Me Apaixonei pela Vilã - Crítica dos 5 livros.
Me Apaixonei pela Vilã (Watashi no Oshi wa Akuyaku Reijō) é uma light novel publicada originalmente no Japão entre 2018-2021, em formato web, no site Shōsetsuka ni Narō, uma plataforma para autopublicação de histórias. É uma história com temática yuri, um termo no japonês para relacionamentos lésbicos, embora outros elementos LGBTQI+ estejam presentes. Com o sucesso da webnovel, ela foi publicada na forma de livros light-novel pela editora Ichijinsha e daí alcançou o resto do mundo. Atualmente um mangá, também pela Ichijinsha, e uma série de anime pela Crunchy Roll estão em produção. No Brasil, as light novels são publicadas pela editora New Pop.
A premissa é incrivelmente nova, baseando-se nos famosos jogos de relacionamento do Japão, jogos de videogame onde o/a protagonista precisam conquistar romanticamente algum dos personagens disponíveis (quem jogou qualquer coisa da série Persona 3 em diante, sabe como isso funciona), e também na onda de isekais ruins que começam com “reencarnei como...” a autora Inori imaginou o seguinte: o que aconteceria se, a heroína enquanto jogava seu otome game favorito morresse e acordasse reencarnada nele, como a heroína do jogo. A partir daí Rei Oohashi se torna Rei Taylor, heroína do jogo Revolution, onde poderia conquistar romanticamente um dos três príncipes disponíveis. Exceto que Rei é lésbica e seu interesse desde sempre foi a vilã do jogo, Claire François. Uma típica vilã de qualquer mangá/anime/jogo escolar, Claire François é nobre, rica, cercada de puxa-sacos, competentes em todas as áreas e que ri daquele jeito que eu sei, você está imaginando agora, porque com certeza já assistiu alguma coisa assim.
A história se desenrola por 5 livros, contando com textos isolados que complementam sobre os personagens. E agora, se você for procurar sobre, vai ver que, pelas capas, lá pelo terceiro, elas estão juntas, com duas crianças. E deve estar pensando: “mas se no segundo livro ela já conquista a vilã, o que mais falta acontecer aqui?” — eu sei, eu me fiz essa pergunta e foi por isso que eu me aventurei a ler 5 livros de romance light novel.
Os dois primeiros livros são, na minha opinião, o ápice da coisa toda. É realmente o me apaixonei pela vilã, uma vez que mostra como Rei vai, aos poucos, quebrando a armadura de Claire e a ajudando a superar a criação mimada e os traumas da morte da mãe. Junto a isso temos a trama paralela da revolução, que dá a agência para a coisa; Rei não tem todo o tempo do mundo, pois seguindo a história do jogo, uma revolta popular (bom, mais ou menos popular, chegamos nisso já) vai destronar a nobreza e nessas Claire pode acabar exilada ou pior, morta. Determinada a impedir que o amor da sua vida morra, Rei usa todo seu conhecimento do jogo para driblar e mudar o rumo das coisas. E isso talvez seja o mais divertido da obra, para quem já jogou qualquer um desses jogos, ver a protagonista quebrando a quarta parede, falando de flags, determinantes de eventos, nível de relacionamento etc. é superdivertido. E se os chiliques de Claire com os avanços de Rei também tiram uma ou outra risada, as “desculpas” de Rei para o world Building ser uma maluquice por ser um jogo de romance de uma empresa japonesa, faz com que você abrace a doidera do mundo ser uma mistura de Europa medieval fantástica onde se inserem costumes japoneses e uma escola estilo colegial japonês com clubes e tudo mais. Até o sistema de magias baseado em quatro elementos (fogo, terra, água e ar) deixa de ser um problema de simplicidade e é aceito pelo leitor de boas. Mas isso, como vamos ver mais para frente, se torna o calcanhar de Aquiles de toda a obra.
