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Movimentos Noturnos (Liberté)
Por Lucas Andrade
Liberté começa com uma conversa entre dois nobres, um francês e o outro alemão, sobre a execução de Robert-François Damiens, um servo acusado de regicídio por Luís XV em 1757. O nobre francês descreve em detalhes o processo de execução, onde o acusado teve sua pele queimada e arrancada com pinças de ferro em brasa, uma tentativa de desmembramento, primeiro através de quatro cavalos e em seguida com os tendões cortados à faca, acabando por fim com seu torso sendo posto na estaca e queimado em praça pública. É um relato horrível não apenas pelos detalhes gráficos pacientemente descritos pelo nobre, mas também por uma estranha atmosfera erótica que se forma no ambiente, em que tanto o ato de descrever como o de ouvir essas ações de violência extrema aparenta causar uma excitação visível por parte dos dois homens, como se estivessem compartilhando uma história proibida mas não por isso menos lasciva.
Muito provavelmente o diretor Albert Serra tinha em mente que tal relato também é o que dá início à outra obra que também explora, dessa vez sob um viés acadêmico, as relações entre controle, Estado e violência: Vigiar e Punir de Michel Foucault. Em linhas bastante básicas, Foucault analisa a mudança que ocorreu entre fins do século XVIII e percorreu boa parte do século XIX da punição corretiva enquanto forma de espetáculo público em que a violência era uma medida infligida diretamente ao corpo do acusado para uma instituição privada que tudo vê, e que ataca ao invés do corpo a mente e a “alma” do criminoso como forma de correção. Liberté acontece nesse espaço de mudança, onde as políticas do corpo estavam passando por drásticas remodelações, seguindo as mudanças políticas que em breve também tomariam toda a Europa. Como o próprio título atesta, o filme acompanha personagens que aspiram e praticam uma solução para esses paradigmas, uma emancipação das rígidas normas sociais que resultam por fim na liberdade em sua forma mais pura.
Não é a toa que, excluído a breves momentos em seu início e fim, Liberté é em sua grande maioria um filme noturno. Um período carregado de significados eróticos (especialmente no século XVIII) a noite aqui representa uma chance de libertação das algemas sociais, e das próprias noções de moralidade, abrindo espaço para o desconhecido onde esses libertinos podem dar vazão às suas fantasias secretas. Serra se interessa pela noite especialmente pelo seu caráter anti produtivo, por um senso de alheamento e de suspensão de continuidade, filmado aqui com uma sensualidade remanescente das obras dos mestres rococó, aliado a uma atenção aos corpos e as infinitas configurações entre luz e sombra que apenas Serra consegue alcançar atualmente. A noite é o período que torna possível essa exploração da sexualidade enquanto uma força democrática. As relações que tomam presença nas florestas de eucalipto onde o filme se situa possuem um caráter arbitrário, onde papéis sociais desaparecem sob a lei do desejo.
Muitas comparações foram feitas entre Liberté e a obra do Marquês de Sade, especialmente seu 120 Dias em Sodoma, onde também experienciamos transgressão sexual enquanto uma forma de espetáculo, encenado sob uma nascente ideia de libertinagem que andava lado a lado com as mudanças de pensamento trazidas pelo Iluminismo. Ambos são obras sobre perda de moralidade, uma aniquilação da individualidade em busca de um prazer distanciado dos ideais de produtividade. Mas se em Sade essa desumanização era encenada através de um vigoroso projeto de mecanização do homem, uma busca ativa de uma sexualidade utópica em sua negação dos ideais reprodutivos da época, Serra aplica sua típica languidez formal para construir um retrato de impotência que evoca nada além de um senso de desespero palpável.
Se A Morte de Luís XIV representava uma espécie de ápice no seu cinema, todas suas obsessões condensadas nos gestos e no corpo de Jean Pierre Léaud, em Liberté ele abdica do drama unitário em busca de uma descentralização confusa. Em sua base, o impulso é o mesmo: o prazer voyeurístico inerente à matéria do cinema estendida até o último ponto. E enquanto a perversidade de Luís XIV residia em entrarmos em conjunção com essa ideia observando a lenta morte de uma figura mítica em tempo real, aqui é a inércia do sexo que causa ruptura. A emoção de um cinema baseado no choque do tabu é quebrada pelo fato de Serra simplesmente não estar interessado em explorar os limites da transgressão aqui. Liberté se constrói em torno de diversas tentativas falhas de alcançar qualquer clímax: sexual ou narrativo, e isso se deve tanto a um apreço do diretor pela decadência do corpo e sua decrepitude como também a uma certa angústia e frustração inerente ao desejo que sustenta todo o filme.
