❝ maybe the desire to make something beautiful is the piece of God that is inside each of us. ❞ | sideblog to compile some writing & edits, hi.
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i. fumaça
Luzes coloridas. Decidiu ali mesmo com o grave retumbando no seu corpo que iria começar a fumar mais que só as vezes. Da janela, Kalfr viu Raven e Steven conversando no quintal, os pontos brilhantes de seus cigarros como duas estrelas no céu noturno. Falavam gesticulando numa conversa acalorada, entretendo um ao outro, o que de perto, ele sabia, devia fazer a fumaça ganhar mais curvas, se enroscando no ar até desaparecer. Teve a impressão que ela subia até o segundo andar, atravessava o vidro da janela, e embaçava-lhe a vista.
ii. carro
"Como é que a gente vai voltar pra casa?"
Steve começou a rir às custas do rapaz. Quando Raven disse que não, a essa hora não passavam mais ônibus, Kalfr entrou num estupor e sentou no meio-fio. Achava graça porque via Kalfr como um caipira que veio dum lugar muito, muito gelado. A embriaguez deve ter o feito se esquecer das tecnologias que já existem.
Controlou seu riso para poder provocá-lo. Fingiu: "Não estamos com carro, então vamos ter que ir andando."
"Porra, mas todas as coisas aqui são muito distantes!"
O ruivo se encostou numa lamúria na perna de Raven, que estava em pé logo ao lado, celular em mãos.
"A gente vai pedir um motorista, Kalfr," explicou finalmente, a voz distante, de sono e de falar alto por cima de música. "Steve. Vem com a gente?"
Gostava disso; gostava do pedido ao invés da pergunta você vem ou não?, gostava de conversar com Raven depois de algumas boas doses, como ele abandonava a polidez que o distanciava dele. Hoje Raven o abraçou espontaneamente, talvez depois de ouvir algo engraçado vindo dele ou que achou adorável, porque veio acompanhado de um cômico "eu te adoro, nunca mude!", mas Steve já não lembrava mais o que causou a reação. Só lembrava da melhor parte.
Na viagem de volta, ficou no meio de dois sonolentos. Seu corpo ainda funcionava no fuso horário dos Estados Unidos, acrescido da euforia da festa e da bebida. Puxou conversa com o motorista sem nem saber por quê, falou que para ele que era bom os vidros meio abaixados. O frio da noite corria. Kalfr agora se encostou no ombro dele, sua presença sempre morna; o ombro de Raven contra o dele era firme, e seu cabelo longo agitado pelo vento às vezes lhe fazia cócegas no pescoço.
iii. café
O relógio marcava duas horas e meia da manhã quando chegaram. O apartamento de Raven parecia diferente naquele horário, o prédio todo em silêncio. Até as quinquilharias pareciam estranhamente mais estáticas, como se esvaziadas.
"Eu passei a minha vida toda considerando que-" ele pausou para desligar o fogão, "se volto às duas da madrugada, é tarde. Mas se eu estiver voltando às cinco, é cedo. Isso não vai ficar tostado demais?"
Kalfr tinha puxado uma cadeira e sentado na cozinha, monitorando os queijos-quentes. Ele escutava Raven falar e ao mesmo tempo ouvia o que Steve, na sala, colocava para tocar na caixa de som.
"Não, vão ficar perfeitos. Eu conheço sua sanduicheira melhor do que você."
"É só o que você faz nessa cozinha."
"Que mentira. Passo café e faço pipoca de microondas também. Por que cê tá fazendo coado ao invés de espresso?"
"Kalfr, eu sou mais velho do que você, não é?"
"O que isso tem a ver?"
"E eu sei de algumas coisas que você ainda vai aprender, não é?"
"Mas o que isso—"
"Você não vai querer o espresso agora."
Logo o cheiro de café começou a estar presente. Raven alternava entre adicionar mais água quente e olhar para Kalfr, que já buscava suas canecas favoritas, a dele e a de Raven, e mais uma para Steve. Kalfr, que já sabia onde achar as coisas na casa dele. Kalfr, que navegava por seu apartamento com tranquilidade, como se sempre tivesse pertencido ali. Kalfr que tinha sua caneca favorita da coleção que na verdade era de Raven.
Raven soprou o café enquanto continha um pequeno sorriso.
iv. conversa
Deu o seu melhor para manter sua energia alta durante a noite inteira, elétrico o suficiente para ceder um pouco dela até para quem precisasse. Mas acabou que, depois de tocarem música no limite máximo do que era apropriado pro horário, Kalfr precisou fechar o olho um pouco.
