🔸 Tecer e ser tecida. Corpo fluidez. Advocacia criminal, Yoga y outras sutilezas.🔸 @souzademariane (instagram)
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07.09.2022
Não deixe escorregar pelas mãos
Where’s the light I used to know? (Slip – Elliot Moss)
Escrever sobre sentir-me desrespeitada, invadida, desconsiderada. É difícil esse exercício. Será que é por isso que, quando sento para a escrita, pareço não ter o que dizer? Não quero me calar pelo perfeccionismo do que me obrigo a traduzir. Quero deixar sair algumas feridas e olhar-me muito de perto. Dar-me tudo aquilo que espero sempre do outro, um outro socializado com um falo entre as pernas, geralmente. Que noção estúpida de amor, cuidado, afeto e atenção eu aprendi. Eu e a torcida do Flamengo quase toda, na verdade.
E como é um desafio e um tabu construir interações com outras pessoas, com ou sem falo, descobrir quais são meus desejos – por que eu desejo essas coisas todas? De onde vem esse buraco doido que eu trago em abandono e medo de ser rejeitada, não pertencer, não ser escolhida? Quanto de mim desaguou no mínimo que me deram?
Ainda, no meio disso tudo, começar a olhar umas coisas muito escondidas, mas tão óbvias!, sobre a minha ancestralidade, sobre essa crença de que meu corpo diz o quanto sou ou não desejada/desejável por outras pessoas. A minha pele cor do pecado, o apelido (carinhoso ou não) de neguinha, vocativos e adjetivos que nem sei explicar o que sinto quando escuto, porque acreditei serem exclusivamente de afeto por um bom tempo...
E então, um atravessamento potente. Uma falta de cuidado e humanização que aciona gatilhos doloridos e, de quebra, conduz minha atenção para o que eu poderia ter deixado de fazer, ou para as mensagens que eu poderia ter dado de maneira diferente, para não serem interpretadas como um aval para ter meu corpo à disposição. Mas, eu deveria me preocupar com isso? Ou essa outra pessoa é quem deveria ter me respeitado, supor o não, evitar prever o sim? Entender minha negação, em vez de esperar que eu, delicadamente (e sem jeito), precisasse repetir três vezes o que não desejava? Eu deveria? Justificar o desrespeito comigo, com base na suposição de que fui eu quem falhei na forma de passar a mensagem?
Autodeterminação. Quero ser cada vez melhor nisso. Poucas. Dizer livre do medo de desagradar. Convicta no que sinto, no que permito, principalmente no que coloco fronteira, na minha imposição fronteiriça. Você só chega até aqui, meu bem. Não vai dizer o que valho ou se sou desejável o suficiente com base naquilo que lhe dou de prazer, ou que deixo de dar. Não vou satisfazer o teu fetiche e nem o fetiche da sua relação altamente centralizada e falsamente libre. Não vou permitir que você me faça questionar o quão libertária a não monogamia pode ser na minha vida, no meu sexo, nos meus desejos, no meu modo de dar luz ao que sinto, só porque topei com mais um descuidado e inconsciente. Você só chega até aqui.
Quanto a mim, permaneço viva. Pulso gozo e também choro, choro muito depois disso, deixo doer uma versão da Mariane de onze, doze ou treze anos, desesperada por pertença e visibilidade — não era muito confortável ser essa menina de pele marrom na sala branca e sentir-me sempre a última a ser escolhida, mesmo entre aquelas pessoas que tinha como amigas... até que a puberdade me desse contornos e eu passasse a ganhar a atenção (sexual). Isso eu só percebi agora. Aos trinta e um anos. Graças a encontros maravilhosos que tenho tido, que me provocam até o talo a ser uma pessoa melhor, a bancar o que faço, como ajo, o que falo, olhar profundo pra mim (e sou muito disposta a isso, também). Aos trinta e um anos, eu compreendi uma dor antiga e que sequer eu sabia estar tão reprimida (e arraigada dentro de mim). Então deixo que doa essa versão mais antiga, acolho como gostaria que ela tivesse sido acolhida lá atrás, mesmo quando sequer sabia a razão de algumas solidões. Sabendo, retorno pro agora e posiciono-me.
