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O céu e a estrada de Hermila
por Antônio Souza
Karim Aïnouz é um grande artista visual. Karim tem uma predileção por fluxos e, assim, por filmar céus, mares, estradas e personagens que escoam pelas telas e seguem seus caminhos próprios, sem importar para onde. O céu de Suely (2006), seu segundo longa-metragem, dialoga com a estória de um trabalho anterior, o curta Rifa-me (2000), que se baseia num conto de literatura de cordel sobre uma “jovem que se rifou para ir morar em São Paulo”.
Contudo, para além dessa similitude narrativa, O céu de Suely, na verdade, me faz voltar há alguns anos mais na jornada cinematográfica de Karim e me leva diretamente ao seu primeiro curta-metragem, Seams (1993); um documentário sobre as mulheres de sua infância e adolescência, mãe, avó e tias que formavam assim um “patriarcado sem homens”, como ele mesmo narra no filme, e também sobre o lugar de onde ele veio, o Ceará – Nordeste Brasileiro, a “terra dos machos” onde “puta é a pior coisa de que alguém pode chamar uma mulher”.
E é precisamente daí que Hermila, às vezes Suely, parte e chega. De Iguatu, uma cidade no interior do Ceará, e de uma família apenas de mulheres. O céu de Suely começa com uma Hermila que entra em cena sorridente, que olha para trás e começa a correr. Correndo atrás dela vai Matheus, o seu noivo. Correndo atrás deles vai a câmera que, com uma imagem granulada de Super 8, devaneia e participa daquela brincadeira. Hermila narra brevemente sobre o dia que ficou grávida. A trilha nesse momento é Diana, com aquele tom cafona romântico, cantando “Tudo que eu tenho meu bem é você, volte logo meu amor”. Pura nostalgia.
Essa passagem é mais um delírio cheio de lirismo que Hermila se permite por uns instantes, do que uma lembrança de algo que realmente aconteceu. Hermila é uma personagem em trânsito, que se desloca para se encontrar. Quando ela desce do ônibus e chega em Iguatu, com o filho no colo, se vê tudo que ela tem, uma mala pequena e um imenso céu azul e árido.
Personagem chave no O céu de Suely, Iguatu, a cidadezinha que longe de ser o céu do título do filme, não chega a ser também o oposto, é um entre-lugar que, como a personagem principal, também sugere deslocamentos, onde o internacional se mescla com o nacional e se torna o local. É só ouvir as músicas de Aviões do Forró, dialogando com o pop internacional, e que tocam nos bares e nas festinhas que Georgina leva Hermila. Essa, inclusive, que dialoga com o entre-lugar de Iguatu também por suas roupas, sempre de cropped e de shortinho sem medo de ser chamada de puta, e pelo corte de cabelo, uma tentativa de se mostrar vinda de outro lugar.
Talvez em 2006, quando O céu de Suely foi lançado, os debates e opiniões acerca do filme não o catalogaram como uma obra que dialoga com o feminismo, com uma personagem central empoderada e subversiva frente a uma sociedade machista. Talvez, na verdade, “empoderamento” não fosse uma palavra tão comum em meados dos anos 2000 e as discussões sobre o feminismo não estivessem tão em voga.
Onze anos se passaram, algumas coisas mudaram (mas nem tanto). Hoje, em 2017, empoderada mesmo é a personagem Rosa (Maria Ribeiro) do Como nossos pais, de Laís Bodanzky. Classe m��dia e que lê Simone de Beauvoir. Academicamente feminista. Mas eu prefiro não esquecer Hermila e fico com ela e com sua amiga Georgina na cena em que conversam, enquanto cheiram acetona, sobre a tabela de preços dos serviços sexuais e ironizam o fato de dormir abraçado, “aí já é namoro”.
As personagens em O céu de Suely tem seus nomes emprestados dos próprios atores que os interpretam, Hermila Guedes é Hermila, João Miguel é João, Georgina Castro é Georgina, Zezita Matos é Zezita. É como se em alguma parte deles estivesse lá também aquele personagem. É como se dentro da Hermila Guedes atriz, que nasceu no interior de Pernambuco e lá residiu por dez anos, também tivesse uma Hermila/Suely procurando se encontrar.
Partindo de um processo de preparação inspirado na própria personalidade dos atores, Fátima Toledo, preparadora de elenco renomada, treinou os atores com exercícios físicos e leitura do roteiro, sem os diálogos. Destaco a passagem em que a avó e a tia interagem com Matheuzinho, enquanto ele balbucia algo. Karim capta uma realidade que parece, ludibria e soa como documental. Mas é curioso perceber que no filme essa realidade se conecta com uma verdade que nem sempre pertence ao famigerado documentário. É um “não atuar” próprio do estilo de Fátima Toledo que atinge uma camada de encenação ainda pouco vista no cinema brasileiro, apesar de muito desejada.
Jacques Rivette comentou em Carta sobre Rossellini que há filmes que “retornam ao tempo como os rios ao mar; e que nos propõe ao final apenas as imagens mais banais: rios que correm, multidões, exércitos, sombras que passam, cortinas que caem ao infinito, uma menina que dança até o fim dos tempos”. Karim nos propõe uma estrada e uma Hermila solitária como a Ingrid Bergman de Stromboli (1950) e de Europa 51 (1952) que “gira em vão, sem progresso aparente; avança, porém, sem saber, pelo próprio desgaste do tédio e do tempo (...) uma fadiga tão pouco cansada, tão ativa, tão impaciente, que acabará por vencer o muro da inércia e do abandono, esse exílio do verdadeiro reino”. Hermila é uma grande atriz.
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Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky.
por Erika Muniz
Sentir falta de outros tempos pode se referir tanto a períodos anteriores, quanto a futuros acontecimentos e isso faz parte do processo melancólico de nostalgia. A percepção de nostalgia atrelada à discussão de melancolia é inevitável quando retomamos a afirmação de Kierkegaard, “o melancólico é alguém que vive na lembrança, isto é, alguém que repete ‘para trás’, quando a verdadeira repetição é ‘para a diante’”.
A identificação de um artista com outro de um período cronológico diferente se dá a partir do movimento de deslocamento do tempo atual e reaproximação, que finda por aperfeiçoar a relação com o seu tempo cronológico. É como fazemos para enxergar melhor, mais ampliado um objeto, uma situação: nos distanciamos, recorremos a outros tempos.
Neste filme de Tarkovsky, o personagem Andrei – o mesmo nome do diretor russo – está em seu processo de pesquisa para escrever a biografia de Pavel Sosnovsky, um músico russo que viveu na Itália. As descobertas de detalhes da vida de seu objeto de pesquisa ao longo da narrativa se misturam às experiências do próprio Andrei durante sua estadia na Itália numa espécie de simbiose. Há sim, uma separação do que seriam lembranças ou experiências de Gortchakov e do que se faziam memórias de Sosnovsky – numa compreensão mais de construção discursiva, histórica e social – no filme.
A poesia perpassa a relação do protagonista com a literatura e também num todo: como Tarkovsky urde o panorama da câmera com as músicas escolhidas, os barulhos que percorrem diversas partes do filme, a exemplo de goteiras, passos na água, morcegos, os cenários impecáveis e obscuros e os diálogos sintéticos dos personagens. A atmosfera criada a partir desses aspectos constitutivos de Nostalgia revela um Tarkovsky admirador do silêncio, da síntese e da arte literária - como se cada gesto ou palavra por mais simples e econômico que isso possa acontecer, merecesse ser carregado de significado, mesmo que não explicitamente.
Toda a calmaria e (quase) mudez do protagonista em sua comunicação com o mundo exterior, acaba sendo paradoxal à maneira que ele se expressa através de seus sonhos. Os sonhos e planos de memórias dos personagens do filme funcionam como um espaço – e tempo - de suspensão de todo silêncio e morbidez que durante o plano da realidade é sugerido na obra.
A carga autobiográfica de Nostalgia é óbvia, e se constitui em 3 diferentes épocas, desde ficção e realidade. A nostalgia da terra natal no músico Sosnovsky (1) influencia Andrei Gortchakov que acaba entediado e nostálgico pela Rússia (2), mas ambas se relacionam com a nostalgia do próprio Tarkovsky (3) e seu impedimento de retorno à Rússia pelo Regime em vigor. Além do desejo e da impossibilidade de regresso à terra de nascimento, em Nostalgia, Tarkovsky cria uma reflexão sobre tradução na arte, para uma necessidade de se romper fronteiras geográficas e simbólicas e assim, a compreensão em diferentes línguas se faça possível.