Assim como as pinturas de Boucher hoje nos parecem nada além de divertidos retratos de uma época em que o conceito de transgressão através da libertinagem ainda era possível, também é igualmente certo pensar que a última coisa que Serra procura aqui é a transgressão como um fim em si mesma. O diretor parece possuir um interesse quase vil em explorar a aristocracia europeia como um teatro em que a finitude do corpo se torna visível através da impossibilidade dos rituais sociais em mascarar os limites frustrantes da nossa própria mortalidade e em Liberté não é diferente. O título do filme desse modo não deixa de ser irônico: a última cena revela um lento nascer do sol, não só uma espécie de renascimento de um ciclo mas a exterminação de outro, que acabamos de presenciar. A liberdade não faz sentido se não for pareada com a opressão, e ao acessar através do cinema uma imagem obsoleta e construir nessa fratura temporal uma dramaturgia própria, Serra descreve por fim como paradoxalmente o desejo floresce nesses ambientes em que sua negação é mais incisiva.
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Em Vida Somos Brevemente Grandiosos (We Are Who We Are)
Por Lucas Andrade
Ao propor uma teoria da nostalgia, a professora e pesquisadora Svetlana Boym a definia como um desejo por um lugar e/ou tempo diferente, um sentimento de perda e inadequação, mas ao mesmo tempo é como se apaixonar por suas próprias fantasias pessoais. Boym argumenta que a nostalgia pode ser retrospectiva e prospectiva (aprisionada ao passado ou reorganizada a ponto de dar sentido ao nosso futuro) , pode ser uma orientação dupla (pode ser direcionada para ambos os lados) e se sobrepor com o ambiente atual, seja ele físico ou mental. Obcecado com repetição e uma busca por identidade, a nostalgia cria limites distintos, apenas para em seguida os borrar, e “uma linguagem cinematográfica da nostalgia é uma da dupla exposição, ou uma superimposição de duas imagens: o local e o estrangeiro, passado e presente, sonho e cotidiano. O momento em que tentamos forçar essas dicotomias numa única imagem, quebra os limites do enquadramento e queima a superfície...num senso mais amplo, nostalgia é a rebelião contra a ideia moderna de tempo, o tempo da história e do progresso.” Nostalgia também é uma das forças que move a obra do diretor Luca Guadagnino. Em sua carreira existe um interesse tanto em construir estudos de personagens afetados por um profundo sentimento de nostalgia melancólica como também em uma linguagem visual própria que transforme esses sentimentos em matéria visual, nos colocando na pele dos seus protagonistas e indo longe o bastante pra incutir em nós um estranho senso nostálgico, com suas visões idílicas de uma Itália estacionada no tempo que são ao mesmo tempo sedutoras e fora do nosso alcance. É um cinema de desejos, e de como nos articulamos a fim de manifestá-los, uma característica que também se encontra firmemente codificado no DNA de We Are Who We Are, seu primeiro projeto para televisão.
Nos meses antecipando o lançamento da minissérie manifestei alguma descrença pelas possíveis qualidades que esse novo trabalho do diretor poderia ter. Levando em consideração sua obra pregressa, especialmente Me Chame Pelo Seu Nome, talvez o ponto de conexão mais imediato a se fazer pelas similaridades compartilhadas por ambos, era compreensível minha desconfiança de que a televisão iria provocar alguma mudança no olhar que Guadagnino vinha desenvolvendo nos últimos anos, especialmente quando direcionado para personagens adolescentes. Como um homem de mais de 40 anos olhando para adolescentes é natural que haja alguma desconfiança de como esse olhar irá florescer em tela, e a desconfiança de que o diretor não consiga representar essa juventude de forma empática, complexa e acima de tudo franca sem que uma desconexão de olhares se torne visível. Por isso não deixa de ser ainda mais surpreendente quando ele não apenas consiga ser bem sucedido nessa empreitada como também tenha criado uma das melhores coisas a sair da televisão em 2020 e o que talvez seja o seu melhor trabalho até o momento. Foi necessário Guadagnino migrar para a HBO para ele finalmente expor sua força do seu olhar enquanto criador, algo que nos seus outros projetos parecia mais como uma alusão do que uma realidade.
