. Sempre nos importamos com a aprovação de alguém, sempre queremos ser bem-quistos e acolhidos.
Obviamente, comigo não é diferente. Sempre quis aprovação da minha família, apesar de, por vezes, parecer um tanto rebelde e fazer o contrário do que queriam. Sempre quis ser aceita na escola pela turma, ter mais que apenas dois ou três amigos, ser convidada para festas e querida por alguém além da minha melhor amiga. Sempre quis ser aceita por homens, e lembro que em minha época de solteira - como é engraçado dizer assim, mas enfim - eu sempre me preocupava excessivamente com o que pensavam sobre mim, meu corpo, minha aparência e minha personalidade.
Essa noite, tive um sonho estranho. Sonhei que estava em uma sala com uma TV, enquanto acontecia alguma aula de qualquer coisa. Éramos todos adultos, mas a sensação que tive era de que eu estava ainda no ensino fundamental. As poucas pessoas ali, presentes na sala, debochavam de tudo o que eu dizia. Cochichavam entre si, riam da minha cara quando eu abria a boca para falar qualquer coisa e chegaram mesmo a me empurrar. Cheguei a ouvir de alguém - ainda estamos no meu sonho - que eu não conseguia agradar ninguém e que ninguém gostava de mim. Tal qual a minha sensação de estar na infância/ adolescência, minha atitude também foi um tanto quanto infantil. Comecei a chorar e a perguntar o motivo daquilo. Não sei se classificaria isso como um pesadelo, mas acordei com um certo incômodo.
Lembro que, bem no início da minha vida escolar, eu quase não tinha amigos. Um dia, comecei a chorar porque não queria ir à escola, porque uma das meninas que debochavam de mim e me assustava, estava na mesma van que me levava à escola. Eu não quis contar à minha mãe, com medo de receber alguma bronca ou parecer muito boba. Também na 1ª série, várias meninas riam de mim e eu seguia sempre com pouquíssimos amigos, odiava ir à escola, detestava quando finalmente entendia o que tinha acontecido - geralmente, eu era tão bobinha que nem entendia que estava sendo alvo de chacota. Apenas chorava, sem resolver nada.
Depois de um certo tempo, isso foi mudando, mas ainda assim, continuei com muitas dificuldades de fazer mais amizades. Sempre ficava - ainda fico - desconfortável com muitas pessoas ao meu redor, não sabia muito bem como agir, e tinha medo de parecer boba ou desinteressante. Claro, não fui também um ser iluminado, e acabei entrando em muitas brincadeiras que humilhavam outras pessoas - disso, não carrego orgulho algum. Mas, no final das contas, depois de tantos momentos constrangedores e ruins, passei a ficar mais invisível. Às vezes, como na fase da adolescência, eu tinha algumas “fantasias” sobre ser popular, bonita, magra e amiga de todos na escola, o que gerou até mesmo muitas intrigas - envolvendo muitas meninas da turma, o que vejo hoje como algo ridículo. No final das contas, com o passar do tempo, o que mudava era o tipo de rejeição e a forma como eu lidava com ela.
Ainda hoje, percebo que em muitos momentos, perdi oportunidades de fazer amizades muito legais. Claro, não reclamo dos amigos que tenho, todos são realmente incríveis. Mas passei a ser uma pessoa muito mais fechada, e sentia que, talvez por não saber me apresentar ou não saber o que fazer para ser aceita, acabava por meter os pés pelas mãos e passava uma imagem distorcida de mim, de alguém um tanto arrogante ou mesmo muito crítica. Mesmo durante a faculdade - que está quase no fim - fiz poucas amizades, e ainda sou meio ruim em manter contato com algumas. Mesmo agora no início da vida adulta, ainda tropeço, cambaleando entre a autoaceitação - que creio ser a mais difícil de se alcançar, mas sinto que estou no caminho - e a aceitação da minha família, de pessoas próximas, do medo de falhar com elas.
