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O familismo adoece
O Familismo adoece. Eu venho de um lar abusivo, dramático, palco de um enredo cheio de histórias de agressão psicológica, física e emocional. Sou lésbica e sobrevivi aos abusos sexuais e violência infringidos pelo meu pai e irmão. Por volta dos 7 anos eu já era uma criança lésbica, me apaixonava por garotas e estava bem longe de querer performar a feminilidade, tanto que era a “sapatão”, “maria homem” e também a “esquisita” e “morfética” na escola (risos). Até que, segundo uma terrível memória que recuperei, meu pai pretendeu “ensinar-me a ser menina” através do estupro. Eu compreendi que foi um estupro corretivo que funcionou, afinal eu comecei a aderir gradualmente à feminilidade e performei, durante a adolescência, uma sexualidade extremamente complicada, adoecida, que erotizava a subordinação.
A realidade é que isso não é nenhuma novidade para grande parte das lésbicas e mulheres. Infelizmente essa é uma epidemia em nossa sociedade. Através do abuso as mulheres são desde muito cedo adestradas à heterossexualidade e à feminilidade, como discuti em textos anteriores.
E muito tempo me custou para descobrir que eu podia e tinha o direito de resgatar minha lesbiandade, minha energia sexual e tomar posse do meu corpo e de minhas emoções novamente.
Sou filha de uma sobrevivente também, que não teve a oportunidade antes de dizer a ninguém pelo que ela passou, até o dia em que eu quebrei o silêncio, para ela e para a minha família. Agora ela tem a escolha em suas mãos, mas decidiu, conscientemente, permanecer com suas autorepressões, deixar seu corpo pagar pela negação de sua raiva, de seus traumas.
Meu relacionamento com ela nunca foi fácil. Trata-se da típica mãe que baba ovo, privilegia e engole sapo dos filhos homens, mas com a filha as coisas sempre foram diferentes. Precisei ter uma maturidade impossível para a minha idade desde muito cedo porque “eu sou mulher e comigo ela pode contar”.
Sempre houve uma tremenda negligência emocional entre nós. Mesmo depois de eu quebrar o silêncio, ela ignorou meu sofrimento e não me apoiou em nada, não acredita em mim até hoje e se negou a ficar ao meu lado num dos momentos mais difíceis de minha vida: quando confrontei meu pai. E aí eu tenho que me deparar com o discurso irritante de amigas e de feministas que acham que está certo ficar endeusando a figura da mãe e da família em todo caso, e ai daquela que criticar essa postura, é certamente uma “odiadora de mães”, é uma “mimada que só está dizendo isso porque não sabe como é estar na pele de uma mãe”.
Bem, pra começar eu sei bastante disso, afinal foi às custas de sonhos meus e da minha saúde psíquica que ajudei minha mãe a criar os filhos mimados dela. Depois de toda a hostilidade e lesbofobia que minha mãe infringiu contra mim, depois de ela ter expulsado minha namorada de casa ameaçando chamar a polícia para ela, depois de ter sido fria e ressentida, descontado sua dor na filha pré-adolescente, usando-a para mediar as discussões e ódio pelo seu ex-marido agressor; tenho que ouvir que “ela é minha mãe e quando envelhecer quem vai cuidar dela sou eu”. E quem determinou isso? Eu, a pessoa que ela nunca protegeu de nada, tenho que cuidar dela? Que merda de discurso é esse?
Esse familismo das pessoas vem do medo e da covardia, da necessidade constante de negar os próprios traumas e de negar que sua família pode ter fodido com sua vida em diversos aspectos e te adoecido, ter te impedido de ser lésbica via coerção, de ser quem você queria ser desde muito antes, envenenado sua autonomia psicológica. E todo esse discurso se baseia nessa maldita palavra chamada perdão. O perdão é o pior dos males que desde a igreja católica até os Good Vibes mais alternativos pensam ser a maior cura para qualquer coisa, e no fim das contas, é isso que adoece.
Você perdoa todas as coisas mais absurdas que adultos infringiram a você, e falo aqui especialmente das mães porque nós feministas que foram criadas por mães abandonadas por maridos e pais agressores, somos muito impelidas pelo movimento a ter um romantismo em relação à figura de nossas mães como guerreiras que gastaram toda sua energia para que sobrevivêssemos materialmente e por isso devemos a ela nossa vida.
Da primeira parte, não é todo uma ilusão, porém esse moralismo familista para com nossas mães nos impedem de trabalharmos nossos traumas de forma saudável, porque mães também podem ser negligentes, agressivas, e há sim uma relação de poder delas sobre as filhas. Além de serem adultas numa relação desde que somos bebês (e crianças são, obviamente, psiquicamente mais vulneráveis nessa relação), elas nos criam na feminilidade, o que pode implicar um comportamento emocionalmente negligente ou até mesmo competitivo com as próprias filhas. E nos criam muito diferentemente de seus filhos homens. Primeiramente, nos incutindo que por sermos meninas temos que aprender a realizar o trabalho doméstico e maternal.