É uma série sobre tentar encontrar seu lugar no mundo e como nossos desejos acabam realizando um papel determinante nesse processo, o corpo enquanto um ambiente onde constantemente lutamos em via de expressar essas subjetividades. Guadagnino desenvolve e refina uma linguagem erótica que tenta representar não apenas como o desejo se parece, mas mais importante, como ele é. O jogo entre objetos no espaço, também como uma ênfase no espaço entre os corpos dos atores, captura a urgência da experiência erótica, algo que ele vinha refinando desde a década passada, com resultados que iam desde o interessante até o fracasso enquanto proposta estética e que apenas aqui parece ter alcançado o seu potencial. A série revela o poder transformador do desejo - suas consequências tanto na esfera individual quanto social, e Guadagnino explora suas possibilidades até o limite, criando uma obra de 8 horas em que ele basicamente abandona as convenções mais tradicionais de narrativa seriada em busca de uma dramaturgia mais rarefeita, pontuada através de reverentes silêncios e uma crença na fisicalidade enquanto poderoso condutor narrativo. Desde seu cenário, algo insólito para uma série adolescente - uma base militar americana situada na Itália - até as inquietantes relações que atravessam parentes e círculos de amizade é como se a série constantemente estivesse nos lembrando que estamos num ambiente fora da realidade, um espaço bucólico saído de um dos livros de poesia que Fraser (Jack Dylan Grazer) lê durante os episódios: produtos irreais frutos de uma imaginação fértil, mas que em emanam algo de muito honesto e revelatório sobre a realidade. Não me parece tão distante por exemplo de séries como Euforia ou Heathers, dois outros produtos que ofereceram visões radicais sobre como concatenar uma representação justa dessa nova juventude e que encontraram nesse elogio ao artifício uma ferramenta poderosa em conseguir pôr em tela dramas demasiado humanos sob embalagens exuberantemente plásticas. Os métodos utilizados aqui obviamente são diferentes, mas é certo que ele também compreende que a realidade (e o realismo) por si só não é o suficiente para compreender a mente desses jovens.
Ainda me pergunto porque, dentre todas as épocas possíveis para situar uma história de coming of age, Guadagnino escolheu justamente as semanas precedendo a vitória de Trump em 2016. Mas ao mesmo tempo, isso também significaria tentar arrumar sentido nas decisões de porque A Bigger Splash se passar em meio a uma crise de refugiados que assola uma pequena ilha no extremo sul da Itália ou porque sua nova visão de Suspiria se passa em meio aos atentados do grupo Baader Meinhof numa Berlim dividida. Talvez simplesmente não tenha uma explicação, e ótimo assim, não precisamos de uma. Mas não deixa de ser curioso pensar que em todos esses casos existe algo de quase ameaçador nesses choques entre o que espreita pelas bordas da cena e o que constitui o drama central, um elemento alienígena que constantemente ronda os universos particulares desses personagens que até então se encontravam como se alienados da realidade. Mas ao mesmo tempo, Guadagnino parece igualmente disposto em se fazer notar que o mundo lá fora se encontra num constante estado de ebulição, e que é apenas uma questão de tempo para esse choque entre o privado e o público inevitavelmente acontecer. Em We Are Who We Are, somos constantemente lembrados do que está acontecendo do outro lado do oceano, com a eleição presidencial de 2016 aparecendo por todos os lados. À primeira vista é como um lembrete: que apesar das paisagens paradisíacas e a atmosfera intoxicante de primeiro amor, descobertas e diversão que ocorre naquele pequeno cosmos, ainda estamos de certa forma em território americano. O final do sexto episódio, onde Chloe Sevigny observa da sua casa em silêncio a vitória de Donald Trump, é a materialização definitiva de uma realidade que vinha cercando a ela e a todos nós por semanas, mas que permanecemos completamente alheios até nos atingir com uma força inesperada.