Isso não é um diário. Mas poderia ser. Isso não é público por você. Isso é pra mim. Sempre foi. Deixar vazar meu Mercúrio em Escorpião, deixar a palavra lavar o que sinto, deixar alto pra me lembrar que tudo bem eu falar, tudo bem eu abrir a roda energética da minha garganta e deixar que ela flua honesta, crua, alerta, peito aberto, guarda alta. Protegida. Consciente. Lúcida. Só acessa meu corpo se conseguir acessar minha cabeça, irmão. Se sustentar olhar no meu olho e respeitar minha verdade quando eu a disser. Eu não sou teu fantoche bonito e aprazível aos olhos e língua. Por trás do meu corpo esteticamente padronizado para o prazer, existe uma pessoa batalhando ativamente pela sua autodeterminação. Existe um universo inteiro de caminhadas, dores profundas, carinhos gigantes, saberes imensos.
Eu odeio não poder falar do meu sexo e desejos abertamente (porque fico me restringindo várias vezes), questionar quando posto um vídeo gostosa e dançando, porque você pode achar que eu só quero corpo e que estarei à disposição das suas mãos — ou que as minhas mãos estarão à disposição do teu corpo. Cansa. Tenho repetido p/ mim mesma que não sou pra qualquer um. Como um mantra. Não para me depreciar e achar que eu sou difícil de aguentar ou algo do tipo. Mas, porque não é qualquer pessoa que consegue sustentar um encontro comigo. É por isso que tenho contado nos dedos quem tem minhas inteirezas e a quem escolho ver por inteiro. E isso é tão não monogâmico. Tão diferente dessa hipersexualização, desse fetiche alastrado que colocam nas outras pessoas, disfarçando monogamia com um falso discurso libertário. Poupem-me. Poupem-se. A não monogamia tá me colocando mais atenta que nunca, até o ponto em que eu sequer vou precisar usar essa definição, porque estarei vivendo isso como algo que só é. Tô amando ouvir meus pés se afastando de tudo que me atrasa e me reduz. Ufa. Respiro aliviada. Sigo fortalecida em mim e fortalecida por pessoas maravilhosas que escolhem me ter na vida delas todos os dias (ou quase todos) e fazem com que eu me sinta vista e acolhida. Que especial e raro. E simples e bonito. Obrigada, Exu.
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Nesse dia internacional das mulheres, eu torço pra conhecer cada vez menos caras irresponsáveis (com eles mesmos e com as mulheres que se relaciona). A gente vive e conhece, nos nossos círculos, alguns caras assim. Espero que você se posicione. Que lave a sua louça, mesmo estando muito cansado ao final do dia - ela também está exausta, sabia? Espero que, mesmo sem encontrar abertura (muitos caras não se abrem p/ escutar, dos outros, seus próprios vacilos), você chame aquele seu “amigo do rolê” e saiba apontar a cagada que ele fez no último relacionamento dele. E, se você for o cara que vacilou, eu espero que você escute. Não precisa pessoalizar, viu? A realidade tá aí, responsabilização dói mesmo, mas, que tal segurar seus rojões? Ah, vocês não precisam achar que são heróis! Recomento a leitura da edição 242 da @revistacult, que fala justamente sobre isso. Ninguém é perfeito. Você não precisa se culpar por ter tido um comportamento tipicamente masculino, como se não tivesse o direito de errar (todo mundo pode errar): você precisa se responsabilizar e agir. Espero que você pare de achar que é sensacional ou desconstruído por ter lido Clarissa Pínkola Estés, por concordar que mulheres devem ter salários iguais aos dos homens que exercem a mesma função, por ter certeza de que mulheres devem ser donas dos próprios corpos. Pare de achar absurdo a notícia da mulher estuprada, mas, AINDA, naturalizar comportamentos de merda, que ferram com toda a saúde emocional das minas. Tudo bem ter te manipulado um pouquinho ou ter negligenciado o que era importante pra você, me desculpa, eu ainda estou em processo, daqui dois anos nos encontraremos e eu direi o quanto você me fez crescer, você viu que absurdo o assédio do Fernando Cury contra a Isa Penna? Conhece esse papo? Então. Espero que a sua exaustão de todo o processo de se desconstruir, de ser um cara melhor, de encarar todas as buchas que chegam com a masculinidade aprendida...espero que esse cansaço seja menor do que a consciência de que