Ficou com o sofá todo para si e os dois outros foram para a mesa logo atrás. Quando acordou dos quinze minutos de cochilo, as vozes deles se misturavam com a de Billy Corgan, que ressoava mais baixa na caixa de som como uma lembrança vaga. Pôs-se a escutar.
"...E essa é a história. Ela era muito carente e eu não."
"Mas no resto do tempo, vocês davam certo," Raven disse.
"É. Na cama." Ouviu uma risada.
"Único lugar em que a carência dela não te enchia o saco."
"...Exatamente. Meu Deus, Raven, você é horrível."
"Só porque eu divido neurônios com você."
Havia alguns assuntos que Kalfr não conseguia conversar com Raven e Steven. Como mulheres e sexo. Qual vinho de preço médio é o melhor. Em que lugar se comprava loção pós-barba tão cheirosa.
Talvez ele deveria ter mais amigos da idade dele.
Ele se direcionou para onde estavam e levantou as mãos. "Parem essa conversa agora."
Ficaram quietos. Se entreolharam antes de voltar a atenção para o rapaz. Sua postura dizia que anunciaria algo.
"Vou começar a fumar."
...Se entreolharam de novo, mais sutil agora. Até que começaram a dar risada. Kalfr sentiu a ponta das orelhas esquentarem. "Qual a graça agora?"
"Olhe." Raven mexeu na taça de vinho. "Você não deveria. E outra coisa, Arisen, você vai ficar roubando os meus ao invés de comprar os próprios cigarros."
"Já aprendeu o trago francês?"
Como se lembrado de que roubar era algo que podia fazer, Kalfr tomou um gole da taça alheia. Raven sequer piscou. "Não aprendi. Dos franceses eu só gosto do jeito que fazem revolução." Observou o líquido escuro girar no vidro. "Como é?"
Tudo que não presta Kalfr aprendeu eles.
v. sacada
"Pela última vez." Kalfr aspirou o ar noturno, tentando recobrar a calma. "O seu corpo não sabe a diferença entre vinho, cerveja e qualquer destilado. É tudo álcool! Ele metaboliza tudo como álcool! Misturar não faz diferença!"
"Mas eu estou te dizendo que eu não posso misturar cerveja com vinho, que eu passo mal."
Eles davam voltas no mesmo assunto, reformulando as mesmas sentenças toda vez. Raven teve que se segurar na sacada para não correr o risco de cair de tanto rir. "Ele está zoando contigo, Kalfr." Mas ninguém pareceu escutar.
"Sabe o que eu acho? Você deve ser alérgico a cevada."
Steven parou.
"Alérgico a cevada? Isso não existe."
"Existe." Raven limpou uma lágrima. "São os celíacos."
"Celíacos?"
"É gente que tem alergia a glúten. Tipo cevada, como você falou."
"Eu não acredito em celíacos." Steven tomou um longo gole de vinho e se endireitou, prestes a discursar. "Porque se Deus mandou que compartilhássemos o pão..."
Ainda faltava um bocado para o sol nascer.
vi. cama
Quando Steven comentou que precisava esticar as costas, não imaginou que o dono do apartamento ofereceria a própria cama ao invés de um educado pode ficar com o sofá só pra você. E não antecipou que os dois viriam junto: Raven, pelos mesmos motivos que ele, e Kalfr, por causa da companhia.
Só porque a cama de Raven era de casal não significava que ela era gigante, o que os deixava com os ombros encostando nos do outro. Mas estamos irritantemente muito vestidos, pensou, e pouco enroscados, como se fôssemos órfãos pobres dividindo cama.
Até que Kalfr sentou na cama e, com naturalidade, tirou a camiseta e a jogou numa cadeira que já acumulava outras. "Calor," explicou, e deitou de novo ao lado de Raven.
Steve, do outro lado, considerou a situação. Raven ofereceu sua casa, sua bebida e até a própria cama. Talvez era a hora dele e Kalfr retribuírem o favor, aproveitando que estavam ali, o encurralando como fazem os canídeos. Ele pôs uma mão no meio do torso de Raven — nem muito baixo, nem muito alto, mas ainda um toque intencional —, pôde sentir as batidas de seu coração. Lançou um olhar para o ruivo, na expectativa de que encontrasse algo que denunciasse no rosto dele o mesmo pensamento, uma fome semelhante.
"O que foi, Steve?" Kalfr disse.
"...Nada." A mão permaneceu ali, sobre a maciez do tecido da camisa. "Esqueci."
Ele segurou um botão entre o polegar e o indicador, com vontade de desabotoá-lo e sem poder. De repente toda a atenção do cômodo voltou-se para isso, esperando o que faria em seguida ou qual seu propósito.
