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Decidida alcançou o telefone e pôs-se a discar aqueles três números. 1. Suava frio, seus dedos deslizavam sobre o discador. 9. Não esperava que aquilo fosse acontecer naquele dia, nada havia planejado, antes imaginara roteirizando passo a passo cada cena de seu ato final. 0. Discado o último número não poderia voltar atrás. Já não mais respirava. O telefone chamava. Seu corpo tremia agonizando mais e mais a cada tum… tum…
- Polícia Militar Emergência.
- Boa noite. Preciso confessar um crime.
- Nome Completo - pedia o policial do outro lado da linha.
- Cecília Álvares Nóbrega.
- Vá em frente. Vou anotando.
- Foi hoje mesmo, há algumas horas. Nove e vinte e sete. Me sinto muitíssimo arrependida. Não era minha intenção inicial. Me exaltei, confesso. Você sabe, esse calor mexe com a gente. Mentiria se dissesse que nunca desejei fazer isso. Incontáveis vezes idealizei esse dia, mas ele chegou tão rápido, veio sem avisar. Uma visita inesperada nem sempre é algo bom, o senhor pode imaginar. Pior ainda, esse sentimento me invadiu sem nem ao menos bater na porta. Fui tomada por essa energia estranhíssima e antes mesmo de eu tentar me acalmar, já tinha feito. Ponto de não retorno. Não quero me demorar, vamos aos pormenores. - parecia ter deixado de lado sua aflição, narrava o episódio concentrada - Quando cheguei do trabalho, pareceu-me agradável ir até ao mercado da esquina comprar uma garrafa de vinho. Tinto, meu preferido. Demorei de me acostumar com o gosto, hoje não vivo sem. Peguei um maço de cigarros, adquirira o hábito de fumar no último mês. Meu trabalho continuava as exaurir e na nicotina encontrava algum conforto. Na fila do caixa, embaixo dos chicletes, ao lado dos preservativos, avistei uma lâmina de barbear. As minhas estavam todas enferrujadas, mal cortavam. Precisava me depilar, Havia marcado um encontro pro domingo, não poderia aparecer cheia de pelos. Peguei, paguei o que tinha pegado e voltei ao meu apartamento.
- Senhora, vá direto ao ponto. Nenhuma dessas informações são relevantes à polícia.
- Não me apresse, por favor. Essas poucas horas foram as mais importantes de toda a minha vida. Continuando… De volta em casa, coloquei as compras na poltrona e decidi tocar um disco que meu pai me dera no meu aniversário de vinte anos. Uma banda irlandesa, me fazia recordar da época em que ainda estava vivo. Deitada no sofá, cantarolei aquelas melodias por mais de uma hora, até que ouvi minha barriga roncar e percebi que estava morrendo de fome. Abri a minha geladeira. Vazia. Barriga vazia. Mente vazia. Me contentei com o vinho, que nessa hora pouco restava. O álcool fazia efeito e aos poucos começava a sentir alguma coisa. Abri o maço de cigarros quando a garrafa se esvaziou. Acendi um, dois, três… perdi as contas. Na varanda, observava as pessoas que passavam na rua. Uma idosa caminhando sozinha uma hora dessas, pensei, deve ter perdido o juízo. Desde as eleições passadas a cidade se tornou perigosíssima. Entediada, resolvi ouvir as mensagens deixadas na caixa postal. A primeira era de minha mãe.
Cecília, minha querida, como anda? Há tanto tempo não nos vemos. Mamãe está com saudade. Estou tentando te telefonar já há algumas horas. Venho te convidar para a missa de 5 anos da morte do seu pai. Vai ser nesse sábado na Catedral Santo Antônio. Chegue lá pelas onze horas, preciso conversar com você. 5 anos. Parece que faz décadas, você não acha? Aquele dia terrível, fui tão triste. Um acidente, ninguém poderia prever, isso foi o que me disseram. Eu penso o contrário. Todos nós odiávamos ele ao menos um pouquinho, isso você deve concordar. De qualquer modo, teremos tempo pra discutir sobre isso antes da missa. Quem sabe dessa vez você não deixa escapar algum detalhe. Beijinhos. Até lá.