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A mulher de todos (1969)
por Erika Muniz
Um lugar-comum necessário e que sempre é bastante ratificado nas discussões a respeito de manifestações artísticas é a importância de uma compreensão do sentido de cada obra em diálogo com seu contexto histórico sem adaptações de sua estrutura e elementos composições – ou seja, possíveis apropriações – com o intuito de “agradar” ou até mesmo, enquadrá-la no que se deseja atualmente ou em outros tempos. Dito isso, uma das reflexões suscitadas ao espectador de A mulher de todos, de Rogério Sganzerla é, primeiramente, a de como uma personagem como a protagonista do filme consegue reter tamanha subversão à uma sociedade que teima em manter alguns valores (desde sociais, sexuais e até econômicos) que não são muitas vezes frequentados, num sentido prático. Essas instigações reflexivas não foram só necessárias em sua década de lançamento, pois se mantém imprescindíveis nos dias atuais.
A tensão criada pelo título da película de uma mulher “de todos” cria uma possível tendência a se pensar de que “se é de todos, não é de nenhum ou ninguém”, porém o que se dá, na realidade é que há uma inversão em que o fato de Angela se envolver com vários homens à sua escolha faça com que ela seja de si mesma, alimente os seus próprios desejos e escolhas e não se subjulgue a discursos sexistas. Aqui a personagem é uma mulher e escolhe quem será seu próximo par, bem simples e com todo bom humor e rock n’roll que a cabe. Ou nas palavras da própria Angela: “Você sabe, Flávio, que eu não sou de ninguém”.
O preto e branco do filme complementa a atmosfera rocker do filme, mesmo que a trilha – por sinal, como parte significativa na composição estética de grande parte deste filme de Sganzela – não se componha apenas por músicas do Rock mundial, vão desde Gal Costa, Roberto Carlos à baladas e Jazz, a atitude do filme é rock ‘n roll. Outro ponto da trilha sonora desse filme é como ela potencializa as ironias e provocações que compõem o filme, por exemplo na cena em que o marido paulista vai à praia com sua esposa nos fins de semana e durante uma violência contra à (sua) mulher a música é uma baladinha romântica.
Não é possível falar de A mulher de todos sem perceber como alguns dos diálogos do filme se relacionam de maneira surrealista – e até cubista devido à fragmentação – que misturam temas históricos com políticos, filosóficos com econômicos, temáticas sociais e até referência a figuras lendárias – mesmo que brevemente – como os vampiros. Um exemplo é trecho do diálogo que diz: “5ª Guerra Mundial a vista, antropófagos invadem a Guanabara”, ou ainda, frases soltas, como “Minha avó era uma bailarina de circo espanhol”.
Retomando a questão: A mulher de todos conseguiu trazer provocações que ultrapassaram seu período, de fato. E a partir do alienado Doctor Plirtz, personagem vivido por Jô Soares, que satisfaz todas suas vontades graças ao seu dinheiro, e tem todas as suas relações permeadas por sua condição financeira. Diferentemente do que se esperaria, isto não é um fardo para o personagem, ele acaba por usufruir e sentir prazer nisso. “Será esse o Brasileiro do século XXI? Do século XVI ou do XXI?”, provocação dita pelo narrador.
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Mad Max: Fury Road
por Mário Rolim
“Witness me [‘me testemunhem’]!”, dizem os War Boys de Mad Max: Estrada da Fúria (George Miller, 2015). Talvez esta seja a frase mais repetida ao longo do filme, e é também a que mais aproxima esta distopia pós-apocalíptica com o presente. Se vivemos em um mundo em que as pessoas estão atualmente chamando atenção para si mesmas e vigiando as ações umas das outras a todo o momento, nada mais justo do que tornar os peões/guerreiros da sociedade retratada no filme obcecados por exibir seus feitos gloriosos conquistados em batalha uns para os outros. Além disso, também diz muito sobre esta sociedade o fato dessa frase ser dita em momentos de absoluta loucura, pretenso heroísmo e destruição. Para os War Boys, estes são justamente os seus momentos de transcendência, de contato com o sagrado. No caso, este sagrado seria a realização de feitos grandiosos o suficiente para leva-los ao Valhalla do deus nórdico Odin, onde descansam (ou lutam) eternamente (uma parte d)os guerreiros mortos em batalha. Mas, até para usar um exemplo mais conhecido, o que parece é que o mundo do filme é governado pelo deus da guerra grego Áries, e que a história foi conjurada por ele a ferro e fogo e muita, muita poeira. Tanta poeira que o próprio ato de assistir o filme parece dar a impressão de se tomar um banho de areia quente do deserto.
Além de materializar a ganância humana e sua irresponsabilidade ao explorar os recursos naturais, o deserto sem fim do filme acaba representando também a ausência completa de valores morais e humanidade nos sentidos mais básicos dessas palavras. Assim, o deserto se torna um campo de batalha sem fim para que os senhores da guerra briguem e matem os capangas uns dos outros por razões mesquinhas. Este cenário evidencia uma crítica bastante pessimista sobre o momento político atual (ou dos últimos 100 anos, basicamente) no que se refere ao militarismo, que se torna ainda mais desoladora quando fica claro que o sonhado Vale Verde (que seria o último lugar conhecido com água potável à disposição e uma camada vegetal) se tornou um pântano inóspito.
Por mais que esta ideia de que a Terra foi transformada em um deserto sem vida por causa da ganância da humanidade (e de seus senhores da guerra) não seja exatamente das mais originais, há um trabalho de caracterização dessas figuras de poder que é bastante interessante. Para começar, Immortan Joe é retratado como frágil e doente por dentro, só capaz de manter uma imagem de autoridade após vestir uma máscara e uma armadura ameaçadoras. Immortan também é tratado como quase como uma divindade pela população de sua Cidadela (só faltou uma estátua dele em tamanho real), mas não passa de um egoísta que toma quase todos os recursos à disposição para si, como todo bom ditador. Joe é assessorado por um ser conhecido como ‘The People Eater’, um homem obeso (com a obesidade sendo associada ao excesso e à avareza) e asqueroso que regula os gastos militares de Joe rigorosamente mas que não vê problema no derramamento de sangue que esses gastos provocam. Pelo contrário, ele faz questão de testemunhá-lo. A terceira figura é ‘The Bullet Farmer’, um sádico que acha divertidíssimo atirar em qualquer um que apareça na sua frente, principalmente quando fica cego, momento em que a cegueira daqueles responsáveis por manter a ordem e/ou “vigiar e punir” se torna literal. A caracterização dos War Boys segue a mesma mistura de exagero, caricatura e sarcasmo, e é de Nux, o mais importante dos War Boys (dentro da narrativa), aquela que me parece ser a frase mais impactante do filme: “mas não é nossa culpa!” (sobre o ímpeto dos War Boys de buscarem a ida ao Valhalla através da matança de inimigos, entre outros feitos de guerra). Assim, através na ênfase da crença dos War Boys, Miller ultrapassa a crítica às figuras de poder do filme (e às suas imagens) para criticar também a ideologia centrada na guerra e na destruição que norteia a sociedade do filme, e, por consequência, a ideologia militarista de todas as potências bélicas do mundo.
Além da ideologia militarista, outro aspecto ideológico criticado duramente no filme é o machismo e todo o sistema de exploração da mulher da sociedade contemporânea (e não só dela). Na Cidadela, as mulheres representam uma absoluta minoria da população, com a maioria sendo War Boys (na cena do nascimento da criança de Splendid, por exemplo, fica claro que os bebês designados como homens são muito mais valorizados, com sugestão de que as crianças designadas como mulheres são mortas após o nascimento). Assim, as mulheres que lá trabalham servem ou para produzir leite, ou para gerar filhos (no caso, as cinco mulheres de Immortan Joe) ou para guerrear (Furiosa). Enquanto à crítica à exploração das amas-de-leite é feita através da caracterização delas como vacas leiteiras (com máquinas presas aos seios para sugar o leite e tudo), a concepção das esposas segue uma lógica inversa, com supermodelos as interpretando para possibilitar uma crítica à objetificação e fetichização do corpo feminino e ao padrão de beleza opressor imposto às mulheres pela mídia contemporânea (e principalmente por Hollywood). Crítica semelhante é feita na escolha de Charlize Theron como Furiosa, já que o status de sex symbol da atriz é completamente negado. Furiosa aparece como uma mulher que, depois de anos e anos de sofrer os mais variados tipos de violência, se torna desfigurada e até masculinizada (com vários traços visuais dos War Boys, inclusive), mas também forte e determinada a resistir ao sistema que oprimiu ela (e outras mulheres) por tanto tempo. As outras mulheres do filme, as ‘Many Mothers’ do Vale Verde, também são caracterizadas como fortes e determinadas, mesmo sendo quase todas idosas (só uma delas é jovem, o que acaba ampliando a variedade de personagens femininas na trama).