Foi Raven quem disse agora, "O que foi, Steve?"
"É diferente dos outros. Dos outros da camisa."
Os demais tinham um aspecto perolado, enquanto o diferente parecia ser de metal, frio ao toque. Steve tocou nos outros botões, experimentando a sensação deles, mão resvalando até mais perto do peito—
levou um peteleco de Kalfr na mão. Dessa vez, o olhar que Steve lhe mostrou era indignado. Antes que pudesse reclamar, já foi interrompido:
"Raven, você não ia procurar um vídeo tutorial de trago francês pra ver se alguém consegue explicar essa merda?"
"Ah, sim."
Ele e Kalfr Arisen não conseguem jogar no mesmo time.
vii. sol
O tempo é a respiração de Kalfr dormindo em seu peito. A forma como Steve o ajudou a tirar uma mecha do rosto quando o cabelo se bagunçou. Os múrmurios sonolentos de boa noite praticamente contra sua pele. Uma luz do dia que se acizentava de tão acanhada.
Seus calcanhares estavam enroscados já não sabia mais com quem. O cheiro de cigarro parecia impregnado em tudo e fazia sua cabeça pesar. Não sabia como continuava acordado, sequer lutava contra o sono.
Mas não se importou muito. A manhã chegou gentil. Viveu o prolongamento das coisas, o mundo secreto que só existe quando o cedo é cedo demais. Como ninguém estava vendo, ele guardou em si essas demoras; assim, quando todos acordassem e seguissem com a normalidade, elas não se dissipariam. E segurou esse tempo na memória.
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significando o mundo interior das personagens por meio dos sonhos
Eu sempre tive dificuldade para lembrar dos meus sonhos. Os fragmentos de memórias deles que eu consigo agarrar e manter, então, ficam comigo por um bom tempo. Até que comecei a notar um padrão: vários sonhos meus giram em torno das minhas ansiedades quanto à rotina e suas burocracias. Na época do vestibular, sonhei que eu estava fazendo a redação da prova, mas não conseguia avançar na escrita dela, sempre havia algo me atrapalhando. O fator pesadelo estava na minha frustração de não conseguir progredir, no medo do tempo passando fora de meu controle e no gosto do meu fracasso iminente.
Tenho certa rigidez e detesto me atrasar, por isso já sonhei que estava no meu primeiro dia de aula numa escola nova e não conseguia achar minha sala mesmo horas depois do sinal tocar. O espaço da escola era um labirinto sem fim por onde eu vagava, pensando: o sinal tocou há muito tempo, estou perdendo aula já, estou perdendo aula há muito tempo.
Tudo isso é indicativo da minha natureza “quadrada” e do meu medo do relógio, de ficar para trás. Do mesmo jeito, nos últimos tempos, tento traduzir os conflitos internos das minhas personagens de modo que não seja dado numa bandeja; pelo contrário, é metaforizado, é uma coisa que na verdade está falando de outra. Não me proponho aqui a análises psicanalíticas ou discussões sobre o sonho em diferentes epistemologias, embora essa segunda me interesse. Me proponho, sim, a comentar os aspectos simbólicos dos sonhos das personagens e como eles se reportam a seu mundo interior, construindo suas subjetividades.
No sonho de Alaska, o medo não vem do fogo em si — embora esse seja um elemento que o assombre de certo modo e a imagem duma pessoa em chamas seja foreshadowing de coisas ainda a serem reveladas¹. O medo é de não ser ouvido, de não ser visto, mesmo enquanto está claramente em grande sofrimento. O desejo que olhem para você, entendam que está em chamas e tentem ajudar a apagar o fogo. Tendo sido um adolescente prodígio que lidava com doenças mentais enquanto orgulhava sua família e comunidade, esse é um sentimento com o qual ele era familiar. A conclusão mórbida de que ele deveria tê-los matado num incêndio é tanto irônica quanto revela por meio da raiva a dor, a revolta e o ressentimento de ter se sentido ignorado quando mais precisava. Embora o fim do sonho tenha se dissipado da memória, o fim do parágrafo evoca um senso de prolongamento a partir da imagem da fumaça subindo para o céu infinito.
A imagem de Alaska em chamas retorna também quando ele volta dos mortos; desta vez, na verdade, a construção linguística o indica como se ele aparentasse ser o fogo em si, o próprio agente vivo de destruição:
Agora, vou comentar dois sonhos de Holly.