Ela é assim, seu tom passivo agressivo sempre presente. Evito todo e qualquer tipo de contato. Não a vejo pessoalmente desde o enterro. No dia que meu pai morreu estávamos sozinhos em casa, eu e ele. Minha mãe tinha ido até a casa de uma amiga, talvez a única que possuía na época. Guardo apenas flashes do ocorrido. Meu pai gritando. A fumaça tomando conta da casa. Eu correndo até o quintal. Pude me salvar, já meu pai foi encontrado morto horas depois nos escombros do sobrado. Nada foi salvo. O incêndio parece ter sido atroz. Mais tarde me disseram ter sido um milagre eu ter saído viva. De qualquer forma, minha mãe sempre me culpou pelo acidente. É óbvio que ela nunca falou isso de maneira explícita. Ela não é desse tipo. Mas nas entrelinhas me sentia apontada. Seu olhar me acusava. Eu não negava, ficava quieta. Como poderia me defender se não lembrava de nenhum detalhe, nada senão o fogo? Era exatamente isso que me incriminava. Semanas se passaram e eu não sentia nenhum luto, nenhum remorso. Eu não sentia nada. Sentia falta dele, isso sim. Ele se foi tão depressa, não pude nem me despedir. Depois que ouvi a mensagem na caixa postal, tive certeza. Ela me culpava por tudo aquilo. Pela primeira vez, comecei a me sentir mal. Coloquei em dúvida mais uma vez a minha culpa. Eu não poderia. Eu amava ele demais. Não poderia matá-lo, ele não. Repetia em voz baixa. Quando era mais nova, mamãe sabia me persuadir, sabia fazer com que eu cedesse às suas vontades e por mais que eu tentasse resistir naquele momento eu voltava a atendê-las. Eu era culpada. Se não eu, quem? Ouvia sua voz na minha cabeça, tentava tapar os meus ouvidos. O vazio me engolia, a escuridão tomava conta de cada milímetro do meu corpo. Eu me levantei, me olhei no espelho. Não me enxergava. A imagem refletida era a da minha mãe, ela me substituía. Já não era mais eu quem estava de pé sobre o tapete felpudo. Dei um grito. Me igualava à pessoa que eu mais desprezava em todo o mundo. A imagem monstruosa me encarava profundamente enquanto minhas pernas cambaleavam. Entrei em desespero. Espelho, eu te imploro, volte ao normal, volte a mostrar a minha imagem, eu gritava. Porém, olhei para as minhas mãos e elas também estavam mudadas, pareciam mais velhas, enrugadas. Unhas pintadas, esmalte cor de café. Eram também as mãos da minha mãe. Eu gritava mais e mais alto, minha respiração descompassada, meu coração ameaçava sair pela boca. Foi você, meu reflexo repetia. Você matou o meu marido, o seu próprio pai, como pode? Seu monstro! Chega. Eu não aguentava mais. Você se lembra das lâminas de barbear que eu havia comprado mais cedo? Elas foram a solução. Arranquei-as da embalagem e num único golpe rasguei a minha mãe da minha face, cortei-a dos meus pulsos. Era necessário que cortasse cada expressão daquele ser humano odioso. Precisava matá-la dentro de mim antes que fosse tarde demais. Foram inúmeros cortes, por todo o meu corpo. O sangue jorrava, sujava o tapete felpudo. Ainda sinto a dor, mas ela é ainda mais fraca do que a dor que senti quando me olhei no espelho e a vi na minha imagem. Por isso, estou confessando, confesso o meu crime. Não pude evitar, senhor policial, sabia que isso aconteceria uma hora ou outra. Já me corrijo, não me arrependo do que fiz. Na verdade, nunca estive mais feliz. Eu matei a minha mãe, matei-a de mim…
- Minha senhora, devo encaminhar-te a outro tipo de profissional. Chamarei uma ambulância, me passe já o seu endereço.
- Me dê um segundo, sinto cheiro de algo queimando. Não me lembro de ter ligado o fogão.
Cecília, ao correr até a cozinha, notou o fogo se alastrando por toda a parte. À medida que se aproximava a fumaça adentrava seus pulmões, se combinava a sua hemoglobina e ela perdia suas forças. Caiu no chão. O fogo penetrava nas suas feridas. O espelho se estraçalhou. O tapete felpudo se queimou. Se aproximava de seu pai, se afastava de sua mãe.
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