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Luana Barbosa, PRESENTE!
Acho que vale a pena lembrar. Vale a pena jamais esquecer. Por mais doloroso que seja, por mais mórbido que pareça relembrarmos uma a uma, se não o fizermos, quem fará? Se não forem as lésbicas a se atentarem �� violência e às injustiças empregadas contra nossa existência, quem se atentará? Nem ao menos temos pesquisas oficiais que dizem a nosso respeito: que buscam saber o que ocorre conosco neste país. Para que tivéssemos um dossiê a respeito do lesbocídio no Brasil, foi necessário que um grupo de lésbicas se auto-organizasse e fomentasse, com muito trabalho e esforço redobrado, esse material. E é por isso, sapatonas... é por isso que eu insisto em escrever, em ilustrar. Uma a uma. Quantas eu puder. Porque eu não quero que elas sejam esquecidas...
Tantas manchetes, fotos da tragédia: espancada, enfim assassinada, por simplesmente ter exigido seus direitos. Esses psicopatas da PM, além de lesbofóbicos, duvidaram de Luana quando esta afirmou: sou mulher e não serei revistada por um homem. Humilhação. Ela mostrou os seios e, ainda assim, não foi o suficiente. A punição por exigir um direito muito simples e corriqueiro em qualquer procedimento de revista foi a morte. Sentenciada injustamente. 20 de Abril de 2016. Sentenciada pela lesbofobia, pelo racismo, pela negação da existência duma sapatão negra que se recusa a performar a feminilidade... E parece que em nossa sociedade é menos absurdo matar alguém de forma tão covarde e asquerosa do que uma mulher usar roupas masculinas, do que uma sapatão existir na periferia.
Tantos relatos da injustiça, da brutalidade que mais uma lésbica negra e periférica sofreu. E ao aprofundar em sua existência, em tudo o que viveu, em quem foi em vida, parece que a angústia se torna ainda maior. Ainda pior que saber que mais uma sapatão marginalizada pela sociedade racista, heterossexista, fascista em que vivemos, foi alvo de uma covardia tremenda: um grupo de policiais militares lesbofóbicos que a espancaram num nível tão grave, com cacetetes, a ponto de levá-la a um traumatismo craniano que culiminou em sua morte dias depois, no hospital, onde ela resistiu para viver mas não pôde... Ainda pior que isso é saber que se tratava duma sapatão extremamente potente, extremamente corajosa, e que queria, mas queria muito VIVER! Ainda pior é saber que a violência estatal continuou, em sua família, com ela, pois seu pai (que ela não teve a chance de conhecer e carregou pela vida esta dor) foi vitimado, provavelmente, pelas mesmas mãos: as mãos que monopolizam a violência, que se apropriam das armas com um falso discurso de “justiça e ordem”.
Luana era uma lésbica fantástica, combativa, corajosa! Cresceu entre mulheres numa época crítica para as periferias de São Paulo, especialmente para as meninas: os anos 90. Cresceu presenciando o que se vive como menina nesse contexto, convivendo com mulheres cujas histórias eram trágicas: filhos que faleciam um a um no tráfico, assassinados pela polícia, maridos e parentes que as violentavam, espancavam, abusavam; sua irmã relata, em uma entrevista publicada no site Nós, Mulheres da Periferia, a presença crescente de estupros coletivos na comunidade, e o quanto sempre foi complicado ser uma menina na periferia. Mas ainda assim, com uma grande admiração pelo apoio, sem a mínima referência de feminismo ou teorias, que as mulheres eram capazes de dar uma à outra nessa trajetória. Depois da morte “misteriosa” de seu pai, que foi enterrado como indigente vítima de tiros de arma de fogo, Eurípedes, sua mãe, viveu com um conjunto de mulheres que eram acolhidas desse tipo de situação. E as noções de sororidade e confronto ao machismo germinaram logo cedo para Luana.
Luana, então, cresceu com um espírito convicto de autodefesa e de se impor no mundo. Queria EXISTIR! Ela escrevia, era artista: desenhava, gostava de ler, de poesia, gostava de arte, era uma pessoa que amava abrir novos horizontes e amava criar. Uma potência tão grande que se rebelou, que se aliou a gangues de mulheres, que confrontava os homens na rua, que não permitia que sua existência fosse apagada e sufocada pela violência masculina ou alheia.
A lamentação de sua irmã, de que “depois da morte, Luana saiu do isolamento” é tão dolorosa. Dói mesmo saber disso. Dói saber que uma potência dessas não foi conhecida e reconhecida antes, como deveria, na proporção que deveria. Tendo sido detida pela FEBEM por 2 anos de sua vida, por B.O.s de furto e porte de armas, Luana ainda continuou produtiva e criativa: inclusive compôs o corpo de poetas com suas colegas na prisão a obra Direito ao Olhar – Publicar e Republicar, na qual uma de suas ilustrações, eleita uma das melhores, foi incluída. Como sapatão, porém, ainda era sozinha. Namorava, porém creio que não conhecia uma comunidade lésbica sólida. Sua irmã relata também a sensação de solidão que Luana carregava. Teve, até mesmo, um processo de transição, em que se nomeava como Luan, porém destransicionou e passou a se identificar definitivamente como lésbica.
Mal sei como finalizar essa corrente pensante, como contemplar essa existência. Gostaria de ter a conhecido, muito! Uma lésbica periférica e negra nascida nos anos 80, poeta, artista, combativa, imagine! É uma inspiração de longe! Imagine quantos relatos interessantes ela não tinha para compartilhar, quantas coisas incríveis tinha para dizer e pontuar... e foi silenciada, em vida, porém não permitiremos que tais vozes furiosas, lésbicas, rebeldes, sejam definitivamente caladas! Reafirmaremos sua existência quantas vezes forem necessárias! As opressões eliminam tantas, mas jamais deixaremos de existir! Jamais as mulheres negras deixarão de existir e resistir, também! E as ideias, caras e caros: AS IDEIAS SÃO À PROVA DE BALA!
Por Luana, por Marielle, e por tantas outras que serão lembradas e relembradas por mim, por você, por nós.
#lesbocidio#sapatao#luanabarbosavive#luanabarbosapresente#rebeldialesbica#resistencialesbica#resistenciafeminista#fimdamilitaizaçao#fimdapoliciamilitar#policiafascista#forafascismo#antifascismo#antiracismo#pelofimdogenocidiodopovonegro#lesbofobia
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Marielle e Mônica, PRESENTE!
"Lésbicas tem, acredito, uma relação particular com a opressão. Lésbicas são espancadas, são negadas a ter emprego, moradia, custódia de filhas e filhos; somos expelidas das universidades, internadas em hospícios, somos alvo de experimentação, assassinato e enfrentamos todo tipo de brutalidade que outras pessoas enfrentam sob diferentes formas de opressão. Mesmo assim, ainda que os efeitos sejam similares, penso que a opressão contra as lésbicas se distinguem de outras formas de opressão.
Em minha estimativa, lésbicas como um grupo não são primariamente marcadas como bodes expiatórios como, por exemplo, a opressão dos judeus foi construída. Lésbicas como um grupo não são primariamente caracterizadas de inferiores e retrógradas culturalmente como ocorre na justificativa de sistemas escravistas ou de exploração econômica. Lésbicas não tem suas terras roubadas para serem delimitadas e realocadas em reservas como ocorre na opressão contra os nativos norte-americanos. E lésbicas não são primariamente caracterizadas em relação a outros de forma que se defina nossas identidades como completas e nossa natureza preenchida através da subordinação de nossas vidas aos membros da sociedade dominante, como acontece na opressão contra as mulheres. A FORMA da opressão lésbica não é, em primeira instância, uma RELAÇÃO.
A sociedade paterna, ao invés disso, NEGA formalmente a existência lésbica: uma lésbica é descrita como uma mulher (heterossexual) que odeia homens (odiadora de homens/misândrica); o lesbianismo é tido como uma fase na vida de uma mulher (heterossexual); a lésbica é vista como uma mulher (heterossexual) que não é capaz de conquistar um homem; a lésbica é taxada como um homem no corpo de uma mulher (heterossexual). [...] E a ideia de mulheres amando mulheres é, então, impossível, inconcebível"
O presente trecho de Éticas Lésbicas (Lesbian Ethics) de Sarah Lucia Hoagland me remeteu instantaneamente ao fato de que a mídia, em grande parte, pretendeu negar a existência de Mônica, a companheira de Marielle. Programas e manchetes jornalísticas de massa não mencionaram sequer uma vez o fato de que Marielle era ativista LÉSBICA, negra, periférica. Ela estava confrontando o genocídio contra o povo negro e marginalizado, e também estava confrontando a lesbofobia! Em seu último pronunciamento aos parlamentares, Marielle afirmou a palavra LÉSBICA inúmeras vezes e enfatizou o combate contra os lesbocídios que acontecem no país. Expôs a atrocidade do fato de que, por semana, em geral, uma lésbica é assassinada, por ódio. Isso contando que nem todas, provavelmente, chegam ao conhecimento da população.
Até mesmo dentro dos movimentos sociais e de grupos autoproclamados feministas (heterossexuais, rs) a lesbofobia se manifestou no sentido da invisibilização e hostilidade contra as lésbicas que estão denunciando o crime como de ódio racista, fascista e lesbofóbico! Mulheres hostilizando lésbicas por dizermos a verdade que o patriarcado sempre buscou e sempre buscará negar: NOSSA EXISTÊNCIA E RESISTÊNCIA. Pessoas quiseram espalhar a falsa notícia de que Marielle era uma mulher bissexual. O que quem sabe o mínimo sobre o ativismo dela vai notar rapidamente que não é realidade. Um grande desrespeito e uma grande hipocrisia são as palavras que consigo usar para definir tamanho mal gosto! E como se não bastasse, rumores e difamações circulam a respeito de anos remotos da vereadora. Porém RESISTIMOS, de luto, LUTAMOS! Não permitiremos que a existência das lésbicas negras que vem confrontando e sofrendo as mais drásticas consequências da violência policial seja esquecida!
#MARIELLEVIVE#MARIELLEPRESENTE#MARIELLEEMONICA#MONICAPRESENTE#resistencialesbica#contraogenocidiodopovonegro#existencialesbica#naoacabou#fimdapoliciamilitar#politicafascista#racismo#lesbofobia#lesbocidio#lesbianethics#sarahluciahoagland#lesbicasradicaisresistem#SOMOSTODASMARIELLE
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Por que você se sabota?
Já se perguntou por que você se sabota? Por que calça as botas para caminhar no azar?
Muda a direção do seu próprio andar justo pro destino que não é o seu lugar
Deixa que o outro a ataque de tal forma que a leva ao encontro de um prazer disforme
Distanciando o seu ser de sua verdadeira FOME!
E perde a oportunidade de poder amar, da beleza partilhar, erotismo vivenciar
Consigo, com outras tantas, o mundo tem tanto lugar
Por que você não vive a vida? Já parou para pensar? Porque tanto se castiga se tem sede de amar?