Eu gosto desse também. É inspirado num sonho que realmente tive. Holly é uma pessoa que cresceu sufocada pela história da própria família e pela cidade Moxmouth, que representa a estagnação de sua vida e os fantasmas do passado deixados pela avó. A cidade, então, é transfigurada no armazém escuro, mas as janelas têm grades porque sair e perseguir suas ambições (fazer um curso superior, ser reconhecido como pesquisador, etc) não é tarefa fácil. Ele é cerceado por suas condições socioeconômicas, as quais são fatores determinantes na construção da personagem. Tentar encontrar brechas para escapar de sua realidade é praticamente tido como proibido. Quem tem direito a se mover? Desse modo, esse é um sonho que revela a ansiedade de Holly sobre se sentir uma pessoa presa na gaiola que é sua cidade natal, além de seus desejos e esforços de escapar dela.
Além disso, há um senso de vigilância representado na figura misteriosa que o observa no escuro, o que remonta a sua ansiedade de ser descoberto enquanto mastermind e descendente direto de Silena Summers.
A genealogia de Holly Summers volta para o assombrar em outro momento de sonho:
A goteira da casa foi recuperada também em outro momento, referindo-se ao desgosto de Holly pela infraestrutura que refletia a insuficiência de recursos de sua família. No cenário desse sonho, Holly dorme, até que, de repente, seu momento de descanso é interrompido. A água vira algo que realmente mancha, remete a violência. E ao fundo, a voz da mãe o chama e o lembra da iminência da chegada da avó. É impossível parar isso. É apenas um aviso, mas pode ganhar contornos de ameaça. O sentimento de impotência o rouba da capacidade de palavras, e Holly se vê apenas na posição de contemplar as coisas como são: uma mancha no teto, uma mancha que existe e que ele não pode alcançar.
Uma personagem minha consciente de seus próprios sonhos é Vixen. Explicitamente, ela fala que seus sonhos têm temas recorrentes, relacionados a seus medos e suas angústias:
Por outro lado, eles também significam seus desejos. De manhã, ela compartilha seus sonhos com seus colegas de quarto; um modo de se autohumanizar perante eles e partilhar os anseios com quem dorme ao lado dela. No sonho, Vixen estrutura um cenário de afeto com o Instrutor Erast, que a treinou para ser mortal, e ao mesmo tempo, desempenhou um papel paterno (distorcido, vago, mas ainda assim...) em sua trajetória.
O sonho também é lugar de fabular o que poderia ter acontecido. A incerteza de Vixen sobre ser amada ou não por Erast é reformulada e direcionada pelo seu desejo, tomando essas formas. Ela ensaia coisas que não aconteceram, porém estão emocionalmente disponíveis: o sonho consegue estreitar as relações da vida real, preencher lacunas. Poderia Erast algum dia ter feito isso de verdade, se ele tivesse dado um ou dois passos a mais?
Enfim, os sonhos ao mesmo tempo tanto me ajudam a apontar para as emoções das personagens quanto me ajudam a significá-las, no sentido de que lhes dou signos, outros modos de representá-las.
No meu miniensaio sobre saudades, vou discorrer melhor sobre a menção dos sonhos de Vixen em outras perspectivas.
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O QUE ACONTECEU COM ARTHUR NOMURA COOPER? (2021)
"Uma coisa ruim aconteceu com você, Cooper."
"Uma coisa ruim aconteceu com todo mundo," retorquiu, rápido e impassível como uma arma disparando.
"Não. Antes de tudo isso. Antes mesmo de você vir morar aqui, talvez," Brian abaixou a cabeça, fitando as ondulanções do fio do telefone.
O silêncio se esticou na ligação. Do outro lado, apenas o som suave do respirar. Estava tão quieto em ambas as casas que podiam ouvir um ao outro assim. Brian fechou os olhos e imaginou um mundo onde poderia escutar até as batidas do coração de Arthur do outro lado da linha.
"...Não é nada pessoal contigo, Brian. Não contei nem pras minhas melhores amigas. Cheguei perto com o Dariel, mas só isso. Não sei por que tá perguntando, na verdade."
"Cê é meu amigo. Nosso amigo. É só que... não sei explicar. Às vezes você parece incomodado com isso. Tá tudo bem se quiser falar sobre, mesmo que seja uma conversa difícil."
Todas essas palavras eram verdadeiras, mas a verdade mais profunda estava ocultada pela polidez. Queria poder dizer: por quê? Por que nunca falou sobre? Mesmo depois de todos esses anos?
Por que ser incognoscível, Arthur? A realidade é que eu sinto muito. Sinto muito, Arthur. Por tudo, por qualquer coisa que tenha sido. Sinto mais por isso do que por você não confiar em ninguém para falar sobre; você tem suas próprias razões.