Ao final do livro 2, Claire assume seu papel como “dama da revolução” mudada por Rei e abraçando seu dever nobiliárquico, passa a ajudar e a colaborar para que o governo atual, uma nobiliarquia, se torne... uma monarquia parlamentar. É. Também descobrimos, e a autora faz questão e nos lembrar que, o pai de Claire esteve por trás de todo o movimento plebeu, fornecendo dinheiro e ideias e manipulando os nobres para que a revolução estourasse. Da mesma maneira, os cabeças da revolução são dois ex-nobres. Ok, talvez seja demais esperar, mas que movimento popular é esse? A revolução baniu a nobiliarquia, ok, mas e daí? Após ela tanto o pai de Claire quanto o rei e tantos outros nobres continuam em cargos de liderança. Certo, Claire tinha de ficar viva, afinal queríamos que as duas ficassem juntas, mas essa revolução sem sangue comandada por quem já estava no poder, é bem chinfrim. É também no livro 2 que ao final, descobrimos que Claire e Rei se casaram, que adotaram duas filhas gêmeas mágicas e tudo está, de certa forma bem.
O que tem nos outros 3 livros então. É aí que a coisa fica muito, muito, muito doida.
Uma vez perguntaram a Tolkien se haveria mais livros sobre a Terra-Média, se teríamos uma “quarta era” e ele respondeu que não pois “não há mais nada a ser dito”. É difícil para um autor, e talvez mais ainda quando sua obra faz sucesso, saber a hora de parar. Hoje em dia, com um fandom alimentando a coisa diariamente, e cobrando conteúdo novo a toda hora, o autor pode se sentir compelido ou obrigado a alimentar esse monstro, só que as vezes é melhor ficar querendo algo, do que desejar que nunca tivesse existido. Um exemplo são as teorias do fandom, se você nunca viu uma, frequente por um tempo um fandom de qualquer coisa. Sério. Diversas pontas soltas, mal explicadas, mal desenvolvidas ou que simplesmente foram ignoradas, se tornam teorias estupidamente complexas, principalmente porque muitos ali não tem mais o que pensar e passam a se dedicar a escrutinar a obra em seus mínimos detalhes. Procure e uma hora você acha. Alguns autores vão em frente e deixam o fandom ter sua diversão, outros, podem se sentir inclinados a responder essas dúvidas.
Em ‘Me Apaixonei pela Vilã’ temos algumas dúvidas que são, de certa forma, importantes e deveriam ser respondidas: por que Rei Oohashi reencarnou como a protagonista do jogo favorito? Por que existe um mundo do jogo favorito dela? Em geral, isso. Como já assumimos de começo que é um mundo de otome game coisas como “de onde vem a magia?” não são, necessariamente, dúvidas que precisam ser respondidas. Magia existe, ótimo. Existe uma verossimilhança, uma “acreditabilidade”, um acordo de suspensão da descrença firmado com o leitor sobre essas coisas.
Os próximos 3 livros quebram completamente esse acordo. O livro 3 é bem mais fraco que seus anteriores. A rotina de casadas das duas é legal, mas não é mais me Apaixonei pela Vilã. Digo as duas estão apaixonadas, o que mais tem para acontecer? As gêmeas me pareceram mais uma inserção de um elemento novo quando uma série de TV está esgotando seu material, mas precisa manter a audiência. Primeiro elas tiveram uma infância sofrida, tem o sangue amaldiçoado, o sangue delas pode, por algum motivo, virar pedras mágicas. Ok, mágica existe nesse mundo. Ai, Rei consegue resolver isso temporariamente. Certo, o que fazer com elas então? Bom, uma descobrimos é um prodígio da magia e a outra, embora não possa usar magia, por motivos, é um gênio capaz de aprender tudo e se torna mais à frente a mais forte esgrimista do mundo, embora só com 6 anos. Toda vez que eu lia uma das partes de como uma das gêmeas era foda pra caralho, eu precisava parar e suspirar, tentar rever a suspensão da descrença e voltar. A família vai para o Império de Narr para tentar sabotar ele por dentro. Descobrimos que isso é um spin off do jogo onde a protagonista é a princesa Feline. Aqui, não sei se foi só eu, mas eu esperava que Rei encontrasse com outra pessoa, que assim como ela, reencarnou como a princesa. Ficou pouco crível ver Rei falando de condicionantes de diálogo e outros termos de jogo, mas a princesa ser uma pessoa normal do mundo. Como o romance entre Rei e Claire estava consolidado e bem, a autora tentou criar algum drama com rivais amorosos. Uma hora cansa, ok... no primeiro Rei era a protagonista, os príncipes tinham a “programação” de gostar dela. Certo. Mas aqui? Não era a Feline? Por que todo mundo só se apaixona pelas duas? O restante dos personagens são ou do elenco passado, como Yur, Misha e Lene (oi? Por quê?) ou um grupo que, sinceramente, é neutro. No máximo a imperatriz de Narr, mas tem horas que ela é descrita de modo tão, mas tão obtuso que fica difícil gostar dela. Mas e aí, o que mais? Bom, existe uma trama secundária, somos apresentados a um conceito: a verdade do mundo. Descobrimos que a todo momento nascem garotas com a cara de Rei e que a papisa da Igreja tem a cara dela também. E a reação dos personagens a tudo isso é “cool. Segue a vida”.