Enfim, no texto de hoje não trago nenhuma conclusão, nem “moral” ou aprendizado que tive, até porque é algo que ainda estou aprendendo. Depois de uma conversa que tive hoje, ainda estou assimilando muitas coisas e pensando sobre isso, sobre como ainda estou em busca de ser aceita por mim mesma, de como ainda tenho medo de não parecer adulta o suficiente e de encarar a zona de desconforto que a idade nos traz. Mas claro, hoje sinto que já melhorei bastante e que a imagem que tenho de mim vem ganhando mais nitidez, apesar de inseguranças nebulosas. É bom também caminhar com pessoas que nos aceitem e nos abracem, com todos as deformidades e desencaixes que nos definem.
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Despertar
Ela acordou, abriu a janela e deixou a luz invadir o quarto. A luz era preguiçosa, ainda meio sonolenta, que entrava vagarosamente, desejando bom dia. Mas a mulher não teve uma boa noite de sono, tampouco um bom início de manhã. Passara a noite em claro, apesar da escuridão no céu e das luzes serenas das estrelas e da lua. Apesar do silêncio, sua cabeça estava barulhenta, em luzes ofuscantes.
A mulher, então, afastou-se da cortina. Não queria sair do quarto, nem mesmo para passar um café na cozinha. Ela era uma imagem contrastante naquele lençol banhado pela fresta de sol. Ela era uma distorção sobre a cama, um borrão cinza sobre a roupa de cama branca. Sua respiração era leve, mas pesava. Seus olhos pesavam. Suas mãos pendiam para fora da cama, enquanto olhava para o teto do quarto, sem vontade de levantar-se.
Mas não sentia tristeza. Não, definitivamente, não era tristeza. Aquela mulher não sentia. Passou horas ao longo da madrugada, pensando, sem sentir. Mas mesmo seus pensamentos se espalhavam pelo quarto, sem formar um fio coeso. Ela estava perdida. Tentava fiar suas ideias, numa linha que servisse para marcar seu caminho, mas tudo era amorfo. Tudo desmanchava entre seus dedos, dispersava no ar. Não sentia tanta vontade de sair dali, mas também não era onde queria estar. Noite difícil. A manhã, não foi mais fácil.
Depois de tanto tempo olhando para um ponto fixo, voltou para si com o som da campainha. Não queria ir ver quem era, não tinha vontade de mover o próprio corpo. Mas a campainha não cessava e aquele ruído conseguiu mover as pontas de seus dedos. Depois de mais alguns longos segundos, finalmente saiu da cama em direção à ponta principal. Arrastando os pés, de forma automática, abriu a porta para ver quem era. E como um líquido quente de vida, sentiu seu corpo sendo reanimado, causando formigamentos pela pele. Até mesmo seus lábios se moveram, vivos, liberando um murmúrio:
- Você veio.
Sorriu.
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Hiato
Estive um tanto ausente dos meus textos ultimamente, mas não foi por mal. Não sei exatamente o motivo, mas não tive tantas ideias nem muita vontade de escrever, mesmo sendo algo que eu goste muito de fazer. Mas, espero voltar com mais frequência, não quero deixar de lado meus textos nem mesmo meu exercício de escrita, mesmo que poucas pessoas leem o que tenho a escrever. Mas algo tem acontecido nos últimos dias e gostaria de compartilhar um pouco sobre essas corriqueiras experiências que, apesar de serem algo um tanto pequeno, tem sido um tanto revolucionário para mim.
Eu tenho desenvolvido um novo hábito: meditação. Já adianto que não, não entendo nada sobre, apenas sou uma iniciante que está entusiasmada num quarto que cheia a incenso. Mas, recentemente, meu namorado e eu estamos interessados em meditação, em tirar um tempinho por dia para focar em nós mesmos, em nossos corpos, nas nossas sensações e sentimentos. E tem sido maravilhoso. Nesses poucos minutos por dia, sinto minha respiração, os movimentos sutis que meu corpo faz quando inspiro e quando expiro, no toque das minhas roupas sobre a pele, na forma como a fumaça perfumada entra em mim. Mantenho o foco, e quando um pensamento alheio surge, deixo-o ir embora, mantendo o foco no meu corpo e no momento presente.
