Hugo Paquete is a multidisciplinary sound artist and researcher based in Portugal working across sound, electronic music and digital media performance. His work brings together themes such as technological mediated sound perceptions,space,radiation,spectral, rhythmic noise, subculture, e-trash and post-digital aesthetics. He have been fascinated by the interaction between art, technology, science and culture and how sound and music can build subcultures like technoculture and cyberpunk politic rhetoric's communities where the computacional and the digital are techno-ethnography. In this respect he drawn to the ways in which different fields of knowledge, such as physics, chemistry, astronomy or biology are used as imaginative potentials to create new sounds: infra-sounds, para-sounds, ultra-sounds, micro-sound, macro-sound and music meanings to developing acoustical design,compositions and multimedia environments for performance. Not only as an artistic techniques, but also as tools for social change,experimentation and collaboration through creative imaginative conceptual and technological extrapolations that configure the actual transdisciplinary ecosystem. He was resident in different years at the ZKM /Zentrum für Kunst und Medientechnologie Karlsruhe, IMA| Institute for Music & Acoustics and Hertz-Laboratory developing research in sound spatialization and electronic music. His work has been published in the fields of sound art, installation,performance, electronic music.
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Pareidolia: Glitch-Evento, Metodologia e Espectro
O mundo atual desdobra-se num conjunto de dispositivos, técnicos, tecnológicos e de mediação espectral, rádio, TV, net das coisas e dispositivos móveis, assente numa lógica de operatividade performativa, regular, sincronizada, onde o erro é o desvio que se tenta anular, numa procura de controlo dos mecanismos e dispositivos que o geram e permitem, perpetuando este estado de funcionalidade anti-entrópica e anti-redundante. A possibilidade de anular todo e qualquer erro no funcionamento tecnológico e social tem como objetivo construir um espaço regularizado de controlo, propício a uma estagnação da criatividade e liberdade individual, em favor de um estado de sincronia anulador da significação e associativismo de ideias livres e especulativismo interpretativo fundamental para novas leituras sobre a realidade. Deste modo, na sociedade atual das interfaces e mediação extra-corporizada, o som do rádio no espaço e na mente, as personagens que se sucedem na TV e a luz que se projeta no espaço, as conversas extra- geográficas que se efetuam na net e por telefone na ausência subtraída do corpo e do gesto, e a net das coisas que se projeta no quotidiano interligando mecanismos, dispositivos e suas reações a um espaço virtual, invisível, regido por forças digitais e analógicas, desenvolvem um mundo que se desdobra entre a transparência do corpo, ausência, e o território virtual do espaço, um espaço clínico, assético, um laboratório onde não se fazem experiências, sem serem controladas, sobre as expectativas funcionais do sistema. Porque se o sistema é desenvolvido para funcionar na sua máxima operatividade performativa, não é permitida, desse modo, a emergência do erro, disfuncionalidade da máquina, mecanismo, dispositivo, código e indivíduo. Não quero dizer que a tecnologia é um elemento negativo na nossa sociedade. Proponho é que se construa uma reflexão sobre as implicações da tecnologia e seu funcionamento, numa abordagem multidisciplinar, na compreensão das forças espectrais que a animam em vários domínios do sistema. No seguimento desta reflexão, é importante mencionar que experimentar implica sempre um estado de redundância entre o erro e o refazer dos propósitos experimentais iniciais, sem que exista o controlo, teste dos limites que se podem atingir e uma abertura às surpresas que daí advenham. Surpresas essas necessárias para a construção de um olhar crítico, sobre algo que emerge na panóplia complexa e regular da vida e na sua derrocada sonora, visual, concetual e funcional do sistema. E, como já mencionei, se o sistema tenta anular o erro no seu sentido mais lato, é pertinente efetuar reflexões sobre o oposto desse estado funcional, a avaria, que pressupõem um mau funcionamento ou erro, um evento-único a evitar. O que podemos fazer com uma máquina ou situação que não se enquadra na operatividade performativa? E como esses processos e eventos se podem tornar um fator de análise na compreensão do conceito de pós-digital e de manifestações artísticas múltiplas das metodologias glitch? Poderemos chamar a esse estado uma tomada de consciência sobre o indeterminismo dos eventos e a procura de novas leituras e significações para a forma como nos relacionamos com a tecnologia e o mundo, no seu entendimento mais vasto. E como o erro, glitch, e a fuga a uma perspetiva somente funcional da máquina e tecnologia podem possibilitar novas interpretações ou pareidolia percetivas sobre o seu valor e possibilidade de significação. E como alguns artistas apresentam e refletem nas suas obras novas abordagens que permitem analisar a tecnologia e seus funcionamentos erráticos, o que se torna uma abordagem interessante, porque a tecnologia, máquina, código e dispositivos não são feitos para errar. E quando isso acontece é porque são obsoletos. Desse modo, levanta-se então a possibilidade de analisarmos estas manifestações estéticas como uma procura do limite, espectro de funcionamentos, imanências e uma dimensão de máquina abstrata que contraria a regularidade do mundo e seus dispositivos funcionais, em que a desconstrução e o especulativismo são vetores fundamentais na construção teórica e especulação artística. Glitch: Metodologia e Especulativismo «The ghost goes on inhabiting our space because it has no place of its own; it marks a placeless place, an absent presence. At the same time, we always share what we call our space with ghosts and virtual bodies.» (Dani Cavallaro, Cyberpunk and Cyberculture, 2000.) O glitch-evento é um fantasma que se manifesta num conjunto de dipositivos, máquinas e códigos, uma força espectral/energia que possibilita significados na performatividade operativa dos funcionamentos erráticos no contínuo repetido das suas funções. Sem corpo transparente e translúcido, necessita de novos mecanismos de captação e argumentação para a sua catalogação e arqueologia dos seus eventos-únicos de qualidades-secundárias, que imanam como forças ocultas, espectrais, que não se encontram inscritas nos mecanismos, dispositivos, mas que deles surgem e se materializam, no espaço-tempo sobre a cognição do recetor, na velocidade de tudo o que é transitório, fugaz e que existe na transposição entre a imanência e o desaparecimento. No seguimento desta reflexão, o especulativismo pode servir como uma metodologia de construção de significações e análises, porque toma em consideração especulações que não podem ser resumidas unicamente a uma prática. Como menciona Rosa Menkman, «Refuse to stay locked into one medium or between contradictions like real vs. virtual, obsolete vs up-to-date, open vs. proprietary or digital vs. analog. Surf the vortex of technology, the in-between, the art of artifacts!» (Menkman, 2011: 11). A tomada de consciência é da fronteira na mente sobre a velocidade do evento, psicológico, neuronal na procura da significação destes elementos erráticos e na construção da sua significação cognitiva, quando em contacto com eventos-espectrais e de imanência que se suspendem no tempo. Recorro novamente à autora: «Find catharsis in disintegration, ruptures and cracks; manipulate, bend and break any medium towards the point where it becomes something new; create glitch art.» (Menkman, 2011: 11) Desse modo, o erro é o acidente é fundamental para a construção da experiência, cognição sobre o glitch-evento que da pequena soma das suas microdisfuncionalidades e manifestações constrói um macro-evento, essencial para uma metacognição do sujeito sobre a sua realidade, que se renova no tempo e nos seus funcionamentos num contexto de supra-simulacro mental. Porque o glitch não nos permite um reencontro no espaço como nos reencontramos com os objetos, materiais, e substâncias. Ele é um evento-único de emergência e desaparecimento. O glitch é um evento-único quando puro, que se encontra num estado de imanência e desaparecimento, e surge por singularidade num mau funcionamento de um mecanismo, dispositivo ou código. O que podemos obter é um referente desse momento, mas que não é o momento nas suas propriedades totais. É dessa forma uma evocação da memória ou de uma procura da repetição, corte e disfunção de um evento. As quatro articulações entre micro, macro, meta e supra fundamentam tanto a atenção sobre os eventos erráticos e manifestações do Glitch que se atualizam no espaço-tempo como a capacidade de o sujeito analisar e compreender as suas variáveis erráticas e emergências de singularidades no panorama da sua mente, quando confrontado com um evento que se encontra sempre num estado de emergência e desvanecimento. Desse modo, o erro comporta um papel fundamental na cognição sobre os eventos-únicos, porque medeia a análise e a espera entre a repetição e o perene do mesmo, com fatores de variabilidade e diferença na análise dos seus comportamentos erráticos e excêntricos. Desse modo, entende-se que a repetição é aliada do funcionamento correto dos mecanismos, dispositivos e código, é um ciclo de funções, movimento e cadências que perpetuam uma ordem funcional. O glitch-evento é o gerador de instabilidade no sistema, o erro fora do protocolo funcional. Desta forma, o paradoxo da repetição que gera um continuum necessita do erro para poder ter uma base de comparação sobre uma regra específica de comportamento. Assim, como menciona Deleuze, «não se pode falar em repetição a não ser pela diferença ou mudança que ela introduz no espírito que a contempla» (Deleuze, 1995: 75). Interessa-me a forma como estas transformações geram um diagramatismo que se fundamenta na utilização de elementos não-representativos e não-linguísticos na construção de uma argumentação, leitura sobre a realidade e seus fenómenos operativos. O glitch, ou estética da disfuncionalidade, também se pode postular como um paradigma, programa revolucionário, questionador e transformador de uma cognição assente na lógica, funcionalidade e regularização. Isto é, em visões que somente geram mimesis, não considerando estados mais primários e irracionais de consciência e funcionamentos erráticos ou estados de disfuncionalidade, que permitem novas leituras, epistemologias e entendimentos da emergência do glitch puro, não como uma obra que se fundamenta num fazer técnico, mas num conjunto de processos, recolhas, apropriações, escolhas e eventos, selecionados e enquadrados concetualmente em contextos de análises multi-significativas. Para tentar clarificar os quatro estados de cognição e análise sobre o glitch-evento, proponho um conjunto de análises, que tem como princípio a construção e contributo para a teorização: Micro-analítico: O termo «micro» na análise do glitch-evento serve como referência para a imanência do evento, seu acontecimento num determinado espaço-tempo e flutuação de funcionalidade do dispositivo onde se manifesta. Analisa as caraterísticas formais, materiais e de situação onde o glitch-evento se manifesta como evento-único. Nos mecanismos, dispositivos, código ou outros. Desenvolve análises e arqueologias de onde, como e