Se sabe que quer trocar tocar transar olhar sorrir beijar acanhar em meio à novidade
quer também viver o que há com mais intensidade,
Mais presença, mais VERDADE
É! É que a vida é muito mais complexa
do que a moralidade que ou é côncava ou é convexa
E te deixa perplexa
Porque a realidade não é assim tão definida e é aí que a sabotagem é sua pior inimiga
Quando não se pode se viver o que se é as coisas ficam loucas e de si torna-se ré
Dá ré na expansão de grandes possibilidades. Implode o coração por superficialidades
Caindo na lógica da cruel necessidade
Mas não se necessita sofrer nem pagar tanto, melhor se refletir do que viver pronta pro espanto
O que sim é preciso é se valorizar, aprender a se amar
É bastante difícil mas podemos chegar lá
E jamais deixar o outro vir despedaçar
o que você tem de melhor e que quis compartilhar
Necessário é viver sua sexualidade de uma forma transparente e com dignidade
Poder não ter amarras,
se amarrar em corpas
belas
macias
pintadas de arte ou com as nuâncias delas
Por que você se sabota? Pra quê vestir as botas se queres andar descalça num mundo que adora?
É difícil enxergar onde é que está você mesma? Eu sei que esse buscar não é nem um pouco moleza
Mas essa, essa sim é uma prioridade. De verdade!
Abraçar você, sua corpa e a SUA mentalidade
Assim estará mais perto do que é a REALIDADE
Ao invés de sabotar, de si mesma escapar e o medo te derrotar, experimenta cuidar
Do seu peito machucado, olhar pra si e aninhar esse ser que pode errar
mas que é maravilhoso e merece ter cuidado, merece ser bem tratado
Afirme sua vontade e não deixe de viver quem você é de verdade
Não deixe de fazer o que te traz felicidade
Não insista em magoar-se e em estar com quem magoa
Acolha os próprios limites e não tenha vergonha
de não corresponder a qualquer ideal
Pois quem vai ter que arcar será você, no final
Você não tem que atingir expectativas alheias
Pois da sua potência só você tem a centelha
O que você realmente quer?
Quem é você, de fato?
Já se perguntou?
#autoestima#sapatao#pensamento lesbico#filosofia lesbica#poesia#poesialesbica#rima#verdadequeliberta#autonomiaemocional#misoginiainternalizada#lesbofobiainternalizada
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Dolores O’Riordan
A voz, a música e as mensagens de Dolores O'Riordan marcaram a minha infância e, em especial, minha adolescência, quando eu descobri que aquela música que eu amava se chamava Zombie e era apresentada por uma banda chamada The Cranberries. Foi uma amiga quem apresentou o clipe pela primeira vez, e essas melodias marcaram nossa amizade, marcaram outras também, marcaram aquele momento de nossas vidas pré-adolescentes. Eu andava pela cidade em plenos anos 2OO8 ouvindo repetidamente o álbum No Need to Argue e Stars: The best of 92-2OO2 e algumas canções da carreira solo da artista. Como uma ouvinte ingênua eu mal podia imaginar o porquê de as músicas compostas por Dolores terem tido uma ressonância tão grande em minha própria história. A profundidade emocional e crítica de suas composições não só me contemplavam, como chegavam a um nível de afetação fora do comum. E apenas após a sua morte eu fui compreender a razão disso.
A morte de Dolores, aos seus 46 anos de idade, significa muito mais do que se imagina, e infelizmente não estou falando de uma heroína que deu a “volta por cima”, sobre simplesmente uma grandiosa artista – coisa que ela era -, sobre uma guerreira que está aí e é um exemplo para todas nós. Não. O mais difícil nesse luto é compreender que sua morte foi uma grande tragédia que toca nas vidas e nas lutas de todas as mulheres que vivem neste mundo hostil. E é pensando em sua trajetória que esse sentimento de solidariedade e também de tristeza, de uma perda enorme, surge.
Há uma grande probabilidade de que Dolores tenha cometido suicídio através de uma overdose. Sabe-se que a causa da morte não está oficialmente confirmada, porém eventos recentes em sua vida demonstram que é uma teoria bastante provável. Todavia, está prevista para Abril a realização dos testes que confirmarão a causa da morte. Sua família quis privacidade no momento de luto, e os oficiais declaram não ter a intenção de tratar o caso de forma suspeita até terem os resultados.
A cantora era irlandesa e filha mais nova entre 9 crianças, dentre as quais 2 faleceram logo na infância. Ela era filha do fazendeiro Terence Patrick "Terry" O'Riordan e da funcionária escolar Eileen. Além da perda dos irmãos, ela declarou para uma revista em 2O13 que sofreu abuso sexual infantil dos 8 aos 12 anos por alguém da família, de sua confiança:
"Eu era só uma menina",
"Isso é o que acontece. Você acredita que é culpa sua. Enterrei o que aconteceu. É o que se costuma fazer - você enterra porque tem vergonha",
"Você pensa: 'Oh, Deus, como sou horrível e repugnante. Você cria um ódio contra si mesma que é terrível. E, com 18 anos, quando fiquei famosa e minha carreira deslanchou, foi ainda pior. Aí, desenvolvi uma anorexia".
Criada por uma família católica, Dolores cantava desde os 5 anos de idade, e ao início de sua adolescência já estava compondo suas primeiras canções. Nos anos 9O Dolores expandiu sua carreira juntando-se à The Cranberries.
Em uma entrevista interessante com Dolores e sua mãe, elas falam sobre a anorexia e os problemas de ansiedade que a compositora desenvolveu conforme convivia com a realidade da fama: constantemente em meio a multidões, muitas câmeras e todo aquele velho e conhecido assédio midiático pelo qual artistas famosas passam, Dolores comenta que não conseguia se encontrar em meio a esta confusão. Ela também afirma que a melhor coisa que fez foi ter um filho porque:
“Eu pensei: meu deus! Era aquilo que eu estava buscando: AMOR, amor verdadeiro!” comparando com o fato de que este amor não existe em meio às multidões e tudo o que ela vivia como artista. [clique e veja o vídeo]”
Foi impossível não pensar em Alice Miller - psicóloga winnicottiana e autora reconhecida por trabalhar com a questão do abuso sexual infantil e com os impactos da moral no desenvolvimento psíquico - e em sua obra A Revolta do Corpo. As pessoas não costumam se interessar pela infância de grandes artistas, pensadoras, etc. Porém, o interessante é que este éjusto o ponto chave para compreender o conteúdo da arte e pensamento produzido por quem vivencia traumas nessa fase da vida, bem como a turbulência que compõe sua trajetória . A falta de alimento afetivo e recusa do falso cuidado que se expressa na anorexia, que no caso da artista tem um continuum no que ela diz sobre a maternidade: o alimento que faltou estava ali, o amor. E a arte, que é uma via de sobrevivência e de existência, é um lugar para o verdadeiro eu daquela criança, que foi tão maltratada/negligenciada na infância, existir,. O triste é confirmar, na história de Dolores, o que a autora diz sobre a arte não ser o suficiente para a cura.
Há uma frase que um dia passou pela minha cabeça: Toda artista é uma criança que aprende a ser extraordinária por uma dose de amor que lhe pareça justa. É claro que eu, como profissional das artes visuais, não acho que a arte é puro sintoma psicológico ou coisa do gênero. É uma carreira, uma profissão como qualquer outra [que como qualquer outra, está relacionada com o psiquismo do indivíduo] , é uma escolha que se faz para a própria vida, que exige técnica e dedicação, uma forma de existir no mundo e de estar na sociedade, e tem uma potência inerente e muito valorosa! Tem, também, efeitos terapêuticos de sublimação, de associação, de ampliação, que podem ser grandes tripés para a boa resolução de sintomas patológicos. O que coloco aqui é o fato de que a arte envolve o nosso ser, envolve o psiquismo do artista, e é impossível sequelar uma coisa da outra. Infelizmente, há quem considere que a arte, sozinha, consegue dar conta de todos os nossos monstros, e essa não é a realidade.
Esta pode vir a ser uma questão polêmica, mas a revolta do corpo precisa de mais do que a vazão artística. Ela precisa ser testemunhada e legitimada por um outro. Ela precisa conseguir se libertar da moral para que possa existir. A pessoa precisa de uma escuta especial, parcial e atenta. Através da música, Dolores conseguiu enfrentar muitos monstros, e havia uma dose de legitimidade pela contemplação do público às suas composições, mas será que ela teve o suporte de uma testemunha esclarecida? Será que ela teve a chance de ter sua dor, sua raiva e o asco de ter sobrevivido à perversidade de um adulto acolhidas e confirmadas como emoções que tinha o pleno direito de sentir? Será que ela teve a chance de uma situação terapêutica na qual a escuta fosse a seu favor e a favor de sua verdade: da verdade de seu corpo? Ou a moralidade sufocou sua verdade em suas relações? Ou a impunidade de um perverso na família e na sociedade a levou ao ostracismo emocional e ao “Vazio”?
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Algo deixou minha vida
E eu não sei para onde foi
Alguém me causou um conflito
E não é o que eu estava procurando
Você não me enxergou? Você não me escutou?
Você não me enxergou parada lá?
Porque você desligou as luzes?
Você sabia que eu estava dormindo?
Faça uma oração por mim
Me ajude a sentir a força que eu sentia
Minha identidade foi levada
Meu coração está se partindo
Dentro de mim?
Todos os meus planos caíram das minhas mãos
Eles caíram das minhas mãos
Em mim
Todos os meus sonhos de repente parecem, de repente parecem
Vazios
Em Fee-Fi-Foo, Dolores denuncia o abuso sexual infantil com uma coragem extraordinária. Nesta música, ela confrontou seu agressor e contemplou milhares de outras mulheres que tiveram a infelicidade de passar por esta experiência.
Fee Fi Fo
Fee fi fo ela cheira o corpo dele,
Ela cheira o corpo dele,
E isso provoca nojo nela.
Ele tem muito o que responder
Responder por, arruinar a vida de uma criança
Como você pôde tocar uma coisa
tão inocente e pura? Sombrio
Como você pôde se satisfazer,
Com o corpo de uma criança?
Você é um canalha, você é...
É verdade o que as pessoas dizem -
Deus protege aqueles
que se ajudam Em sua própria caminhada
É verdade o que as pessoas dizem -
Deus protege aqueles
que se ajudam Em sua própria caminhada...
Ele estava sentado no quarto dela,
No quarto dela
E agora o que ela deveria fazer?
Ela tem muita insegurança
E a impunidade... Foi o cúmulo da tristeza
Como você pôde tocar uma coisa
Tão inocente e pura? Sombrio
Como você pôde se satisfazer
Com o corpo de uma criança?
Você é um canalha, nojento
É verdade o que as pessoas dizem -
Deus protege aqueles
que se ajudam Em sua própria caminhada
Eu frequentimente me pergunto...
Quem proteje aqueles que não podem se protegerem?
É verdade o que as pessoas dizem -
Deus protege aqueles
que se ajudam Em sua própria caminhada
Eu frequentimente me pergunto...
Quem proteje aqueles que não podem se protegerem?
Fee, fi, fo;
Fee, fi, fo ?
Fee, fi, fo;
Fee, fi, fo ?
(bem, você gostou?)