Dá pra contar nos dedos a quantidade de séries recentes que realmente se importaram em oferecer um olhar nuançado do que constitui a matéria dessa geração Z, uma juventude que ainda parece assustar e intimidar aqueles que criam televisão e cinema pelo simples fato de ainda serem criaturas quase que inclassificáveis em sua volatilidade, ou cuja única característica constante é justamente a mutabilidade. Para uma série que do primeiro ao último episódio sempre se manteve fiel a sua proposta de ser uma entidade tão incompreensível quanto os jovens que existem nela, não deixa de ser interessante ao seu final ela se revelar acima de tudo isso como uma simples história de amor. Ao terminar num gesto que não deixa de ser uma reverência a certa tradição dos romances adolescentes, We Are Who We Are aponta não para uma conclusão definitiva ao se conformar com o clichê mas ao invés disso afirma que mesmo o mais simples dos gestos pode conter em si algo de profundamente imprevisível.
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Mostra de São Paulo: O Direito do Mais Forte (Gênero, Pan)
Por Davi Barros
Em um trecho de O Heroísmo da Visão, Susan Sontag diz: "Seguros habitantes de classe média dos recantos mais ricos do mundo, regiões onde se tira e se consome a maior parte das fotos, têm notícia dos horrores do mundo sobretudo por meio da câmera: as fotos podem afligir e afligem. Mas a tendência estetizadora da fotografia é tamanha que o veículo que transmite sofrimento termina por neutralizá-lo. As câmeras miniaturizam a experiência, transformam a história em espetáculo. Assim como criam solidariedade, fotos subtraem solidariedade, distanciam as emoções.". Apesar de falar da fotografia, uma discussão similar pode ser trazida ao campo do cinema, sobretudo a uma certa tendência que vem consumindo o cinema dito arthouse majoritariamente europeu nas últimas décadas, a dos intitulados filmes "urgentes" que tratam sobre problemas sociais, geralmente os expondo através de uma série de diversas formas de violência na qual um (ou mais de um) personagem é submetido, utilizando de uma estética hiper realista para perturbar ainda mais o espectador. Com a finalidade de denunciar certo aspecto da sociedade, esses longas acreditam que expor a realidade nua e crua para o público seja a única forma de os tornarem conscientes sobre as mazelas modernas, mas será que, em um mundo já abarrotado de registros imagéticos de violências, mais imagens realistas sobre violência conseguiriam de fato conscientizar o espectador? Por mais que elas sejam realistas e isso o aproxime do público, esses filmes não estariam espetacularizando o sofrimento alheio em prol de uma dita causa social? Apesar de serem tidos como longas confrontacionais, eles geralmente são premiados em festivais internacionais de renome e rapidamente se juntam ao cânone, quase sempre aclamados pela crítica especializada e amados por uma audiência na qual esses longas supostamente criticam. Gostar desse tipo de filmes se mostra mais como uma grife que atesta o "bom gosto" de uma pessoa por apreciar uma obra de caráter reflexivo, uma forma de aliviar a culpa do espectador em relação ao problema representado na tela, o submetendo a uma hora e meia de todo tipo de violência e injustiça social, retratada da forma mais verossímil possível. Um incômodo cômodo. Apesar de compartilhar certas semelhanças com esse tipo de tendência que se popularizou em festivais, Lav Diaz na maioria das vezes consegue se distanciar desse tipo cinema, seus personagens não são simplesmente peças em um tabuleiro cujo a única função é provar o ponto X do diretor, são pessoas com suas alegrias e dores tendo que sobreviver em um mundo hostil a elas, e provavelmente nenhum desses cineastas premiados por seus filmes "urgentes" conseguiriam filmar uma cena tão bela quanto a em que duas personagens cantam "Sunrise, Sunset" e "Somewhere" em A Mulher Que Se Foi. Apesar de seu foco excessivo no sofrimento dos seus personagens chegue a beirar a espetacularização, o diretor filipino consegue remediar isso pelo seu olhar de uma pessoa que também é afetada por aquela realidade em alguma medida, uma forma de registrar histórias que provavelmente nunca seriam contadas. Em Gênero, Pan, Diaz foca na relação entre três homens e o que se dá entre eles como o mote principal da trama, o que vai desencadear todas as tragédias que estão por vir. Pouco após eles chegarem a ilha, um deles liga o rádio e escutam um cientista falar sobre o cérebro humano, onde ele diz que algumas pessoas ainda possuem um cérebro menos "evoluído", mais próximo de chimpanzés por seu caráter mais violento e egoísta, o oposto disso se mostraria em humanos altruístas e que não demonstram sentimentos como ciúmes, de acordo com ele. Ainda é exemplificado que as pessoas com o cérebro mais próximos ao de um chimpanzé são geralmente ladrões, assassinos e ditadores, enquanto as "desenvolvidas" são comparadas a líderes religiosos. Essa sequência já denuncia em alguma medida o que está por vir no filme. O que se segue depois é quase Um Dia no Campo do terceiro mundo, só que se lá aqueles personagens tinham tempo para amar e se desiludir, aqui o espectro das injustiças sociais de seu meio e a própria violência na qual carregam pairam sobre eles, se tornando quase que um filme de terror, assim como outros do Lav Diaz. Aliado ao lado místico presente no cenário na qual eles se encontram, os personagens estão quase que predestinados à danação, com um encontro supostamente amistoso se tornando o catalisador da violência que acontecerá.