quando o glitch-evento se gerou, procura sua génese, nos funcionamentos e imanências. Macro-analítico: Esta abordagem analítica serve para descrever a saída do programa normativo do funcionamento de um dispositivo onde o glitch-evento emerge; essa imanência gera um evento fora do programa funcional para o qual o dispositivo foi concebido e, desse modo, uma elevação dos seus funcionamentos, internos, externos e processuais para uma outra extrapolação de função, errática ou geradora de singularidade que se eleva do dispositivo, atribuindo-lhe outras significações. Este método de análise propõe um distanciamento do glitch-evento no mecanismo ou dispositivo para uma análise na direção da sua significação como tomada de consciência. O termo macro é também utilizado para descrever a necessidade de atenção sobre as variantes de repetição, entendendo que a repetição é a constante do funcionamento normativo do dispositivo, e que é na sua disfuncionalidade que o glitch se manifesta gerando um evento-único na flutuação, saída, deslizamento do programa normativo do dispositivo. Este método centra-se na exploração de significações e atribuição de valor ao evento. Neste método, podemos extrair e especular valores simbólicos dos resultados apropriados do glitch-evento. Meta-analítico: É utilizado para descrever não somente a cognição sobre o glitch-evento, mas a construção de uma significação ou meta-significação sobre o mesmo, em conformidade com a sua imanência e espectralidade que não se pode repetir. O seu estado de evento-único exige não somente uma consciência sobre o evento, mas uma consciência também ela capaz de sair do seu programa funcional quando se depara com um mau funcionamento de um dispositivo, e articular nessa mediação um discurso de significação sobre a tecnologia. É a significação do evento em relação com as suas intuições e realidades na construção de um discurso estético que gera polissemia e um estado aberto às multiplicidades simbólicas, interpretativas e de valor. Desenvolve a construção de um discurso crítico que atravessa e complementa os dois métodos iniciais. Supra-simulacro: Este estado de análise é o mais complexo, porque nele se enquadram a tomada de consciência e procura pelo glitch-evento enquanto evento puro que é sempre um ato de apropriação e a possibilidade de desenvolver sistemas ou intervenções que gerem glitch-eventos simulados, que partem em geral de uma necessidade de compreender e revelar singularidades na tecnologia e dispositivos e nos seus funcionamentos. Desse modo, é por meio da simulação de um limite, periferia da tecnologia, que se constroem simulações de eventos. Este modo de análise procura dar resposta a uma questão fundamental na minha opinião. Se o glitch é resultante de um mau funcionamento de uma máquina ou dispositivo, então o problema já não se encontra no mecanismo ou dispositivo e nas duas funções regulares, «programa funcional» ou «operatividade performativa», mas sim numa tomada de consciência sobre os limites do seu funcionamento. Desse modo, a máquina ou dispositivo é simplesmente um pretexto, pré-narrativo, para uma reflexão que vai para além do seu funcionamento e delimitação objetiva das suas qualidades funcionais. Explora um encontro com um evento-único que emana partindo do erro da operatividade performativa e que se imaterializa na consciência e desaparece no espaço como um impulso elétrico. Que só pode ser reencontrado enquanto glitch-evento puro por meio da evocação e memória. Quando o glitch-evento é simulado, pode ser encontrado porque ele advém de um conjunto de premissas que vão desencadear um evento-simulado e uma configuração que permite um reencontro no espaço-tempo, porque está apoiado na possibilidade da repetição. Esta metodologia de análise propõe uma clarificação do evento na totalidade das suas análises, enquadrando a sua origem, materialidade e significação a partir do conceito de simulação. Utiliza-se o termo supra para podermos gerar análises do glitch-evento simulado, porque essa prática desenvolve uma metodologia de simulação duplicada, isto é, simula os funcionamentos erráticos e de emergência do glitch-evento e, por sua vez, simula os resultados com implantação de códigos, alterações e modificações que geram, registam e materializam o glitch-evento e, por último, simulam a significação do seu valor estético como elemento de apropriação do ciclo de transformações gerado. Glitch Puro, Simulado é Apropriação «This “accident” is provoking a reversal of values. In my view, this is positive: the accident reveals something important we would not otherwise know how to perceive.» (Paul Virilio e Sylvère Lotringer, The Accident of Art, 2005) A beleza resultante de um acidente não é a forma disforme que resulta da ação evento que, por contacto entre materiais ou disfuncionalidade, se reconfigura numa outra morfologia, a beleza do acidente não é o registo final da sua transformação e transmutação quântica. É o instante em que a energia, espectro, força se liberta e dissipa no espaço-tempo, entre a catástrofe e o seu resto evocativo daquilo que os corpos foram e agora o são de diferente. A beleza do acidente é a equação temporal do que só é tomado como consciência na particularidade dos seus limites de atribuição, na análise aos pormenores, que fazem da vida uma descontinuidade, entre a regularidade dos eventos e a sua derrocada como o glitch que emerge e se dissipa. Gostaria de iniciar esta abordagem classificando o glitch através da divisão em duas categorias, o puro e o simulado: «pure glitch» e «glitch-alike» (Moradi, 2004: 10). O glitch puro é resultante de mau funcionamento de dispositivos, códigos ou artefactos que geram erros ou saem do seu programa funcional. Numa abordagem teórica e mais científica, «glitch is assumed to be the unexpected result of a malfunction». Este termo foi enunciado primeiramente por John Glenn: «The word glitch was first recorded in English in 1962, during the American space programme, namely in the writings of John Glenn where it was used to “describe the problems” they were having. Glenn then gives the technical sense of the word the astronauts had adopted.» (Moradi, 2004: 10) Este termo vem mencionado nos dicionários ingleses como «sudden instance of malfunctioning or irregularity in an electronic system» e tem vindo a ser utilizado de forma genérica como expressão de situações em que ocorrem erros ou infuncionalidades dentro de um sistema, revelando a sua entropia de forma oculta ou reveladora de desconhecimento, desordem ou falta de controlo. Podemos observar como estes conceitos e métodos são utilizados na obra analog(one) de (2012) de Rob Sheridan, e no seu vídeo desenvolvido para o projeto How To Destroy Angels, The Loop Closes de (2013), onde o artista utiliza os mesmos métodos de destruição do sinal vídeo e áudio com recurso a cassetes analógicas e leitores de vídeo antiquados. Este processo gera resultados imprevisíveis e servem como exemplo para um glitch puro, que é registado e posteriormente manipulado, editado e enquadrado numa obra. Estes eventos indeterministas fazem parte do processo do artista na construção das suas obras. Em 2002, a Motherboard, em parceria com o BEK (Bergen Center for Electronic Art) organizou na Noruega, em Oslo, um festival e simpósio denominado GLITCH, de onde podemos extrair mais uma designação do termo: «“Glitch” is a commonplace expression in computer and networks terminology, meaning to slip, slide, an irregularity, a malfunction or a “little electrical error”.» (Motherboard, 2002) O glitch simulado consiste em gerar, por meio informático ou outros dispositivos tecnológicos, efeitos visuais ou sonoros relacionados com a emergência do glitch. Envolve, desta maneira, uma programação de um conjunto de ações, ambientes ou eventos por mediação tecnológica digital ou analógica que possivelmente efetuarão uma simulação do evento. Podemos constatar este processo no filme Europa Report (2013) do realizador Sebastián Cordero, onde o glitch é simulado por um conjunto de efeitos de plugins aplicados em pós-produção, gerando uma simulação de um evento que poderia ser único, mas que nos coloca em contacto com uma tensão latente do erro. Procura-se, assim, introduzir processos reveladores de erros na máquina ou sistema, de forma programática e reveladora: «Glitch-alikes are a collection of digital artefacts that resemble visual aspects of real glitches found in their original habitat.» (Moradi, 2004: 10) A distinção destes dois tipos de métodos para a formalização e entendimento da prática do glitch parece-me importante de demarcar para que se compreenda a sua relação, tanto formal como filosófica, no desvendar de conceitos associados ao erro, disfunção, caos e entropia como metodologias envolvidas no processo artístico. O glitch é apropriação; se o glitch-evento imerge de um conjunto de maus funcionamentos fruto de uma performatividade operativa errática, então esse evento-único suspende-se numa fração de milissegundos no espaço-tempo da cognição do recetor, sendo de grande complexidade registar esse evento e repetir o reencontro com o mesmo fenómeno. Desse modo, o que pode ficar é a evocação mental do evento ou um registo resultante de uma qualidade-secundária do funcionamento errático de um mecanismo, dispositivo ou código. Nessa ordem, esse registo, artefacto, como não passa por um estado de programação, protocolo, metodologia e intenção por parte do autor que o conceber, é sempre uma apropriação quando o glitch-evento é puro, porque o autor se limita a atribuir significação estética ao artefacto encontrado, registado ou arquivado de um erro, que se manifestou fora da performatividade operativa de um dispositivo. É nesta lógica que o glitch puro se apresenta como uma apropriação, visto que não operam na sua construção formal as intenções do autor, mas sim um encontro e uma atribuição de valor e contextualização do glitch-evento e seu artefacto resultante. O glitch simulado é resultante, como já foi mencionado, de um conjunto de programações e intenções do autor para gerar um artefacto semelhante ao glitch-evento. O que proponho é que se construa uma reflexão sobre este processo, sendo ele também assente numa metodologia de apropriação. Quando utilizamos uma qualquer metodologia de alteração para gerar um mau funcionamento na performatividade operativa de uma máquina, dispositivo ou código, estamos a construir um conjunto de relações que, no final, poderão gerar um artefacto do qual nos apropriamos como um glitch-evento, neste caso não puro. Gosto de pensar este evento e metodologia como um glitch de segunda-ordem. Rosa Menkman menciona que devemos ter atenção a estes fatores: «Not all glitch art is progressive or something new. The popularization and cultivation of the avant-garde of mishaps has become predestined and unavoidable. Be aware of easily reproducible glitch effects, automated by softwares and plug-ins. What is now a glitch will become a fashion.» (Menkman, 2011: 11) Contudo, se a exploração de glitch-eventos se desenvolve na procura de novas performatividades operativas e nos seus limites funcionais, então interagem com fenómenos de imprevisibilidade. A imprevisibilidade é fundamental para que se compreenda que nunca existe um objetivo formal final ou controlo das suas qualidades, plásticas, sonoras, visuais, dependendo dos media em exploração e contexto. No seguimento desta reflexão, compreendemos que o resultado final de um glitch simulado, mesmo quando existe uma metodologia para a sua construção, se