E em outras canções, a artista confrontou a guerra, a opressão e as injustiças do mundo, bem como expôs a profundidade e delicadeza emotiva que a habitava. Essa transmissão de afetos esperançosos e alegres, melancólicos e agressivos que conseguia fazer com suas composições sempre foi o elemento que me causou maior admiração, além da qualidade técnica muito refinada de sua voz.
Poucos anos depois de se juntar ao The Cranberries, Dolores casou-se com o organizador da turnê de Duran Duran e teve três filhos. A cantora chegou a dizer para a revista Life, ao falar sobre a questão do abuso sexual, que “as crianças foram, na verdade, algo elemental no processo de cura”. Isso remete, novamente, a algo curioso apontado em A Revolta do Corpo, a respeito do fato de que muitas pessoas sobrevivem mais longamente e lidam com os traumas pela transmissão psíquica que ocorre quando elas veem a ter filhos. O que pode parecer uma fala até romântica da cantora, do ponto de vista da moral familiar é, na realidade, a descrição de mais um sintoma gerado em mulheres que sobreviveram abuso sexual na infância e se tornam mães:
“Fica difícil, também, quando você tem filhas, porque você acaba tendo flashbacks quando está com elas e as observando. Você pensa: como é possível alguém tirar satisfação de uma coisa dessas, sabe?”
Não é difícil concluir que Dolores sofria com a depressão pelo tom melancólico e a denúncia implícita em cada uma de suas músicas. E quando não se tem o suporte necessário para resolver os traumas, muitas mães e pais estendem seu sofrimento nas vidas de seus filhos, e o modo varia desde agressões até a transmissão da sensação irremediável de tristeza, que pode vir a se tornar uma forma de negligência.
Dolores enfrentou, ainda, no ano de 2O11, a morte de seu pai. A artista teve um luto muito difícil, além do fato de ter reencontrado, no funeral, depois de muitos anos, o homem que a violentou na infância. Estou certa de que esses dois eventos em conjunto tiveram um impacto nocivo na saúde psíquica da cantora. Em 2O13 ela tentou cometer suicídio induzindo uma overdose. Nessa época, lidava dificultosamente com o alcoolismo e com a depressão. O álcool era uma ferramenta para manter-se na rotina turbulenta de shows e público. Em 2O14 seu casamento terminou e ela foi diagnosticada como bipolar depois de um surto agressivo contra um policial, quando começou a ter cuidados psiquiátricos.
Por esses eventos recentes e pelo fato de que a ideação suicida já fazia parte da vida de Dolores, como da de muitas sobreviventes de abuso, além do conteúdo de algumas de suas músicas, como na esperançosa letra de “Free to decide”:
“I'm free to decide
And I'm not so suicidal after all”
é que acredito que há uma possibilidade muito alta de ela ter tirado a própria vida. Mas o fator que deve ter sido o gatilho final é ainda mais triste: ela desenvolveu uma doença na coluna bem na região dos músculos do diafragma, o que a fazia sentir muita dor ao se esforçar para cantar. A voz que a levou a possibilitou viver alegrias, compor músicas inesquecíveis, a marcar a história da música e representar uma figura tão importante e inspiradora para tantas artistas ao redor do mundo todo e a enfrentar os próprios demônios e os da humanidade, no fim não pôde mais se manifestar. Imagino que, se ela realmente se suicidou, essa tenha sido a gota d'água: a revolta aglomerada e a exaustão de conviver com tanta fama chegou a tal ponto que o corpo a impediu de cantar e, infelizmente, esta mulher incrível já não teve forças para suportar tudo o que surgiria, em um mundo interno tão dolorido, de um silenciamento drástico como este..
Estive desde a minha adolescência indignada pelo fato de ela não ser lésbica. Foi aos 14 anos que desenvolvi uma paixão platônica absurda por essa artista maravilhosa, e desde então a admiro muito. A morte de Dolores foi, para mim, um soco no estômago e um aperto no coração, e isso se intensificou com a descoberta, só após sua morte, de que ela era,também, uma sobrevivente, o que me parece muito injusto: descobri-lo depois de, na verdade, ela não ter conseguido sobreviver. Mas para além de tudo isso, a morte de Dolores é um grande alerta, urgente para que as mulheres, especialmente, não se esqueçam. O trauma sexual infantil pode levar alguém à morte, por mais que se sobreviva ao ato em si, há um processo de sofrimento que se desenvolve ao longo da vida. Não é uma condenação, é a tentativa esforçada da psiquê de suportar o mundo, mas quando a dor não pode existir por uma moral que obriga a perdoar, que obriga a não falar explicitamente sobre a violência e a injustiça, que deslegitima a raiva e a existência de uma criança com tamanha potência, o corpo e a mente adoecem progressivamente. Isso leva a sobrevivente a ter problemas emocionais e psicossomáticos na vida adulta.
É bastante inconsolável o fato de mais uma mulher incrível ter sucumbido por exaustão pelo parasita psíquico do trauma causado pela existência de um poder masculino perverso e da solidão do lugar de uma artista tão sensível. É também revoltante saber que muitas pessoas tomariam o que digo aqui como um exagero, como uma suposta “propaganda de um lugar vitimista” ou coisa do gênero. Seria interessante se chegasse o dia em que as pessoas se preocupassem com a gravidade dos efeitos causados pela violência contra uma menina. Infelizmente é muito provável que nossa querida Dolores tenha sido, no final, uma vítima fatal dessa atrocidade e da negligência da sociedade com relação a isso.
Notas:
Eu gostaria de deixar claro que não pretendo, com esse texto, falar de conceitos psíquicos de forma rígida, nem uma leitura que possa ser feita de forma generalizada e padronizada. Muito menos usar esta tragédia como afirmação de um lugar político por propaganda identitária. Além disso, penso que a morte de Dolores, na hipótese do suicídio, envolve uma série de fatores e toda uma complexidade de sua trajetória como artista, como mulher, como mãe, e não unicamente o abuso sexual. Friso, todavia, que é importante considerar os traumas de infância como gênese psíquica da vida adulta, e aí está a importância da experiência terapêutica. A psicanálise e a psicologia formam um campo muito complexo pra que pessoas que não são da área emprestem de uma reflexão fluida como esta que fiz conceitos a serem empregados a bel prazer e sem responsabilidade intelectual e ética. Sou leitora e me interesso pela área, mas não tenho experiência em clínica psicoterapêutica, portanto estou aberta a críticas.
Não necessariamente uma pessoa que tem o suporte psíquico preciso para a resolução do trauma do abuso estará automaticamente 1OO% livre da ideação suicida ou qualquer coisa do gênero. Mas, como artista, estudiosa e curiosa das áreas da psique e sobrevivente, eu mesma, aconselho às mulheres que sofreram agressões sexuais na infância a buscarem terapia e terem consciência de que precisam de um espaço que esclareça e LEGITIME sua dor e seu sofrimento sem a interferência de moralismos e ideias familistas, que impedem as pessoas de se curar, de sentir o que seu corpo realmente está sentindo. Acredito que esta é uma via crucial para o processo de cura, para que as mulheres que sobreviveram a isso possam finalmente se relacionar com o mundo e as pessoas de forma inteira, sólida, autentica e responsável. Para que elas possam ser quem são, para que possam vivenciar maior controle emocional e não serem mais vítimas das circunstâncias ou das vontades absurdas e anuladoras em suas relações.
Que Dolores O'Riordan descanse em paz e reverbere como uma grande artista que enfrentou suas dificuldades como e até onde pôde. Que sua história e sua luta não seja esquecida, nem apagada! Ela marcou a história da música e a memória afetiva de muitas pessoas de minha geração! Quem dera eu a pudesse ter conhecido!
R.I.P. Dolores O' Riordan,
the female artists that also couldn't make it
and the unknown ones...
Referências:
Abuso sexual e transtorno bipolar marcaram a difícil vida de Dolores O'Riordan, vocalista do Cranberries
Mother of the late Dolores O'Riordan has thanked the people of Limerick for their support Sexual Abuse, Depression and a Prior Suicide Attempt: Inside Dolores O'Riordan's Difficult Life Wiki Dolores O’Riordan A Revolta do Corpo - Alice Miller
#dolores o'riordan#rip#homenagem#female artists#the cranberries#suicide#abuso sexual infanti#vulnerabilidade#feminismo#Alice Miller#a revolta do corpo#patriarcado#artista resiste#resistencia feminista#mulheres na arte
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Foucault era materialista
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Pesquisando, lendo e relendo um pouco mais sobre a obra de Foucault, acho cada vez mais curioso o fato de seu pensamento - na verdade, mais o seu nome, que era justamente o que ele não queria com sua filosofia - ser tão lançado no discurso ideológico das políticas identitárias. Porque afinal Foucault é expressamente radical em seus questionamentos e seu método abertamente materialista e histórico, crítico. Suas bases filosóficas estão em Nietzsche, Marx, Spinoza, pensadores que ele cita para explicitar que as instituições podem ser compreendidas como mecanismos de uma rede de poder que tem a própria história e na qual as pessoas estão entrelaçadas quer queiram ou não. Foucault foi um pensador radical por questionar a estrutura de poder em si, punitivista, suas ferramentas e a participação de cada pessoa na mesma, vindo a ter uma postura crítica inclusive às propostas dos movimentos revolucionários. O debate é muito bom, vale a pena! E me fez pensar também no quanto o fato de se deparar com a discordância pode ser construtivo, o fluxo da argumentação entre Foucault e Chomsky, constrói uma conversa bem interessante de assistir!
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Método Teórico X Método Ideológico: vulnerabilidade afetiva e programação no ativismo político
Ideologia x Teoria
Quando a pluralidade é tirânica, eis a Ideologia agindo. É o momento em que uma Ideia é mais valorizada do que a realidade com seus seres viventes e sensíveis, através de métodos que a institucionalizam.
Quando a pluralidade é tirânica? Quando o “nós” torna a expressão do pensamento de um indivíduo ou grupo em verdade absoluta, o tipo de discurso demonstrativo de uma intenção que não considera a diferença e a discordância como ferramentas metodologicamente significativas (TREBILCOT, 1990).
Como explana Marilena Chauí (1980), pela ótica da proposta de Marx, os métodos da Ideologia divergem quase que inversamente dos da Teoria, pois aquela persuade para que suas ideias sejam fixadas como essenciais – tornando-se “leis da natureza” - e sustentem uma moral que existe supostamente em prol da “comunidade”, mas serve, na realidade, aos interesses de certos indivíduos ou certo grupo de pessoas; enquanto esta só pode existir pela possibilidade de mudança, pelo interesse da pesquisa e da descoberta cada vez mais profunda, talvez não de uma realidade essencial das coisas, mas de como elas funcionam e afetam de fato corpos que são sensíveis, existentes e agentes no mundo.
A Teoria pode ser refutada. Uma tese pode ser alvo de uma antítese. Uma pesquisa feita com ambas pode se tornar uma síntese, e assim a filosofia, a ciência, a ética, a psicologia, o holismo, a consciência ecológica, enfim, várias coisas podem se complexificar, enriquecer, diversificar. É óbvio que todas essas coisas, quando manipuladas por interesses patriarcais, podem facilmente utilizar de mecanismos ideológicos, falseando seus métodos e apresentando-se como Teorias: isso é o que eu chamo de inversão ideológica – o ato de apresentar uma ideologia mascarada de teoria.