as mulheres estão MUITO mais cansadas. Se você tá cansado de ouvir falar dessas coisas, de discutir comportamentos que causam dor e estrago mental (seus e dos seus amigos), imagina o cansaço das minas que sentem um pouco disso todos os dias? Se não for dentro de casa, a gente sente isso passando no sinal vermelho, sob o olhar sexual e intimidador do motoqueiro da frente. Tiozão, eu comecei a sair de casa com um canivete na bolsa, especialmente pros momentos em que estou sozinha, você consegue imaginar isso? Você consegue entender que o motoqueiro do sinal e a sua negligência machista estão dentro do mesmo saco de farinha? Você consegue se comprometer em ser um pouco menos idiota todos os dias? Sabe ser vigilante dos seus gatilhos pra esses comportamentos? Está disposto a se conhecer? Nesse dia internacional das mulheres, eu espero que as minas tenham uma rede de apoio cheia de outras mulheres. Poder dizer o que atravessa e acolher a visão das manas, p/ saber se está deixando passar algo que não percebeu. Sentir e entender que, não importa quantos caras merdas atravessem nossos caminhos, sempre será tempo de ficarmos safas, deixar de aceitar certos papéis em que somos colocadas. Com outras mulheres por perto, eu atravessei e sei que ainda vou atravessar muitos momentos com a certeza de que serei fortalecida por elas, que me lembram das minhas capacidades e fortalezas. Assim, eu consigo me posicionar e impedir que entrem na minha vida esses caras irresponsáveis. Nesse dia internacional das mulheres, amigos e amantes homens, melhorem. Por favor.
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09.06.2021 Presença. Sinto minhas duas pernas, como se estivessem amarradas a algum certo peso que desconheço. Enquanto penso nisso, concluo que até a escolha das minhas palavras pode dizer muito sobre mim - eu poderia simplesmente dizer: “Minhas pernas estão pesadas”. A mensagem seria a mesma, em termos gerais. Mas, agora, escolho sentir as minhas pernas como se estivessem amarradas a algum certo peso que desconheço. Isso não é um diário. Mas poderia ser. E pode ser, também, que as minhas pernas estejam pesadas pelo efeito perigoso da vacina que tomei (maldito caos brasileiro). Espero que não. Hoje fiquei pensando no porquê de eu estar tão devagar, quase parando na transição para uma vida que preciso escolher diariamente. Decidi entrar num buraco completo de situações desconhecidas e parece que não existe muita calmaria nesse lugar, risos nervosos.
Preciso me lembrar todos os dias disso: estou em direção ao que quis, nada a mais. Pensei: “advogada autônoma, professora de ioga autônoma... Que coisa contraditória, já que me sinto tão pouco dona de mim em tantos momentos”. E acho que é porque, de fato, é preciso coragem para ser autônoma. Tomar a responsabilidade para si (não só dos sentimentos, mas, também, da vida de subsistência) requer coragem. E coragem requer um autodominío (autoconhecimento?) muito grande. Como me percebi carente de validação alheia... com certeza isso ressoa em muita gente, mas, perceber-se assim não é tão confortável ou gostosinho. É bem ruim, na verdade. Também é verdade que, ao criar consciência disso, também ganhei uma certa liberdade... Como se eu estivesse me dando o aval p/ ser quem eu sou. Sinto minhas pernas. Enquanto me desespero, receosa com um efeito adverso de vacina, penso se essa dor física não me traz, também, uma dor emocional. P.s. se for só a razão física e eu viajar demais na racionalização, também pode acontecer. De qualquer jeito, isso não é um diário. Mas poderia ser. (m.)
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https://www.instagram.com/tv/COycE6Opbt8/?igshid=1ptg33byuceus
O homem branco não precisa de muito para ser perdoado.
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Engraçado como olhar alguns registros fotográficos pode ser o suficiente pra acreditar no quanto nosso corpo é capaz de prever (ou retratar?) nossa vida.
Há seis meses atrás, fiz um ensaio fotográfico intuitivo com uma amiga muito querida e fotógrafa profissional, a Julia Pavin. Ela aproveitava o ócio criativo da quarentena, eu desfrutava do olhar de outra pessoa num momento vulnerável que passava.