Pode parecer pouco, mas esses poucos minutos tem exercitado não apenas o meu foco, mas também a minha noção de presença, sobre estar aqui e agora. Sobre sentir que existo, que estou nesse ponto de espaço-tempo e que devo manter-me aqui, com corpo e mente integrados num só. Não sei explicar sobre uma perspectiva mais prática quais foram os benefícios, mas posso dizer que, toda vez que acabo de meditar, sinto-me grata, sinto-me mais viva e concreta, e, ao mesmo tempo, leve.
Acho importante tirarmos sempre um tempo para nós mesmos. Seja para tomar um café, para conversamos com alguém querido, para cuidar da nossa estética - se isso for algo feito com carinho, como forma de ficarmos bem - ou simplesmente para parar alguns poucos minutos em um quarto fechado com incenso e velas. A todo o tempo ficamos preocupados com tantas coisas de uma vez só, que não conseguimos resolver nenhuma delas, apenas sentimos mais ansiedade e medo de não sermos capazes de lidar com todas essas tarefas. Algo que pode ser bom é focar no aqui e agora, na nossa presença no mundo e também diante esses problemas. É preciso força e serenidade para não entrarmos em desespero, usar nossa energia para a resolução desses problemas, e não para alimentar mais ainda os nossos anseios.
Tenho reservado tempos para mim mesma. Quando tudo parece dar errado, ou quando minhas questões se acumulam e nada mais parece fazer sentido, quando estou perdida entre angústias e não encontro saída, saio para respirar. Saio para tomar um capuccino, ou para comprar algum incenso novo, ou para ver se já chegou a revista que tanto quero nas bancas. Saio com meu namorado para tomar um sorvete, ou tiramos um tempo simplesmente para tomar uma cerveja enquanto vemos série. É importante termos uma pausa, para respirarmos um pouco, tomarmos fôlego antes de embarcarmos novamente em nossos percursos.
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As cidades e o nome: Porto Alegre #2
Porto alegre, se tivesse rosto, estaria na penumbra quando eu estivesse escrevendo. Mas posso ver, é uma mulher. Mulher!
Decidida, ela parece ter posições fortes, mas ouve bem a todos ou é o que deseja aparentar. Parece ter um ar jovem e motivado, com grandes aspirações. Simultaneamente, parece cansada, parece não ter fôlego suficiente e que esses estados oscilam em suas ações e pensamentos. Cansada do que insiste em danificar essas posições fortes, do que insiste em, de manso, aos poucos, se incrustar como cobrança do que desejou se distanciar.
Mesmo assim parece tranquila, não aflita, tranquila sabe de seus conflitos, e também sabe que não é quem pode resolver a todos e à sua história em um tempo tão curto.
Sozinha, precisa de muitos sem depender de ninguém. Contradições que tanta terra e tanta água em contato colocam. Momentos em que invadem a terra na água e a água invade a terra de volta, em movimentos de conflitos, mas também de busca de equilíbrio, de convivência, de entendimento, apesar dos muros que se constroem.
(Marta Montagnana)
Fotografia: Marta Montagnana
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As cidades e o nome # 1
Berane: Montanhosa e próxima ao litoral, suas construções se fazem em meio a esses territórios, encrustadas na terra, parece que vão crescendo junto aos montes, compondo seus contornos organicamente e misturadas às vegetações baixas assim como aos caminhos verdes e castanhos foscos.
Dos picos há vista ampla dos entornos, de onde também se vê o mar ao longe ou, com o olhar em direção ao continente, esbarra na próxima montanha construída-crescente-verde-castanha-orgânica-fosca.
Seus habitantes vagarosos se mimetizam nos percursos como se rastejassem, incorporados àquelas formas e cores naturais e construídas, ordinárias e agregadas em algumas formas de simbiose.
(Marta Montagnana)
Ilustração: Marta Montagnana
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