Mas deve ser solitário. Você precisa saber que quando estiver pronto, estaremos aqui. Quero conhecer seu suspiro de alívio.
Não falou nada disso. Porém enquanto esperava a resposta, pensou se Arthur estaria no escuro em casa também. Pensou em seus olhos cor de breu — como o breu cercando Tennant agora — com sua típica expressão taciturna. Não, é uma expressão não nomeada. A de alguém que guarda um segredo profundamente. Guarda um silêncio em si.
"...Certo. Obrigado. Por se importar."
Brian assentiu, apesar de que o outro não poderia ver.
"Arthur. Já te chamaram de incognoscível?" questionou por impulso.
Na resposta foi como se pudesse ouvir o pequeno sorriso dele:
"Talvez não de forma tão sucinta, e não em palavra tão bonita."
(Editado em 2024)
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— Pra onde você vai vestido desse jeito?
Bebericadas na caneca de café interrompidas, Raven olhou para baixo, tentando descobrir se havia alguma coisa diferente de como se viu no espelho cinco minutos atrás. Confuso, a resposta veio no mesmo tom da pergunta:
— Trabalhar?
Era o primeiro dia de aulas depois das férias, e o tempo tratava de começar a esfriar, a preparação para o outono. Antes disso, fim de trimestre caótico e daí a quentura do verão. Kalfr já devia estar começando a se esquecer como seu esposo se parecia quando ele queria parecer um professor respeitável. De preto da cabeça aos pés, as mangas da camisa foram roladas até os cotovelos, mostrando antebraços com pelos escuros, e a elegância da calça social era interrompida quando a vista chegava nos coturnos velhos e pesados. Reluzia a fivela do cinto vintage que lhe deu de presente nem fazia tanto tempo, no dia dos namorados. Talvez se o caimento das peças fosse menos lisonjeiro, não teria feito aquela pergunta.
Kalfr assistiu seu esposo tirar mais alguns pelos de cachorro da camisa.
— Pois fique já sabendo que ninguém vai prestar atenção na sua aula.
— Eles não são como você. A gente se vê de que horas?
— Só antes do turno da tarde começar — fez uma careta. — Puta merda, sério. Esse horário ficou uma bagunça.
— E isso é tudo culpa do Morton.
Sabendo que os minutos corriam para a saída do outro, Kalfr pensou vagamente que bastaria ele se ajoelhar no chão, segurar no cinto e olhar para cima, que ele já estaria meio caminho andado para o sucesso. Raven tinha um sério problema de não conseguir resistir a ele. Seria rápido; com sorte, ele nem chegaria tão atrasado para a primeira aula. E então Kalfr não precisaria passar sua manhã livre pensando no que queria ter feito.
Mas Raven checou o relógio da cozinha, declarou estar em cima da hora e de repente estava indo embora com um selinho de despedida. No resto desse dia, quando Kalfr tinha um pequeno espaço de tempo para se entediar, vinha a sua mente um brilho, uma serpente prateada se retorcendo em fivela. E a certeza de que colocaria as mãos nela assim que chegassem juntos em casa.
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alaska arlet + the reason why you’re so afraid and at the same time attracted to monsters is because you’re a little like them.
text at cygnus / julia sarda / interaction at officer’s overlook / wintersong, s. jae-jones / text at cygnus / dark places, gillian flynn / interaction at officer’s overlook / the hour of the star, clarice lispector / julia sarda / all the flowers kneeling, paul tran
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— too long I roam in the night, I’m coming back to his side to put it right. (…) let me have it, let me grab your soul away.
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eu e minha esposa (outubro de 2019) (incompleto)
Zero
Quero me desculpar a todos que me leem nesse momento. Não sou escritor. Nem mesmo sou um bom leitor para compensar minha falta de escrita. Mas tenho um coração e sou um tentador e segundo ela isso já basta.
Ela. Lenny, Silene, minha esposa. Obrigado, eu amo você.
Um
Às vezes moléculas se esbarram com outras moléculas e formam uma coisa inteiramente nova a partir de algo que já existia, o que de certa forma faz a coisa nova não ser tão nova assim. Essa é uma lei da transformação química, em que nada se cria nem se destrói. Porém não tenho certeza se saí inteiro depois da noite em que a conheci.
Havia algo de enervante no silêncio dela.
Aquela pequena mulher de olhos de dia nublado. Será que ela chove, eu havia me perguntando mais tarde em casa, será que seus relâmpagos também são quietos e seus trovões mudos. Ela falava pouco e eu menos ainda.