Começando do micro até chegar ao macro, a violência no filme vai crescendo como se fosse um tumor maligno. No que tange o discurso do filme, ele não está muito distante de outras obras do Diaz, com sua visão pessimista e praticamente niilista se tornando inclusive até um pouco mais forte aqui, onde nem a figura mais religiosa do trio se mostra tão "evoluída" quanto o cientista havia dado a entender. Apesar de inicialmente começar "diferente" de outros filmes do diretor, logo ele retorna a temas comuns a sua obra, que aqui parecem denotar mais um repetimento do que uma reformulação de ideias, como se ele acreditasse que suas imagens sejam o suficiente para abarcar todo o projeto, e por mais fortes que elas possam ser, o filme não existe só delas. É mais um filme com o mesmo discurso de sempre, de que o homem é mal por natureza, e apesar de Diaz ser muito mais interessante que outros diretores que trabalham com temas similares, aqui ele parece cair em algumas armadilhas que o separavam desse cinema sádico arthouse feito para um público mais elitizado e supostamente erudito. No começo do filme, um dos personagens diz que com a condição na qual eles se encontram, é a sobrevivência do mais forte que prevalece, uma espécime de mundo cão, uma violência sem fim. Apesar de tentar fugir um pouco das dicotomias estabelecidas inicialmente, fica difícil tirar o gosto amargo da boca após o discurso do cientista, ainda mais porque ela parece permear sobre todo o filme. Se tudo está predestinado a violência e destruição, então não há nada a se salvar.
Gênero, Pan está disponível na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Mostra de São Paulo: Apenas os Mortos Viram o Final da Guerra (Nova Ordem)
por Lucas Andrade
As vezes me pergunto o que faz um filme conseguir se libertar da areia movediça que é a programação carregada de um festival de cinema, saindo do limbo que grande parte dos filmes acabam inevitavelmente caindo e tomando pra si um papel de destaque, por menor que seja, nas conversas sobre o estado do cinema nesse ano tão atípico. Essa pergunta não deixa de ser um modo de racionalizar como um filme como Nova Ordem (2020) consegue criar para si essa atmosfera de “filme necessário” do ano a ponto não só de sair do Festival de Veneza com o Grande Prêmio do Júri (espécie de segundo lugar) como também chegar no Brasil como filme de abertura na Mostra de São Paulo. Por um lado, gostaria de pensar que deixamos para trás esses exemplares grotescos de um certo cinema denúncia, arthouse exploitation, cinema de refém ou qualquer outra denominação que exista para essa estirpe particular de filme. Mas por outro lado também tenho consciência que, embora seja produtivo pensar que o cinema está em constante estado de evolução, alguns padrões são mais difíceis de abandonar, esse sendo um deles.