relaciona com imprevisibilidades e que, no fim, cabe ao autor, partindo dos resultados e artefactos obtidos, efetuar uma seleção e atribuição de valor, o que é uma apropriação de um conjunto de resultados em que existe um maior ou menor controlo. Efetivamente, no final o que é analisado são as qualidades formais do artefacto e a sua adequação aos conceitos anunciados — «plano de intenção do autor» — na sua produção, que pode ser construída com recurso a plugins, como no exemplo das imagens 6 e 7, especificamente para gerar efeitos glitch pela Creation Effects for After Effects. Uma obra que aborda este jogo entre simulação do erro e a operatividade performativa do sistema é Cathartic User Interface (CUI) (1995) de Perry Hoberman, que se caracteriza por uma instalação interativa, multi-usuário, que combina som e imagem na construção de um evento em que os participantes geram conflitos com a própria funcionalidade da máquina por um processo de interação e como esse processo influencia os seus estados psicológicos, emocionais e conflituosos. Perry Hoberman, Cathartic User Interface, 1995-2000 Os participantes foram convidados no contexto da World Wide Web a enviar sons, imagens e textos que representassem situações que lidam com as suas experiências com a tecnologia e frustrações que daí advêm. O material recolhido foi integrado na instalação, que consistia numa projeção desse material sobre uma parede coberta de antigos teclados de PC. Os participantes lançam bolas contra os teclados, desencadeando uma série de projeções, imagens, sons e texto auto-referentes a aspetos dos media digitais e à tecnologia na ordem do utilizador e suas frustrações com mensagens e erros do sistema, gerando um efeito catártico. O glitch simulado é neste projeto o fator fundamental para o contacto e para a experimentação da tecnologia e seus resultados imprevisíveis que, neste contexto, são controlados e encenados a um determinado nível formal, mas ganham autonomia na performatividade envolvida no contacto que o espetador efetua com a obra. O Glitch e o Estado Hauntológico «The phenomena of haunting are often classed as objective and subjective.» (J. Gordon Melton, Encyclopedia of Occultism & Parapsychology, 2000) O glitch-evento puro é um fenómeno espectral que se encontra constantemente num estado de imanência e desaparecimento. Por isso, não é um evento que permita ser reencontrado no espaço como acontece com os objetos. A sua particularidade de evento necessita de uma abordagem às suas condicionantes espectrais. Essa leitura pode ser desenvolvida partindo do conceito de «hauntologia», que se centra na lógica do fantasma e na sua dimensão efémera e abstrata, de imanência. Como sabemos, os espectros são fenómenos de inquietação, porque a sua materialidade é espectral, translúcida, nunca sendo totalmente visível: são aparições, visões, clarividências. Existem como elementos de inquietação. No seguimento dessa lógica, o conceito de «hauntology» foi apresentado pelo filósofo Jacques Derrida, em 1993, no livro Specters of Marx: The State of the Debt, the Work of Mourning and the New International, como a sua contribuição para uma conferência onde fez a pergunta pertinente «para onde vai o marxismo?», mencionando que o comunismo iria assombrar a História. A palavra «hauntology» é um trocadilho com a palavra «ontologia» e descreve a ontologia problemática, intangível e paradoxal dos espectros e fantasmas. É utilizada neste texto como um conceito filosófico que aborda a cognição sobre os eventos-únicos num plano mais metafisico, considerando outros planos de manifestação corporizada e de experiência na apreensão do mundo e seus fenómenos. O conceito de hauntologia é explorado em conexão com a «ontologia». A ontologia é o estudo filosófico de todos os fenómenos que existiram e existirão, visíveis e invisíveis, estudo do ser enquanto ser, suas categorias, princípios e essência. É, deste modo, abordado como um conceito operativo para análises do glitch-evento, permitindo desenvolver relações e análises sobre as suas caraterísticas formais, corpóreas e de imanência e contingência nos mecanismos e na cognição, tendo em consideração os limites da sua existência ou inexistência. Entenda-se não existência como um momento, imanência, onde a energia de um glitch se evidencia na máquina e se dissipa, ficando unicamente o limite da cognição do recetor como impressão, registo da tomada de consciência sobre o evento-único, memória e evocação. Essa não existência é um espectro, um fantasma de um evento-único. Se não se encontrasse nesse limite, limbo entre a existência e inexistência, não seria um evento-único e permitiria o seu reencontro constante no espaço, solidificaria. A particularidade do glitch-evento-único é que ele, sempre que se evidencia, é sempre único, permitindo sempre que é observado um momento de contacto primordial, uma des-sincronia com a regularidade dos eventos. O glitch-evento-único encontra-se, portanto, próximo de uma assombração e espectro, abrindo-se a novas interpretações metafisicas. Os conceitos apresentados constroem uma articulação binária entre hauntologia e ontologia, na construção de um conjunto de possíveis análises que potencializam a desconstrução do glitch-evento. Desconstruir explora uma derrocada dos significados, procurando novas leituras, releituras onde o consciente e o inconsciente operam na construção de significação sobre o evento-único e o glitch que se encontra no limite da existência e inexistência. Na existência do glitch-evento equaciona-se, portanto, a sua qualidade enquanto ser, energia e a sua existência sem um observador ou a sua estrutura atómica de significados. Se um glitch-evento se gera num dispositivo, máquina, ele está dependente de que esse mecanismo saia do seu programa operativo de performatividade e que, por conseguinte, volte ao mesmo programa operativo de performatividade de seguida. Se o dispositivo ou mecanismo não voltar ao seu funcionamento regular, estado de repetição, então temos uma avaria em lugar de um glitch-evento. Por conseguinte, o glitch-evento-único depende dessa relação de sair do programa operativo funcional e voltar ao seu estado inicial de repetição. O estado de imanência do glitch-evento é o que lhe confere o estado de existência e inexistência e de evento-único. O glitch simulado é nesta aproximação concetual um registo de uma avaria, não é um evento, mas uma documentação cristalizada de um evento passado, gerado intencionalmente ou apropriado. Mas que envolve, ao contrário do glitch-evento-único puro, uma procura ou um conjunto de programações, conscientes ou não de gerar este evento-simulado. Não é um espectro ou imanência, mas pode ser entendido como uma procura intencional de espectros, fantasmas, uma simulação de um imaginário que pretende refletir na máquina e na tecnologia fatores de imprevisibilidade e entropia. Desse modo, o futuro da utilização da tecnologia na arte fundamenta não somente da sua exploração de novas possibilidades técnicas e formais, mas uma reflexão concetual e problematizada dos seus limites funcionais, como se a sua dimensão funcional não fosse suficiente para refletir a sua utilização e se necessitasse de uma visão fantasmagórica que, proveniente do passado, construísse o futuro e suas novas leituras. É neste ponto que a hauntologia ganha a sua expressão e contribui para que se compreenda a forma como a tecnologia permitiu, ao longo destes últimos anos, uma imersão e também uma reflexão sobre a mesma, suas funções de regularidade e a emergência de novos paradigmas de acidente, erro, falha e disfuncionalidade. Sem esta análise e contacto com a tecnologia, o glitch e suas reflexões não seriam possíveis. No seguimento desta reflexão, proponho que se analise a obra audiovisual improvisada Test_lab: What Crisis?! (2009), de Toktek vs. Mnk, grupo composto por Tom Verbruggen (Toktek) e Karl Klomp (vj Mnk), enquadrada no V2: Institute for the Unstable Media, no evento com o nome Test_Lab: What Crisis?!. Toktek vs. Mnk, Test_lab: What Crisis?! (2009) Nela, os dois autores estabelecem uma articulação entre tecnologias obsoletas na construção dos elementos audiovisuais e uma fragmentação sonora com recurso a programação, corte, sampling e destruição do material sonoro, para a criação de um ambiente apocalíptico digital. Aqui evidenciam-se técnicas associadas ao glitch como o circuitbending. A tecnologia, nesta performance, é abordada na perspetiva de encontrar os seus limites, sejam visuais ou sonoros. É, deste modo, na minha opinião uma procura assente na improvisação para encontrar imanências espectrais do seu funcionamento, como limite e circunstância de operatividade performativa desvendando acasos, espectros, imanências e estados de hauntologia. Estes estados são atingidos pela improvisação e pelo funcionamento errático, disfuncional, proveniente da própria alteração, transformação e reflexão dos meios tecnológicos utilizados na construção de um ambiente noise, apocalíptico e de distúrbio. «With minimal animations and live generate “OSD glitch” the signal gets carefully disturbed into a hyperdynamic oasis of disorder, all performed very live.». O Glitch e a Paranoia Tecno-Poética do Erro «The computer doesn’t merely place another tool at your fingertips. It builds a whole new environment, an information environment in which the mind breathes a different atmosphere. (Michael Heim, The Metahysics of Virtual Reality, 1993) A paranoia proporciona um conjunto de estados de alucinação, erros de visão e alterações psíquicas e sensoriais na abordagem e leitura que desenvolvemos da realidade. Ela é um glitch na mente do recetor, fundamental para novas leituras e abordagens multidisciplinares. A paranoia proporciona que o recetor esteja aberto ao glitch-evento e à sua dimensão espectral entre a existência e a inexistência, num processo contínuo de desconstruções. Abre a compreensão e sensibilidade para com o erro, disfunção e acidente, não o tentando anular mas assumindo que ele faz parte das vicissitudes operativas do sistema de mecanismos e dispositivos, onde o glitch-evento-único se manifesta e serve como análise extra-cognitiva e extra-sensorial para a compreensão de estados, circunstâncias e eventos meta-cognitivos. Assim, o conceito de paranoia é abordado de modo funcional sobre a cognição dos espetros imanentes da tecnologia e sua operatividade performativa, onde o erro emerge e se torna um potencial simbólico de simulação cognitiva e técnica. No seguimento desta lógica, o erro ou a falha — ou, se quisermos, o glitch-evento — perante o sistema regular da sociedade atual pode servir como uma contralógica ou fuga do sistema da máxima performatividade das metanarrativas, ampliando a exploração de uma nova poética de micronarrativas, sendo um elemento nómada para além da linguagem, lógica e comunicação. Tem o potencial de revelar as vicissitudes internas do seu funcionamento que aspira a eficiência. O erro ou a falha são uma nova forma de «acidente» (Virilio, 2005: 34), mediação entre o real e o virtual. David Bates apresenta o erro como uma tensão latente que anuncia uma aberração num elemento predominante: «There is, etymologically, an ambivalence at the heart of error, a tension, that is, between merely aimless wandering and a more specific aberration from some path.» (Bates, 2002: 20) Esta tensão é geradora de dualidade entre a verdade e a imaginação, como um estado de liberdade absoluta onde a imaginação vagueia «a vagabondage of the imagination, of the mind that is not subject to any rule (idem, ibidem). Deleuze elabora uma reflexão sobre o erro, no livro Diferença e Repetição (1968). Na sua argumentação, o erro situa-se na «diferença e repetição» e toma como argumentação o pensamento. Nos pensamentos o erro marca um distanciamento da razão e anuncia a precisão do pensamento e seus conceitos elaborados numa distância para com o mundo. Essa distância é também uma reflexão sobre as condicionantes da existência e inexistência ou de uma determinada prática artística exposta a condicionantes como o erro, a repetição ou a descontinuidade: «A regra de descontinuidade ou de instantaneidade na repetição é assim formulada: um não aparece sem que o outro tenha desaparecido. Assim, o estado da matéria como “mens” momentânea.» (Deleuze, 1995: 75). Esta visão está comprometida com uma problematização sobre o instantâneo, espectral ou algo que emerge e se manifesta de forma momentânea ou fantasmagórica como um glitch-evento; um gesto performativo ou uma disfunção digital ou analógica, programada ou não, que só pode ser entendida pelo espírito humano nos contornos da sua existência percetiva, reveladora de entropia e caos. «Mas como seria possível dizer “o segundo”, “o terceiro” e “é o mesmo”, visto que a repetição se desfaz à medida que se faz? Ela não tem em si. Em compensação, ela muda algo no espírito que a contempla.» (Deleuze, 1995: 75) O surgir desta nova abordagem influenciou experimentações estéticas e artísticas sobre um conjunto diversificado de práticas, atravessando toda a sociedade, quanto aos modos de relativizar, reestruturar, codificar e descodificar a realidade. Abre a discussão a uma perspetiva mais instável e metafisica sobre o cosmos, onde o erro poderia emergir como uma dualidade constante e essencial para a experiência humana. Numa perspetiva matemática e sua exploração filosófica sobre o erro, podemos encontrar referências no trabalho desenvolvido por Charles Sanders Peirce que, centrando-se numa ideia de verdade absoluta, efetua explorações em que tenta encontrar uma lógica de verdade na comunidade de investigadores que, na sua ótica, poderia dar uma visão parcial da verdade. Em 1870, Peirce na sua investigação construiu uma teoria, a «Theory of Errors of Observation» (Peirce, 1931), que viria a evoluir para o seu conceito de «Doctrine of Fallibilism», desenvolvida no seu ensaio denominado «Fallibilism, Continuity, and Evolution», de 1893. Nesta abordagem, o autor menciona que a construção do conhecimento nunca é absoluta, está constantemente num espaço de continuidade entre a incerteza e a indeterminação: «fallibilism is the doctrine that our knowledge is never absolute but always swims, as it were, in a continuum of uncertainty and of indeterminacy» (Cooke, 2006: 89). Jon Satrom, 00 Force Quit Noise Cancel Calculators (2013) Jon Satrom, Plugin Beachball Success (2012) No seguimento desta reflexão sobre a «Doctrine of Fallibilism», gostaria de propor uma análise a duas obras do artista Jon Satrom, Plugin Beachball Success (2012) e 100 Force Quit Noise Cancel Calculators (2013). Apresentam-se e fundamentam-se nos mesmos princípios da utilização do erro, acidente e glitch, ou seja, na abordagem que se centra na utilização do sistema operativo, neste caso de um computador Mac e sua manipulação de código, com vista a explorar novas possibilidades formais e de interação com os elementos, num contexto audiovisual auto-referente do meio onde se integram. Nesta abordagem, o autor desenvolve um conjunto de alterações que se apresentam com o objetivo de construir conflitos com o sistema e a sua estrutura de regras, refletindo no sistema e nos seus limites funcionais ou, como eu prefiro dizer, na sua operatividade performativa. Como o autor escreve, «Plugin Beachball success parallels the process of installing speculative software within an in/compatible system. What begins as a missing plugin for Open Office devolves into a playful psychedelic mess.» (Satrom, 2012) Rosa Menkman afirma que o glitch pode colocar o público em contacto com outros estados de cognição pela apresentação de disfuncionalidade, que os retiram de um processo linear de cognição, apresentando o erro como uma tomada de consciência: «Force the audience to voyage the acousmatic videoscape create conceptually synesthetic artworks, that exploit both visual and aural glitch (or other noise) artifacts at the same time. Employ these noise artifacts as a nebula that shrouds the technology and its inner workings and that will compel an audience to listen and watch more exhaustively.» (Menkman, 2011: 11) Uma performance multimedia que me parece interessante de apresentar é Magic Matrix Mixer Mountain (2009) de Mark Beasley, Jon Cates, Jake Elliott, Alex Inglizian, Tamas Kemenczy, Nicholas O’Brien e Jon Satrom. Esta obra multimedia explora a disfuncionalidade tecnológica e a dimensão tecnopoética do erro, numa abordagem que se apoia numa estética cyberpunk ou, como os artistas dizem, «hyperjunkyard kludgy» que, por um processo de comunicação, performatividade com a tecnologia e entre os artistas, se vai revelando uma obra audiovisual onde o erro irrompe e se fundamenta entre a tecnologia obsoleta, o limite da mesma e a sua nova exploração funcional. Mark Beasley, Jon Cates, Jake Elliott, Alex Inglizian, Tamas Kemenczy, Nicholas O’Brien e Jon Satrom, Magic Matrix Mixer Mountain (2009) «Cobbled together from broken computers, functional microphones, surveillance cameras, local feedback loops and international communication networks, this Magic Matrix Mixer Mountain rises up from foothills and climbs skywards. Audio, video and datastreams flow up and down from the mountain. Each foothill is a self-contained system (artist) that sends tributary audio, video and data via a matrix of mixer connections. All these streams are sources mixed in realtime into a multi-channel audio and video landscape.» (Lampo, 2009) O Glitch e o Estado de Pareidolia Sónica «A machine may be defined as a system of interruptions or breaks.» (Gilles Deleuze e Félix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, 1983) O glitch-evento e suas qualidades secundárias espectrais podem gerar uma pareidolia que se carateriza como um fenómeno psicológico, proveniente de um estímulo vago e aleatório que envolve geralmente imagem e som, sendo concetualizado como algo distinto a que se atribui significação simbólica e interpretativa, centrada numa experiência subjetiva em contacto com o evento. Este conceito que apresento é fundamental na minha argumentação para analisar o glitch-evento único, visto que ele acontece num milésimo de segundo e desvanece-se no espaço da perceção como evento-único. Se assim não fosse, seria um evento que permitiria um reencontro no espaço e no tempo. Desse modo, esse glitch-evento quando puro só encontra uma configuração, representação na mente do recetor, como tomada de consciência e construção de significação. A pareidolia permite, deste modo, uma construção de argumentação que se centra na subjetividade da experiência e na atribuição de significados dos eventos compreendidos numa dimensão espectral e movidos por forças de unicidade, o que implica que não se repitam. Deixam simplesmente a sua imanência na mente, na memória do recetor e as suas qualidades secundárias são provenientes da performatividade operativa a dois niveis: o mental ou psicologico do receptor como primeiro nivel, e um segundo nivel que se manifesta nas máquinas, dispositivos e códigos geradores de significação. A procura de uma origem para o desenvolvimento concetual da prática do glitch, nas diferentes manifestações artísticas onde se insere como metodologia implica compreender a sua obliquidade. Entenda-se por obliquidade «Característica de oblíquo. Que não possui paralelismo; que se inclina no sentido oblíquo, desviando-se daquilo que é perpendicular» (Dicionário Houaiss, 2003). Neste contexto, este conceito permite compreender que estamos num campo de estudo que pode tomar muitas direções para analisar na sua investigação histórica, tecnológica, estética e metodológica e revelar o que alguns artistas procuram nos espectros, «aparição ilusória» (Houaiss, 2003) da tecnologia1, quando a tentam manipular para explorações extra-funcionais alterando códigos e mecanismos, processos e programas. Podemos referir inicialmente a reflexão desenvolvida por Kim Cascone, que se centra na música techno e na utilização da tecnologia de formas extrafuncionais, apoiando esta reflexão nas vanguardas do século XX. Para Cascone, no início dos anos 90 a democratização de tecnologias de reprodução e produção musical permitiu o aparecimento de movimentos como o da música techno e a cultura do DJ e suas festas, onde se exprime o culto da música de dança. Cascone faz referência ao techno como uma aparição pós-moderna: «One can visualize techno as a large postmodern appropriation machine, assimilating cultural references, tweaking them, and then representing them as tongue-in-cheek jokes. DJs, fueled with samples from thrift store purchases of obscure vinyl, managed to mix any source imaginable into sets played for more adventurous dance floors.» (Cascone, 2002: 24:4) Para Cascone, o contacto que os DJ efetuaram com obras dos grandes compositores — «A handful of DJs and composers of electronica were suddenly familiar with the work of Karlheinz Stockhausen, Morton Subotnick, and John Cage, and their influence helped spawn the glitch movement.» (Cascone, 2002: 24:4) — marcou um ponto de viragem para o desenvolvimento de novas abordagens dentro da cultura popular e na abordagem do glitch enquanto movimento artístico ou atitude. O projeto Pan Sonic pode ser encarado como um ponto inicial para a historicidade do movimento, pelas experiências de Mika Vario, seu mentor: «Pan Sonic sound used handmade sine wave oscillators and a collection of inexpensive effect pedals and synthesizers to create a highly synthetic, minimal, “hard-edged” sound» (Cascone, 2002: 24:4). Este projeto lançou em 1993 o seu primeiro CD, intitulado Vakio, que se apresentou como uma novidade em termos das suas caraterísticas sonoras, cruzando ambientes industriais com paisagens sonoras tonais e drone, num cruzamento complexo de ondas sonoras e frequências. Em meados da década de 1990, começaram a aprofundar as linguagens e metodologias envolvidas nos métodos de glitch, abrindo o caminho para vários subgéneros ligados à música experimental, «sub-genres, including drum’n’bass, drill’n’bass, and trip-hop» (Cascone, 2002: 24:4). Estas práticas geraram um novo vocabulário estético que influenciou a produção musical e sonora. «Experimenting with all sorts of manipulation in the digital domain. Time-stretching vocals and reducing drum loops to eight bits or less were some of the first techniques used in creating artifacts and exposing them as timbral content. The more experimental side of electronica was still growing and slowly establishing a vocabulary.» (Cascone, 2002: 24:4) Estes novos vocabulários e experimentações centravam-se nos meios eletrónicos e digitais e nas novas possibilidades tecnológicas para manipular e transformar o som enquanto medium. Existiram autores capazes de escutar, ouvir o sussurro espetral de algo novo, o que os novos media poderiam trazer como mecanismos de problematização da sociedade, cultura e arte. Um exemplo é McLuhan, que em The Gutenberg Galaxy (1962) escreveu sobre a aldeia global eletrónica e suas propriedades acústicas onde os media, a mediação e a tecnologia estariam como elementos centrais da experiência em mediação ou simulação. O filósofo