Se o meu método é ideológico ou teórico depende de se eu quero trabalhar uma ideia com um senso de partilha e participação, com espaço para o questionamento e a discordância (que muitas vezes podem também me beneficiar), ou se eu quero trabalhar esta ideia com os métodos da tirania, personalizando-a, fazendo dela um tipo de Lei, de Verdade.
Outra diferença fundamental entre tais métodos é a seguinte: a teoria tem referência na realidade material das coisas, já a ideologia busca referências na identificação. Ou seja, as teóricas preocupam-se com fatos, com dados, com categorias, e a partir deles criam uma linha de pensamento, enquanto defensores de uma ideologia preocupam-se apenas com o quanto se identificam ou se interessam por ela, ou o quanto ela os favorece. É claro que no processo de construção de uma teoria é possível o surgimento de uma nova ideia, bem como, até mesmo, a criação ou especulação de conceitos e leituras nunca antes pensados a respeito de um fenômeno, porém seu alicerce sempre se encontrará na tentativa de fazer referência a estruturas sociais, materiais, orgânicas, psicológicas, filosóficas, etc. Já a ideologia pode se sustentar apenas por uma lógica identitária e, muitas vezes, excessivamente subjetiva.
Acredito que não há processo coletivo algum isento de transformar-se em Ideologia. Desde aqueles que já o tem como objetivo até aqueles que pretendem impulsionar um movimento revolucionário. Uma teoria pode ser reduzida e seu movimento ser mal compreendido ao ponto de ser apresentada de forma dogmática (inversão ideológica). O discurso é uma ferramenta, e pode ser proposto de diversas maneiras. Uma delas é a da mídia hegemônica, que distorce, falseia, reduz, estigmatiza e abdica do conhecimento para propagar informação que, além de ser superficial, é mentirosa e representa apenas os interesses dos tiranos. A mídia em si não se define por isso, pois pode ser utilizada de forma estratégica e subversiva. O que caracteriza a comunicação como ideológica ou não é a presença ou ausência de uma certa intenção no discurso, que pode torná-lo persuasivo e pretensioso, isento de interrogações, o que nem sempre aparece de maneira explícita mas está presente.
A ideologia quer propaganda
A grande pergunta é: por que a inversão ideológica acontece no ativismo político? Enquanto o método teórico busca questionar e propor novas formas de pensar, o objetivo do método ideológico é apenas o de autopropagação. Não é por acaso que ilustrei aqui o exemplo da mídia, porque isto remete à questão das causas sociais sendo dinamizadas com o objetivo de tornarem-se mainstream. Terri Strange cita que não há como ser radical e mainstream ao mesmo tempo, isso se estamos falando da política radical de fato, dos princípios éticos, propostas filosóficas e teóricas de fontes lésbicas com seriedade. Concordo com isso porque o universo mainstream tem um caráter muito comum à grande mídia televisiva: repleto de reducionismos, distorções e futilidades, além de ser também um festival de imagens. Inclusive, nesse universo, as pessoas querem falar sobre conceitos teóricos e pensadoras que, na realidade, sequer consultaram. Isso me indica que a inversão de conceitos teóricos em ideológicos implica, necessariamente, na má compreensão ou apreensão superficial de tais conceitos.
Portanto há autodeclarados “marxistas” que reforçam a moral familista, por exemplo – mesmo que as análises do materialismo histórico tenham questionado a família como fundamental mantenedora das relações proprietárias e capitalistas -, e não toleram que tal moral seja questionada, ou não toleram que propostas de reflexão vinda de outras vias como a linha teórica radical do anarquismo sejam provocadas. Assim, feministas marxistas reforçam e até cobram uma postura romântica em relação à maternidade e à heterossexualidade, sustentam a narrativa da eterna vítima da socialização, ainda que pensadoras radicais que também tem como referência a análise materialista pontuem que temos agência, ainda que o próprio Marx tenha deixado bastante evidente sua intenção de instigar a classe oprimida a levantar-se por sua libertação, como é bem óbvio por exemplo no Manifesto Comunista.
Assim anarquistas dizem combater o poder e a propriedade mas não abdicam de exercer a opressão estrutural misógina contra as companheiras de luta. Dizem ser, muitas vezes, radicais e abolicionistas com relação ao Estado, ao Capital e ao Poder mas aderem à propostas extremamente contrarrevolucionárias e liberais como o movimento queer e suas políticas identitárias, que me parecem obviamente capitalistas e nitidamente ideológicas.
Assim as políticas radicais lésbicas são vergonhosamente distorcidas ao Radfem da internet, que envolve indivíduos que não querem fazer política e uma profunda transformação - a começar, em suas próprias vidas -, mas sim ganhar visibilidade e popularidade no movimento. Isso faz com que o esforço intelectual de teóricas mais experientes do feminismo radical e lésbico seja desvalorizado, quando textos super desenvolvidos e profundos transformam-se em citações rasas de facebook. Reduz-se conceitos complexos à definição oportunista e irresponsável de quem se apropria dos mesmos sem ter sequer a preocupação de compreendê-los. É o que vemos acontecer com os conceitos de lugar de fala e hostilidade horizontal, por exemplo, quando distorcidos a um “posso impor qualquer preceito a outras sem ser questionada” e “posso banir outra lésbica do movimento acusando-a de agressora sem justificativas”, respectivamente.
Nesse contexto de busca voraz por popularidade, a atividade política intensa de uma pensadora lésbica, por exemplo, que investe tempo e energia escrevendo e traduzindo, disponibilizando material e pesquisa, é desconsiderada e desvalorizada por mera competitividade e falta de autocrítica. Assim, coletivos se desmantelam, deixam de existir repentinamente, ou simplesmente perdem seu caráter ativista por completo e tornam-se clubes para promover festivais identitários e personalistas. Assim, lésbicas e mulheres subversivas e marginalizadas são ostracizadas por inveja feminina. Afinal, não há espaço para o coletivo e para a alteridade na propaganda ideológica.
É assim, com o objetivo da popularidade, que propostas teóricas e revolucionárias são mutiladas e adulteradas ao ponto de constituírem um método ideológico.
Programação
O documentário Deprogrammed (2016) denuncia os extremos em que a programação ideológica pode chegar. Aborda a invenção da desprogramação por Ted Patrick durante o backlash sofrido nos anos 60-70 nos EUA contra os movimentos revolucionários, em que começaram a aparecer líderes de seitas espiritualistas radicais que seduziam a juventude rebelde da época a “mudar o mundo” com um “novo estilo de vida” em busca da paz e do amor. Subversivos assistiram companheiros de luta tornarem-se fanáticos ideológicos por uma neo-religião, por um líder personalista. Famílias perderam seus adolescentes que abandonavam as próprias casas e vidas sob a promessa de um mundo novo ao lado de seus gurus. Foi a fórmula perfeita para converter a potência revolucionária de toda uma geração em trabalho servil e de pregação, bem como em fonte de grandes riquezas centralizadas nos líderes dessas seitas. Além disso, o abuso sexual e a pedofilia eram práticas predominantes. Nesta época a grande tragédia de Jonestown ocorreu, quando o líder Jim Jones levou 900 pessoas, dentre elas 300 crianças cujos pais lhes deram veneno, ao suicídio coletivo. Um ponto chave desse fenômeno sinistro e trágico que o caracteriza ainda mais como um backlash aos movimentos de libertação é o fato de os governantes da época, Reagan e outros, terem oferecido apoio financeiro e jurídico para esses grupos e seus líderes, mesmo depois de tal tragédia. Enquanto isso Ted sofreu perseguições e foi preso diversas vezes pelos métodos que utilizava para salvar os jovens do fanatismo, e o apoio que recebeu para aprimorar a desprogramação estava longe de vir de figuras de poder político.
Ilustro o contexto deste documentário para fazer um paralelo com quaisquer outros processos coletivos. Como dito anteriormente, acredito que qualquer grupo esteja sujeito a esse tipo de mecanismo. A programação facilita processos de abuso ritual², quando alguém é sugestionada, catequizada e, à medida que torna-se integrante da seita, obrigada a seguir os dogmas e ordens do culto em questão; e então, se ocorre a manifestação de quaisquer discordâncias ou questionamentos, a pessoa estará sujeita a diversos tipos de violência acusatória, desde a chantagem emocional e difamação pública até a coerção física psicológica. Terri Strange afirma que o trashing envolve tais técnicas abusivas. É uma maneira coercitiva e hostil de enquadrar as pessoas a determinada ideologia e de exercer controle social no grupo, eliminando qualquer ameaça à uniformização.
Nos grupos descritos acima, que se pretendem teóricos porém tornam-se dogmáticos por meio da inversão ideológica, o mecanismo da programação e de práticas de abuso ritual se fazem não apenas comuns, como também necessários. A Ideologia não funciona sem programação. É por isso que “ativistas” mainstream utilizam de uma comunicação acusatória, hostil e determinista, ao invés de uma que é crítica, tolerante e aberta a inovações¹.
Psicologia da programação
- Os afetos em Spinoza
Spinoza descreve, em sua Ética, que podemos atingir três níveis de conhecimento. Imaginário, racional e intuitivo. Aqui terei um foco nos dois primeiros. Segundo o filósofo, a potência do corpo e da mente é influenciada e modificada pelas afecções sofridas nos encontros com outros corpos, ou seja: pelos afetos. Quando estamos no nível imaginário, eis o estado descrito pelo autor como estado de servidão. O conhecimento imaginário se dá quando nossa potência corpórea e mental funciona à mercê da imaginação que temos daquilo que nos afeta como causa em si mesma daquele afeto. Ou seja: quando não entramos em contato com nosso próprio funcionamento emocional e psicológico e concluímos que são as coisas de fora, que é sempre o outro que determina todo o nosso estado. Já o conhecimento racional é quando desenvolve-se a crítica, o questionamento a respeito daquele afeto, é o perguntar-se se suas causas não podem ser mais profundas ou diferentes daquelas que imaginamos no primeiro nível. É aí que temos a oportunidade de vislumbrar que é possível afetar-se de maneiras diferentes e tornar-se causa própria de nossa potência. No nível racional mora a autonomia de pensamento.
A título de ilustração: imagine a situação de projeção psíquica dentro de um grupo feminista (algo que acontece com muita frequência). Uma integrante do coletivo se destaca em termos de habilidades de liderança, eloquência, e facilidade de falar em público. Não raro outras podem sentir-se intimidadas por aquela figura por não terem, ainda, desenvolvido aquelas capacidades tanto quanto gostariam, e então projetam este afeto de intimidação na pessoa em questão, taxando-a, essencialmente, como uma pessoa intimidadora. A intenção da pessoa em destaque não necessariamente é a de intimidar ninguém, é muito maior a possibilidade de ela estar, em realidade, fazendo um esforço para compartilhar seu conhecimento e dedicar suas habilidades em prol do desenvolvimento do grupo. Porém, vem a sofrer as consequências da projeção do grupo tornando-se um verdadeiro bode expiatório e sendo, aos poucos, hostilizada e ostracizada pelas outras. Estas outras, que projetam seus afetos em uma que se destaca, estão no nível imaginário descrito por Spinoza, pois tem uma ideia inadequada de seu afeto, acreditando que a outra é a causa em si mesma deste afeto e que, ao hostilizá-la e ostracizá-la, elas se livrarão deste afeto triste. Sabe-se, no entanto, que isso não ocorrerá, porque a estrutura psíquica dessas pessoas é, desta forma, mantida na zona inerte que o autor denomina estado de servidão.