Enquanto isso, o próprio Max é tratado mais como observador, com pouca demonstração de subjetividade. Mesmo que seu lado melancólico e traumatizado seja trabalhado de tempos e tempos através dos flashes de fantasmas que o lembram das falhas de seu passado, Miller lhe dá pouca voz, deixando que os personagens ao redor dele ganhem mais espaço. Nenhum ganha mais espaço que Furiosa, que parece muitas vezes ser a personagem principal do filme. A relação dos dois é particularmente interessante por ser baseada na fraternidade e no respeito mútuo ao invés de desejo sexual (como é de praxe na relação entre personagens masculinos de filmes de ação, a ligação entre os dois é iniciada após uma luta corpo-a-corpo em que eles percebem sua equivalência de força e a capacidade de guerrear um do outro). Aliás, os dois aparecem como dessexualizados, a julgar pela cena em que Max vê as cinco esposas tomando banho seminuas e não parece ter nenhuma reação de cunho sexual. Além disso, os dois acabam simbolizando a importância da integração dos dois sexos (ou a união de forças em prol de um objetivo comum), como na cena em que Max oferece apoio para que Furiosa use um rifle sniper (ele erra três tiros, ela – com a ajuda dele – acerta de primeira).
Claro, todas essas sátiras e símbolos não adiantariam de muita coisa se o filme não funcionasse como o “filme de ação” que ele se propõe a ser, com as obrigatórias explosões, perseguições e cenas de violência gráfica. No entanto, o que se vê é um longa que justifica (e materializa) a devoção dos War Boys a imagens de volante e do (motor) V8 ao engatar a quinta marcha logo nos primeiros minutos e praticamente não soltar mais. Muito disso se deve à montagem, que consegue dividir a tensão e a atenção entre vários pontos nas cenas de perseguição sem parecer apressada ou forçada. A eficácia da montagem chega a tal ponto que o filme se dá ao luxo de ter fade-outs dramáticos a cada bloco narrativo, dando chance para os espectadores respirarem e perceberem o quão rápido estavam correndo junto com o filme. Nestas partes mais calmas (principalmente o encontro com as ‘Many Mothers’ no deserto), os diálogos, precisamente em sua falta de eloquência e profundidade, revelam pessoas afetivamente aleijadas e reduzidas aos instintos mais básicos depois de tantos anos de convivência em um mundo marcado por selvageria e violência.
Muito da sensação de imersão do filme se deve à trilha sonora, que dá o correspondente sonoro para o heavy metal insano e agressivo que transcorre na tela, materializado de forma perfeitamente exagerada através do guitarrista com uma guitarra lança-chamas de dois braços. Outro fator que ajuda na imersão é a sensação de verossimilhança, provocada quando achamos que aquelas imagens de fogo, sangue e metal retorcido realmente ocorreram em alguma dimensão concreta, e não só numa tela de computador de algum canto dos Estados Unidos, tornando a tensão mais tangível, mais “real”. Assim, George Miller prova que (ainda) é possível fazer um grandíssimo (em magnitude, ambição, destreza técnica e vários outros fatores) filme de ação sem apelar para uma infinidade de efeitos especiais. E, mais importantemente, que filmes de ação não são necessariamente “de machão” ao dar espaço e importância mais do que merecidos às suas personagens femininas, principalmente Furiosa.
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Inherent Vice
por Mário Rolim
O que mais salta os olhos logo no início de Vício Inerente é o fato do novo filme de Paul Thomas Anderson parece ter saído direto de uma fantasia febril de um hippie decadente do início da década de 1970 (depois de Charles Manson ter manchado o sonho da geração Flower Power com violência e loucura em 1969). Todos os sinais clássicos de paranoia (da geração) hippie estão lá: os vilões que matam com overdoses de heroína como no clássico do blaxploitation Coffy (Jack Hill, 1973), os próprios traficantes de heroína colocados como pessoas “do mal”, os negros militantes do Partido dos Panteras Negras ou de algum outro movimento de nacionalismo negro, os policiais (brancos) corruptos, a sensação de que o governo ou o FBI estão perseguindo as pessoas erradas, os Hell’s Angels porraloucas e violentos, a desconfiança em relação a Hollywood, expressões como “groovy” e “far-out”, a busca por uma garota “with love in her eyes and flowers in her hair” (como diria Robert Plant), e por aí vai. A presença de todos esses elementos podia significar que o filme repete ou se conforma a clichês e lugares-comuns sobre a geração hippie (ou a ideias sobre a geração hippie), mas PTA os utiliza para lançar sobre eles um olhar irônico, conseguindo toma-los para si e subverte-los de uma forma que faz o “universo” do filme parecer familiar, mas ao mesmo tempo distorcido sob uma nuvem de fumaça e um senso sarcástico de insanidade que o tornam surpreendente.
De qualquer forma, aderir a esses checkpoints hippies justifica-se também pela maneira com que o filme procura expressar e explorar a visão de mundo de seu personagem principal, Larry “Doc” Sportello, que é justamente um hippie paranoico e decadente que exerce seu senso torto de moral e justiça ganhando uns trocados como detetive particular. Em sua busca por resolver o caso do desaparecimento de sua ex, Shasta, que sumiu junto com o bilionário dos imóveis Michael Wolfmann, Doc se envolve com praticamente todos os tipos de personagens citados anteriormente (entre outros, claro), combinados de forma surreal (ou “psicodélica”, se preferir). A insanidade desses encontros transmite bem um estado de paranoia e percepção alterada que parece afetar o personagem principal cada vez mais ao longo do filme – numa combinação entre a figura do detetive que vai ficando mais confuso conforme o caso que ele está investigando vai se revelando cada vez mais sem sentido (bastante comum entre os filmes noir, por exemplo) e a figura do viciado que parece cada vez mais desconectado da realidade por causa das drogas.
A evidência mais forte de que essa estratégia de PTA funciona é o fato de que muitas vezes os próprios espectadores entram na sensação de paranoia, não tendo certeza se o que veem é real ou um produto da paranoia de Doc. Apesar dessa incorporação da visão de Doc, dificilmente nos é revelado o que Doc realmente pensa ou suas reais motivações, até porque ele se mantém como um herói observador ou testemunha mais do que como um agente dos acontecimentos por boa parte da narrativa. Em várias cenas, estas revelações sobre as motivações de Doc acabam ficando para as narrações em off faladas por sua amiga Sortilège, que geralmente parece ser mais outro produto da paranoia/viagem de Doc do que uma pessoa real.
O que permanece constante ao longo do filme é a tentativa de Doc de estabelecer certa harmonia (mesmo que apenas aparente) em sua vida ou retornar para um momento no passado em que ele era feliz (ou seja, quando ele estava morando com Shasta, época que é relembrada através de vários flashbacks ao longo do filme), assim como os protagonistas dos dois últimos filmes de PTA, Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012). E, como nesses filmes, no fim das contas essa harmonia se mostra inatingível ou ilusória. No final, Doc até se reúne com Shasta, mas a cena dá a entender que aquela é outra de suas viagens, já que as janelas do carro estão tão embaçadas que a cena parece ter sido tirada de um sonho. Além das semelhanças com os dois filmes citados, mais meditativos e sóbrios, Vício Inerente marca também um certo retorno ao PTA de Boogie Nights (1997), não só por voltar a retratar os anos 1970 mas também pelo tom mais bem-humorado, marcado por uma ironia baseada no exagero e na caricatura (como na cena em que um exército de policiais cerca a cabana de “pussy-eating”, ou quando o detetive Big Foot come uma porção enorme de maconha). Nesse quesito, o filme também se aproxima de filmes de drugsploitation do fim dos anos 60 e começo dos anos 70 como The Trip (Roger Corman, 1967).
Vício Inerente também mostra PTA como um diretor de certa forma confortável, não tão angustiado em desenvolver e expressar uma estética própria como nos dois filmes anteriores, ou em combinar as ações dramáticas dos personagens e/ou acontecimentos da narrativa em um clímax megalomaníaco e grandioso como em Boogie Nights e Magnólia (1999). Não que ele tenha abandonado seu estilo próprio, digamos assim, já que algumas de suas marcas registradas são bem utilizadas como o uso de trilha sonora para expressar as emoções dos personagens e administrar a tensão, ou o uso de tomadas longas com pouca ou nenhuma movimentação de câmera em diálogos-chave de um modo que reforça a interpretação dos atores e desestabiliza a percepção de tempo (como na cena em que Shasta retorna do sumiço e seduz Doc). Mas não é para menos que este parece ser seu filme recente com mais “fidelidade” a um texto/roteiro já pronto (no caso, o livro Inherent Vice, de Thomas Pynchon), até pelo aparente aumento na quantidade (ou dependência) de diálogos entre os mais recentes do diretor, parecendo menos contemplativo ou focado em composições arrebatadoras e ambiências ou “moods” do que O Mestre e Sangue Negro.