Quando você desse um passo à frente, perceberia que o caos estava espiando pelas mínimas brechas dela: na linha d’água dos olhos, debaixo da língua, acomodado na clavícula ossuda. Ela era uma aterrorizante caixa de Pandora e a própria Pandora ao mesmo tempo, com os dedos repousando sobre a tampa. O desastre e o gatilho da catástrofe unidos no mesmo corpo. Esperando.
Por uma questão de sorte, quando quase todas as pessoas retiraram-se da festa, ela olhou para mim. E viu-me, com seus grandes olhos de coruja sábia, viu-me. Naquele exato momento, fui desconstruído, tornei-me algo transparente e minha alma se acanhou porque nunca antes alguém a olhara. Posso dizer que é um pouco apavorante ser visto, uma vez que ao ser percebido pelo outro, você finalmente se percebe.
Em vinte e cinco anos eu não tinha entendido a profundidade do meu ser. E então, por um segundo, eu entendi.
Um horror apoderou-se de mim, uma inquietação que esperou mais de vinte anos para despertar. Pandora abriu a caixa de minha alma e uma reação química que demorou mil e um anos para acontecer finalmente se realizou. Achava que eu era irrequieto, e então provei da verdadeira angústia.
Quando cheguei em casa, compreendi que isso também era amor.
Dois
Não fui atraído por Lenny meramente por causa da sua aparência. E não me apaixonei porque sentia amor por ela, mas sim porque a temia. Ela ocupava espaço de um jeito diferente no cômodo e nos olhava — nos olhava como se secretamente soubesse. Do quê? Não sei. Acho que ela nunca vai me contar.
— Você sabe qual é o som do vazio? — ela perguntou-me certo dia.
Não sabia. Eu queria responder: você sabe qual é o gosto do medo? Você sabia que ele rasteja, que ele respira, que ele vive em paredes com infiltração e debaixo do meu travesseiro, que quando você deita do meu lado direito ele prontamente se deita do meu esquerdo?
Três
Tenho medo de ti ou tenho medo de mim? Acho que o medo é a nossa criança. Às vezes acho também que ele vive no seu útero, o qual você diz ser seco e lamentável como terra queimada ou terra esquecida, então deve ser nossa única chance de ter um filho.
Somos duas criaturas que nasceram para acabar em si mesmas ou só continuar a linhagem mediante um milagre. Terra infértil, terra árida com plantas de galhos retorcidos. Mas para mim está tudo bem.
Quatro
— Silene, o que você sabe?
Ela continuou pondo os pratos na mesa sem pressa alguma, depois arrumou os talheres entediadamente. Por fim, direcionou a atenção para mim, olhos cinzentos não fazendo o menor caso de minha cólera emergente. (Cólera. Gosto dessa palavra, seu uso dela me fez utilizá-la mais também.) Enfim, ela disse:
— Sei do que sobre o quê? — ela enxugou as mãos no pano de prato com indiferença. — Sei de nada, ora.
Mas eu sei que você sabe de alguma coisa. Você sempre soube. Você é pedra antiga, carrega até os conhecimentos milenares. E assim que ri de nós.
Eu estava começando a sentir minhas estranhas querendo se revirar. Uma náusea me subiu enquanto buscava recuperar a razão, a qual já havia perdido. Não lembro muito desse dia, não consigo dizer a vocês o que me levou àquele estado (um estado de culminância, como ela diria), mas aconteceu.
Só queria poder explodir em choro e uma raiva que nunca aprendi a ter direito.
Comemos o jantar em silêncio. A carne estava mal passada (ou era impressão minha?) e sentia o sangue dos animais mortos na minha boca. Mastigava o medo deles e o meu próprio. A casa cheira a silêncio. Minha esposa toma duas pílulas antes da refeição. Tenho que me esforçar para não deixar que a náusea culmine, seria lamentável vomitar.
Minhas mãos ainda estão tremendo quando colocamos os pratos na pia.