Talvez aqueles que tiveram coragem de se aventurar pela filmografia de Michel Franco estejam preparados para as linhas gerais que constituem a cartografia da sua obra: uma visão quase canibalística das relações humanas, violência que acredito que possua um caráter denunciatório, mas que nessa altura da sua carreira não gera nada além de apatia, e uma relação com seu espectador que se resume a violentá-lo com suas imagem, queira ele ou não. Embora nos seus filmes anteriores o escopo da narrativa se limitava a ambientes bastante restritos: família, amigos, pequenas comunidades tomadas pela violência, Nova Ordem extrapola a perversidade da vida privada e toma para si a ferocidade de um México em crise.
Transformando a ideia de revolta popular em que a população se volta contra as elites na matéria de um filme de terror, Nova Ordem não se preocupa em olhar a fundo nessas disparidades de classe, sua relação com gênero e raça, como a violência estatal se insere nesse contexto revolucionário e o papel da violência na engrenagem dessa revolta. Começamos acompanhando o casamento de Marianne (Naian Gonzalez Norvind) numa opulenta mansão nos subúrbios ricos da Cidade do México, e que gradualmente se torna cada vez mais tenso à medida que percebemos que algo estranho está acontecendo para além daqueles muros. É nada mais que um exercício de tensão, onde aos poucos acompanhamos essa ameaça invisível tomar forma por meio de símbolos e gestos pontuais, construído com um tato até considerável para um cineasta tão acostumado com movimentos grosseiros. Mas logo em seguida, o filme se revela como uma criatura aberrante: um grande guignol contemporâneo em que entramos num presente distópico em que uma revolução popular falha miseravelmente ao se transformar num pesadelo orwelliano onde o Estado oblitera qualquer resquício de revolta e impõe uma “nova ordem”.
De certa forma o filme me lembrou de Roma (Alfonso Cuarón, 2018), se ele fosse despido de todo seu humanitarismo e solidariedade vazia e restasse apenas o que movia suas engrenagens do início ao fim, por mais que o diretor tentasse mascarar: as interações interclasse sempre guardam em si o germe do ressentimento e da violência, a questão é apenas quando as fraturas irão se revelar. E os primeiros minutos de Nova Ordem são seus mais promissores justamente por revelar esse distanciamento entre classes, e o constante estado de tensão que surge quando o estado de conforto e complacência é rompido. Mas não demora muito para que Michel Franco retorne para sua zona de conforto e desencadeie um ciclo de violência homérica em nossa direção. De certa forma é uma descida ao inferno, que o diretor filma em grande pompa e pirotecnia, abandonamos os planos estáticos e longos tempos mortos de Depois de Lúcia e Chronic e nos jogando no epicentro de um apocalipse urbano em que a única regra é a da violência e do caos.
Nova Ordem representa é o ápice e o sonho molhado do projeto de cinema de diretores como Michael Haneke, Lars von Trier, Ulrich Seidl, entre outros: extrapolar o tecido familiar e comunitário onde eles situam suas histórias de perversões burguesas e alcançar a esfera pública. Se antes a violência era um mistério doméstico, resguardado entre quatro paredes e revelados graças ao olhar desses diretores que expunham essas fissuras numa chave de alegoria a fim de revelar de uma malaise mais ampla, uma sociedade em estado de crise, agora toda a cidade funciona como uma placa de Petri, um campo aberto onde o diretor pode pôr à prova suas hipóteses acerca da natureza bestial da sociedade e que estará disposto a ir até às últimas consequências para prová-las corretas.
Assim como nos seus filmes anteriores, a violência nos filmes de Michel Franco possui um elemento quase pictórico, uma certa espetacularização do sadismo que poderia ser interessante se não fosse tão inócua. Em Nova Ordem, essa violência irrompe de forma carnavalesca pelas ruas da Cidade do México, como uma pintura de Bosch: o verdadeiro terror provindo não exatamente da violência em si, mas desse choque entre essa superfície maneirista, com suas cores vibrantes e composições de teatralidade barrocas, e a brutalidade demasiada real e crua desses contínuos atos de barbárie. No início do filme vemos uma pintura do mexicano Omar Rodriguez-Graham - Solos los muertos han visto el final de la guerra (Después de Tiepolo) - que com suas cores vibrantes e movimentos intensos parecem indicar uma rima visual para a própria construção da violencia que Franco orquestrará em seguida. Mas um ponto importante que ele parece ter perdido no processo, e que tantos outros diretores parecem ter um entendimento falho sobre, é que pouco importa a violência posta em tela se o resultado é nada mais que um elemento vazio, se prestando não a vislumbrar uma janela para um mundo possível e sim em admirar os possíveis horrores num exercício tolo de apreciação artística. Para um filme que se presta a trazer uma visão de uma luta de classes tornada literal, incrível como ele é de uma inutilidade política surpreendente, o que talvez explique o porquê da sua aclamação por tantos: revolução enquanto espetáculo é mais confortável do que revolução enquanto possibilidade.