Na prática, essa posição “intermediária” do filme não o torna mais interessante ou envolvente por si só, mas mostra um diretor que, mesmo numa posição de relativo conforto, ainda parece inquieto com sua estética e é capaz de produzir um filme bastante divertido e intrigante, principalmente em sua tentativa de incorporar a visão de seu protagonista e assim não só proporcionar mais uma interpretação maravilhosa do ator Joaquin Phoenix como uma narrativa que mantém os espectadores intrigados e em dúvida até o final, uma dúvida que não é causada por acontecimentos que aparentam ter mensagens escondidas ou significados sérios a serem refletidos ou explicados e assim por diante como filmes anteriores do diretor. Pelo contrário. PTA parece largar um pouco essa seriedade e essa megalomania – que não são inteiramente positivas – e relaxar, abraçando o espírito da geração hippie, mas não sem deixar de olhá-lo com uma distância irônica dada pela própria passagem do tempo – motivada principalmente por certo senso de fracasso e falta de direção que permeiam esse contexto sociocultural quando se analisam seus frutos.
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Pacific
por Ana Moraes
O documentário Pacific, de Marcelo Pedroso, tem uma ideia muito interessante, é formado apenas por filmagens amadoras de passageiros que estavam no cruzeiro mostrado no documentário. Tudo que aparece no filme é o que os passageiros decidiram gravar, material só foi pedido após ele já estar filmado, a única interferência que o documentário faz é na escolha dessas imagens, e a ordem que elas nos são apresentadas.
As gravações realizadas pelos passageiros são feitas durante a ida do cruzeiro Pacific do porto do Recife até o arquipélago de Fernando de Noronha, em todas as gravações fica claro qual pessoal e caseira elas são, cheias de conversas intimas ou piadas entre algumas das famílias. Muitas vezes a pessoa sendo filmada fala com a pessoa atrás da câmera, quem esta gravando mostrar o lugar onde estão, querendo deixar tudo gravado, porque antes de ser um documentário, essas gravações com certeza serviriam para a própria família recordar da viajem.
Logo no começo vemos um cardume de golfinhos no mar, e ouvimos alguns passageiros comentando que a viagem já havia valido a pena, enquanto muitos deles gravavam a cena. Os passageiros estão em busca de esquecer todos os problemas e relaxar, e isso é mostrado nas gravações.
O documentário nos mostra aquilo que entrevistas não conseguem nos dariam, a espontaneidade de vivências, o ponto de vista cru de quem esta gravando, sem interferência.
Nós ouvimos pedaços de historias ao decorrer, alguma família comentando como foi que resolveram ir para o cruzeiro ou como agora eles tem condições, o que estavam achando do cruzeiro, em uma parte do documentário aparece duas mulheres num corredor e ela estão reclamando do serviço, isso acabou dando mais realidade já que as famílias gravando sempre pareciam tão positivas nas gravações.
Em certas partes alguém sendo gravado fica desconfortável ou com vergonha da câmera, e o jeito que as famílias interagem com a câmera é tão diferente quando vemos num filme ou quando a pessoa tem consciência que aquela gravação será vista por um grande numero de pessoas, o que vemos em Pacific são futuras recordações. As vezes algumas cenas parece forçadas, como a do piano, mas que podemos compreender por ser de família pra família.
Há também momentos em que mostram como o serviço no cruzeiro funciona, e como estão felizes com isso, a maior parte do filme mostra isso felicidade, felicidade em sair de férias com a família, felicidade em poder sair de férias com a família, felicidade com o serviço, felicidade por esta no cruzeiro, por esta em Fernando de Noronha, por esta com a família, felicidade. Outra coisa que vemos muito é relações familiares, de vários diferentes aspectos, com tanta proximidade, no deixando quase com a sensação de sermos íntimos dessas famílias.
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WHISKY, 2004. Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll
por Thayná Torella
Impossível falar de Whisky e querer equipará-lo ou compará-lo a cinematografias que criam formas para o mundo seguir. Mesmo com a consciência de que delas ele bebeu muito.
Pelo contrário, Whisky tenta falar por si, e exprimir uma presença da inexistência de ser uruguaio. E é assim, na inóspita presença de seus personagens sempre calados, de humor contido, e que trazem na poeira, no velho de suas almas, uma história não contada. Essa é a história de milhares de uruguaios, pois pra quem não sabe, o Uruguai enfrentou uma crise forte na década de 90 perdendo grande parte de sua população jovem para países como Brasil, Argentina, EUA e Espanha. O Uruguai é velho, e sua população ainda traz vestígios desta crise que permeia até os dias de hoje.
O filme realmente me “pegou”. Antes tarde do que nunca, depois de ter sido indicado diversas vezes por amigos uruguaios, argentinos e por um professor peruano querido, um dos poetas mais reconhecidos em seu país, que um dia me disse que essa obra tinha alta relevância em sua vida. Consegui assisti-lo e me incomodar.
Aliás, a obra de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll (o primeiro falecido) me remeteu a um primeiro exercício de fotografia, ainda nos primeiros semestres da universidade em que a cena recriada escolhida, era do filme “A erva do rato” de Júlio Bressane.
A obra de Bressane me instigava, a atmosfera e a temporalidade criada por ele, era o que tornavam aqueles personagens reais, ou até mesmo universais, mas ainda sim alheios do mundo real.
Whisky trabalha assim, enclausura seus personagens em quatro paredes, abandona seu espectador lá, e só volta para perguntar se ele conseguiu dormir após o filme.
Goddard já fazia isso, Bressane já o fez e o cenário paulistano vive tentando. Porém, a obra no qual nos atentamos aqui, o faz diferente, com menos filosofia como os demais citados.
Nos pegamos fazendo questionamentos a todo o tempo: Será que Jacobo não vê que Marta é a chave para sua felicidade?- Ou, por quê Jacobo não tenta uma outra vida?
Enfim, aqui a filosofia é deixada de lado, a realidade é que importa, e no filme esta realidade é mecanicista, conformada. Não importa o quanto questionamos ou reivindicamos um ponto de virada, o filme não nos trará. E não nos trará porque a realidade é essa para milhares de uruguaios, e talvez um filme como este reivindique uma realidade na tela, coisa difícil de se fazer.
Uma história híbrida, onde não há herói e onde não há final, e muito menos feliz. Um jeito uruguaio também de contar história, que me lembra muito Norberto apenas tarde (2010) de Daniel Hendler, que nos mostra um personagem apático, baixa estima, que tenta se encontrar no mundo real, mas acaba sozinho num final indefinido.
Whisky é sincero e minimalista, porque me desculpem os que o acham sutil, de sutil ele não tem nada!
Jacobo um velho, dono de uma fábrica antiga de meias, vive sua rotina diariamente meio as suas máquinas obsoletas de tecer, porém italianas.
Sátira simples essa ao eurocentrismo encapuzado por uruguaios e argentinos por décadas, porque por mais novidade no mercado em máquinas, aquelas antigas com problemas, ainda eram italianas.
Jacobo tem como empregada Marta, simples, calada e conformada com seu trabalho, conhece todas as rotinas do lugar.
No entanto, Jacobo recentemente perdeu sua mãe, grande pilar da fábrica, e receberá como visita seu irmão que há vintes anos não o via, e que reside no Brasil. Jacobo de forma receosa pede a Marta que finja ser casada com ele enquanto seu irmão esteja presente. A partir daí, a convivência dos três traz a tona, o quão opressor pode ser um irmão que trocou o Uruguai pelo Brasil em busca de dinheiro e externalizando o jeitinho brasileiro de lucrar, lucrar e lucrar, ou como a tradição pode te aprisionar, e o não desapego da história também (pois Jacobo não abriria mão de suas máquinas antigas, assim como da história de sua Madre, ou seria Pátria Madre?).
Enfim, já Marta, ela nos traz a alegria de que tudo pode mudar, por mais que não mude. Ela traz uma voz de esperança, de sonho e da infância. Pois com seus mais de cinquenta anos, ingênua, Marta ainda brinca de falar as palavras e frases ao contrário, como se este simples gesto lhe deixasse alheia de todo o pecado, ao compactuar da mesma atmosfera daqueles dois irmãos.
Marta marca aquelas duas vidas e frisa sua presença nas fotografias, daquela família que fingia um sorriso ao dizer Whisky e nos leva junto.
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Tabu de Gomes, 2008.
por Thayná Torella
O longa-metragem Tabu do diretor português Miguel Gomes lançado no ano de 2012, traz uma trama não somente poética, mas como também uma trama que prende seu espectador a um tempo desconhecido, a uma atmosfera quase onírica.
Aurora é uma velha caduca que no fim dos seus dias em Lisboa - Portugal, compartilha o dia-a-dia com Santa, sua empregada negra, ameaçada diariamente por ela, uma ainda “Sinhá” dos tempos “atuais”, demonstrado em seus gestos, meio a seus devaneios e esperneios diários numa confusão mental do presente, confundida as suas lembranças que ainda a atormenta no passado. Este presente e os conflitos domésticos com a empregada denotarão toda a personalidade de Aurora dentro da narrativa do filme, que tem em sua segunda parte, sua juventude contada meio a paisagem africana. Paisagem essa na qual sua realidade branca se mostra sempre em primeiro plano. Esta paisagem que percorre grande parte da obra, mostra uma África apagada, onde os negros sempre estão em segundo plano, como se fossem invisíveis frente aquela história proibida de amor. Uma visão ou uma intenção colonialista, que chama a atenção do espectador, incomoda.