Wolfgang Welsch, no seu ensaio On the Way to an Auditive Culture? (1997), apresenta-nos o problema do centralismo visual da filosofia ocidental. Como podemos pensar no som enquanto elemento próprio quando focamos o nosso pensamento e os nossos conceitos no que observamos no espaço físico como tema? O som, com a sua temporalidade e imersão, torna-se um elemento que se evade da clareza, categorização e objetividade. «Light and sight reveal objects, sound is the result of processes, of something happening and of mistakes: there can’t be glitches without processes. The whole notion of glitch is tied up to an “auditive” thoughtform, which approaches the world as a multiplicity of processes rather than a pre-set field of objects.» (Vanhanen, 2001) Janne Vanhanen, em 2001, publica um ensaio intitulado «Loving the Ghost in the Machine». Neste ensaio, o autor efetua uma relação entre o glitch e as suas implicações, tanto na produção artística centrada no som enquanto medium como nas metodologias que geram indeterminismo e novas abordagens concetuais para refletir sobre a cultura e a construção do conhecimento. Na perspetiva do autor, o glitch e a disfunção ou erro devem ser entendidos como uma estética da interrupção, e analisados num ponto de vista ontológico: «The scratches and glitches of contemporary electronic music, its aesthetics of interruption and misuse, should be considered in relation to the ontology of the Outside, or its hauntology (to quote Derrida writing about hauntings and returnings).» (Vanhanen, 2001) O autor apresenta uma relação interessante para a compreensão do glitch numa abordagem filosófica. Podemos, seguindo a sua lógica apoiada em Derrida, perceber que o problema não é necessariamente analisado numa perspetiva ontológica, porque a existência do glitch é transitória, movida de indeterminismo quando ele se manifesta de forma não programada. Por isso, não pode ser analisado nas qualidades dos seres ou do eu, mas sim na qualidade do espectro de algo que se manifesta e desvanece onde a pareidolia se apresenta como uma possibilidade de concetualização filosófica e interpretativa do tema sobre os eventos únicos e sua significação. Deste modo, o conceito de hauntologia pode ser interessante como forma de análise de uma ontologia do exterior e do transitório. «Contemporary thought has painstakingly strived to approach this outside of thought and perception. The subject and the world, if such separation can be made, are seen to be formed in complex interrations between both. The subject emerges from the processes of the world.» (Derrida, cit. por Vanhanen, 2001) Na perspetiva de Deleuze e Guattari, a máquina e seus processos definem-se como «a system of interruptions or breaks» (Deleuze e Guattari, 1977: 83). Esta abordagem delimita os processos da máquina num espaço, onde forças ocultas manifestam a sua existência centradas no residual. Esta relação entre o residual e o espectro ou fantasma também se encontra presente nas reflexões que Janne Vanhanen desenvolveu sobre o glitch enquanto processo. «In science fiction, ghosts in machines always appear as malfunctions, glitches, interruptions in the normal flow of things. Something unexpected appears seemingly out of nothing and from nowhere. Through a malfunction, a glitch, we get a fleeting glimpse of an alien intelligence at work. As electricity has become the basic element of the world we live in, the steady hum of power grids and their flowing immaterial essences slowly replacing the cogs and cranks of everyday machinery, the ghostly rapport has also relocated into the domain of current fluctuations, radio interference and misread data.» (Vanhanen, 2001) O movimento glitch já ocupa um espaço de reflexão e de novas explorações formais que passam pela performance, composição, instalação sonora e até formatos mais convencionais de apresentação. Abre espaço para artistas como Ryoji Ikeda e para a sua exploração da visualização de dados, informação, e as suas paisagens sonoras repletas de frequências altas e sons minimais. Outro artista que podemos situar nesta prática é Carsten Nicolai, que atua como Noto, também ele fundador de uma editora, a Noton/Rastermusic, dedicada à edição de música digital inovadora. Carsten Nicolai tem uma prática artística muito diversificada, passando pela composição musical, a performance e até a instalação, o que se vê em muitos outros autores que se relacionam com as metodologias do glitch e do noise como evolução ou principal elemento concetual do digital e seus princípios de indeterminismo e materialidade. Alguns destes artistas, como Alan Licht refere, estão entre categorias, cruzando diferentes disciplinas entre música e outros media, expandindo o tema das artes sonoras para relações muito mais associadas à «landscape architecture, and increasingly focused on digital culture» (Licht, 2007: 210). Artistas como Ryoji Ikeda, Carten Nicolai e Richard Chartier desenvolvem obras, partindo de detritos, «buzzes, clicks, and glitchs to produce quiet soundscaps for the laptop generation (although some of them use analog equipment, they are still referencing digital sound)» (Licht, 2007: 210) A obra de Ryoji Ikeda, Datamatics, de 2006-2008, é uma composição audiovisual que se divide em múltiplos formatos de apresentação. Tem como objetivo explorar a informação, enquanto material sonoro e visual, integrada num sistema tridimensional. Como o artista faz referência, a sua obra «Datamatics is an art project that explores the potential to perceive the invisible multi-substance of data that permeates our world. It is a series of experiments in various forms — audiovisual concerts, installations, publications and CD releases — that seek to materialise pure data.» O recurso à visualização de informação e sua procura de materialidade concebe uma representação enquanto espectro de elementos que estão presentes na interação que efetuamos com a tecnologia, como se nos desvendassem uma camada oculta de funcionamentos. O som das obras de Ikeda é minimal, reduzido a pequenos impulsos sonoros. Constrói pattern rítmicos onde o glitch e o noise são elementos fundamentais neste universo digital, sintético e de simulação que emerge no espaço. Alguns destes autores, como Alan Licht refere, estão entre categorias desenvolvendo uma forma de arte híbrida que tem conexões com a cibernética pós-McLuhan — «interconnectivity of the post-McLuhan cybernetic Zeitgeist rather then a cross-disciplinary artistic vision« (Licht, 2007: 211) –, e são referenciados como «Neo-modernists»2, por Christoph Cox. O método da desconstrução pode apoiar também novas leituras do glitch-evento: «é mostrar que ela não é natural e nem inevitável mas uma construção, produzida por discursos que se apoiam nela, e mostrar que ela é uma construção num trabalho de desconstrução que busca desmantelá-la e reinscrevê-la — isto é, não destruí-la mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes» (Culler, 1999: 122). Estes conceitos de instabilidade e reinvenção na procura de novas estruturas funcionais são fundamentais para a compreensão das práticas associadas ao glitch, que é um estilo de produção e reflexão estética e artística com ligações à imagem e ao som digital e analógico, que surgiu em meados da década de 1990. Descrito como um género que adere a uma «estética da falha» (Cascone, 2002: 24:4), onde o uso deliberado de falhas, erros e disfunções do medium áudio, da imagem, dos artefactos e dispositivos são tomados em consideração por manipulação de código ou exploração funcional do medium e dos dispositivos. O compositor e teórico Kim Cascone classifica a falha como um subgénero de música eletrónica. E utiliza o termo pós-digital para descrever a estética da falha. «While technological failure is often controlled and suppressed […] — most audio tools can zoom in on the errors, allowing composers to make them the focus of their work. Indeed, “failure” has become a prominent aesthetic in many of the arts in the late 20th century, reminding us that our control of technology is an illusion. New techniques are often discovered by accident or by the failure of an intended technique or experiment.» (Cascone, 2002: 24:4) Entenda-se por pós-digital uma reflexão assente na utilização e contextualização da tecnologia no contexto social e vivencial dos indivíduos. Uma sinestesia tecnológica que potencia novas abordagens e reflexões sobre a tecnologia e sua dimensão, não somente funcional, técnica ou operativa, mas também filosófica e evocativa de novos conceitos sobre funcionalidade e operatividade, relacionando-se, assim, com uma abertura a problemáticas de instabilidade e entropia na produção dos seus artefactos. «“Post-digital” because the revolutionary period of the digital information age has surely passed… The “post-digital” aesthetic was developed in part as a result of the immersive experience of working in environments suffused with digital technology: computer fans whirring, laser printers churning out documents, the signification of user-interfaces, and the muffled noise of hard drives. But more specifically, it is from the “failure” of digital technology that this new work has emerged: glitches, bugs, application errors, are the raw materials composers seek to incorporate into their music.» (Cascone, 2002: 24:4) Deste modo, o ambiente social e a tecnologia exercem forças de tensão e influência, como um fluxo de ação e ruído informativo sobre a produção artística e concetual. O caos serve de modelo para uma abordagem que reflete a condição pós-moderna, uma forma de rotura e reflexão sobre a contemporaneidade, revelando a sua anatomia interna e como a arte, ciência e filosofia contribuíram para o desmantelamento de um mundo assente na lógica e num espaço social cada vez mais regulado e supraperformativo (Lyotard, 1979). Como mencionava Jean-François Lyotard, há mais de 30 anos, «lógica de máxima performance»: É uma ideologia cibernética conduzida pelo sonho de um mundo livre de erros e de eficácia a 100%, com precisão e previsibilidade (Lyotard, 1984: 24). Parece-me pertinente apresentar algumas obras que se fundamentam neste princípios apresentados, como o album Fragment of Dots (2000) do artista Tetsu Inoue, onde se desenvolvem sequências rítmicas minimais que se vão articulando e derrocando em variações minimais e erráticas. Deixam a descoberto a materialidade da sua origem digital. Remeto a significação do som para um conjunto de dispositivos digitais e analógicos onde o medium desliza e o som se revela nessa casualidade, amplificada e trazida ao nosso campo percetivo por mediação tecnológica que potencia uma desarticulação e derrocada de toda a linguagem música, escapando ao timbre, ritmo, e formalismos históricos. Outra obra interessante de referência é No Input Mixing Board #8 (2012) de Toshimaru Nakamura, onde todo o som é proveniente de uma mesa de mistura que não tem nenhum sinal de input, e todo o som que provem e é projetado do output é gerado pelo circuito em loop e pela alimentação elétrica presente na mesa. Assim, o som é um medium que é gerado como evento-único proveniente do próprio dispositivo, que é abordado na procura de novas possibilidades extra-funcionais, neste caso enquanto instrumento. Neste processo, é gerada uma reflexão sobre a possibilidade de abordagens reversivas de função tecnológica e utilização desses mesmos espectros sonoros na construção de uma obra sonora. Caracteriza-se como uma exploração de frequências e impulsos gerados pela variação elétrica própria do circuito elétrico e