Nova Ordem está disponível na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Mostra de São Paulo: O Testemunho de uma Displicência (Casa de Antiguidades)
por Lucas Guarnieri
João Paulo Miranda Maria, ao dizer em entrevista que seu primeiro longa, Casas de Antiguidade (2020), não pretende circundar em torno de questões raciais, mas elaborar e iniciar discussões gerais sobre a dinâmica do oprimido diante do opressor, demonstra desconexão com a própria obra ou, no mínimo, incoerência entre discurso e práxis. Isso porque a vida do personagem principal Cristovam (Antônio Pitanga), homem preto vindo do Goiás para o sul - especificamente para uma colônia de alemães - usado como caso de estudo, apresenta ao espectador uma tentativa de denúncia sobre a ainda vigente e incrustada descriminação racial na sociedade brasileira com pinceladas de questão de classe. “No Brasil, quando você coloca um negro como protagonista, o filme fica rotulado como se fosse cinema do movimento negro.” na mesma entrevista, João é esguio ao tentar fundamentar sobre o que é seu longa. Nota-se por suas entrevistas que existe uma repulsa em apresentá-lo como esse conceito fechado, como se o oposto conferisse mais complexidade ao trabalho.
No entanto, a narrativa é clara em seu texto e símbolos: Cristovam é um personagem escrito para sofrer. Desde a primeira cena do filme em que seu salário é diminuído, retornando para a casa que é constantemente invadida, com seu cachorro padecendo na mão da crueldade de vizinhos e os habitantes na rua se escondendo por trás da inteligibilidade do alemão para disparar injúrias raciais. Ora, o memorando é claro, o filme não toca em outras ramificações da opressão que não a de raça. E por “tentativa”, quero dizer que Miranda Maria confere a seu protagonista características passivas e reativas em uma pauta que requer ímpeto para iniciar o debate. Aceita calado as mazelas que o diretor coloca em seu caminho, sendo a primeira metade do filme uma sequência de situações em que a figura do personagem é explorada não como denúncia, e sim como simulacro do sofrimento. Fica um gosto amargo na boca de um roteiro que acredita que expondo seu personagem a absoluta miséria conseguirá alcançar a empatia desmedida do público.
No Brasil, é comum a máxima de que é preciso confrontar “a realidade nua e crua como ela é”, como se isso fosse trazer clareza social e mobilização imediata rumo ao progresso. No entanto, Casa de Antiguidades ao retirar parte da agência do personagem - ele recupera esse controle ao matar a criança - diante dos acontecimentos direcionados a ele subtrai qualquer modulação denunciante. Nesse ponto, o diretor paulistano empresta muito do amigo de profissão pernambucano Kleber Mendonça Filho, sobretudo em sua obra mais recente, o igualmente aclamado no Festival de Cannes, Bacurau (2019). Nesse último, temos a figura do colonizador como fator único e determinante de gênese da opressão. Essa ideia isenta os “vilões” de arco de personagem, e joga essa responsabilidade para a já moralmente estabelecida discussão colonizadora. Além de situar a obra como acontecimento perpendicular ao contexto atual do país, como se fosse uma grande coincidência um filme que propõe uma revolução em tempos da notável crescente do fascismo e desaceleração das pautas progressistas diante desses governos totalitários.
A estrutura entre os dois é semelhante, ritmicamente mais lenta em Casa de Antiguidades, armazenando toda a agitação climática para a solução final na redenção dos personagens principais. Bacurau tem mais sucesso nesse sentido. Ainda que falho, o roteiro tenta criar uma relação empática entre o oprimido e o público para justificar a barbaridade redentora do ato final. São os antagonistas que não ganham nem uma tentativa de proximidade com o público, causando assim um desbalanceamento desses vínculos que precisam ser criados, principalmente quando a proposta do filme é o embate moral entre o bem contra o mal.