Este incomodo também se dá com o crocodilo que aparece diversas vezes na história, seja como ditado, como citação, ou como um símbolo que te faz parar e refletir toda vez que o vê; fora de espaço, fora de tempo, fora de contexto. É sim a imagem deste animal que marca a vivência de Aurora e sua relação com a paisagem e do ditado inicial que anuncia uma morte por desamor, jogando-se a um crocodilo. É este crocodilo que a alerta a morte, é este crocodilo que nos faz lembrar da África.
Aurora que contava também com a presença de sua vizinha e amiga Pilar, tem nela a ajuda no fim de seus dias para reencontrar um homem com o nome de Gian Luca Ventura.
É dessa forma que conhecemos esta mulher. Na procura e logo encontro de Gian, Pilar desvela a triste história de sua vizinha.
Tabu, e logo citamos Miguel Gomes (roteirista e diretor), consegue na segunda parte da obra surpreender mais ainda pela impecável direção. A narração por Gian nos leva a um passado muito presente, e é assim que o filme consegue prender a atenção. A sensação da temporalidade do filme é de estranheza, como se o presente e o passado estivessem suspensos num mesmo tempo. Talvez pelas histórias, conflitos e paisagens serem ainda tão presentes no imaginário que temos sobre a região africana.
Com uma memória sendo aberta, e uma fotografia preto e branco que se prolonga. Mas, se prolonga em outra textura. Se prolonga em imagens de 16mm, que sutilmente ilustram a história, que nos é dada muda. Muda, numa lembrança do cinema mudo talvez, ou apenas uma forma de atenuar este tempo em suspensão, sem palavras, só de lembranças e contadas apenas por Gian e Aurora.
Um filme que traz poesia, ciclicidade e transparência em sua montagem. Que tem seu tempo impresso por uma voz em off de Deus, ou seriam Deuses? Essas duas vozes tudo sabiam, e para Gian e Aurora (essas vozes), era o que bastava, o que foi vivido apenas por eles.
Tabu é marcante pelo observador que nos tornamos ao vê-lo, descobre-se a todo momento, surpreende-se pela realidade impressa, e pelo desbravamento da história.
A história nos é dada aos poucos, descobre-se. Assim, a lembrança de Aurora e Gian é vivida pelo espectador, com surpresas sutis e sufocos, pois se trata de lembrança, e nada pode-se mais mudar em ações passadas e somente sentir pesar por aquelas pessoas.
Nos tornamos Aurora, nos tornamos Gian, nos tornamos Miguel Gomes. Nosso olhar é desafiado, participamos do momento.
Essa participação é dada por essa espacialidade e por esse tempo no quadro quase bazaniana, se não fossem pelos cortes e close-ups mudos como se fossem as antigas vistas feitas pelos irmãos Lumiere, ou imagens de registros da mais alta classe da época. Imagens estas que nos trazem nostalgia, imprimindo o tempo, o movimento e a paisagem. Miguel Gomes retrata romântico uma história com um ar “Shakesperiano”, de uma princesa e um plebeu, mas não passa disso a ligação com Shakespeare, o resto é subversão, é apelo por uma lembrança que está dentro do espectador. Gomes inova retratando uma Portugal predominante nos países de língua portuguesa e nos liga a uma situação ainda muito atual. Consegue manter vivo em sua poesia, autores como Mia Couto, conseguindo expandir, e de certa forma torna ainda urgente o tema.
Enfim, o filme consegue sanar todas suas expectativas. Vem com um olhar mais contemporâneo, desde o hibridismo no roteiro, onde consegue dialogar muito da história do cinema em referências, suscitar um olhar crítico sobre Portugal, utilizar uma linguagem de ficção, de documentário e de registro.
Equilibrando tudo isso numa textura da imagem sensível e sincera, que retrata não só um casal apaixonado, mas leva a tona muitas outras reflexões sobre o nosso hoje.
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Y Tu Mamá También
por Mário Rolim
“A vida é como uma espuma, e vocês tem que se doar como o mar”. A frase, dita por Luisa ao final do filme como alguém que dá uma lição de vida do alto de sua sabedoria, acaba destoando um pouco do resto do filme por ser a única parte em que ele aproxima de frases de efeito ou grandes verdades, mas resume bem o espírito do longa de Alfonso Cuarón. Em sua viagem em direção ao litoral mexicano, os três protagonistas, Tenoch, Julio e Luisa, exploram ao máximo suas amizades, liberdades e sexualidades, em trajetórias paralelas que lembram a história de Ícaro em suas buscas impetuosas e ambiciosas por liberdade e glória seguidas de decadência e destruição.
Assim como em inúmeros road movies, a jornada dos três começa por uma busca por liberdade, mas por razões diferentes. Os inseparáveis Tenoch e Julio são caracterizados desde o começo do filme como adolescentes irresponsáveis, que riem dos peidos uns dos outros e escondem o cheiro de maconha quando os pais chegam em casa. Para eles, a viagem é uma oportunidade de fugir das amarras dos pais, e também de participar de uma última grande aventura antes da faculdade. Para Luisa, a viagem é uma maneira de escapar da convivência sufocante com o marido, que acabou de traí-la, e talvez tentar uma última aventura irresponsável antes que seja tarde demais.
Mas essa é só a superfície, de certa forma. O mais interessante é a maneira como essa busca de liberdade é expressa através da sexualidade dos personagens de forma franca e aberta, com ela não sendo explorada por si só ou para chamar a atenção, e sim para ajudar na construção dos personagens e no estabelecimento da relação entre eles. Este processo já começa nas duas primeiras cenas, onde tanto Julio quanto Tenoch transam de maneira desajeitada e apressada com suas namoradas, sem demonstrar preocupação alguma com o prazer delas. Por outro lado, Luisa é retratada como recatada e vulnerável entre os dois adolescentes a princípio, até por causa da “ausência” do marido. No entanto, ao transar tanto com Julio quanto com Tenoch e depois passar a lhes dar lições sexuais, Luisa não só se estabelece como a dominadora entre os três como também acirra o conflito no relacionamento de Tenoch e Julio, criando uma disputa para ver quem é mais “machão” e irá tomar Luisa para si entre eles, o que é prontamente ironizado, já que nenhum dos dois consegue transar com ela por mais de alguns segundos. Dentro deste quadro, até uma simples discussão entre eles sobre os méritos do chamado “fio terra” vira uma forma de colocar Luisa como mais madura que os dois – e portanto dominante.
Em paralelo, a relação de amizade entre Tenoch e Julio vai ficando cada vez mais estreita e tensa no campo sexual, também desde o início do filme, quando eles se masturbam juntos na piscina e se veem nus no vestiário de um clube. Até o fato de eles transarem um com a namorada do outro ajuda a reforçar essa ideia de proximidade e compartilhamento no campo sexual. Essas duas trajetórias sexuais paralelas acabam se combinando no final do filme, na cena no ménage a trois entre os protagonistas, quando não só Luisa exerce seu controle sobre os dois ao convencê-los a transar com ela ao mesmo tempo – mesmo depois dela mesmo tê-los proibido de fazer isso -, como Tenoch e Julio acabam se beijando e participando do ato sem problemas. Esse clímax conjunto se torna mais dramático quando o espectador descobre mais tarde que Luisa morreu de câncer um mês depois do fim da viagem, e que Tenoch e Julio se afastaram definitivamente – o que reforça o lado machista e homofóbico dos dois, estabelecendo a viagem como um momento de libertação total, mas também de destruição e encerramento.
Voltando ao desenvolvimento do filme como road movie, é importante ressaltar que a viagem retratada acontece dentro de estradas mexicanas, envolvendo pessoas mexicanas e assim por diante (com a exceção, claro, de Luisa, que fica como turista). Esse enquadramento da cor local não se dá só através da figura de paisagens, mas principalmente através da figura de um narrador observador e onisciente. A forma mais evidente desse narrador se manifestar é através de voice-overs, que geralmente fornecem informações sobre o trio de protagonistas além das já vistas na tela, seja revelando o que eles estão pensando, dissecando seus contextos sociais e vivências ou reforçando suas ligações com personagens secundários, de uma forma que ao mesmo tempo aproxima o espectador dos personagens e o afasta deles – devido ao tom distante e ligeiramente irônico dos comentários. Mas os voice-overs mais preciosos são aqueles que enquadram os protagonistas e sua jornada dentro do México e de seu povo. Mas este não é um México estereotipado, até porque os clichês clássicos de cultura mexicana como mariachis e sombreros aparecem justamente em uma cena que se busca satirizar a superficialidade da alta sociedade mexicana. O México para o qual o narrador vai se voltar é o dos pobres, das pessoas de vida simples do interior afetadas pelo avanço da máquina do capitalismo, das vítimas de acidentes de trânsito evitáveis, de um grupo de porcos que escapam de um matadouro, e assim por diante, mostrando humanismo e até carinho por esse lado esquecido do México.