Vejo as fotos agora e quero rir (quase de deboche). Fotos em que eu me toco profundamente - há meses venho tateando meu caminho, buscando meu interruptor na escuridão. Outra em que me equilibro nas pontas dos pé, em frente ao espelho, seguindo a coluna vertical de um prédio - o trabalho desesperado pra manter minhas coisas no eixo (não sei que eixo, só sei que busco controlar).
Tem uma em que meu olhar está um pouco desconfiado, arredio...pro meu próprio reflexo! Sim! Tantas vezes em que eu duvido de mim, da minha capacidade de agir e resistir, de ser resiliente e não desertar (ah, a ideia do fracasso que só a ansiedade e a minha respiração curta são capazes de trazer).
Que louco o quanto eu me deprecio com facilidade, coloco meus sentimentos em xeque, pergunto a mil e uma pessoas se elas não acham que eu estou ficando doida, se é uma boa ideia o que tenho pensado pra minha vida. Até quando eu tô a fim de pedir permissão pra alguém? Ou esperar que me aprovem e apoiem 150% cada ideia mirabolante que meu coração tiver? É cansativo pra caralho.
Eu não sei se é o retorno de Saturno (minhas manas sabem que eu sou dessa opinião), se é a virada dos 30, se é a vida se mostrando exatamente como é aos meus olhos, se sou eu completamente desorientada por esse micróbio embuste, que não faz o favor de infectar certos alguéns...
Tudo o que sei e posso dizer é que as faltas que o Senhor Tempo me mostrou servem pra me fazer enxergar minha imensidão e abundância interna. Pra me fazer ter coragem de respirar fundo, sentir o ar entrar e deixar o caos da vida se fazer no fluxo... As ausências servem para me mostrar o quanto sou capaz de estar presente em mim. Que a dúvida me faz afogar em opiniões de fora (repara na foto em que coloco o espelho em minha frente... como se só o que tivesse refletido pudesse completar meu corpo físico. Louco. Nem tínhamos pensado nisso na hora e agora parece mais um retrato premonitório de meus próprios processos rs). E que isso serve pra me mostrar o quanto é bom ter liberdade, mas, que junto dela, eu preciso bancar e muuuuito as minhas escolhas. Às vezes, dá uma preguiça gigante amadurecer. Olhar pra dentro pode ser insuportável. Aconteceu comigo algumas vezes esse ano.
Não tem erro: sei que só vejo aquilo que meu campo sutil me prepara pra ver. O jeito é apertar os cintos e respirar. Será que isso é o significado de trintar? Porque, gente...quem não chegou nessa festa, passa mais make, o bagulho é loko com esse Saturno!
Quando eu tropicar, vou lembrar de sentir o cheiro da flor que nasce na grama (ou no concreto). Tentei transformar o sufoco em poesia - deve ser por isso que amo fazer aniversário. É quando olho pra trás e vejo poesia também.
Feliz 30, mulher. Sente esse divisor de águas chegando em pleno Marte retrógrado em Áries (e Lua!).
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10 de junho de 2020,
Satya
Respiro antes de escrever, porque a escrita tem vindo apenas quando tenho momentos de ouvir minhas verdades (e dói). Satya é o segundo preceito ético do Raja Yoga, de acordo com Patanjali, II Sutra 30 (1). Traduzindo literalmente, significa Verdade. Mas, por isso mesmo, esse preceito ético é um dos mais abertos, se não o maior deles. O que seria viver a Verdade?
Para aquele que procura seguir na senda da autorrealização, observar Satya, meditar em torno de um comportamento coerente com a própria natureza, já é de grande ajuda (Paulo Tavarez). Achei essa a conceituação mais fidedigna de Satya, na minha humilde e ainda iniciática opinião.
Viver a Verdade (Satya), existindo e estando na realidade material como estou, está mais para um estado de consciência e alerta (no sentido de estar desperto, awareness) (2), uma disposição para viver a minha verdade, ou seja, ser coerente com a minha própria natureza — sem deixar de lado minha lapidação interna, que aqui se ajustaria ao preceito ético de Tapas (fogo, disciplina, austeridade inteligente, segundo Téo Balieiro).