variação dos componentes integrados. Do mesmo autor, em colaboração com Sachiko M., o album Do De (2001) é também uma interessante incursão pela procura do glitch-evento e dos limites no som digital e seus espectros e imanências. Gera e revela um novo universo sonoro que se situa sempre num limite entre funcionalidade e pareidolia cognitiva de significação. Pós-Digital, Erro, Noise e Pareidolia Sonora «Bodies and machines are defined by function: as long as they operate correctly, they remain imperceptible; they become a part of the process of perception, as the extension of the action that engages the Self with the world.» (Maurice Merleau-Ponty, Phenomenology of Perception, 1945) Encontramos referências que fazem alusão ao erro ou falha como processo no texto de Cascone: «There are many types of digital audio “failure”. Sometimes, it results in horrible noise, while other times it can produce wondrous tapestries of sound.» (Cascone, 2002: 24:4) Este processo de falha é o que, para Cascone, fundamenta a condição pós-digital e o entendimento, a relação que efetuamos com a tecnologia. Daqui emergem conceitos como «detritus», «by-product», «background» e «horizon», importantes conceitos que servem de vetores concetuais para justificar a transição do foco da atenção dos artistas do «foreground» para o «background» (Cascone, 2002: 24:4) Utilizemos, então, estes conceitos para uma exploração concetual dos tema: foreground, background e horizon. O primeiro implica estar no primeiro plano; logo, é um elemento de contacto imediato, encontra-se no mesmo plano que a nossa observação. Podemos descrevê-lo em todas as suas caraterísticas com base na nossa cognição. O segundo, plano de fundo, já exige uma maior extrapolação, visto que não se encontra no nosso plano mas num outro. Esse outro plano encontra-se no horizonte, para lá dele. Nesta perspetiva todas as considerações que tirarmos sobre os eventos ou objetos que nele se encontrem são experiências residuais do conhecimento, como o glitch ou o noise, em que pode operar tanto o conhecimento concreto dos fenómenos como o imaginário. Essa passagem do plano do retrato para o plano da paisagem gera uma maior dispersão. Mas uma dispersão necessária para uma visão de conjunto, onde existem elementos que, não estando no nosso campo de visão, também efetuam transformações e tensões no jogo da perceção sobre a realidade. O terceiro conceito é o horizonte e a condição da perceção da contemporaneidade; uma perceção que necessita de extrapolar considerações com vista a caraterizar a distância ou o que se antecipa. O horizonte é um espaço de distância que delimita a perceção ou o campo de visão útil para um aprofundar das qualidades subjetivas da experiência ou qualia3. Desenvolve relações entre perceção, tecnologia, limite e representação, envolvida na exploração destes processos dos qualia, onde o erro, ilusão ou alucinação podem encontrar similaridades, relacionando-se com uma abertura da perceção a estados mais subjetivos da experiência. Deste modo, interliga a perceção humana a estados de indeterminismo geradores de pareidolia. «Our grasp of what it is like to undergo phenomenal states is supplied to us by introspection. We also have an admittedly incomplete grasp of what goes on objectively in the brain and the body. But there is, it seems, a vast chasm between the two. It is very hard to see how this chasm in our understanding could ever be bridged. For no matter how deeply we probe into the physical structure of neurons and the chemical transactions which occur when they fire, no matter how much objective information we come to acquire, we still seem to be left with something that we cannot explain, namely, why and how such-and-such objective, physical changes, whatever they might be, generate so-and-so subjective feeling, or any subjective feeling at all.» (Tye, 1997) Na exploração concetual de Kim Cascone sobre o tema do pós-digital e a forma como o glitch é abordado como processo de criação e submetido a análises em comparação com os conceitos de foreground, background e horizon potencia-se uma nova abordagem percetiva da experiência humana no entendimento da estética pós-digital e suas implicações, porque a perceção é sempre uma atividade de dinâmicas temporais entre sujeito, objeto, contexto, imaginário ou memória. Existe, de certo modo, uma reflexão que vai ao encontro de práticas assentes no tempo, como processo e fundamentação — «The temporal duration of “Auto-Destruction-Art” would operate both as a representation and a presentation, an image and an enactment of effacement.» (Stiles, 1992) –, o que na prática do “glitch” ganha uma nova abordagem que fundamenta o residual e o indeterminismo do evento, que sucede num tempo mas que não pode ser calculado ou recriado: «“Auto-Destructive-Art” condensed a vast experiential and technological territory of destruction and its concomitant survivalist ethos into a manageable representation.» (Stiles, 1992) O glitch-evento está no domínio de uma manifestação como espectro. Não se encontra no primeiro plano nem no plano de trás, está entre planos autónomos. Num espaço entre espaços e tempos de indeterminação. Este conceito não encontra ressonância na cultura ocidental, mas na cultura oriental podemos encontrar o conceito da estética wabi-sabi. Entenda-se este termo como nos é apresentado nos dicionários em inglês: «a way of living that focuses on finding beauty within the imperfections of life and accepting peacefully the natural cycle of growth and decay» (Collins, 2014). Esta apreciação da imperfeição está muito enraizada na filosofia budista, aceitando os estados de transformação, impermanência, transitoriedade de tudo o que é incompleto. «Japanese philosophy understands the basic reality as constant change, or (to use a Buddhist expression) impermanence. The world of flux that presents itself to our senses is the only reality: there is no conception of some stable “Platonic” realm above or behind it.» (Parkes, 2011) Em termos concetuais, existe uma ligação destes fatores provenientes das filosofias orientais que são introduzidos na arte ocidental, surtindo efeito em artistas como John Cage, entre outros, que exploram estes fatores de indeterminação. Tentarei agora clarificar com maior precisão os conceitos assosiados à produção e às metodologias processuais de investigação em arte, relacionadas com processos de destruição. Como nos apresenta Kristine Stiles no seu ensaio «Thresholds of Control: Desconstruction Art and Terminal Culture», apresentado no contexto do Festival Ars Electronica em 1991, «Destruction art is interdisciplinary and multinational, combining media and subject matter. Destruction art addresses the phenomenology and epistemology of destruction and must be characterized as a broad, cross-cultural response rather than a historical movement. An attitude, a process and way of proceeding, destruction art is both reactionary and responsive; it is not an aesthetic, nor a method, nor a technique. Destruction art is an ethical position comprised of diverse practices that investigate the engulfments of terminal culture.» (Stiles,1991) Na observação de Stiles, um dos conceitos pertinentes desta exploração concetual refere que a Destruction Art combina media e matérias subjacentes, em observações que endossam problemáticas que vão da epistemologia à fenomenologia da destruição num cruzamento multidisciplinar, sendo esta exploração concetual uma atitude — não um método — estética ou técnica, porque ela opera sobre uma reflexão crítica sobre o desaparecimento e o residual. Um artista que desenvolve uma investigação em arte próxima destes conceitos é Yasunao Tone, um pioneiro desde os anos 60 nas suas explorações nas artes sonoras e composição digital. Yasuano Tone trabalhou com Merce Cunningham e John Cage e foi um membro dos grupos Ongaku, Hi-Red e Fluxus. Na sua investigação, desenvolveu uma linguagem própria dentro do contexto das vanguardas e ainda continua hoje ativo na exploração de relações entre noise, linguagem e sistemas de representação. Tone é reconhecido principalmente pelas suas obras musicais que assentam em técnicas não convencionais. Nos anos 80, Tone começou a manipular a superfície de compact discs, procurando detalhes e pequenas alterações, erros e sons provocados pela abordagem da tecnologia, fora dos seus princípios funcionais. Em 1985, apresenta o álbum Solo for Wounded CD, que se baseava numa metodologia desenvolvida pelo autor que destruía CD e utilizava este método para explorar as suas composições, utilizando o som que era resultante da leitura errada nos CDJ4 para desenvolver as suas composições. As obras de Tone que se baseiam na utilização do CD empregam um termo denominado de de-controlling. Esta técnica explorava a nova funcionalidade dos sistemas de leitura dos CD, permitindo erros e saltos que se formalizam como um processo random da informação contida no medium e que se organiza num novo material sonoro. Na colaboração efetuada com Florian Hecker, Palimpsest (2004), o autor converteu o poema japonês Man’yo shu para som. Nas suas primeiras obras, Tone explorava diferentes media que se deslocavam da escrita para a composição e performance, desenvolvendo um interesse pelo som enquanto significação, processo e temporalidade, como menciona William Marotti: «long interests in signification, sound, process and temporality, I propose to frame several within their moment of production» (Marotti, 2007:13). A obra de Yasunao Tone é «both free and hermetic – because it has no reference. It’s not presenting, it is present» (Wollsheid, 2007: 5). Este nível de singularidade do autor com o seu tempo e a forma como aborda novas metodologias de investigação do medium som contribuíram para a sua consolidação como um autor relevante para a prática do glitch ou para métodos onde o erro é encarado como processo construtivo. Achim Wollsheid refere-se à obra de Ysuano Tone como uma investigação que se apoia em métodos inter-subjetivos: «Tone’s focused sonic space creates (and demands) an inter–subjective counterpart our respective points of action. These points are required because they keep us in active equilibrium with the piece on one hand and (at the same time or later on) serve as a blueprint to consider our actions in the so called “real”. How do we do things? To what extent do we actually allow the real to become real? Do we actually understand? Who is speaking? How would the artist circumscribe this point? There is a suggestion. After a lecture of his, I asked “Yasunao what are you good for?” and he said – “Maybe I’m a good noise.” (Wollsheid, 2007: 6) A relação que se constrói com a utilização da máquina, enquanto dispositivo para efetuar um corte com um romantismo da produção artística, encontra ecos históricos no conceito de máquinas inúteis de Bruno Munari e na obra de Deleuze e Guattari. Podemos encontrar o conceito de descaraterização do medium som por influência dos processos de gravação e do fonógrafo. O ato de gravação e seleção do objeto gravado já é um processo de escolha e criativo. Qualquer gravação é um todo em si, todas as suas caraterísticas são imanentes a ela mesma, sem uma relação essencial com uma anterior ou ordem superior simbólica. No entanto, até à década de 1960, a expansão das tecnologias de estúdio de gravação, registo e dispositivos mecanicos associados é considerada fundamental para o desenvolvimento destes conceitos, do som como evento e como medium, utilizado em contexto de performance e composição na exploração