Para você ter uma ideia sobre isso, desde quando eu era pequena e que ainda havia meu pai em casa e meu irmão mais velho, aos meus 8 anos, quando o mais novo nasceu, eu ensinei a ele diversas coisas: a andar, a falar, a comer; e eu era meio que a responsável por seu cuidado. Isso se intensificou quando meu pai nos abandonou e foi viver sua vida boa. Eu era a única com a obrigação de manter a casa limpa e servir almoço, cuidar do bebê pequeno enquanto minha mãe trabalhava fora, e viver com um irmão violento e agressivo psicológica e fisicamente. Eu e minha mãe éramos alvos de pancadas e de terrorismo emocional. Vivi assim por cerca de 8 anos, até que tornei-me maior de idade e denunciei a última agressão física. Minha mãe, ao invés de me apoiar e me proteger, manteve o filho em casa e eu, para ter distância dele, tive que sair de casa.
Para que possamos nos curar da patologia grupal de lares abusivos, temos que entender que todas as pessoas ali estão envolvidas. As mães protegem filhos e pais violentos que agridem os filhos, que estupram as filhas. Muitas mães protegem nossos agressores mesmo quando tomam plena consciência do abuso que suas filhas sofreram e do tamanho da dor e do sofrimento psicológico que tal violência nos custou durante a vida. Elas preferem negar e duvidar. Negam, mais uma vez, a nossa verdade, e nos negam seu apoio.
É claro que é algo sintomático porque o abuso é uma questão trans geracional, e esse comportamento é, para as mães, uma forma de reprimir os próprios traumas. Mas não se pode ignorar, através de um exagero desse discurso até seu ponto mais vitimista, a agência dessas mulheres nessa história toda. Por que não proteger a sua filha? Isso é misoginia e lesbofobia internalizada e praticada entre mulheres. A filha vale menos e quanto mais culpada ela for pelo que sofreu, mais fácil para o resto da família não ter que se responsabilizar por tamanhas atrocidades.
Honestamente? Como uma filha extremamente outsider na minha família, e tendo sido ignorada e gastado minha energia tantas vezes me protegendo da dinâmica doentia em nossas relações, posso afirmar que a negação da nossa raiva é o caminho errado. É necessário que possamos assumir nossas mágoas com essa figura e falar sobre elas, que saibamos que a mãe pode nos ter feito mal e nos despertado raiva.
A raiva é uma energia de nosso corpo, de autodefesa, e não devemos nos punir reprimindo-a. Para que consigamos quebrar esse ciclo em nós mesmas, para que possamos evitar repetir esse padrão patológico em nossas relações, precisamos estar em contato consigo.
Precisamos nos livrar, como sabiamente diz Alice Miller, em A Revolta do Corpo, da moral do quarto mandamento. Não somos obrigadas a honrar nossos pais e mães. Para que tenhamos autonomia emocional, é necessário confiarmos naquilo que nosso corpo diz, sente, sua revolta, dar voz às sensações, e não manter os mecanismos de negligência a essa energia.
Quando fazemos esse tipo de crítica, muitas feministas reagem de forma acusatória taxando-nos “odiadora de mães”. Se você discute criticamente a maternidade nos seus maiores tabus, você, além de odiar as mulheres que são mães, você também odeia as crianças. Ok, digo constantemente em meus textos e falas às sobreviventes de abuso para aceitarem a revolta de seu corpo criança e abraçar a pessoa que era quando criança, acolher a dor daquela época e também as alegrias, para que tenha também empatia com outras crianças e compreenda sua vulnerabilidade na sociedade. Adultos que tem essa conduta violenta com crianças são justamente aqueles que não enfrentaram os traumas que sofreram. Mas ainda assim pensam que eu odeio crianças, dá pra acreditar?
Essa é uma reação desproporcional, vem justamente daquelas pessoas que acabam utilizando ferramentas difamatórias contra butches que tocam nas feridas do movimento, como já discuti em outro texto.
Mas eu me recuso a negar a minha história e a de tantas lésbicas que bravamente sobreviveram a lares com pais E mães E irmãos e assim vai, abusivos. Famílias abusivas. E também me recuso a deixar que os paradigmas mais dogmáticos do movimento feminista me impeçam de ter crítica e autonomia, afinal a libertação é justamente o que busco. Para construí-la, creio que seja necessário como primeiro passo importantíssimo, conectar-me com as verdades de meu corpo e de minhas emoções.
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