Que eu possa, então, viver cotidianamente em Satya, estando consciente e leal às minhas próprias verdades. À minha Verdade. Isso significar respeitar meus tempos, respeitar meus processos, abdicar de coisas muito, muito amadas, em prol daquilo que eu considero ser minha verdade naquele momento. E tudo bem. Isso é autocuidado também. É ahimsa, o preceito ético de Patanjali que fala de não violência. Isso é ser não violenta comigo, única que posso controlar efetivamente. Presença no meu corpo, na minha respiração, nos meus batimentos cardíacos enquanto estou em um momento decisivo da minha vida emocional. Satya. Tapas. Ahimsa. Minha Verdade. Meu Fogo para me lapidar. Não violência comigo mesma.
(1) Os Yoga Sutras de Patanjali — Texto clássico fundamental do sistema filosófico do Yoga. Editora Mantra. “O livro é a porta que se abre para a realização do homem [da mulher também, né].” (Jair Lot Vieira).
(2) Awareness: qualidade de estar desperta, estar consciente, alerta no sentido de estar presente e acordada.
(Registro maravilhoso da Julia Pavin)
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31 de maio de 2020, 02h00
O primeiro toque Lembro-me de chegar àquele lugar delicadamente isolado: o caminho passando do asfalto para a terra, a estrada simples que afunilava numa espécie de túnel, uma entrada à direita com bambuzais, quase imperceptível. Entrar ali só era possível com muita atenção. Pessoas desavisadas dificilmente enxergariam. Talvez por isso tenha me perdido de início. Passei a entrada e precisei parar na casa vizinha, perguntando onde ficava o lugar que estava procurando. Dei volta e meia e encontrei a entrada. Como portas de um outro mundo que eu atravessava, sem a mínima ideia do que poderia significar aquele trajeto pra mim.
Quando o encontrei sinalizando e apontando a porteira que estava se abrindo, senti menos desconforto do que esperava. Um completo estranho que eu conhecia fora da minha zona de conforto, do meu território, do meu quarto com minha rede. Ali, no terreno alheio, eu conversaria pela primeira vez com alguém que só havia visto por dois minutos um mês antes. Ainda assim, não me senti desconfortável. Contornei a timidez inicial e fluí depois do cumprimento.
Do tempo entre o passeio por aquele pedaço de terra, as conversas típicas de um primeiro encontro e o caminho até o encontro dos amigos músicos, devem ter passado, no máximo, três horas. A vontade de conhecer o toque dele existia, mas ainda não a coragem ou a iniciativa. Também não existia aquela espontaneidade de agir-apesar-da- possibilidade-de-rejeição. E se ele não quiser esse tipo de interação?
Veio então a parada para comprar breja. Saem os dois do carro. Decido arriscar. Se for ruim, é só deixá-lo com os amigos e voltar pra casa. Atravessam os dois a rua. Então eu paro e, num intervalo curto de tempo (segundos?), envolvo meu braço esquerdo no pescoço dele, solto um sorriso desajeitado e olho-o nos olhos, que imediatamente correspondem. Um beijo desajeitado no meio da rua, com grandes chances de choque de dentes, uma vergonha pueril, quase de criança. Afastamos os lábios e rimos, concordando que seria melhor uma segunda tentativa, dessa vez na calçada. Parece que melhorou. No cenário seguinte, fico por mais duas horas naquela companhia e na companhia de pessoas divertidas, treinando alguns beijos nos intervalos de uma conversa e outra.
Escrevendo sobre esse primeiro beijo agora, vejo muitos sinais que não vi naqueles momentos. Repassando esse filme, relembro cenas simbólicas: passar do asfalto para a estrada de terra, afunilando cada vez mais o caminho, representou a travessia que fiz depois desse encontro. Uma travessia mais em direção ao que meu coração pede. Honrar coisas que sinto e entregar-me à verdade dita pelo meu corpo. A curiosidade pelo mundo de alguém, ao mesmo tempo em que sinto conforto em um lugar em que nunca havia estado antes.
O silêncio do passeio naquele pedaço de terra, um não dizer perfeitamente natural, já que cercados pela solitude da natureza ao redor. Ouvir a respiração, sentar com o vazio. Achar afeto em coisas miúdas, praticamente imperceptíveis. Achar caminho nas miudezas. Tudo isso coube naquele primeiro beijo e eu consigo perceber claramente agora.
