Horizonte perdido
Bússola - Mathias Enard
Comentário de Renato Grinbaum
"Foi talvez esse horrível acidente que impediu Jane de conhecer a felicidade em outro lugar que não fosse o fim do mundo, no deserto do esquecimento e do amor –sua vida, como a de Sarah, é um longo caminho para o leste, uma série de estações que a levam, inexoravelmente, cada vez mais longe em direção ao Oriente em busca de alguma coisa que ela ignora."
Este poderia ser o início de ‘Bússola’, de Mathias Einard, vencedor do prêmio Goncourt. Mas não é só o início. Trata-se de um caminho, de um romance parcialmente ficcional, parcialmente ensaistico, numa linguagem mais do que poética, musical.
Einard é orientalista e neste sentido o romance é uma biografia de suas ideias.
"Pergunto-me se o que procurou, durante essa vida científica que coincide perfeitamente com a dela, sua busca, não teria sido sua própria cura –derrotar a bile negra pela viagem, primeiro, depois pelo saber, e pela mística em seguida, e talvez eu também, eu também, caso se considere que a música é o tempo raciocinado, o tempo circunscrito e transformado em sons, se me debato hoje entre estes lençóis, posso quase apostar que também estou sofrendo desse Grande Mal que a psiquiatria moderna, farta de arte e filosofia, chama depressão estrutural, embora os médicos só se interessem, no meu caso, pelos aspectos físicos de meus males, sem dúvida absolutamente reais, mas que eu gostaria tanto que fossem imaginários –vou morrer, vou morrer, é essa a mensagem que deveria enviar a Sarah, respiremos, respiremos, acendamos a luz, não nos deixemos levar ladeira abaixo. Vou lutar."
O enredo é simples, e muitas vezes sufocado pelo peso da sua erudição e de sua cultura. O orientalista Franz em sua insônia relata lembranças de sua relação com sua colega e amante Sarah. O enredo ganha força ao final, quando o leitor percebe que a história de Sarah se confunde com a noção de alteridade que o oriente desperta no ocidente. E vice-versa.
"Enquanto isso, houve Félicien David, Delacroix, Nerval, todos os que visitaram a fachada do Oriente, de Algeciras a Istambul, ou o seu pátio dos fundos, da Índia à Cochinchina; enquanto isso, esse Oriente revolucionou a arte, as letras e a música, sobretudo a música: depois de Félicien David, nada seria como antes. Esse pensamento talvez seja um desejo ingênuo, você está exagerando, diria Sarah, mas, santo Deus, demonstrei tudo isso, escrevi tudo isso, mostrei que a revolução na música nos séculos XIX e XX devia tudo ao Oriente, que não se tratava de “processos exóticos” como se acreditava antes, mas que o exotismo tinha um sentido, que ele fazia entrar elementos externos e alteridade, que se trata de um amplo movimento, que reúne entre outros Mozart, Beethoven, Schubert, Liszt, Berlioz, Bizet, Rimsky-Korsakov, Debussy, Bartók, Hindemith, Schönberg, Szymanowski, centenas de compositores em toda a Europa, sobre toda a Europa sopra o vento da alteridade, todos esses grandes homens utilizam o que lhes vem do outro para modificar o que é seu, para abastardá-lo, pois o gênio quer a bastardia, a utilização de processos externos para abalar a ditadura do canto de igreja e da harmonia, por que será que me irrito sozinho, agora contra meu travesseiro, talvez porque eu seja um pobre universitário sem sucesso com sua tese revolucionária da qual ninguém faz uso algum."
"A construção de uma identidade europeia como simpático quebra-cabeça de nacionalismos apagou tudo o que já não entrava em seus escaninhos ideológicos. Adeus diferença, adeus diversidade. Um humanismo baseado em quê? Qual universal? Deus, que se faz bem discreto no silêncio da noite? Entre os degoladores, os que matam os outros de fome, os poluidores –será que a unidade da condição humana ainda pode fundar alguma coisa, não tenho ideia. O saber, talvez. O saber e o planeta como novo horizonte. O homem como mamífero. Resíduo complexo de uma evolução carbônica. Um arroto. Um percevejo. Não há mais vida no homem do que num percevejo. Tanto quanto. Mais matéria, mas tanto quanto de vida. Queixo-me ao dr. Kraus, mas minha condição é bastante invejável em relação à de um inseto. A espécie humana não faz o melhor que pode, nestes tempos. Nossa vontade é se refugiar em livros, em discos e nas lembranças de infância."