Agora imagine que uma das pessoas do grupo comece, por algum motivo, a se questionar a respeito do que sente por aquela outra e a pensar que ela, talvez, sinta vontade de também ter aquelas habilidades e recorra a quem as tem para acompanhá-la na construção de sua segurança e autoconfiança para falar em público e propor projetos para o grupo. Suponha que esta pessoa, no momento em que o grupo tende a criar um bode expiatório de uma liderança útil ao coletivo, critique e contrarie a atitude do grupo, pontuando que não necessariamente a pessoa está dominando, mas o grupo é que precisa desenvolver suas habilidades para propor, discordar, debater e se colocar tanto individual quanto coletivamente. Esta pessoa atingiu o nível racional descrito pelo autor, quando percebemos os elementos que nos caracterizam como causa própria de nossa potência e assumimos responsabilidade de nossos afetos ou, ao menos, de certos aspetos deles. Em sua obra, o filósofo enfatiza que os afetos não são gerados sozinhos por este ou aquele ser, e sim pelo encontro entre eles. Aí é onde se deixa o estado de servidão para atingir a autonomia de pensamento.
Bem, mas por que falar em Spinoza? Muitos acusam equivocadamente seu pensamento como “subjetivista”, como responsabilizador das classes oprimidas de seu sofrimento e de seu estado servil. É uma conclusão equivocada porque Spinoza enfatiza que é justamente este o estado pretendido pelas camadas manipuladoras e opressoras as quais, surpreendentemente para alguns, ele também descreve como presas no nível imaginário de conhecimento:
“[...] é evidente que há uma produção social da tristeza, à medida que o poder (constituído pelos homens tristes) precisa da tristeza das pessoas para ser desejado: eis a denúncia de Spinoza. Se numa determinada sociedade há muitos indivíduos que vivem submetidos às relações que não combinam com a sua natureza, é evidente que, durante a maior parte da vida, eles tenham um constrangimento cada vez maior da sua potência de agir e de pensar, e tornam-se cada vez mais ignorantes dos afetos que são capazes, excedendo, muitas vezes, a capacidade de serem modificados; além disso, por viverem tristes e impotentes, estão muito vulneráveis aos afetos de ódio, ira, vingança e outras paixões nocivas, isto é, estão também muito próximos de desejar eliminar a causa imaginária dos seus males, mesmo que seja através da morte de alguém.” (FERREIRA, 2009).
O filósofo postula que as pessoas que exercem esse tipo de controle sobre um grupo, que representam uma liderança ideológica (que não é teórica nem produtiva), estão também no nível imaginário porque dependem de afetos tristes como o de soberba, quando depende-se sempre do outro para validar e sustentar a própria potência do indivíduo. Trata-se, basicamente, da pessoa que vive de imagens, cujo bem-estar e autossatisfação depende da aprovação social, do grupo; depende dos elogios, dos likes, dos shares, e por aí vai. Quando, em momentos em que atingimos o nível racional, tornamo-nos motivação de nossa própria potência, não se faz necessária a fama ou a visibilidade exacerbada para produzir o que se quer, nem para sentir-se realizada. Além disso, existem os afetos de ódio, como o afeto de vingança que, grosseiramente descrito, seria aquele de quem age na base do “se eu não estou feliz e não posso estar feliz, por algum motivo que conheço ou não, os outros também não podem, e eu posso infringir-lhes sofrimento”. É uma forma de forçar o outro a servir tal indivíduo, lançando a própria tristeza no outro, como uma forma de expurgá-la de si temporariamente.
- Vulnerabilidade afetiva e hipnose
Disso conclui-se que existe a grande incidência, a nível social, de uma vulnerabilidade afetiva. A isso é importantíssimo acrescentar que uma das técnicas mais importantes da programação é a hipnose. Esta técnica é largamente utilizada em todas as religiões, e se faz valer também em grupos políticos através do discurso hipnótico.
Enquanto líderes religiosos utilizam da hipnose - pastores e padres que, com seus discursos emocionados, dizem às pessoas para fecharem os olhos enquanto promovem uma fala totalmente carregada afetivamente, acompanhada de músicas dramáticas, prometendo amparo e esperança àquelas que buscam a religião, em grande parte, justamente por estarem vulneráveis e desamparadas; gurus que induzem o estado de meditação através de substâncias ou não, e enchem as cabeças de seus discípulos de um sistema moral enquanto estão com consciência alterada; líderes que utilizam o estado de possessão para impor e fazer valer seus dogmas e sistemas de valores a fim de enriquecerem seus centros; dentre tantos outros casos que vemos nas instituições e grupos religiosos e espiritualistas – líderes de grupos políticos que se dizem ativistas e que praticam a inversão ideológica utilizam o discurso hipnótico. Essa façanha não necessita de um estado alterado de consciência para funcionar, e sim de, apenas, ouvidos despidos de crítica e vulneráveis, ou seja: de pessoas que estejam no nível imaginário de conhecimento.
O discurso hipnótico funciona mais ou menos como um mindfuck. É um tipo de linguagem que confunde e engana sobre o próprio discurso que está sendo dito, mascarando suas contradições e escondendo suas incoerências. Para exemplificar de maneira simples, imagine que, numa reunião feminista, alguém diz: “eu não sou a favor de fofocas, concordo que é antiético atacar uma pessoa ausente e que isso reforça a competitividade feminina, mas acho que fulana deve sair do grupo porque ela é abusiva e prejudicial”. Imagine que fulana não está presente para defender-se nem debater sobre o que está sendo colocado, o que a impossibilita de lidar com a acusação. Este “mas” na frase é um recurso hipnótico, pois faz com que pareça possível a pessoa assumir simultaneamente duas posturas totalmente antagônicas em sua ética e prática política.
A libertação na sabedoria
Acredito que vivemos num mundo em que somos cada vez menos estimuladas a reconhecer-nos como causa própria de nossa potência e, cada vez mais, impulsionadas a consumir. Consumir não apenas produtos mas ideias, pontos de vista, pensamentos e conceitos prontos, fechados. Além disso, somos também ensinadas a vender, a sermos consumidas. Nosso ativismo, nosso discurso, nossas ideias e nossas premissas éticas, no método ideológico, são sempre feitos para a outra ver e consumir como verdades, e não como propostas para a outra refletir e ter a possibilidade de dialogar conosco, de posicionar-se de forma autônoma e construir, em grupo, um debate.
Quando assumimos nossa vulnerabilidade e o que nos levou até ela, assumimo-nos sobreviventes no patriarcado. Tenho em mente que lésbicas e mulheres em geral sobrevivem, e não há como passar pelas violências sexuais, psicológicas, físicas, sociais, econômicas, dentre outras, sem desenvolver mecanismos de defesa para tanto, sem desenvolver sintomas que, muito longe de representar enfermidade, representam, na realidade, saúde, pois são os recursos dos quais dispomos psiquicamente para sobreviver em determinados momentos de nossas vidas. Porém, a proposta de nossa herança, saberes e construção teórica feminista, lésbica e radical tem como objetivo a libertação das mulheres desse tipo de servidão. Homens vem fazendo a inversão ideológica ostensivamente e mentindo sobre a história, a essência e a existência das mulheres e do patriarcado. Homens, mesmo quando desenvolvedores de processos teóricos úteis, quando tocam na questão do feminino e do lésbico, muito geralmente acabam por discursar de forma ideológica.
Reconheço, por isso, como meu papel ético e político como lésbica radical, valorizar e fazer parte do processo de forma prática e com métodos teóricos, trabalhando numa recusa, ao máximo, do método ideológico. Afinal, a libertação não consiste simplesmente em reconhecer-se como vítima. Este é apenas o primeiro passo, o que parece que foi esquecido por muitas ativistas, quando acomodam-se nessa posição humilhante para as mulheres e até criam uma identidade com este lugar. Não, eu digo, assim como sugiro a outras: a libertação consiste em, reconhecendo-se como vítimas percebermos que somos sobreviventes – conceito no qual já surge a agência, pois para sobreviver fazemos determinadas escolhas, sejam elas totalmente conscientes ou não, como a escolha que uma sobrevivente de abuso sexual faz pela arte para elaborar seu sofrimento, por exemplo - e, daí então, poder nos tornar, enfim, viventes, lutando para construir nossa autonomia e independência, nossa própria ética e apoio mútuo.
A servidão é uma faca de dois gumes. Ela pode representar uma zona de aceitação social e, portanto, de conforto, e esse parece ser o maior tabu dos ativismos políticos, bem como do feminismo: a recusa a reconhecer a própria agência. A partir do momento que me conscientizo politicamente e quanto mais o faço, mais a minha agência cresce e maior é a possibilidade de eu compreender meus processos afetivos afim de buscar a cura para os padrões que me fazem mal e tornar-me mais autônoma e livre. Por outro lado, mais eu serei requisitada pela realidade e por minha própria consciência a tomar responsabilidade de minhas atitudes e de refletir criticamente sobre as impressões e sentimentos que outras me despertam, “fardo” este que nem todas gostariam de assumir.
Finalizo com a noção que Spinoza propõe sobre o conceito de sabedoria. Nem sempre temos controle sobre as circunstâncias e mesmo quem busca a racionalidade a respeito de si oscila entre os níveis e entre os afetos. Somos humanas e não há obrigação alguma de atingir a perfeição. Além disso, existe o mal que um pode causar sobre outro, e nem sempre depende apenas desse outro ter consciência ou não de seus afetos para evitar o dano. Esta é a situação que o autor descreve como aquela em que o encontro não favoreceu uma composição deste outro corpo e/ou outra mente comigo. É necessário, portanto, saber quando retirar-se do enredo que não se compõe com minha natureza. Por vezes, é necessário afastar-se de cenas e de pessoas que sustentam dinâmicas tóxicas que nos magoam e prejudicam. Por outras, saber quando ser modesta para se proteger, pois nem sempre a visibilidade, ser o centro das atenções, é algo vantajoso. Dentre tantas coisas que compõem a sabedoria, é necessário priorizar aquilo que favorecerá a nossa potência e a daquela com quem estamos aliadas. Uma pessoa sábia jamais pretenderá prejudicar outra em benefício próprio, bem como jamais aceitará submeter-se ao prejuízo em prol dos interesses egoístas de outra. Acredito que com esta atitude temos condições de combater e nos afastar das incoerências que vem minando nossos processos revolucionários.