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Sexta-feira, 15 de maio de 2020
À terceira primeira vista
Quando se virou para respondê-la, disse que tinha tido um insight enquanto fumava na noite anterior. Achava que nunca iria querer conhecê-la completamente. Ela não entendeu — quase se sentiu rejeitada (rejeitada é a exata palavra). Mas, então, ele emendou dizendo que sua mãe e seu pai pareciam sempre ter coisas a descobrir um do outro, mesmo após muitos anos de casamento. Que riam juntos e descobriam coisas juntos também. Sabe, eu acho que é isso que mantém uma relação acesa. E eu acho que sempre vou querer ter coisas pra descobrir sobre você.
Sentiu o corpo acender. Ali no osso esterno, aquele lugarzinho ossudo no centro do peito, algo queimava — e assustava, também. Sentiu o chakra cardíaco expandir, sentiu que seu corpo brigava e retraía, que lutava para voltar à concha, sentiu os medos e desejos e inseguranças e feridas e sentiu amor.
Abraçou a tela enquanto fingia (ridiculamente) um abraço. Estava exposta de um jeito cru e sentiu a água sair dos olhos em silêncio. Sentia cada lugar do corpo e lembrou de prestar atenção no ar que entrava e saía. Que, nessas horas, fica bem curtinho e rápido — enche os pulmões, enche os pulmões. Solta. Soltou.
...Acho que também nunca quero te conhecer completamente. Ele sorriu Amor.
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Eu não quero mais conversa
Com quem não tem amor
Gente certa é gente aberta
Se o amor me chamar, eu vou
Pode ser muito bonito
O mar, o sol e a flor
Mas se não abrir comigo
Não vou, não vou
(...)
Quem não tem nada com isso
Veio à vida e não amou
Gente certa é gente aberta
Se o amor me chamar
Eu vou, eu vou, eu vou
(Gente aberta – Erasmo Carlos)
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Domingo,03.05.20
Crescer em mim
Passei os olhos em uma tecitura que escrevi no último 27 de abril. Reler meu desabafo daquele momento cheio de oscilações mentais e de cenários apocalípticos projetados dentro da minha cabeça ansiosa causou certo desconforto. Porque relembrei um pouco da sensação que estava enquanto digitava aquelas sentenças que se esforçavam para ter sentido no papel.
Isso diz muito sobre a resistência em aceitar meus sentimentos quando eles fogem do meu controle ou fogem da minha ideia de conforto e prazer. Sobre deixar minha criança sair da toca e manifestar-se como quem é — uma criança que, na sua vida pueril, reage instintiva e espontaneamente aos acontecimentos, desejando e aceitando aquilo que lhe é prazeroso e rejeitando com veemência aquilo que lhe causa desprazer ou desconforto.
Não é sobre reprimir os momentos da criança Mariane, tampouco sobre julgar-me (algo que faço com certa frequência e que também tenho exercitado suavizar) quando ela surgir. É preciso saber se acolher nos desconfortos. Dar voz e legitimidade à parte que é infantil em mim, porque ela existe e sempre vai existir. Por outro lado, também é inteligente saber dar limites à criança que me habita. Reconhecer e legitimar meus momentos de resistir à dor e de incompreensão, porque eles existirão ao longo da vida. Mas, também, firmar a bandeira no meu próprio território interno, delimitando fronteiras para a tristeza que sinto, a angústia que vem vez ou outra, a ansiedade que submerge. É inteligente e amoroso da minha parte dar-me limites.
Um professor muito querido da minha formação de Yoga repetia isso sem parar em suas aulas, enquanto eu queimava para sustentar uma postura desafiadora: “lembrem-se: austeridade inteligente”. Austeridade sozinha é autoflagelo. É rigor e rigidez consigo e com o mundo ao seu redor. Austeridade inteligente, ao contrário, é saber para onde direciono a minha energia.
Acolher os momentos de retração (porque tudo é um fluxo de expansão e retração, como o ar que inspiramos e o ar que exalamos), mas também ter a disciplina interna para virar a chave de tendências emocionais. Se eu me encontro em uma situação difícil, que me coloca constantemente em lugares de tristeza, angústia ou solidão (bem diferente de solitude, aliás!), preciso encontrar em mim as ferramentas necessárias para administrar esses períodos.