do seu valor ontológico, ou seja, mais concreto5 do que a mera representação e difusão do mesmo. As máquinas de gravação ou tape recorders6, de fita magnética, transformam o estúdio num instrumento, permitindo explorações variadas de montagem e composição, com vista a um novo concretismo acústico. A paisagem sonora particular, vivida como um todo unificado, poderia ter sido montada durante muitos takes diferentes e lugares, que não teria que resultar de eventos acústicos, como na música de computador. «A digital counterpart to the scratch is the often-mentioned glitch. A precariously vague term, which however captures some of the slipperiness of digital media. If analog phonography has led to some sort of metallurgy of sound, made sound malleable and mutable, digital sound processing approaches sound as molecules.» (Vanhanen, 2001) Esta abordagem do estúdio como instrumento foi fundamental para que se compreendessem as possibilidades de trabalhar o som como medium autónomo e explorar a sua relação com diferentes escalas, como o microssom. «The term microsound is very appropriate for the digital music of today» (Vanhanen, 2001), o que nos permite analisar unicamente o medium e sua materialidade devido à transparência tecnológica e evolução dos meios. Desse modo, «We should be talking about post-digital music, since the medium of digital technology has become so transparent it doesn’t reflect in the expression of music anymore.» (Vanhanen, 2001) Reflete-se numa análise das ferramentas, tecnologias e simulações possíveis na análise do medium num variante de escalas micro e macro. Estes processos e conceitos abriram caminho para artistas como Steve Bates e a sua obra Euphoria/Self-Annihilation (2014), de onde irrompe um drone contínuo de som minimal e noise, em que pequenas variações surgem como que animadas por uma disfuncionalidade que se oculta na materialidade do som projetado, uma energia anímica elétrica e caótica de uma massa sonora em pulsão gerada por um conjunto de feedbacks. Como o autor escreve sobre a sua obra, «Composition of feedback cut into the A-side of a vinyl record. The B-side is etched with “The Cultural Logic of Late Noise”, Titles borrowed from Fredric Jameson’s Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism (Bates, 2014). Rosa Menkman, Demolish the Eetir Void (2010) Uma outra obra que me parece completar estas considerações sobre a utilização de processos destrutivos no processo artístico e no entendimento do pós-digital é Demolish the Eetir Void (2010) de Rosa Menkman. A artista, por um processo reversivo da utilização da tecnologia, constrói uma peça vídeo alterando, por recurso a código, a estrutura da imagem proveniente de uma gravação em DV, que sendo aberta num editor de texto é manipulada no seu código. Gera, assim, efeitos e resultados imprevisíveis no ficheiro. A obra é, por isso, auto-referente à materialidade do medium que é explorado. Conclusão Pretende-se, com a argumentação apresentada, explorar interpretações e direções concetuais para propagar a discussão na filosofia das artes, em específico nas artes sonoras, seu entendimento do glitch-evento e suas qualidades secundárias a outros campos do conhecimento. Não se delimitando as possibilidades formais na sua análise, abrindo a reflexão à filosófia em abordagens epistemológicas, metafísicas, simbólicas e subjetivas necessárias para um extremar de cruzamento interdisciplinar na compreensão de eventos espetrais e de imanência, no aprofundar da cognição e seus estados de pareidolia problematizada. Implantada e teorizada, posicionando-se para além da dimensão física do ouvido e do olho e em contacto com vários planos da consciência, na análise da realidade física como vibração e suas fronteiras, essencial para a compreensão do domínio espectral e de imanência do glitch-evento-único. Tem-se em consideração a sua intangibilidade matérica e especulativismo cognitivo necessário para a análise do evento e vestígio, na aceleração temporal do glitch-evento sobre o ecrã cognitivo do recetor gerador de significância simbólica, psicologismos e indeterminismo. E, deste modo, pretende elaborar-se uma prefiguração de possíveis cruzamentos teóricos e especulativos, na construção do discurso crítico e de fundamentação metodológica com a introdução dos métodos de análise: micro-analítico, macro-analítico, meta-analítico e supra-simulacro nas artes sonoras e práticas intermedia, onde a tecnologia e a consciência são movidas por forças ocultas, instantes, fantasmas numa realidade holográfica mediada por uma fragmentação da experiência cognitiva e construção da singularidade dos discursos artisticos. Bibliografia Almeida, José Augusto Assis de; Casteleiro, João Malaca; Franco, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo dos Leitores (2002). Bates, David W. Enlightenment Aberrations: Error and Revolution in France. Nova Iorque, Cornell University Press (2002). Cavallaro, Dani. Cyberpunk and Cyberculture. Londres, The Athlone Press (2002). Cascone, Kim. «The Aesthetics of Failure: “Post-Digital” Tendencies in Contemporary Computer Music», Computer Music Journal, 24:4 (2002). Collins English Dictionary: Complete & Unabridged 10th Edition. Londres, HarperCollins Publishers. acedido a accessed 30 de Janeiro de 2015. Cooke, Elizabeth: Peirce’s Pragmatic Theory of Inquiry: Fallibilism and Indeterminacy. Londres, Continuum International Publishing Group Ltd. (2006). Cox, Christoph e Warner, Daniel. Audio Cultural Readings in Modern Music. Londres, Bloomsbury Academic (2004). Culler, Jonathan. Sobre a Desconstrução: Teoria e Crítica do Pós-Estruturalismo. Rio de Janeiro, Record/Rosa dos Tempos, trad. Patrícia Burrowes (1997). Deleuze, Gilles. Diferença e Repetição. Porto Alegre, Graal, trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado (1988). Deleuze, Gilles, «Postscript on Control Societies», in Negotiations: 1972-1990. Nova Iorque, Columbia University Press, p. 178 (1995). Deleuze, Gilles e Guattari, Felix. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis, Univ. of Minnesota Press (1983). Lyotard, Jean-François. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Minneapolis, University of Minnesota Press. (1984) Menkman, Rosa. The Glitch Momentum. Amesterdão, Institute of Network Cultures (2011). Moradi, Iman. Glitch Aesthetics. Huddersfield, School of Design Technology Department of Architecture, The University of Huddersfield (2004). Marrotti, William; Dekleva, Dasha; Marulanda, Federico; Obrist, U. Hans e Wollsheid, Achim, Ysunao Tone: Noise Media Language, Berlim, Errant Bodies Press (2008). Lischt, Alan. Sound Art: Beyond Music Between Categories. Nova Iorque, Rizzoli International Publications, Inc. (2007). Melton, J. Gordon. Encyclopedia of Occultism and Parapsychology, Farmington Hills (MI), Gale Group (2000). Parkes, Graham, «Japanese Aesthetics», The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Winter 2011 Edition, ed. Edward N. Zalta. Peirce, Charles Sanders. 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Appropriately, ««The Moderns»» included a sound-art component, curated by Anthony Huberman, that featured many of the field»»s leading practitioners, among them Carsten Nicolai, Richard Chartier, Carl Michael von Hausswolff, Bernhard Gunter, and Kim Cascone.» (Christoph Cox, «Return to Form: Christoph Cox on Neo-Modernist Sound Art». Acedido a 30 de Janeiro de 2015). 3 «Philosophers often use the term “qualia” (singular “quale”) to refer to the introspectively accessible, phenomenal aspects of our mental lives. In this broad sense of the term, it is difficult to deny that there are qualia. Disagreement typically centers on which mental states have qualia, whether qualia are intrinsic qualities of their bearers, and how qualia relate to the physical world both inside and outside the head. The status of qualia is hotly debated in philosophy largely because it is central to a proper understanding of the nature of consciousness. Qualia are at the very heart of the mind-body problem.» (Tye, 2013) 4 CDJ é um sistema de compact disc que funciona como uma turntable. 5 Compreenda-se neste contexto como algo que designa coisas ou seres percetíveis pela máquina sensorial humana, em oposição a valores abstratos. 6 «A mechanical device for recording on magnetic tape and usually for playing back the recorded material.» (The American Heritage Dictionary of the English Language, Fifth Edition, Houghton Mifflin Harcourt Publishing Interact: Revista Online de Arte, Cultura e Tecnologia. Por Hugo Paquete 15 de Fevereiro, 2015.
#Hugo Paquete#theory#reasrch#text#art#concepts#glitch#noise#post-media#post-digital#music#sound art#new media art#author
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The Rhizomatic Connections of Sound Art: Art, Technology and Aesthetic Contamination. Hugo Paquete. 2017-2021
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Sound art and the delimitation of the rhizomatic effect: Art, Technology and sound art. Hugo Paquete. Data.2017-2021
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Relações entre o pós-digital e o complexo industrial do capitalismo: Reformulações sobre a tecnologia como ideologia e lixo digital na arte
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Compreender estes fatores torna-se fundamental para entender os modos como o som hoje emerge de um conjunto de práticas em que o próprio som, como elemento vibratório, está ausente. No entanto, por um conjunto de processos analíticos, artísticos e tecnológicos assentes na vitalidade da informação e tecnologia, é fabricado artificialmente pelo conjunto de meios tecnológicos que estabelecem as regras, os modelos de conversão-manifestação e as condições necessárias para o evento data-sonoro emergir. Estas alterações da natureza do evento sonoro, que tem uma origem na data, mudam a sua ontologia enquanto evento vibrátil e, por conseguinte, mudam também a sua natureza e existência e reconfiguram novos modos de cognição. Porque este som que aflora dos processos de sonorização nada tem de semelhante com o som manifestado numa ordem de natureza primária, que seria o som como o compreendemos, manifestado por impactos, fricção, vibração de corpos num meio sólido, gasoso ou líquido. O data-som gerado pelas sonorizações, pela ordem da sua natureza secundária que lhe atribui uma vitalidade que é o código e o ambiente digital, não encontra referência, nem lugar em nenhum corpo vibrante de onde ele surge, estando sempre conectado com o princípio do digital, que é simulação. Nestas relações, não só a ontologia do data-som levanta outras interpretações sobre a sua materialidade e origem, como também pode moldar a necessidade de repensar outros modos de o teorizar, que serão avançados no decorrer do texto. Contribui, também, para o modo como estas relações estabelecem novos ritmos dinâmicos entre conceitos, disciplinas e práticas sonoras híbridas e, acima de tudo, novas bases filosóficas que suportem a prática da sonificação como proponho.
(Paquete, 2019-2020)
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O evento-sonoro na sonificação não encontra qualquer representação inicial numa espectrografia de frequências, numa onda, mas sim numa sequência de informações, por exemplo de temperatura em centígrados, radiação, luminância, impedância elétrica, humidade que, por sua vez, são convertidas por processos informáticos - “código” - ou analógicos primeiramente sistemas,“dispositivo”- para configurarem “símbolos”e, seguidamente, “vibrações”, output, data-sonoro.