NOTAS:
¹ Para melhor compreensão da diferença entre o processo crítico e o acusatório, sugiro a leitura dos textos:
- Crítica X Acusação: a diferença entre o propor e o impor no debate entre lésbicas – Filosofia Lésbica
- Sobre violência virtual (exposições) contra mulheres dentro do feminismo - Pensadora Radical
- Trashing: o lado sombrio da sororidade – Jo Freeman
² Abuso ritual: o termo em si é utilizado para nomear o estupro em contextos ritualísticos, e é necessário não ausentar seu significado devido. Aplico o conceito no texto pois essas manipulações emocionais, chantagens e coerções psicológicas fazem parte de um processo abusivo que pode resultar e/ou ser utilizado para justificar à vítima o estupro dentro de seitas.
REFERÊNCIAS
Joyce Trebilcot. Dyke Methods. Lesbian Philosophies and Cultures, 1990. editado por Jeffner Allen. (traduzi este artigo e posso disponibilizar para quem quiser, é só mandar um inbox).
Marilena Chauí. O que é Ideologia? 1980.
Terri Strange. Radical Feminist Philosophy and Choice. 2017.
_____________. Trashing. 2017.
Amauri Ferreira. Introdução à filosofia de Spinoza. Editora Quebra Nozes, 2009.
#ideologia#programação#vulnerabilidade#pensamento lesbico#competitividade feminina#feminismo radical
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Crítica x acusação: a diferença entre o propor e o impor no debate entre lésbicas.
Pela leitura do texto da filósofa radical e sapatão separatista Joyce Trebilcot, Métodos Sapatão, o qual eu traduzi e estarei publicando em breve, senti-me inspirada a discutir e aplicar alguns de seus conceitos à situação de críticas e discordâncias que ocorrem especialmente entre lésbicas e mulheres no ativismo feminista. Nesse ensaio a autora discute a questão do discurso e da forma como as diferenças entre mulheres são consideradas em seus espaços e relações.
Se tem algo que eu repudio na vida é que alguém exija de mim atitudes e iniciativas que esta pessoa não tem e não toma. Eu detesto me sentir controlada em qualquer nível, e não aceito tão facilmente uma crítica da qual discordo ou reconheço como hipócrita, já que muitas vezes trata-se de um princípio que a pessoa quer que eu aplique em minha vida mas ela mesma não aplica na sua. Isso é uma questão de ego? De ser orgulhosa? Talvez reconheçam isto desta forma em mim por ser uma sapatão, já que o papel da mulher feminina, ou seja, da mulher “certa”, é sempre ceder de seu senso de si e autoestima para adotar todas as convicções que os outros tem e dizem sobre ela.
Quanto a mim, recuperei significativamente minha autoestima, meu centro e minha sanidade psicológica depois de muita luta e esforço, e não permito que qualquer alguém diga qualquer merda sobre a minha pessoa esperando que eu a aceite de bom grado e peça desculpas por não ser perfeita. Eu sou assim, e pretendo sempre estar disposta a mudanças que façam sentido, mas não vou mudar nada só porque outra pessoa disse que eu tenho que fazer isso, não importa quem seja.
Nem toda crítica construtiva, entretanto, é agradável de digerir. Pensar sobre o que outra sapatão que valorizo muito em minha vida, por exemplo, diz como crítica a minhas atitudes, nem sempre é fácil, mas é uma questão de ética e também de autoconsideração, afinal existe aí a oportunidade de evoluir como pessoa. Porém tudo isso dependerá do caráter do discurso. Uma frase que me taxe vagamente, adjetivando-me sem considerar controvérsia alguma, vinda de quem for, será certamente questionada. Faço questão de reagir, nem que seja movimentando-me como a Eremita que se fecha e isola para pensar bem em como aquilo me afeta e então poder expressá-lo da forma mais honesta possível.
Diriam que é coisa de capricorniana, mas acho que cada pessoa tem o seu ritmo para considerar uma crítica. Umas são mais explosivas e outras são mais pensativas. Às vezes também pode-se agir das duas formas, ou de outras, em ocasiões diferentes. Acho que uma reação violenta a uma crítica infundada é desnecessária, demonstra intransigência e até um certo nível de fascismo nas relações, ao qual TODAS as pessoas estão sujeitas. Mas não acredito que uma pessoa deva ser condenada como egocêntrica simplesmente por debater e discordar de uma crítica feita a ela, por exemplo. Isso é uma quebra enorme com o tabu da feminilidade que se põe contra a mulher que reage. Dizer não, portanto, a uma crítica, não é o mesmo que violência e falta de autocrítica, desde que esse não seja fundado em algo que faça sentido para refletirmos mais profundamente sobre as questões envolvidas.
Por essas e outras também tenho procurado escrever textos com uma narrativa mais pessoal, partindo da minha perspectiva das coisas, já que eu sei que outras podem pensar diferente, reagir de outras formas que eu a uma crítica, ou até afirmar que se deve considerar com toda atenção do mundo cada crítica que é feita – o que, particularmente, acho algo um tanto paranoico demais para eu me comprometer -. Faço isso não por ter uma perspectiva liberal mas, ao invés disso, porque acredito na possibilidade de exercer autonomia, mesmo sendo sobrevivente de opressões no patriarcado. E não assumindo meu discurso como se fosse o de todas as outras, eu também não permito que outras me definam tão facilmente e substituam meu autoconceito e a ética que procuro seguir.
Surge então uma questão a ser considerada a respeito deste assunto: o elemento projeção. Como continuo consistente nas afirmações que faço aqui considerando a esfera do inconsciente em nossas vidas? O autoconhecimento é algo mutável e duvidoso porque, se formos levar em conta nossos movimentos psíquicos inconscientes, trata-se de um mito.
Eu disse que defendo meu autoconceito e não permito que outras pessoas o abalem tão facilmente. Será que estou sendo contraditória? Há a possibilidade de que a crítica diga muito mais sobre quem me critica do que sobre mim, ou talvez a de que meu profundo incômodo com uma simples crítica ou raiva da pessoa que me critica possa dizer algo que ainda não sei sobre mim também. Porém, protejo este tal autoconceito porque acredito que seja saudável na manutenção de minha identidade e autoestima. Ora, não considero que as defesas são, por definição, patológicas. São mecanismos de nossa psiquê que servem justamente para proteger nossa saúde. Até mesmo quando falamos de sintomas, em nível de sofrimento psíquico, ainda se tratam de defesas psíquicas, que justamente defendem a sanidade de alguma forma - os traumas sexuais na infância, por exemplo, geram sintomas que por si não são para causar sofrimento mas para sobreviver psicologicamente à realidade dos abusos.
Como isso se aplica, então, quando estamos falando do debate e da crítica? Tudo depende da situação, das pessoas envolvidas e do nível da reação de quem é criticado, bem como do nível da reação de quem critica e não vê sua crítica ser bem-sucedida no sentido de ter persuadido a outra a acreditar nela ou não.
Aplico portanto o princípio formulado e discutido por Joyce Trebilcot de não-persuasão tanto às relações entre lésbicas quanto ao problema que vem sendo discutido recentemente por mim e outras pensadoras sapatonas: quando uma suposta crítica trata-se, na verdade, de num discurso calunioso e determinista, comprometendo a vida afetiva e a existência política de outra lésbica. Concordo com a autora em não me obrigar a seguir este princípio 24h de todos os dias da minha vida, porém acredito que críticas devam ser, dentro dum relacionamento amoroso, duma amizade companheira ou de um coletivo político de lésbicas, feitas com seriedade e atenção.
Taxar a outra com um adjetivo qualquer- o que terá como consequência estigmatizar a pessoa dentro da relação ou do coletivo -, seja no nível em que for, é injusto porque adjetivos não requerem contextualização. Um exemplo simples: dizer que a outra pessoa é descuidada e ponto. É vago, confuso, e pode até afetar a outra de forma negativa emocionalmente. Um exemplo mais grave: dizer simplesmente que alguém é violenta pode ser bastante problemático, ou ouvir que alguém é violenta e aceitar sem ter a mínima curiosidade sobre o porquê, é uma postura que considero, inclusive, anti-crítica.
O problema se agrava quando consideramos o fator fofocas em forma de crítica. Empregar um adjetivo a alguém num grupo sem a presença da pessoa é uma tática muito efetiva para estigmatizá-la, especialmente quando pessoas não-críticas recebem tal informação sem questionar nem muito menos protestar. As considerações que posso ter sobre outra pessoa podem ser colocadas de diversas formas, e ouso julgar que este método - infelizmente utilizado há muito tempo na história entre mulheres e desde o começo do movimento feminista – é o menos criativo de todos. É necessário empregar energia mental para fazer desde uma crítica trivial até um apontamento teórico/ético discordante dentro do grupo no qual participo - ou na relação em que me envolvo - de uma maneira que considere a possibilidade da diferença de impressão, de pensamento, de atitude, de ponto de vista da outra. Para tanto, eu preciso me responsabilizar pelo meu discurso, dizer que aquilo é o que EU penso e estou propondo como reflexão, não impondo.
Esse é o motivo pelo qual acredito que a postura crítica, tal qual como a considero teoricamente e também em minha prática política e ética, permanece sendo uma postura rara e muito polêmica dentro das relações entre lésbicas, entre mulheres, dentro do movimento feminista. Parece que é uma postura que, quando adotada de fato, torna-se incômoda e irritante ao ponto de, ao invés de ser reconhecida como uma postura crítica, é distorcida como uma de arrogância, egocentrismo e, o pior de tudo, de manutenção de algum tipo de poder, afinal pessoas que não aceitam tão facilmente uma acusação – que é um termo que me parece nomear mais adequadamente esse discurso adjetivador de outras lésbicas do que o termo crítica – são novamente adjetivadas como intransigentes e até mesmo de que estão querendo fazer manutenção de supostos privilégios.
Finalizo, por enquanto – e tenho uma certa esperança de que outras contribuirão para que este assunto e que talvez até mesmo esse texto continue se expandindo à uma profundidade cada vez maior e mais interessante -, dizendo que a ilustração que me parece perfeita para exemplificar uma forma saudável de tratamento quando estamos numa situação de discordâncias e críticas é a feita pela autora do texto mencionado, quando ela diz que, ao invés de vendermos nossas ideias num mercado capitalista voraz, propagando-as e convencendo outras mulheres a acreditar e seguir aquilo que estamos discursando como verdade absoluta, tratemos essas ideias como pratos diversos num banquete com nossas companheiras, a serem divididos, experimentados, e não necessariamente todas gostarão de tudo o que experimentarão, e talvez haja coisas que algumas nem queiram experimentar, assim como acontece com a comida. As ideias deveriam ser apreciadas, discutidas, compartilhadas e transformadas de forma autônoma, não jogadas como pedras umas nas outras para ver quem leva a melhor e, no fim, ninguém escolheu nada. Afinal, acredito que sem escolha não há libertação alguma; e sem a intenção de libertação, não há feminismo.
Referências sobre o tema:
Andrea Franulic. De aquí no sale: reflexiones sobre el rumor. Disponível em: https://andreafranulic.cl/misoginia/de-aqui-no-sale-reflexiones-sobre-el-rumor/
Joyce Trebilcot. Dyke Methods. Lesbian Philosophies and Cultures, editado por Jeffner Allen, 1990. p.15-30.