Digo, oi?
Se eu descubro que gente nasce com a minha cara a todo momento e que um dos líderes de uma religião em um mundo onde existe magia tem a minha cara, eu parava a minha vida para investigar isso! Nossa, um artigo do Mythcreants uma vez falou que “todo autor deveria jogar ou tentar narrar rpg de mesa algumas vezes, porque isso ia te ensinar como apresentar problemas reais e como pessoas são quando se tornam máquinas de raciocinar soluções”. Eu concordo. Se eu apresento isso em uma aventura de rpg, eu dificilmente consigo fazer o grupo voltar de livre e espontânea vontade para o problema atual. Porque isso é uma coisa muito mais interessante do que a política meia boca que a autora estava narrando.
E sim, tem isso. Inori está escrevendo uma obra de Girls Love, alguns podem dizer que a política não precisa ser tão detalhada. Mas ela também não precisa ser imbecil. Para fazer Dole, o pai de Claire, e outros parecem exímios diplomatas, a imperatriz de Narr parece uma cabeça oca. Ela se diz racional, mas quer resolver tudo com guerra, do tipo, eu peito um exército sozinha! (e descobrimos que ela fez isso mesmo). Eu não sou um ás da política, mas olhando para a história dos impérios, nenhum deles sobreviveu, ou chegou a se tornar um império, dessa maneira. A coisa é tão caricata que temos uma questão central: a comida do império é ruim. Sim, eu sei, a comida ser ruim é um problema nacional em vários lugares, certo? Certo? Mas não só isso, ela é ruim porque, segundo os cidadãos, a imperatriz proibiu que ela fosse boa. Veja tudo no império de Narr tem de ser eficiente, porque guerra. Então a comida tem de ser suficiente para a guerra, as casas têm de ser... sei lá, casas de guerra. Tipo, é uma civilização que parece saída daqueles desenhos que eu via na Xuxa quando tinha uns 7 anos, que o Esqueleto era mau. Eu fiquei esperando a hora que no império todo mundo ia usar termos ao contrário como falar “eu te odeio” quando quer dizer “eu te amo”, porque eles são maus! Essa situação toda é concertada pela filha prodígio sem magia de Rei e Claire que vence um concurso de culinária contra o chefe do castelo imperial. Toma essa, mãe que quando eu tinha 6 anos não me deixava chegar perto do fogão!
Entre essas diabruras que essa turminha do barulho apronta as pistas de que algo meio Matriz encontra Doki Doki Literature Club está acontecendo são plantadas. Uma caixa que fez um pesquisador ser expulso e que ninguém consegue abrir, mas que contém um segredo terrível sobre o mundo. Oh, o que pode ser? Too bad, voltamos para a política torta. A gente acaba descobrindo que era um jeito das duas soltarem magia juntas, mas também que uma coisa parecida com o Agente Smith de Matrix existe por aí. Ele fala que não é humano, mas que não adianta explicar por que, só a Rei deve entender o que ele é. Sério, menina que engana todo mundo e tira soluções de todo lugar? Sério mesmo? Mesmo que não fosse para saber o que realmente era, jogo de vídeo game + conceito que só você do século XXI vai entender?