(Paquete, 2019-2020)
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O que escutamos, observamos e sentimos é uma “form” (Langer, 1957:30), que designa relações que se estabelecem na obra e que, por vezes, são abstratas e não lógicas. Ou, dito de uma outra maneira, não lidam unicamente com a forma concreta, definem também condições abstratas da obra artística e dos seus significados. A forma lógica não é visível, é conceptual, “its abstract” (ibid) e quando vemos um trabalho de arte, ele não tem uma forma expressiva, ele é “being one” (ibid). Este processo deve-se à particularidade de vermos “appearance of things without being awer of them as particular appearances” (Langer, 1957:31). Nesta argumentação, nunca passamos da arte para outra coisa, estamos sempre num plano do sentir próprio da obra, seja qual for o processo ou metodologia inerente às suas condições materiais. Porque a experiência artística e estética é algo que suplanta a condição da materialidade e das substâncias da obra, é qualquer coisa que dela emerge na nossa consciência, mas que não está associada à dimensão material da mesma ou da sua eventologia. Os sentimentos são dinâmicos e a imagem, o som e as formas fundem-se, tornam-se “symbolic form,symbolic function, and symbolic import are all telescoped into one experience, a perception of beauty and an intuition of significance” (Langer, 1957:34), estando a compreensão do objeto artístico dependente de uma “conscious logical abstraction” (ibid). A ilusão presente nas artes remete para qualquer coisa que não está presente, é a “stuff” (ibid) das artes, uma coisa semi-abstrata, única, que pode estar para lá do fluxo de informação, do sistema ou dos meios pelos quais a obra se desenvolve e é construída. Autodenominar a arte-imagem ilusória é simplesmente dizer que não é material. O espaço pictórico ou sonoro é um espaço simbólico com símbolos que são “vital feelings” (Langer, 1957:3) e que ganham significados na nossa consciência, como experiências às quais atribuímos, ou não, afetividade e valor. Por esse motivo, definir se na sonificação é mais importante uma abordagem de primeira ordem ou de segunda ordem somente cumpre necessidades que servem processos explicativos técnicos do funcionamento da obra, mas não são essenciais para o que a obra pode significar como experiência estética e emocional, que é onde adquire o seu valor como arte. Mesmo quando mencionamos que a música não tem um “virtual space” (ibid) como a pintura, ou a “data” utilizada nos processos de sonificação, existe, porém, o conceito de “stuff” (Langer, 1957:3), proposto por Langer, que efetua essa ligação entre todas as artes e suas metodologias. A stuff é o material irreal através do qual as formas são feitas, estando além das condições materiais, logo são uma ilusão, existindo num espaço virtual e tempo subjetivo da cognição. O fenómeno musical, para Langer, constrói também ilusões, “appearance” (Langer, 1957:36), que são geradas pelo sentido do “movement” (ibid) criado tanto pelas vibrações como pelas oscilações físicas do som. Mas, do mesmo modo que a ilusão surge no espaço pictórico, também podemos denominar estes movimentos do som na música como ilusórios. Por isso, a música apresenta uma ilusão da passagem do tempo, mais precisamente de um “felt time” (Langer, 1957:37). Mas esta noção de tempo na música não é o mesmo tempo dos relógios, mas sim um tempo subjetivo, “utterly unlike metrical time” (ibid), ao qual conectamos sentimentos de tensão, emoção e estados mentais. Este processo de “felt time” (ibid) é o mesmo que acontece nos processos gerados pela sonificação perante o sistema construído para gerar resultados. Se excluirmos todas essas dinâmicas particulares dos mecanismos, códigos e processos, o que nos resta é uma ideia de fluxo de sensações e símbolos sonoros ou visuais, com os quais temos de lidar na construção de significados. Não importa qual a sua origem ou conversão, mas sim os seus resultados e efeitos sobre nós e o que retiramos dessa experiência, mediada numa rede de complexas tecnologias, sistemas e processos
(Paquete, 2019-2020)
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Na minha opinião, não é necessária uma base de conhecimento entre os participantes, porque a sonorização é um processo que está subjacente a um conjunto de técnicas, o output data-sonoro é o elemento com o qual os participantes interagem, de um modo ou de outro ganha significado na sua negociação. Ou então temos uma arte ou evento que necessita de ser acompanhado por um discurso que o segue como ventríloquo, o que reduz a autonomia e potencial do objeto e da experiência de significação. Por outro lado, uma obra de arte é um acumulado de técnicas, ideias, processos e materiais, mas a experiência da obra de arte está além de todas estas condições físicas da materialidade ou temporalidade da obra, como também da do seu contexto. A experiência é qualquer coisa que emana da obra, uma receção que ganha representação, valor e significado na mente do participante como espectro.
(Paquete, 2019-2020)
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Um algoritmo não é o que define uma estratégia sensível, nem o que constrói a experiência estética que se retira do contacto com a obra. O algoritmo é mais um elemento dentro de um sistema de interações que são tanto da ordem do técnico, dos objetos e operações, quanto do estético. O autor procura delimitar o campo da atuação da sonorização, mencionando que as alterações que considera serem de “second order” (ibid) aproximam o processo de sonorização da composição e se pensarmos no que o autor refere como “threshold” (ibid), a sonorização deixa de ser “utilitarian” (ibid), visto que a obra se transforma somente numa composição. Não concordo com o uso do conceito de utilitária, nem penso ser um conceito importante, porque a arte não deve servir qualquer utilidade imediata, informativa ou ilustrativa, a arte está além dessas utilidades. Concisamente, a sonorização é somente mais uma técnica ao serviço da expressão da arte e dos artistas, e não me parece importante pensar na utilidade como tentativa de ilustração de uma técnica na arte. O importante é o modo como o output do data-som nos faz sentir e provoca construção de experiência que nos retire da ideia de estarmos diante de um objeto comum, ou experiência, porque a arte não partilha qualquer relação com os objetos comuns e seu sentido utilitário. A arte propõe frequentemente uma transcendência da experiência comum. As experiências subjetivas têm uma estrutura, mas essa estrutura não tem necessariamente de ser expressa por palavras, porque a palavra tem limites e a comunicação nestes processos pode ser um filtro que procura lidar com fenómenos por um processo de reflexão e exclusão.
(Paquete, 2019-2020)
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A ciência é, contudo, um elemento da sonorização. Prefiro, no entanto, utilizar o conceito de técnica, porque a ciência neste contexto é puramente um fundo nos processos informáticos de software “meta-tools” (Lancaster, 2012:207) e computacionais da conversão, que é assistida muitas das vezes por ferramentas que operam a complexidade das conversões num segundo plano, efetuando o cálculo e ajudando os processos que também são assistidos por vários sensores de temperatura, humidade, radiação, entre outros, que neste contexto substituem o microfone e o gravador num sentido mais tradicional de entender a captura e registo sonoro, e que aparecem na sonorização como um data-som. Este data-som provém de uma cultura associada à utilização da tecnologia, é um reflexo dos progressos da tecnocultura e seu impacto nas ferramentas, discursos e possibilidades nos contextos sociais e não pode ser ignorado no modo como o conceito de som se expande na atualidade, contribuindo para modos imprevisíveis de o repensar, escutar e contextualizar. Porque o data-som não tem uma ontologia das vibrações e dos corpos em contacto, ele é o fluxo da “data” do digital e das conversões sensoriais dos dispositivos de aquisição de informação. Não encontra qualquer representação inicial numa espectrografia de frequências, numa onda, mas sim numa sequência de informações, por exemplo de temperatura em centígrados, radiação luminância, impedância elétrica, humidade que, por sua vez, são convertidas por processos informáticos “código”- ou analógicos - “dispositivo”- para configurarem primeiramente como sistemas, “símbolos” e seguidamente “vibrações” output data-sonoro. Neste processo e na construção das suas condições, há sempre uma simulação que tem como finalidade um objetivo concreto, que parte de uma premissa inicial que pretende retirar de qualquer evento um outro conjunto de manifestações em associação direta ou indireta. É exteriorizar um evento data-sonoro a partir do conjunto de condições criadas por um processo de simulação sensorial, tecnológica, sendo impossível de dissociar da cultura e da estética com base nas opções formais desenvolvidas. Como também não existe nenhum conceito de pureza ontológica no que diz respeito a estas condições de conversões, visto que elas são sempre simulações e atos de remix, híbridos e integrados em processos dentro de um sistema interdependente e de interpretação. Para já, podemos concluir que o data-som dos processos de sonificação são sempre simulações que ganham existência num conjunto diversificado, complexo e sistémico proveniente de uma ontologia fabricada, artificial e digital e, desse modo, são inicialmente estéticos, contextuais e culturais, mesmo quando utilizados pela ciência em detrimento do serviço dos seus propósitos ilustrativos.
(Paquete, 2019-2020)
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Causing controversy associated worldwide with the “culture wars” such actions have led to widespread misconceptions about the medium, including the presumption that a performance is identical with the life of the artist. But while an event in an artist’s life, art actions diverges from life as metacomentary on life and what it means to be an embodied subject in society.
(Stiles, 2014-2017)
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Artists creating performances also played a precipitating role in the use of human and animal fluids, live tissues, living organisms, and bacteria in art, as well as in the development of bioart, which followed scientific breakthroughs in cloning, DNA sequencing, and biomedicine. These discoveries led to social transformations such as the alteration of gender, sexual transitions in which performance artists have also been at the forefront. In what some have theorized as the post- or trans-human era of techno-scientific amplifications of the body, performance art has been responsive to the cyborg age, corporeal enhancement and redesign, uploaded forms of consciousness, implant and wearable computers, and an array of mental and physical supplements that increasingly render the body ambiguously human.
(Stiles, 2014-2017)
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The use of the body in art may also be understood as a response to the ontological threat of the Holocaust and nuclear weapons and to unprecedented changes in society and culture, including advances in the humanities, social sciences, and sciences, from the advent of poststructuralist thought to the etiology of trauma, and breakthroughts in genetic and biomedical engineering. From its inception, live, performed art included all variety of media: photography and film, slide projection, kinetic sculpture, and eventually the addition of radio and television, video, digital media, virtual reality, artificial intelligence, the Internet, and social media. Many performance artists introduced animals in their work, while others protested this aspect.
(Stiles, 2014-2017)
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Experiments developed with a technological dispositive that convert light to sound using solar panels. And the sonication process used to convert the light image produced to sound based in a sonification process. The approach is developed from light vibration to sound composition. The sequence of notes to play: G, B, G#, G, D# (E, C, D, E). Paquete, 2016-2020.
#Hugo Paquete#sound art#new media#sound to light#light to sound#experimental music#composition#sound design#instrument
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Experiments developed with a technological dispositive that convert light to sound using solar panels. And the sonication process used to convert the light image produced to sound based in a sonification process. The approach is developed from light vibration to sound composition. The sequence of notes to play: A# (A, B) E, D# (E, C, D, E) B, G. Paquete, 2016-2020.
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Experiments developed with a technological dispositive that convert light to sound using solar panels. And the sonication process used to convert the light image produced to sound based in a sonification process. The approach is developed from light vibration to sound composition. The sequence of notes to play: G, E, D# (E, C, D, E) G, F. Paquete, 2016-2020.
#Hugo Paquete#sound design#sound art#noise#aestehtics#arte and technology#experimental music#light and sound
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