Apenas nesses últimos dias é que percebo o quanto aprendi a importância de fazer escolhas de autocuidado: não é só sobre fazer a máscara de argila e fazer hidratação com óleo de coco. É sobre estar com mulheres que amo e que me fortalecem, em vez de me isolar no quarto com meus pensamentos quando tudo dentro de mim está um turbilhão e eu só consigo pensar no pior. É sobre me permitir ter momentos de puro ócio, quando tudo o que minha mente julgadora exige de mim é produtividade (“só vou deitar na rede depois que arrumar todo o quarto e lavar toda a louça”). É sobre pegar um livro aleatório na estante da Didi, que é uma galeria de arte ambulante, em vez de me cobrar, porque minha leitura anterior está inacabada. É sobre ir embora de uma relação deliciosa, mas que não se encaixa naquilo que quero pra minha vida. Acolher e cuidar de si é isso.
Outra coisa importante é ter maturidade suficiente para entender que escolhas de autocuidado nem sempre serão prazerosas. Dói escolher ir embora quando há conforto e prazer, mas a consciência de que uma situação — e coisas e pessoas — não se encaixa naquilo que eu acredito ser bom pra mim precisa ser motivo suficiente para ajustar as velas de meu próprio barco, ressoando com os ventos que sopram dentro de meu mundo. Ouvir minha verdade e saber dizê-la a quem quer que se coloque como meu interlocutor ou minha interlocutora. Isso tudo é autocuidado.
E o mais curioso dessa percepção que eu achei ser recente: aprendi isso desde 2014, quando comecei a praticar yoga e todos os meus mestres falavam em Tapas (uma espécie de “preceito ético” do Yoga que significa, em linhas gerais, esforço sobre si mesmo). Tapas, voltando para aquela minha prática no curso de formação, quando eu queimava o corpo inteiro e queria muito que a permanência naquela postura terminasse para aliviar o esforço que fazia, é exatamente o que o professor repetia sem parar: austeridade inteligente. Escolhas de autocuidado são a disciplina mais inteligente que posso cultivar — e um ato de amor próprio muito poderoso para crescer em mim mesma.
(Referências: além de meus últimos dias e dessa quarentena intensa, a companhia genuína e deliciosa de Didi e Ju. Também Dandara Manoela na música Minha Prece: “é preciso ser forte pra ser, precisa ser forte”. As práticas incríveis de ioga do Téo Balieiro. Os ensinamentos profundos compartilhados por Tiago e Carol no Centro Sivananda de Franca/SP, onde conheci esse multiverso de sabedoria. Os Yoga Sutras de Patanjali — Texto Clássico Fundamental do Sistema Filosófico do Yoga. Daniel Odier em Tantra — iniciação ao amor absoluto. O aqui e agora.).
Foto de Julia Pavin (@juliapavin).
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(Olhar fotográfico de Julia Pavin)
Terça-feira, 05.05.20
Fios que se entrelaçam
Tecitura: substantivo feminino; Característica de um tecido resultante do modo como os fios se entrelaçam; textura. A reunião dos fios que se atravessam no tear (urdidura) (1).
Teço histórias que me atravessam. Meus nascimentos e minhas mortes, as relações que iniciei, as que cultivo e as que decidi finalizar. Tecidos que se cruzam e compõem a tecitura que só pode ser feita por mim e através de mim, porque vem de minhas mãos e de meus olhos neste mundo que conheço.
Teço chegadas e partidas, encontros e afastamentos, rituais e profanidades. Teço as coisas que aprendi e preparo fios para as que ainda vou aprender. Teço pessoas que me ensinaram e a quem ensinei, assim como sou tecida por elas. Teço minhas alegrias e prazeres, minha entrega e minha tendência a querer controlar o fluxo da Vida, teço meus medos e incertezas, teço meu devir.
Teço meu sonho de botar no mundo aquilo que é minha medicina: minha forma de praticar ioga, de ritualizar meu corpo, trabalhar para ouvi-lo com reverência e respeito, minha forma de dizer e ouvir o Direito, ser instrumento de acesso à Justiça e nela encontrar possibilidades emancipatórias, meu modo de juntar essas tecelagens e transformá-las em algo que é só meu, enquanto me mantenho aprendiz e iniciática. Tecer a mim, deixar que me teçam. Tecitura.
(1) Dicionário Michaelis; Dicionário online de Português.