Ao final a imperatriz é derrota porque Feline fez uma aliança com todos os outros reinos e eles concordaram em se juntar contra ela (mas, tipo, nenhum outro rei ou rainha dali poderia ter feito isso? A Manaria que é tipo o super-trunfo da coisa? Ninguém mesmo?) e simples assim, a imperatriz abdica do trono em favor da filha, porque... porque eu não sei. Ela poderia seguir com o plano de matar todo mundo na sala ali e privar a aliança dos cabeças. Mas ela decide abdicar, e resolve contar, que... os demônios iam invadir o mundo todo. Isso demônios e que ela só estava fazendo as conquistas para unir o mundo todo contra eles.
Muita coisa acontece no último livro, e talvez seja aqui que eu queria chegar. Descobrimos que o rei dos demônios não só tem a cara da Rei, como é a Rei original. Que o mundo não é um mundo de videogame, mas a Terra no futuro. E que magia era... outro tipo de tecnologia... eles juram que não, mas era. A igreja e seus agentes Smith é uma IA avançadíssima, criada pela pesquisadora... * pausa para o suspense * Claire François porque a humanidade chegou ao final do século XXI sem superar o capitalismo e agora o desastre climático ferrou tudo. Qual a solução? Com ajuda de outra pesquisadora, por quem se apaixona, chamada *suspense* Rei Oohashi, Claire desenvolveu um sistema cíclico onde as consciências da humanidade seriam preservadas em formato digital. Em um intervalo de tempo, as nano máquinas reconstruíram o ecossistema do planeta e a humanidade seria clonada e as consciências reinseridas. Só que, os ciclos se alternam, um deles seria a Era da Tecnologia, que seguiria a nossa história atual, o outro seria a Era da Magia, que era esse que acompanhamos. E por que era da magia? Por que a Rei original era uma otaku e criou o mundo assim. E o que era a magia? Alguma coisa alguma coisa área não usada do cérebro alguma coisa quântico alguma coisa alguma coisa.
Sério, como cientista eu me senti verdadeiramente ofendido de ler o capítulo da coletiva de imprensa. “Vamos dividir a magia em fogo, terra, água e ar.” Por motivos. Por quê? Por que um cientista de renome se valeria de conceitos aristotélicos completamente ultrapassados? Quem fala assim? Nesse momento, posso dizer que toda a suspensão da descrença rui. Rui porque você não tem como aceitar as soluções, não tem como aceitar um cientista falando de quatro elementos aristotélicos ou criar uma Era da Magia! Por que era da magia? Por que não era da pós-escassez onde a IA divina capaz de regenerar os ciclos biogeoquímicos garante o sustento da humanidade e ninguém mais sofre pelas mazelas do capitalismo? Mesmo que você force a barra para coisas como “ah, mas alguma coisa alguma coisa quântico faz raio de fogo/gelo etc.” como explicar a doença de mudança de sexo da Yur? Ou a maldição das gêmeas? A coisa fica tão forçada nesse ponto, porque o contrato lá atrás de que “olha, não liga para essas incongruências, é um mundo de videogame” é completamente violado, com isso, o leitor não sente mais obrigação de suspender a descrença e aí veem as perguntas.
Enfim, o final não é melhor, na verdade é bem pior. Na melhor onda de “revolução sem sangue e vamos confiar nas pessoas” formasse um comitê com os líderes mundiais (mas não populares, até onde ela descreveu, só os monarcas participando) que vai pesar se vale a pena interromper o ciclo ou não. Digo, deixar a humanidade eternamente pendendo entre “capitalismo” e “monarquia mágica”. Deus nos livre de um comunismo como modelo a ser seguido, preferimos pensar em monarquias que deram certo, quando essas sim foram implementadas e nunca funcionaram.
Todo mundo fica bem no final? Sim. Eu gosto de finais felizes, mas eu gosto de que o contrato com o leitor não seja violado. Nesse quesito, os dois primeiros livros são ótimos. Mas o resto, a Inori recebe pontos pela coragem em escrever o que ela queria, um Yuri que decide o destino do mundo.
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