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o oceano dentro de michel (2018)
o coração dele doía imperdoavelmente junto com os pés. na hora, ele não teve escolha além de se levantar e sair correndo depois de ouvir cruéis palavras que não esperava receber. o vento bateu contra o rosto com rastros de molhado, dando a ele uma sensação ardente e afiada. só sabia um lugar onde sua mente e espírito poderiam levá-lo agora.
este era o lugar de onde ele veio, de onde as lágrimas dele vieram também: a areia, o mar. certa vez, conversando com uma senhora de olhos tempestuosos na praia, ouviu que tinha um micro oceano dentro dele, e quando chorava, essas lágrimas vinham desse oceano pessoal. estava dentro de sua alma e o dele em particular era interessante: muito sereno, porém pode te devorar. nele há a força de emoções infinitas demais para se alojarem nas profundezas de si.
quando sentiu o cheiro do mar respirou tudo que aqueles pulmões falhando pelo choro conseguiriam, não temia a maresia. um horizonte sem fim o cumprimenta. caminhou até onde a água beijava a areia e ajoelhou-se. e quando a água o beijou também, soube que feridas se tratavam com sal. concedeu à natureza que fosse lavado de dor e vergonha, banhado na antiguidade do mundo e sabedoria. sua memória não poderia ser apagada, mas ainda poderia ser curado.
andou mais em direção à água e logo metade de seu corpo estava submerso. uma onda se agiganta diante dele. michel a encarou e não havia mais lugar para medo, então fechou os olhos e permitiu que ela o atravessasse, quebrasse em cima dele e ele quebrasse debaixo dela. as lágrimas do oceano dele encontraram as lágrimas do oceano do mundo. o sopro brisa-mar cantou silenciosamente uma canção de esperança.
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escuridão viva
1. o que acontece às 11 da noite, segundo capítulo
2. a cidade não dorme e eu também não, parte 2.1
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um beijo com um soco [incompleto]
ou ainda:
O Big Bang Ocorre De Novo
ou ainda:
Beije os nós dos dedos, por favor
Era um caos. Eles eram um caos.
Uma bagunça aparentemente irreversível que começou com um estouro: uma mão cujos dedos se cravaram na pele alheia para então a irmã desta se levantar e, sem nem mesmo antes beijar os nós das falanges para romantizar o ato, afundar-se contra a face que tanto estava a dar-lhe nos nervos.
Não foi refrescante o suficiente.
E como para toda ação há uma reação, o agressor fora igualmente atingido. E o outro também não foi gentil o suficiente para encostar os lábios na dobra dos dedos.
A partir daí, um colapso aconteceu.
Em algum lugar, o Big Bang acontecia de novo.
Quando foi socado novamente com força o suficiente para ter as costas encontrando o chão, Raven nem pôde pensar que já havia um tempo que não sentira a sensação da boca encher-se de sangue e aquele gosto metálico brincar na sua língua. O mundo piscou escuro rapidamente umas poucas vezes e fechou os olhos fortemente, só os abrindo quando sentiu um peso, como uma sombra sobre si.
Óbvio que ainda não seria o suficiente.
Houve mais golpes, e no terceiro ou quarto conseguiu ver seu rosto direito - o rosto daquele que tirava seu ar. No mau sentido. Qualquer pessoa poderia escrever um poema ou frase genérica sobre como olhos azuis lembravam o céu ou águas calmas mas Raven Magni era alguém que viu fúria em olhos azuis e nunca, nunca queria escrever algo do tipo porque são o céu e o mar numa tempestade impiedosa com raios e ah meu deus por algum motivo ele quer se afogar na água mais gelada e cruel.
Por causa disso, não demorou para que a situação virasse
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óculos
Havia recebido o objeto já fazia algumas horas, mas se negou a ficar com ele por mais de 15 segundos e se focar no quanto tudo era, na realidade, nítido e não embaçado. Nathaniel poderia olhar para as árvores e ver como as folhas podem ser bonitas quando são um amontoado ao invés de um borrão verde. Poderia ler algumas passagens do seu livro favorito — ou do roteiro que estava decorando — e se sentir aliviado por não ter que forçar sua visão para isso. Poderia apreciar detalhes que passavam despercebidos ou que simplesmente não tinha paciência para passar mais tempo do que deveria tentando decifra-los. Poderia, poderia, poderia...
''Algum problema? Por que não sai daqui já com ele?'' A oftalmologista questionou quando o viu guardando o óculos na sua caixinha própria.
O garoto apenas lhe sorriu enigmaticamente. Não queria explicar. Sequer valia a pena.
Quando saiu da clinica, mandou uma mensagem de texto:
[txt] recebi os oculos e to indo ai
[txt] continua torcendo pra eu nao tropeçar durante o curto percurso ate o carro numa pedra, cair de cabeça e morrer
Felizmente durante aqueles poucos dias quase cego essa hipótese mencionada foi muito repetida, mas não aconteceu. Ainda que acontecesse, provavelmente teria um desconto no velório. Ou no caixão. Arthur havia feito pelo menos 3 piadas sobre isso e não tinha certeza se poderia ser algo sério ou não no final.