Visualmente, esta intenção do narrador é representada pelo trabalho do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, que já prevê a câmera em constante movimento de filmes que faria com Cuarón no futuro, como Gravidade (2013) e Filhos da Esperança (2006). O olho de Lubezki (ou do narrador do filme) permanece sempre inquieto, à procura de algumas dessas facetas do ignoradas do México, e são particularmente interessantes são os planos-sequência em que a câmera “esquece” os protagonistas e passa a observar esses mexicanos anônimos que estão a apenas alguns passos de distância dos personagens principais, mas que ficariam completamente fora de foco de acordo com o estilo de narrativa mais tradicional ou comum no cinema de ficção, mas que aproximam o filme de um estilo mais documental. A partir desses momentos, fica claro que a câmera-narrador segue sua própria viagem pelo México, livre para pegar curvas e procurar histórias dignas de serem contadas, nem que só por alguns segundos.
No fim das contas, essas buscas por liberdade e exploração sexual dos protagonistas e por um olhar mais atento a um lado esquecido do México do narrador se combinam e enriquecem umas às outras ao longo do filme. Assim, a jornada dos personagens acaba sendo também uma jornada de descobrimento deles mesmos dentro do México, e de aspectos ocultos deste país para o narrador (e consequentemente para o espectador). E o que é mais importante: com exceção dos membros da alta sociedade mexicana ironizados na cena do casamento, o filme não parece fazer nenhum tipo de julgamento. Dos porcos fujões à velhinha que dança cumbia, todos merecem atenção. Afinal, todos compartilham de estradas do mesmo México.
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Um Instante de Inocência – Mohsen Makhmalbaf
por João Vitor Carvalho
Um incômodo. Nada se conclui, tudo é transformado pelo o olhar de alguém. Uma grande incerteza é a vida e, consequentemente, o cinema. É o que vejo no filme de Mohsen Makhmalbaf, a captura do aspecto de indefinição do mundo, onde algo é definido, redefinido, desmentido, contraposto e assim por diante. Do mesmo modo é a história que precede e é reconstituída durante o filme, significando um acontecimento pessoal para o próprio diretor, uma lembrança amarga para o ex-policial ou o roteiro de uma encenação para os jovens atores. É um filme onde até a sua forma é indeterminada, que caminha entre a diegese de uma certa ficção e a quebra do ilusionismo comumente usado no cinema, como se estivesse a todo momento chamando a atenção do espectador para o fato de que tudo não passa de um filme.
Um Instante de Inocência deixa no centro da sua narrativa o próprio cinema, iniciando a história com Mihardi Tayebi, o ex-policial, batendo na porta da casa do diretor Mohsen Makhmalbaf a procura por um papel em um filme. Acontece que ambos já tiveram um contato vinte anos atrás, quando o diretor, na época um militante, esfaqueou o Tayebi em um ato de oposição ao regime vigente, resultando no afastamento do policial e na prisão de Makhmalbaf. E é aí que Um Instante de Inocência desvia-se do comum, com a decisão do diretor de reencenar o acontecimento de vinte anos atrás e filmar não só a reencenação como também a realização desse trabalho. Então o que o espectador vê não é só o momento de dramatização, mas também todo o processo de recordação do diretor e do ex-policial, que faz com que se abram novas facetas para o incidente passado.
Esse ato de evocação do passado é presente no filme através das relações entre Tayebi e Makhmalbaf com os atores que representam cada um na sua juventude, formando duplas. São dois personagens que inicialmente estabelecem uma relação de companheirismo com os dois mais velhos, revelando muito sobre o momento de vinte anos atrás a partir das conversas entre as duplas. É descoberta a história de amor do ex-policial que foi frustrada pelo esfaqueamento, dando a motivação para o sonho de ser ator no cinema, e logo depois também é descoberta que há uma ligação muito maior do diretor com os planos fracassados do ex-policial. Tudo isso acaba desenvolvendo tensões entre as duplas, com os mais jovens começando a confrontar as ordens dos seus modelos.
A partir desse ponto podemos delinear a crítica política presente no filme, onde duas gerações atuam de forma diferente no mesmo ato, talvez como uma aposta do diretor nas novas gerações que se recusam a cometer uma atitude violenta. Porém, o que realmente me impressiona no filme são os eventos que estão sempre sendo redefinidos, com um fragmento de uma cena sendo explorado mais a frente, quase como um quebra-cabeça sem fim, com cada movimento expandindo a nossa perspectiva e a dos personagens sobre os fatos. Nesse contexto não se pode esquecer o papel da garota, a peça principal que está sempre se movendo no quebra-cabeça, sempre ganhando novos significados e fazendo-se mais presente tanto na história quanto na mise-en-scène. É tanto que no ultimo frame do filme o seu corpo ganha o espaço central do enquadramento, com a sua feição de espanto que muito reflete a nossa ao sermos pegos desprevenidos pelo final em aberto.
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The Wicker Man (1973 - Robin Hardy)
por João Vitor Carvalho
Inicialmente o filme pareceu ser um tanto clichê na sua proposta. Digo, a velha história de uma pessoa que chega a uma vila estranha é um ponto de partida bem batido, já fazendo com que seja previsível a relação conflitante entre o individuo e o lugar, muito evidenciado pelos moradores que respondem ambiguamente as perguntas ou comportando-se de uma forma bizarra. Porém, no decorrer da trama, o filme dirigido pelo inglês Robin Hardy se torna muito interessante para ser menosprezado pelo uso de uma convenção comum para um gênero.
O início vago e lento dá forma a um filme de horror que se baseia muito mais na sua atmosfera bizarra do que em sustos, criaturas grotescas ou violência gráfica. É um terror psicológico que lembra Bebe de Rosemary e Repulsion, ambos de Polanski, devido ao clima de estranhamento criado, muito semelhante também ao filme Wake in Fright, onde novamente temos um individuo que bate de frente com um lugar cheio de costumes e comportamentos anormais.
Só que em The Wicker Man não é só o estranhamento a causa do medo, também é a presença de uma fé extrema e sem medidas que leva um grupo de pessoas a cometer atos estranhos. Ironicamente, o protagonista também tem a sua fé, dando um tom provocador nos momentos em que a própria fé cristã do personagem principal se assemelha a crença pagã das pessoas dovilarejo. Isso é algo também marcado pela atuação de Edward Woodward, que interpreta o policial sisudo que vai investigar o desaparecimento da garota na vila. É um personagem que está na ilha representando a lei e impondo a sua autoridade, mas que várias vezes rompe com a sua aparência inabalável e acaba entrando em um estado delirante, principalmente na cena final.
Nessa temática de crença entra uma atmosfera ritualística que se faz presente em boa parte do filme através de números musicais coreografados, acompanhados por músicas cheias de simbolismos nas letras que fazem referências diretas aos acontecimentos da história. O filme praticamente se torna um musical, tanta é a centralidade desses momentos na narrativa. Mas é um musical de horror, pois o diretor aproveita todo o encantamento presente no musical para intensificar ainda mais a bizarrice que é um grupo de crianças dançando ao redor de um símbolo fálico, por exemplo.
Mesmo tendo um roteiro previsível, The Wicker Man chama atenção pela forma como a história é contada, sabendo utilizar as atuações, a música e os simbolismos espalhados pelo filme para criar uma ambientação enigmática. Tanto é que a mesma história poderia perder todo o seu clima de suspense psicológico e acabar se tornando uma comedia pastelão (vide o remake de 2006 estrelando Nicolas Cage). The Wicker Man realmente é um caso onde o diretor soube dar forma ao enredo, resultando em um filme singular.
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Selma – Uma Luta Pela Igualdade
por Wanderley Andrade
Em 1965, manifestantes pacifistas marcharam da cidade de Selma, interior do Alabama, até a capital do estado, Montgomery, para lutar pelo direto dos negros ao voto, liderados por Martin Lurher King Jr. Essa é a premissa que serve de base para o desenvolvimento da trama de Selma (2015). Com direção de Ava DuVernay, primeira diretora negra a ser indicada ao Globo de Ouro e produção de Brad Pitt e Oprah Winfrey, o longa é um fiel tratado contra o preconceito e a luta pela igualdade de direitos.
Hollywood gosta de produzir biografias. Inclusive, entre os filmes que costumam ser indicados ao Oscar, sempre aparece algum relacionado a grandes líderes, como, por exemplo, Malcom X (1992), O Discurso do Rei (2010) e Lincoln(2012). Com Selma não podia ser diferente: foi um dos indicados ao Oscar de melhor filme em 2015.