#yogaeverywhere#self#self conscious#self care#equal rights#women#consciousliving#body#voice#self love
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Domingo, 26 de abril e 04 de maio
Mercúrio em Áries/Touro, Vênus em Gêmeos
Olá, terráqueas e terráqueos,
Meu nome é Mariane Destefani de Souza. Li por aí que temos um Mercúrio em Touro (fala mansa e potente [1]) e Vênus em Gêmeos (beleza dupla, tripla, quádrupla... beleza veloz!) por esses tempos.
Adoro escrever e partilhar meus processos internos. Ou coisas da Vida que acontecem diante dos meus olhos e me botam pensando. Também adoro Yoga e pude realizar um sonho guardado desde 2014, quando comecei a praticar em um Centro Sivananda de Yoga Vedanta: fazer um curso de formação como instrutora (mais conhecido como RYT 200H Yoga Alliance, Escola Premananda). E fiz, também, o curso de Yoga para crianças (Ioga e os Jogos Teatrais) com o incrível instrutor de Iyengar Yoga, Antônio Tigre (@antoniotigre). E tanto, tanto estudo ainda por vir.
A quarentena chegou de surpresa e, como boa escorpiana, também mexeu do lado de dentro. Quero poder ser instrumento de uma prática corporal consciente e que modifica com verdade e integridade os velhos caminhos conhecidos do corpo, aproveitando as coisas lindas que ioga traz. Se o nosso corpo responde às nossas emoções, por que não podemos fazer o caminho contrário? Brincar com nosso corpo para que as emoções respondam aos movimentos que fizermos (conscientemente) com ele? E se tudo isso pudesse ser usado para grupos vulneráveis e que não são minimamente considerados pelo Estado brutal que temos hoje e que é espelho de tanta invisibilidade e cegueira?
Pensando cá com meus botões, vejo que a vida é sobre tecer. Tecer histórias que me marcam, retalhos que constroem o que sou e o meu devir. Vários pedaços de panos coloridos e cinzas e rasgados ou inteiros, todos crus à sua maneira. Se eu puder usar meus retalhos para fora de minha redoma de privilégios, então saberei que sou uma tecelã de verdade. Que faço tecituras e que permito ser tecida. Levar o que aprendi até hoje como advogada, como pesquisadora de gênero, como estudante de Yoga, como mulher, enfim... Levar isso a espaços vulnerabilizados e comprovar que é possível uma prática emancipatória através da consciência do corpo.
É mais sobre estar aqui e agora. Estar em atenção plena ao que diz o corpo enquanto você lava a louça, dança, ri, chora, bebe no boteco com suas irmãs de vida. É mais sobre reconhecer o direito de cada pessoa à felicidade interna, à sabedoria de que somos todos parte de uma mesma coisa... Todos temos energia, todos sentimos tristeza, medo, amor, alegria. As pessoas marginalizadas também possuem os quatro elementos no corpo (2). Também têm chakras a serem realinhados. Têm direito a acessar os lugares que lhe pertencem internamente. Ouvir a própria voz, em vez de lidar com os ruídos de um Estado genocida, um Estado que exclui e mata deliberadamente os corpos tidos como “desajustados”. Yoga, para mim, é isso: cessar o ruído de fora através da presença no corpo (3). E isso a gente pode fazer em qualquer lugar e a qualquer momento.
Não sei bem como abrirei essa trilha em meus caminhos. Atuando em órgãos púbicos, dando vivências em organizações sem fins lucrativos, fazendo uma aula de ioga na rua, financiamento coletivo, propondo vivências com mulheres em situação de vulnerabilidade social/emocional, sei lá. Vou tecendo e descobrindo na tecitura.
Nesse tecer e ser tecida, aprendo a fluir junto com o Tempo. E vou registrando, partilhando, trocando por aqui (ou por qualquer lugar que vocês me virem!). Porque tenho muitos teceres e tudo isso coabita por aqui. Sejam bem vindas, pessoas, às minhas tecituras. Espero que aproveitem tanto quanto eu já estou aproveitando. Vou tecendo nessa coletividade.
Um cheiro de cangote (ai, quarentena!),
Mariane.
(1) Julia Garcia de Oliveira, em Luzeira Astrologia (IG).
(2) Regina Santos, dançarina afro, historiadora, educadora, atriz, cantora e pesquisadora da cultura tradicional africana e afro-brasileira (IG @reginasantos77).
(3) Os Yoga Sutras de Patanjali, Sutra 1.2: “Yoga é a cessação das flutuações mentais.”.
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