Para quem espera uma história linear e ação talvez ‘Bússola’ pareça desnecessário. A poesia e a erudição musical e literária que Einard usa como fio motor e argumentação são no minimo sedutoras. Ele navega por Beethoven, Debussy e Szymanowski fazendo algo que vai além da critica, ele entende o sentimento da música e sua relação com o orientalismo.
"A música militar é, decididamente, um ponto de intercâmbio entre o Leste e o Ocidente, Sarah teria dito: é extraordinário que essa música tão mozartiana “reencontre” de certa forma seu lugar de origem, a capital otomana, cinquenta anos depois da Marcha turca; afinal, é lógico que os turcos tenham ficado seduzidos por essa transformação de seus próprios ritmos e sonoridades, pois havia –para usar o vocabulário de Sarah –algo de si mesmo no outro."
"Berlioz nunca viajou ao Oriente, mas desde os vinte e cinco anos era fascinado por Os orientais, de Hugo. Haveria portanto um Oriente segundo, o de Goethe e de Hugo, que não conhecem as línguas orientais nem os países onde são faladas, mas se apoiam em trabalhos dos orientalistas e viajantes como Hammer-Purgstall, e até mesmo um Oriente terceiro, um Terceiro Oriente, o de Berlioz ou de Wagner, que se alimenta dessas obras, por sua vez indiretas."
Sua escrita é um perfume. Relata as viagens literárias de Thomas Mann, a alteridade de Fernando Pessoa e inúmeras citações árabes, turcas e persas. Relembra as viagens de Franz de Viena até Llasa através de varias cidades do oriente, sem sair do ocidente que jamais se desgruda do orientalista. O orientalista jamais será oriental. O maximo que conseguirá é não pertencer a lugar nenhum como um judeu, tantas vezes citados no texto, ou como Sarah, que se descobre sem saída ao perceber que o oriente jamais tomará conta dela.
"Pois há um Oriente para lá do Oriente, é o sonho dos viajantes de outrora, o sonho da vida colonial, o sonho cosmopolita e burguês dos wharfs e dos steamers."
Einard nos remete à necessidade do outro. O oriental é quem nos define como ocidental. A diferença é necessária. Ela nos move enquanto fascinação, mas destrói quando nos remete à intolerância.
"(...)nós respeitamos demais a Al-Qaeda, nosso mundo está em perigo, mais ninguém se interessa pela arqueologia grega e romana, só pela Al-Qaeda, e Beethoven compreendera muito bem que é preciso aproximar os dois lados na música, o Oriente e o Ocidente, para rejeitar o fim do mundo que se aproxima.’
se aproxima"
O oriente do ocidental não existe. Assim como o ocidente do oriental é uma expectativa de liberdade plena e individualismo que não são tão belos como caricaturizados na porção mais a leste do planeta.
"É a Lucie Delarue-Mardrus que devemos esta frase extraordinária: “Os orientais não têm nenhuma noção do Oriente. A noção de Oriente, somos nós, os ocidentais, nós, os rumis, que temos."
Seria o oriente o paz e a abdicação dos valores materiais e da razão? Ou seria o oriente o paraíso da irracionalidade e do poder centralizado sem participação? Questões tão antigas quanto as Guerras Medas. Tão forte quanto a imaginação de que a felicidade está no outro.
"Nós, europeus, as vemos com o horror da alteridade. Mas essa alteridade é tão igualmente assustadora para um iraquiano ou para um iemenita. Mesmo o que rejeitamos, o que odiamos, reaparece nesse mundo imaginário comum. O que identificamos nessas decapitações atrozes como “outro”, “diferente”, “oriental” é igualmente “outro”, “diferente” e “oriental” para um árabe, um turco ou um iraniano."
Einard nos mostra com sua poesia que ao idealizarmos o outro, não é ele que encontramos. E sim a nós mesmos. Este é o medo, pois este espelho distorcido pode nos levar à destruição, quando esta seria a oportunidade de abrirmos a porta para enxergarmos nossas próprias verdades. Parece ser mais cômodo manter nossas fronteiras desenhadas com o lápis da nossa falta de acuidade.
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