A história é contatada de forma linear, mostrando, na primeira sequência, Martin Luther King (David Oyelowo), recebendo o Prêmio Nobel da Paz. A trama é bem costurada, guiando a história até a marcha que terá início em Selma. Martin Luther King é retratado como um líder de grande eloquência, de considerável poder de persuasão. Sua intimidade também é mostrada, como a crise que enfrenta no casamento, devido às ameaças que começa a receber.
A bela fotografia de Bradford Young é um ponto a se destacar. A sobreposição de imagens reais do confronto na ponte Edmund Pettus, em Selma, dá veracidade ao filme e um tom de documentário.
Quanto à forma, Selma é um filme simples, sem inovações. Sua força está no bom elenco que tem (destaque para David Oyelowo, Tom Wilkinson e Tim Roth) e na história de seu protagonista.
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Um Lugar ao Sol
por Antônio Souza
“não se filma nem se olha impunemente”
Jean Louis Comolli
O estilo cinematográfico chamado documentário, em contraposição com o ficcional, é comumente associado e responsabilizado por mostrar o que é real e verdadeiro. Como o próprio nome sugere, é fato que documentos, registros históricos e filmes de arquivo, por exemplo, são elementos corriqueiramente encontrados nesses filmes. Entretanto, com empréstimos do mundo da ficção, o documentário não estagnou em seu teor pedagógico e ingênuo de visões falsamente neutras sobre verdades universais. Ao contrário, o documentário torna-se um meio de poder discursivo, através da linguagem audiovisual, vulnerável a ataques acerca de seus princípios éticos e morais.
Inserido nesse contexto, o diretor e roteirista Gabriel Mascaro é um nome que vem aparecendo entre as recentes produções cinematográficas no ramo do documentário. Tendo conquistado com “Sementes do Brasil”, o prêmio de melhor filme pelo júri popular no Festival de Vídeo de Pernambuco, em 2004, Mascaro lança em 2009 “Um lugar ao sol”, uma obra considerada, por muitos, como ousada (ou antiética?).
O filme que inicialmente iria ser em formato de curta-metragem, resultou, naturalmente, em um longa devido a quantidade de material captado. O documentário se dá com entrevistas a alguns moradores de coberturas pelas principais capitais do Brasil. Mascaro não se fecha à cidade do Recife, entretanto, nota-se uma universalização das características das “personagens” que não é possível distinguir ao certo de onde são, a não ser pelas características de seus sotaques e das paisagens que se podem ver de suas imensas varandas.
No começo do filme, é informado que de mais de 100 nomes existentes em “um curioso livro que mapeia a elite e pessoas influentes da sociedade brasileira” apenas 8 se mostraram disponíveis e abriram as portas de suas mansões nas alturas para a gravação do documentário. Mascaro foca suas perguntas acerca do porquê da escolha de uma cobertura para viver. As diferentes “personagens”, entretanto, se voltam, em sua maioria, para um mesmo argumento. O fato de morar no alto, no topo de um edifício, é carregado de um status, de um valor social e simbólico altíssimo. “Ver aquilo tudo de cima”, como diz um entrevistado, tem seus privilégios, é “estar mais perto de Deus, do céu, é sentir a natureza”, como afirma outra. Essa, que, ironicamente, vivencia a natureza em sua cobertura vigiada por um sistema de câmeras de segurança.
O retrato da elite brasileira desenhado por Mascaro, é claro, se vale de suas intenções para com o seu projeto. As edições, os cortes e a montagem de um filme são elementos de construção de sentido. Ou seja, o documentário não é passivo a isso, já que ele mostra apenas o que é de seu interesse textual, visual e sonoro. E justo nesse ponto a discussão ética da obra vem à tona, já que a representação do outro é, por vezes, manipulada e transferida de um contexto para outro.
Contudo, o discurso da relação de poder associada à moradia não pode ser ignorado e visto como mera manipulação, no contexto do filme. Um dos entrevistados afirma que “alguns nasceram para liderar, e outros para serem liderados”. Esse, fala ainda que Nietzsche já abordava esse tema e completa “um homem com poder, tem que ter uma moradia diferenciada, tem que servir de exemplo”. Ou seja, não dá para acreditar que a relação preconceituosa e colonial, Casa Grande – Senzala, existente no Brasil, se exterminou. Na realidade, essa hierarquia apenas se mostra com uma roupagem contemporânea, na qual os “patrões” se fecham em suas ilhas de luxo, circuladas pelas favelas de seus “empregados”.
Vale salientar que o filme de Mascaro fala muito mais nas entrelinhas dos comentários, do que no próprio discurso da elite entrevistada, por vezes cômico. Diferentemente de muitos documentários que se utilizam de vozes de autoridades, como é o caso do curta “Velho Recife Novo”, de 2012, dos cineastas Luís Henrique Leal e Caio Zatti, em parcerias com os arquitetos Cristiano Borba e Lívia Nóbrega, que recorrem a uma estética jornalística, entrevistando especialistas de diversas áreas a respeito da noção de espaço público.
Mas, é possível dizer que a narrativa de Mascaro deixa relativamente em aberto o julgamento acerca das personagens? Numa passagem, uma entrevistada que afirma ter morado em coberturas desde que nasceu, salienta “como é bonito ver as luzes das balas das favelas”. Essa, é moradora de uma cobertura na Zona Sul do Rio de Janeiro e se refere aos conflitos ocorridos na Favela Santa Marta. E representa o discurso de pleno desinteresse de uma parcela populacional a respeito de uma realidade que a cerca, mas não a toca. Então, de fato, quem carrega o papel de ousado - mesclado com o de antiético - no filme? O cineasta ou os entrevistados?
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El Abrazo Partido
por Wanderley Andrade
El Abrazo Partido (2004) é um filme que tem o paradoxo fuga e busca como linha de condução de toda a trama. Em uma Argentina atingida pela crise, onde os jovens deixam o país para tentar a sorte na Europa, conhecemos Ariel (Daniel Hendler), um jovem marcado pela dor de não conhecer o pai, Elias (Jorge D’Elía), que largou a família quando Ariel ainda era bebê. O jovem trabalha com a mãe Sonia (Adriana Aizemberg), dona de uma loja de lingeries que fica em uma galeria.
Ariel quer também tentar a sorte na Europa, para isso, precisa conseguir a nacionalidade polonesa. Com a ajuda da avó, que consegue para ele alguns documentos necessários à obtenção dessa nacionalidade, vai, paulatinamente, conhecendo também um pouco de suas raízes. Nessa busca, descobre que o pai os abandonou para ir lutar na Guerra de Yom Kippur, em Israel. Elias volta à Argentina, mas Ariel tenta evitar qualquer contato com ele, a ponto de literalmente fugir.
Os movimentos trêmulos da câmera faz o filme parecer um documentário. Ele é dividido em capítulos que amarram bem toda a trama. A galeria onde fica a loja de Sônia representa uma verdadeira Babel, por sinal, título do capítulo final do longa. Italianos, peruanos, coreanos, árabes, judeus, dividem praticamente o mesmo espaço, numa convivência nem sempre harmoniosa.
A história é narrada em primeira pessoa, por Ariel. Logo no início, somos apresentados aos personagens. Ele nos leva a um passeio pelos corredores da galeria, apresentando um pouco da personalidade de cada um. Por sinal, um dos pontos fortes do longa é a profundidade desses personagens secundários: a família italiana Saligani, que concerta rádios, os Kim, um casal coreano que vende Feng Chui, os irmãos Levin, que vendem tecidos e o affair de Ariel, Rita, que cuida de uma lan house.
El Abrazo Partido consegue falar de um assunto complexo, de forma simples, recorrendo ao drama, em alguns momentos e a boas doses de humor, em outros.
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Paris, Texas (1984)
por Wanderley Andrade
Estradas desertas, avenidas movimentadas, ruas, viadutos, trilhos. Percorridos a pé ou de carro, são o principal cenário de Paris, Texas (1984), filme do diretor alemão Wim Wenders. Representam para Travis (Harry Dean Stanton) mais que um simples caminho a seguir. Servem de refúgio e principal meio de se obter respostas.
Depois de estar desaparecido por quatro anos, Travis é reencontrado pelo irmão Walt (Dean Stockwell) em um hospital na região desértica do Texas. Com amnésia e maltrapilho, é levado para Los Angeles, onde reencontra o filho Hunter, de sete anos, que foi abandonado pela mãe, Jane.
Travis é um personagem complexo. Seu jeito excessivamente calmo, contemplativo, contrasta com uma personalidade forte, que o leva a não desistir até que alcance seus objetivos.
O caminho percorrido por ele torna-se metáfora da situação em que se encontra. Como quando caminha sobre trilhos, sem saber direito aonde levam, metáfora de sua caminhada em direção a um destino incerto. Destino que começa a ficar claro, quando, aos poucos, recupera suas antigas lembranças.