Raposa d’Oeste. A hipocrisia da difamação contra lésbicas visíveis: intoxicação do feminismo pela feminilidade. 2016. Disponível em: http://yurishinigamidesu.tumblr.com/post/148010693535/a-hipocrisia-da-difamação-contra-lésbicas-visÃveis
Pensadora Radical. Sobre violência virtual (exposições) contra mulheres dentro do feminismo. 2O17. DisponÃvel em: http://pensadoradical.tumblr.com/post/156227950316/sobre-viência-virtual-exposições-contra e Problematizando o termo lésbica agressora. DisponÃvel em: http://pensadoradical.tumblr.com/post/156227253336/problematizando-o-termo-lésbica-agressora
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O familismo adoece
O Familismo adoece. Eu venho de um lar abusivo, dramático, palco de um enredo cheio de histórias de agressão psicológica, física e emocional. Sou lésbica e sobrevivi aos abusos sexuais e violência infringidos pelo meu pai e irmão. Por volta dos 7 anos eu já era uma criança lésbica, me apaixonava por garotas e estava bem longe de querer performar a feminilidade, tanto que era a “sapatão”, “maria homem” e também a “esquisita” e “morfética” na escola (risos). Até que, segundo uma terrível memória que recuperei, meu pai pretendeu “ensinar-me a ser menina” através do estupro. Eu compreendi que foi um estupro corretivo que funcionou, afinal eu comecei a aderir gradualmente à feminilidade e performei, durante a adolescência, uma sexualidade extremamente complicada, adoecida, que erotizava a subordinação.
A realidade é que isso não é nenhuma novidade para grande parte das lésbicas e mulheres. Infelizmente essa é uma epidemia em nossa sociedade. Através do abuso as mulheres são desde muito cedo adestradas à heterossexualidade e à feminilidade, como discuti em textos anteriores.
E muito tempo me custou para descobrir que eu podia e tinha o direito de resgatar minha lesbiandade, minha energia sexual e tomar posse do meu corpo e de minhas emoções novamente.
Sou filha de uma sobrevivente também, que não teve a oportunidade antes de dizer a ninguém pelo que ela passou, até o dia em que eu quebrei o silêncio, para ela e para a minha família. Agora ela tem a escolha em suas mãos, mas decidiu, conscientemente, permanecer com suas autorepressões, deixar seu corpo pagar pela negação de sua raiva, de seus traumas.
Meu relacionamento com ela nunca foi fácil. Trata-se da típica mãe que baba ovo, privilegia e engole sapo dos filhos homens, mas com a filha as coisas sempre foram diferentes. Precisei ter uma maturidade impossível para a minha idade desde muito cedo porque “eu sou mulher e comigo ela pode contar”.
Sempre houve uma tremenda negligência emocional entre nós. Mesmo depois de eu quebrar o silêncio, ela ignorou meu sofrimento e não me apoiou em nada, não acredita em mim até hoje e se negou a ficar ao meu lado num dos momentos mais difíceis de minha vida: quando confrontei meu pai. E aí eu tenho que me deparar com o discurso irritante de amigas e de feministas que acham que está certo ficar endeusando a figura da mãe e da família em todo caso, e ai daquela que criticar essa postura, é certamente uma “odiadora de mães”, é uma “mimada que só está dizendo isso porque não sabe como é estar na pele de uma mãe”.
Bem, pra começar eu sei bastante disso, afinal foi às custas de sonhos meus e da minha saúde psíquica que ajudei minha mãe a criar os filhos mimados dela. Depois de toda a hostilidade e lesbofobia que minha mãe infringiu contra mim, depois de ela ter expulsado minha namorada de casa ameaçando chamar a polícia para ela, depois de ter sido fria e ressentida, descontado sua dor na filha pré-adolescente, usando-a para mediar as discussões e ódio pelo seu ex-marido agressor; tenho que ouvir que “ela é minha mãe e quando envelhecer quem vai cuidar dela sou eu”. E quem determinou isso? Eu, a pessoa que ela nunca protegeu de nada, tenho que cuidar dela? Que merda de discurso é esse?
Esse familismo das pessoas vem do medo e da covardia, da necessidade constante de negar os próprios traumas e de negar que sua família pode ter fodido com sua vida em diversos aspectos e te adoecido, ter te impedido de ser lésbica via coerção, de ser quem você queria ser desde muito antes, envenenado sua autonomia psicológica. E todo esse discurso se baseia nessa maldita palavra chamada perdão. O perdão é o pior dos males que desde a igreja católica até os Good Vibes mais alternativos pensam ser a maior cura para qualquer coisa, e no fim das contas, é isso que adoece.
Você perdoa todas as coisas mais absurdas que adultos infringiram a você, e falo aqui especialmente das mães porque nós feministas que foram criadas por mães abandonadas por maridos e pais agressores, somos muito impelidas pelo movimento a ter um romantismo em relação à figura de nossas mães como guerreiras que gastaram toda sua energia para que sobrevivêssemos materialmente e por isso devemos a ela nossa vida.
Da primeira parte, não é todo uma ilusão, porém esse moralismo familista para com nossas mães nos impedem de trabalharmos nossos traumas de forma saudável, porque mães também podem ser negligentes, agressivas, e há sim uma relação de poder delas sobre as filhas. Além de serem adultas numa relação desde que somos bebês (e crianças são, obviamente, psiquicamente mais vulneráveis nessa relação), elas nos criam na feminilidade, o que pode implicar um comportamento emocionalmente negligente ou até mesmo competitivo com as próprias filhas. E nos criam muito diferentemente de seus filhos homens. Primeiramente, nos incutindo que por sermos meninas temos que aprender a realizar o trabalho doméstico e maternal.
Para você ter uma ideia sobre isso, desde quando eu era pequena e que ainda havia meu pai em casa e meu irmão mais velho, aos meus 8 anos, quando o mais novo nasceu, eu ensinei a ele diversas coisas: a andar, a falar, a comer; e eu era meio que a responsável por seu cuidado. Isso se intensificou quando meu pai nos abandonou e foi viver sua vida boa. Eu era a única com a obrigação de manter a casa limpa e servir almoço, cuidar do bebê pequeno enquanto minha mãe trabalhava fora, e viver com um irmão violento e agressivo psicológica e fisicamente. Eu e minha mãe éramos alvos de pancadas e de terrorismo emocional. Vivi assim por cerca de 8 anos, até que tornei-me maior de idade e denunciei a última agressão física. Minha mãe, ao invés de me apoiar e me proteger, manteve o filho em casa e eu, para ter distância dele, tive que sair de casa.
Para que possamos nos curar da patologia grupal de lares abusivos, temos que entender que todas as pessoas ali estão envolvidas. As mães protegem filhos e pais violentos que agridem os filhos, que estupram as filhas. Muitas mães protegem nossos agressores mesmo quando tomam plena consciência do abuso que suas filhas sofreram e do tamanho da dor e do sofrimento psicológico que tal violência nos custou durante a vida. Elas preferem negar e duvidar. Negam, mais uma vez, a nossa verdade, e nos negam seu apoio.
É claro que é algo sintomático porque o abuso é uma questão trans geracional, e esse comportamento é, para as mães, uma forma de reprimir os próprios traumas. Mas não se pode ignorar, através de um exagero desse discurso até seu ponto mais vitimista, a agência dessas mulheres nessa história toda. Por que não proteger a sua filha? Isso é misoginia e lesbofobia internalizada e praticada entre mulheres. A filha vale menos e quanto mais culpada ela for pelo que sofreu, mais fácil para o resto da família não ter que se responsabilizar por tamanhas atrocidades.
Honestamente? Como uma filha extremamente outsider na minha família, e tendo sido ignorada e gastado minha energia tantas vezes me protegendo da dinâmica doentia em nossas relações, posso afirmar que a negação da nossa raiva é o caminho errado. É necessário que possamos assumir nossas mágoas com essa figura e falar sobre elas, que saibamos que a mãe pode nos ter feito mal e nos despertado raiva.
A raiva é uma energia de nosso corpo, de autodefesa, e não devemos nos punir reprimindo-a. Para que consigamos quebrar esse ciclo em nós mesmas, para que possamos evitar repetir esse padrão patológico em nossas relações, precisamos estar em contato consigo.
Precisamos nos livrar, como sabiamente diz Alice Miller, em A Revolta do Corpo, da moral do quarto mandamento. Não somos obrigadas a honrar nossos pais e mães. Para que tenhamos autonomia emocional, é necessário confiarmos naquilo que nosso corpo diz, sente, sua revolta, dar voz às sensações, e não manter os mecanismos de negligência a essa energia.
Quando fazemos esse tipo de crítica, muitas feministas reagem de forma acusatória taxando-nos “odiadora de mães”. Se você discute criticamente a maternidade nos seus maiores tabus, você, além de odiar as mulheres que são mães, você também odeia as crianças. Ok, digo constantemente em meus textos e falas às sobreviventes de abuso para aceitarem a revolta de seu corpo criança e abraçar a pessoa que era quando criança, acolher a dor daquela época e também as alegrias, para que tenha também empatia com outras crianças e compreenda sua vulnerabilidade na sociedade. Adultos que tem essa conduta violenta com crianças são justamente aqueles que não enfrentaram os traumas que sofreram. Mas ainda assim pensam que eu odeio crianças, dá pra acreditar?
Essa é uma reação desproporcional, vem justamente daquelas pessoas que acabam utilizando ferramentas difamatórias contra butches que tocam nas feridas do movimento, como já discuti em outro texto.
Mas eu me recuso a negar a minha história e a de tantas lésbicas que bravamente sobreviveram a lares com pais E mães E irmãos e assim vai, abusivos. Famílias abusivas. E também me recuso a deixar que os paradigmas mais dogmáticos do movimento feminista me impeçam de ter crítica e autonomia, afinal a libertação é justamente o que busco. Para construí-la, creio que seja necessário como primeiro passo importantíssimo, conectar-me com as verdades de meu corpo e de minhas emoções.
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A hipocrisia da difamação contra lésbicas visíveis - intoxicação do feminismo pela feminilidade
Achamos que o backlash não poderia ser mais intenso no que tange à onda do pensamento pós-moderno e queer como mecanismos de um sistema patriarcal neoliberalista, anti-lésbicas, racista, misógino... e triturador de qualquer sinal de revolução radical. Porém, ao que parece, as políticas desonestas das liberais que se clamam feministas - pessoas que eu, particularmente, não reconheço como feministas, pois esse feminismo cheio de mutações ideológicas para mim não representa nem um pouco o movimento de libertação das mulheres, pois corrobora com a opressão e o estado de submissão à lógica da supremacia masculina – tem realmente passado dos limites ao ponto de intoxicar e implodir práticas feministas através dos mecanismos da feminilidade.
Com certeza eu não estou apontando apenas um grupo específico de mulheres, porque TODAS as práticas que se clamam feministas, todos os coletivos com os quais eu já tive contato, já sofreram introjeção dessa lógica ridícula de competitividade feminina. Até mesmo radicais e lésbicas tem atuado desta maneira contra outras iguais. Estamos em um estado de emergência dentro do feminismo. É preciso quebrar o silêncio, sempre, sobre todo e qualquer tipo de mecanismo que force as lésbicas e as mulheres à domesticidade e à inexistência política.