Ele não tropeçou numa pedra no caminho. Sua mãe olhou-o de canto quando sentou-se no banco do passageiro, perguntando-se silenciosamente o mesmo que a médica. Sabia disso, e também lhe deu aquele sorriso, mais uma vez não se preocupando com explicações.
Foi atendido na porta da casa por justamente quem queria.
— // —
Folgadamente, como de sempre, Nate se deitou de barriga pra baixo na cama do moreno enquanto ele se sentava na cadeira giratória.
''Onde está seus óculos? Não sei por qual motivo não os usa. Achei que estava cansado de estar perdido no mundo aí.''
''Eu estou.'' Respondeu, abafado. Depois falou mais uma vez, porém sem a cara enterrada na almofada. Presumia que o semblante de Arthur devia estar confuso, então sentou-se para explicar e pegar a caixinha na bolsa a tiracolo no chão.
''Veja bem,'' uma risada nasal rápida partiu do outro. Ele prosseguiu: ''Para resumir, só queria que você fosse a primeira coisa que enxergo direito nesses últimos tempos.''
Uma pausa.
''Ah. Que bonitinho. E dramático. Fala como se tivesse passado anos cego de verdade.'' Brincou, assistindo-o procurar na bolsa. Arthur repuxava os cantos da boca em um sorriso pequeno, contudo muito lisonjeado. Ficou meio sem graça, assim como todas as vezes que o outro era tão direto dessa forma. ''Mas vá, ponha.''
O loiro assentiu e acatou a ordem logo, uma vez que já estava com o óculos em mãos.
Piscou enquanto se acostumava novamente, e o mundo se abriu para ele mais uma vez no leque de detalhes que era. Bem, ao menos os detalhes do mundo que era o quarto do mais novo. Só que não era nisso que estava pondo seu foco.
Uma ótima ''volta definitiva ao mundo sem borrões''.
''Cara, como você é bonito. Eu devia ter procurado a doutora no mesmo dia que havia dado problema.''
''Jesus Cristo.''
''É sério. Eu acho que me esqueci que você era tão lindo assim.''
''Diz isso porque ficou séculos sem ver minha cara direito.''
''Acho que está sendo dramático. Fala como se eu tivesse passado anos cego de verdade...''
Mais uma risada vinda de Arthur, sendo depois acompanhada depois pela de Nathaniel.
''Ainda assim, é realmente um colírio natural. Aposto que se tirasse os óculos estaria pelo menos 5% menos astigmático...''
''Isso é bem embaraçoso.''
''Certamente. E bem verdade, também.'' Piscou o olho esquerdo, fingindo um flerte desajeitado.
''Você não cansa mesmo...''
''...De olhar pra você? Não.'' Piscou desta vez o olho direito, o sorriso se alargando. ''Ok, vou parar pois temo que fique tão constrangido que a possibilidade de vir aqui e quebrar o óculos novo nas próprias mãos seja tentadora.''
''Bem, acho que tens visão do futuro.'' Disse enquanto se levantava e ia de encontro ao loiro. Não estava sério sobre isso, obviamente. Parado a frente da cama onde estava ele, levantou a mão como se fizesse menção de que pegaria nas hastes para tira-lo do rosto de Nathaniel, o qual reclinou-se para trás, esquivando logo. Deu um passo a frente e tentou de novo, mais uma vez não obtendo sucesso. Na terceira, Nate já teria quase se deitado, se não fosse a parede atrás de si. Encostou-se nela com ar de vitória pela desistência de Arthur, que meneava a cabeça, aceitando sua suposta derrota.
Até que ele inclinou seu esguio corpo em direção a ele, e por um momento, Nate achou que perderia pois estava isolado naquele pequeno espaço de cama-parede-Arthur. Agarrou-se a almofada que estava no colo e fechou os olhos, virando a cara para o lado.
Recebeu um singelo beijo na bochecha.
Abriu os olhos e riu.
E ele estava tão perto, mais uma vez com o sutil sorriso. Um sorriso para ele. Sabia que se estivesse sem os óculos muito provavelmente não poderia apreciar aqueles pequenos, ainda assim grandes, detalhes de sua face daquela forma. Aquelas pequenas linhas verticais dos lábios meio rachados e pálidos. A forma da ponte do nariz. Os cílios que deixavam seus olhos ainda mais bonitos. E era tão lindo, tão lindo.
Não tinha certeza de quanto tempo havia ficado o encarando, mas foi o suficiente para Arthur baixar um pouco a cabeça. Desviou o olhar — agora também tinha ficado acanhado.
Só sabia que agradecia às pessoas que inventaram os óculos.
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