O longa tem uma bela fotografia. Alguns planos abertos e fixos nos permitem contemplar imagens que mais parecem grandes pinturas, fruto da experiência de Wenders com os pincéis, antes de se tornar cineasta. O diretor também utiliza alguns planos-sequência, como na cena em que Jane conversa com Travis sobre seu passado. Destaque para a convincente atuação de Nastassja Kinski.
Paris, Texas é o retrato da jornada de um homem pela estrada dupla do recomeço e do autoconhecimento.
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All That Heaven Allows
por Ana Moraes
Em Tudo Que o Céu Permite, de 1955, vemos em tema comum, o amor contra uma sociedade conservadora. As diferenças entre Cary e Ron no filme, que hoje em dia talvez ainda seria fonte de alguns comentários maldosos, na época do filme era motivo para própria família se voltar contra a protagonista, e seu vizinhos a verem de um modo completamente diferente.
Cary, uma viúva rica, com dois filhos na universidade, bem respeitada pela sociedade, logo na primeira cena ela parece fechada, sozinha e distante. As pessoas ao redor dela parecem notar sua solidão e sua filha incentiva que ela se case novamente, mas Cary não se interessa, e lhe é proposto o casamento quase como uma consolação não por amor, mas por conforto, pra evitar a solidão.
Ron, um homem de uma realidade diferente, como um modo de viver diferente, não somente o seu sustento, mas em seu modo de ver a vida, ele é ‘fiel a si mesmo’, não tenta se encaixar no ambiente que não faz parte.
Eles começam a se aproximar porque ela demonstra interesse no trabalho de Ron, e logo fica claro a química dos dois, e ela demonstra interesse por ele como não havia demonstrado antes, tudo parece mais leve com os dois juntos, Ron então a introduz para o seu mundo, a convidando pra uma festa, onde ela conhece seus amigos. A diferença entre seus colegas e os de Ron é clara, as pessoas parecem amigáveis, e gentis e bem mais felizes, acolhedores, não vivem de acordo com aparências.
O relacionamento deles sendo exposto por fofoca torna tudo mais difícil, tornas as preocupações reais, as pessoas comentando, e inventando historias, seus filhos se virando contra ela, seus filhos começam a apontar seu relacionamento como algo que poderia arruinar suas vidas, ela acaba escolhendo acabar seu relacionamento. Quando isso acontece é claro que volta para o estado que estava no começo do filme, ela parece só e triste, seus filhos longe, seus amigos ocupados, ela se vê novamente só. Mesmo no natal quando seus filhos voltam para a casa, ela se encontra triste, ambos falando do futuro longe de casa, ela percebe que todo sacrifício que fez, abrindo mão do relacionamento, ou seja, do amor, foi todo em vão, pois seus filhos ainda estariam longe dela. Cary se ver em um drama, se vê sem saída, estando novamente sozinha.
Depois de ser confrontada por seu medico, que afirmava que ela estaria com medo, e estaria deixando todo o resto servir como desculpa para não ficar com Ron, ela vai até ele, mas estando com medo acaba voltando. Sua visita acaba causando o acidente de Ron que é o que os aproxima novamente.
O jeito que a musica é sempre usado pra marcar tanto começo e fim de cena, quanto as emoções que vão estar em cena é extremamente agradável e bem feito. Colocar as preocupações e medo de Cary como dor de cabeça deixou tudo mais real.
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Paisagem Na Neblina (Theo Angelopoulos, 1988)
por Mário Rolim
“Caro pai, como você está longe! Alexandros diz que no sonho dele você parecia estar muito perto... se ele esticasse sua mão ele teria te tocado...”. Este trecho, retirado de uma das cartas da menina Voula a seu pai, resume bem a essência de Paisagem Na Neblina (Theodoros Angelopoulos, 1988): a busca pelo contato com um pai ausente que parece ser eminente mas nunca acontecer de fato, dando a entender que ele parece ser mais possível no no plano da imaginação e dos sonhos dos protagonistas do que em um plano concreto, real.
Esta busca é estabelecida desde a primeira cena, na qual os irmãos Alexandros e Voula tentam pegar um trem para a Alemanha, onde (supostamente) se encontra o seu pai. As duas crianças moram com a mãe, mas parecem ter com ela uma relação distante, de pouco afeto. Na única cena em que ela está presente, surpreendendo os dois quando Voula contava uma história para que Alexandros dormisse, os dois não só fingem dormir e não estabelecem contato com ela (ela nem chega a aparecer no quadro) como Alexandros ainda reclama que ela sempre os interrompe quando Voula lhe conta essa história.
Assim, os dois personagens são estabelecidos como sendo desprovidos de raízes afetivas (com a mãe, com a casa, com sua cidade, enfim), o que lhes possibilita viajar em busca do pai que nunca viram como dois errantes, vagando pela Grécia sem saber direito para onde vão, aonde exatamente está seu pai ou como chegarão a seu destino. De certa forma, a própria câmera de Angelopoulos parece compartilhar da errância das duas crianças, vagando pelos lugares como se estivesse à procura de algo, sempre se movendo, revelando novas dimensões e personagens dentro do cenário em planos-sequência longos com complexas combinações de movimentos entre a câmera e os atores.
Ao invés da realização de suas fantasias infantis através de um rápido encontro com seu pai, o que Alexandros e Voula encontram em sua jornada é um mundo estranho e às vezes hostil, que eles se mostram muitas vezes incapazes de compreender. Esta incompreensão fica mais evidente quando Voula ouve seu tio dizer que nem a própria mãe dos dois sabe quem é o pai ou onde ele se encontra. Ao invés de desistirem, Voula e Alexandros continuam a viagem, sendo forçados a amadurecer dolorosamente através do encontro com a dúvida e o sofrimento – esse amadurecimento é particularmente cruel com Voula, que é estuprada por um caminhoneiro e se vê obrigada a se entender com sua própria sexualidade “na estrada”. Os dois ainda conseguem ter momentos de felicidade, mas eles parecem ilusórios: a entrada no trem, a fuga da delegacia, a apresentação do violinista no bar... todos esses instantes parecem, quase como mágica, alimentar a esperança dos irmãos e proporcionar-lhes uma espécie de transcendência fugaz de sua realidade, mas acabam se mostrando passageiros quando a brutalidade do mundo que os cerca retorna. Assim, cada vez mais a busca pelo pai parece depender mais da crença dos irmãos do que de algo tangível ou concreto, como se o pai ausente estivesse testando a fé das crianças – como quando Alexandros tenta enxergar uma árvore em um conjunto de fotogramas onde aparentemente só há neblina.
Na elaboração do roteiro do filme, Angelopoulos contou com a colaboração do grego Thanassis Valtinos e, principalmente, com o italiano Tonino Guerra. A parceria com Guerra é particularmente interessante pois o italiano também colaborou, entre vários outros, com o italiano Michelangelo Antonioni – em filmes como A Aventura (1960), O Eclipse (1963) e Deserto Vermelho (1964) e o russo Andrei Tarkovsky – em Nostalgia (1983) -, dois diretores que se mostram bastante influentes em Paisagem Na Neblina. Assim como Antonioni, Angelopoulos dá uma grande ênfase às paisagens em seus planos, procurando usá-las para retratar de alguma forma o estado de espírito dos personagens; foca sua narrativa em personagens crescentemente alienados em relação ao mundo que os cerca; e também se utiliza das tomadas longas para “desdramatizar” algumas cenas, filmando cenas de carga dramática forte até que a emoção dos atores pareça se esvair. E, como Tarkovsky, Angelopoulos constrói a jornada de seus personagens principais baseada na prova da fé em algo inatingível; e cria através do plano-sequência uma atmosfera de contemplação e meditação, numa estratégia que faz o espectador perder a noção de tempo e pode gerar uma sensação de hipnose (como na cena da dança na praia) ou tensão (como na cena do estupro). Também é possível estabelecer um paralelo com o diretor Robert Bresson, já que, assim como o francês no filme Um Condenado À Morte Escapou (1956), Angelopoulos repete um mesmo tema musical ao longo do filme, mas de forma fragmentada e passageira (assim como os momentos de alegria dos irmãos são passageiros), só usando-o em sua forma completa ao fim do filme. No caso do filme de Bresson, o tema musical serve para representar a liberdade do prisioneiro, que só é atingida ao final.
Mesmo com tantas comparações e similaridades com outros diretores podendo ser apontadas, Angelopoulos demonstra um talento particular para produzir imagens que encantam o espectador com uma beleza melancólica mas ao mesmo tempo tocante, sendo difíceis de serem descritas ou “entendidas” objetivamente mas capazes de levar o espectador a uma espécie de transcendência que o diretor tanto procura – como na cena em que a mão de uma estátua é levantada do mar, ou na morte do cavalo. Ao final do filme, essa transcendência ou felicidade que atinge os irmãos pode até ser passageira ou ilusória, mas não há como negar que a fé na obtenção desta transcendência tenha unido os dois, e se provado preciosa para suas jornadas pessoais, que se tornaram mais belas graças a esses momentos fugazes.
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