Quero enfatizar, nesse texto, a questão da difamação, que é embebida de gaslighting e, inclusive, de crimes virtuais, através da invasão do campo privado das pessoas por meio de distorções que geram calúnias gravíssimas nas quais aquelas que são coniventes com esse tipo de prática acabam acreditando sem questionar. Textos no facebook, fotos por aí nas plataformas, denúncias no tumblr, twitter, enfim, em diversos sites populares que contém uma interface designada a práticas consumistas e superficiais. Isso é feito sob a máxima “o pessoal é político”, e o feminismo radical lésbico enfatiza também que o sexual é político.
Concordo, absolutamente, com isso, porém é preciso haver consciência de que existe o pessoal e o privado, e a vida privada das lésbicas deveria ser tratada com maior respeito. É necessário percebermos que, para quebrar a rivalidade, a hostilidade e violência entre mulheres construída via abuso sexual, estupro corretivo, pornografia, cultura da prostituição, lesbofobia, nós precisamos entender que num relacionamento afetivo entre mulheres não existem lugares tão fixos onde há agredida X agressora. Isso é real simplesmente pelo fato de que não existe uma hierarquia estrutural de poder entre mulheres tão rígida e evidente quanto há em vínculos heterossexuais.
O mais louco de tudo isso é que as denúncias desse teor que tem maior repercussão no meio feminista são sempre contra lésbicas visíveis, sapatonas butch. Desde criança, nós que somos butch (eu não manti minha lesbiandade a vida inteira, era uma criança lésbica e visível, porém as torturas sexuais e a lesbofobia pelas quais passei durante a infância e a minha adolescência enfraqueceram minha convicção e tornei-me uma lésbica interrompida. Só com 20 anos saí do armário definitivamente. Futuramente escreverei um texto sobre esse assunto), somos hostilizadas sempre de modo a sermos equiparadas a homens agressores. Sim, a lésbica visível sempre é vista, no imaginário das pessoas, sem esforço nenhum, muitas vezes sem nem abrir a boca, como uma figura agressiva. É aquele estereótipo da “mulher-macho”. E isso não diz respeito apenas à aparência, mas também a atitudes assertivas.
Mulheres, e especialmente lésbicas que ousam demonstrar eloquência na fala, espírito de liderança, inteligência, que tem conhecimento teórico profundo, que se tornam autodidatas (muitas vezes justamente pela solidão gerada pela violência empregada contra nós), e que são assertivas, dizem o que pensam sem fazer rodeios e não temem cometer erros, preferem assumir a possibilidade de falhar na prática feminista do que criar uma mitologia sobre si mesma de que se é perfeita e se deve agradar a todo o resto o tempo inteiro, são reconhecidas automaticamente pela maioria das pessoas como figuras ameaçadoras, que bancam as “sabe-tudo”, que “silenciam” e querem “comandar” outras mulheres, como manipuladoras, e o pior de tudo: como agressoras sexuais.
Sim. Como se já não houvesse criminalização suficiente da sexualidade lésbica no mundo em que vivemos, não? É incrível como o patriarcado consegue ter policiazinha trabalhando de graça pro sistema dentro do próprio feminismo radical e lésbico, por lésbicas que no discurso supostamente quebram com a feminilidade, postam fotos por aí afirmando sua visibilidade lésbica, porém nas atitudes são tão femme que quase não dá pra acreditar. O pensamento heterossexual infelizmente permeia muito o ativismo, e essa rivalidade, a vitimização e a manipulação através do uso oportunista dos conceitos teóricos radicais são as armas perfeitas que usam para agir de forma desonesta com outras lésbicas. É um desfavor total a prática do rumor e da difamação contra lésbicas. É claro que esse ‘shaming’ é cometido ainda mais violentamente dentro das práticas queer, pós-modernas, os ditos anarcos e os ditos comunas, os good vibes e por aí vai. Nenhum movimento social tem escapado disso, basicamente.... não que eu considere o queer e o good vibes movimentos sociais, já que pra essa gente a subjetividade governa tanto quanto O’Brien, o torturador da estória de George Orwell em 1984, também acredita.
E ainda há uma realidade mais curiosa ainda sobre esse fenômeno. Já percebeu que, geralmente, as denúncias contra homens abusivos, agressores e abandônicos - que são aqueles que sustentam a pornografia e a prostituição, que são aqueles que abusam das próprias filhas, irmãs, primas, netas, namoradas, colegas, que são aqueles que causaram situações de coação que muitas de nós já passamos e temos passado, que minam a saúde física e psicológica das mulheres, que nos expõem a um risco altíssimo de contaminação por DST’s por conta da naturalização e banalização da violência do intercurso (penetração peniana), que nos causam risco de vida ou morte, dentre tantas outras coisas – não chegam a ter nem a metade da repercussão dessa palhaçada de escracho lesbofóbico? Pois é.
Eu não vi praticamente NENHUMA feminista desse tipo que estão envolvidas em “denúncia” (difamação, na realidade) contra lésbicas, colaborar em merda nenhuma quando eu escrevi a denúncia contra o anarcopunk que fodeu com a minha vida tanto psicológica quanto sexualmente no ano retrasado. Isso foi antes de eu sair do armário e foi um dos relacionamentos mais abusivos que eu já tive (todos os meus relacionamentos com homens foram permeados de estupro e abuso psicológico e emocional). Eu me assumi lésbica no meio desse relacionamento e cortei a intimidade e aquela afetividade de antes e, a partir daí, comecei a sofrer uma lesbofobia atrás da outra, uma ameaça atrás da outra. O cara era o mestre do gaslighting e eu estava sozinha, fui ameaçada por ele e um bando de punks retrógrados em São Paulo, fui negligenciada por aquela galera hipócrita do Ouvidor 63 e, mais uma vez, a ocupação havia vomitado uma lésbica pra rua, coisa que já aconteceu antes por lá.
Os punkaiada me perseguiram em manifestação, ao invés de atentarem-se ao risco da violência policial. O cara me difamou, criou várias calúnias sobre mim, como a de que eu estava com ciúmes dele e surtei, e pra outros amigos ele disse que eu o agredi também. E sabe qual o suporte que eu tive dessas feministas? Absolutamente nenhum. Minha denúncia, que eu tive um esforço emocional gigantesco e doloroso pra escrever, não teve repercussão NE-NHU-MA, e inclusive as pessoas aqui da minha região continuaram recebendo ele na roda como se nada tivesse acontecido. Eu até vi feministas e lésbicas confirmarem presença em eventos e oficinas do Ouvidor, soube de minas que até frequentaram aquela merda de lugar e cederam energia criativa a essa galera escrota, misógina e lesbofóbica.
Quando a dor é real e é nossa, das lésbicas visíveis, e quando a violência é concreta, quando há uma relação de poder nítida, as pessoas não reagem. O mesmo aconteceu em relação ao abuso sexual que sofri de meu pai. Eu o confrontei, enfrentei frente a frente sozinha para questionar o estupro que ele cometeu contra mim. Não vejo nenhuma dessas feministas compartilharem nunca, por exemplo, meu material sobre abuso sexual na infância e estupro corretivo contra meninas lésbicas, não vejo essa gente se preocupar com o que realmente importa. Sinceramente o que eu vejo é um festival de purpurina repleto de atitudes inerentes à feminilidade, esse conjunto de comportamentos pelo qual, sinceramente, tenho profunda aversão, pois, no fim, com a chantagem emocional e manipulação através de vitimismo, muitas dessas garotas conseguem realmente convencer todo o mundo que o nosso lugar, o de lésbicas butch, vai continuar sempre sendo o mesmo, e vão continuar repetindo a lógica da Inquisição e da Caça às Bruxas, e esse lugar é o estereótipo da Lésbica Agressora.
Enfim, acho que tudo isso é uma questão de profunda imaturidade. Acho que essa gente ainda não entendeu o que é revolução e o que é o pensamento radical. Tanto quanto galerinha partidária também não entendeu merda nenhuma do que Marx quis dizer. Pois é, é exatamente isso que eu estou dizendo: vocês são um bando de pelegas desonestas e infantis. Eu tô realmente enojada com esse Feminismo Beverly Hills que permeia o facebook e a internet, onde é muito fácil sentar a bunda na cadeira e falar qualquer merda, afinal o difícil mesmo é você ir até a mina pela qual você tem críticas e falar na cara dela o que você pensa, ser assertiva. Isso só indica que vocês continuam se colocando, afinal, no mesmo lugar que é a categoria mulher patriarcal, e fica se escondendo atrás do rumor, do não-dito e do sadismo passivo-agressivo. É, isso é exatamente o que eu penso, me odeiem se quiserem, eu já não sou muito querida por aí mesmo.
É imaturidade porque essas garotas não compreendem o impacto violento que a difamação tem sobre a vida emocional, psicológica, afetiva, política e até mesmo econômica de uma lésbica. Nós já somos fodidas nesse mundo, já temos dificuldade com todos esses aspectos, já sofremos um isolamento enorme e uma solidão política enorme, já temos dificuldade de nos encontrarmos com outras iguais a nós, de ter relacionamentos, e ainda por cima temos que ser isoladas propositadamente porque algumas minas que gostam de seguir essa lógica da patricinha QUISERAM. Se você incomoda esse tipo de gente, mostra-se assertiva, você passa por um momento meio como se você fosse do elenco de Meninas Malvadas e enfrentasse assertivamente a Regina George. É, é bem por aí. Eu sofri difamação aqui na minha região, não por lésbicas, mas por pessoas em geral que são liberais pra caralho travestidas de revolução, entende? Mas por conta disso eu sei o que é as pessoas em geral acharem que você é louca e agressiva.
Desde criança, quando eu era bem visível na infância, eu sei como é uma pessoa te odiar sem nem ao menos te conhecer, simplesmente porque ouviu falar alguma coisa. Lembro-me de quando eu estava caminhando na rua uma vez e ouvi a voz de uma garota dizendo: “Nossa, como eu O-D-E-I-O essa menina!”, quando eu olhei pra trás, percebi que nunca havia visto aquela garota na minha vida. Moro no interior, em cidade pequena e esse tipo de situação se repetiu muito durante a minha história. E o que presencio hoje dentro do feminismo? Lésbicas isoladas e sofrendo um processo intenso de autoculpabilização, de autopunição, confusão mental e psicológica, solidão e até mesmo vontade de desaparecer da face da Terra. Sei lá meu, vocês nunca viram aqueles filmes norte-americanos da garota que é difamada virtualmente e acaba se suicidando depois? Essa atitude de vocês mostra que vocês agem feito patricinhas idiotas, na moral. Não tem o mínimo cuidado nem o mínimo compromisso com a lesbiandade e com a radicalidade. Parece até que vocês não são politizadas e não entendem o fenômeno generalizado do adoecimento e enlouquecimento de lésbicas. Acordem pra vida, vocês são feministas ou o quê? Assumam duma vez que só querem ibope e não fazer política.
Afinal, eu tô bem ligada que era esse tipo de garota que me zoava e me batia na infância por ser sapatão na escola. Bem ligada mesmo, e de saco cheio também só de ver essa palhaçada.
Parem.
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