Casa de Antiguidades sacrifica essas relações em nome do arthouse onde vale mais um longuíssimo plano de uma atividade corriqueira do que uma passagem em que conhecemos mais sobre a essência do personagem. Além disso, a cinematografia outorga um sustentáculo na tarefa de preencher lacunas deixadas pelo argumento, funcionando como um catalisador da atenção e não uma relação orgânica entre roteiro e imagem. Um exemplo disso é a ancestralidade e espiritualidade de Cristovam que nos é apresentada por flashes de símbolos, estrategicamente posicionados como chancela de subjetividade, como se essas micro cenas proporcionassem complexidade a este personagem.
Embora em alguns momentos os enquadramentos e cenas sejam esteticamente agradáveis, a estilização do longa joga deliberadamente contra a narrativa no sentido de retirar a carga sentimental de discursos sequenciais. Quando Cristovam é submetido a alguma situação humilhante e/ou perversa e logo em seguida os personagens da próxima cena posam para uma câmera sempre com o zoom lento, retira o telespectador do naturalismo do sofrimento daquele homem e serve como lembrete de que se trata de uma obra cinematográfica. Isso resulta nesse movimento de alternância entre essa pseudo-denúncia e a pretensão estética conflitando a todo momento para a posição de elemento central do filme.
Por fim, não é coincidência que Casa de Antiguidades é o queridinho atual do Brasil em um momento político em que o desamparo dos cidadãos os coloca em posição de racionalizar por meio da referência. O filme de João Paulo Miranda Maria preenche essa lacuna que outrora fora de Bacural, de importância, como essa obra essencial que captura o zeitgeist do país. Não à toa, também são dois destaques brasileiros nas últimas edições do festival francês, que escancara suas recentes preferência por obras político-sociais como Eu, Daniel Blake'(2016) e Parasita (2019). No entanto, o filme paulistano se assemelha a atual situação brasileira de uma forma diferente: por padecer de força definidora e assim não conseguir ser nem político e nem social, nem denúncia ou retrato e sim um discurso estético entre dois lados que não dialogam.
Casa de Antiguidades está disponível na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Mostra de São Paulo: Em Nome da Arte (DAU. Natasha e DAU. Degeneração)
por Lucas Guarnieri
Existe uma escola de pensamento crítico que acredita que nenhum detalhe contextual de um filme - seja ele relacionado ao material de origem, às circunstâncias de sua produção ou à motivação de seus criadores - deva ser examinado ou considerado em uma revisão dele, que o produto final na tela é a única coisa que conta. Esta é, certamente, uma regra válida na maioria dos casos, no entanto, DAU. além de ser um feito sem precedente, carrega uma potência que subverte a tese Mcluhaniana ao colocar o meio como mais importante que a mensagem.
Isso porque o diretor do projeto, Ilya Khrzhanovsky, renegou a convencionalidade na metade do caminho das filmagens de seu novo filme. Ao invés de seguir pelo processo usual de concepção fílmica, onde produz-se uma história, contrata-se um corpo de atores e atrizes e decide-se sobre a locação (para citar alguns exemplos formais do fazer cinematográfico), Kryzhanovsky decidiu sobre o assunto, construiu um set que remonta a União Soviética das décadas de 1950 e 1960 e cooptou pessoas para viver de acordo com o regime totalitário stalinista da época. A magnitude do projeto impressiona: em produção desde 2006, com cerca de mais de 300 pessoas trabalhando no set localizado na Cracóvia e mais de 700 horas de materiais captados que serão desdobrados em uma série de TV, documentário, lançamento de cinema doméstico, além dos outros 15 filmes produzidos para stream no site oficial (dau.com).
Aliás, essas palavras e processos perdem sentido dentro das facilidades do projeto. O que era set se torna “Instituto de Pesquisa em Física e Tecnologia”, não existem atores e atrizes e sim, Natasha e Olya - atendentes da cantina - membros da KGB, e mesmo Khrzhanovsky deixa a alcunha de diretor para se tornar “O Cabeça do Instituto ou apenas “O Chefe”, por ordens do mesmo. Uma grande equipe de design é responsável por produzir roupas da época, além de estabelecimentos completamente funcionais com comidas enlatadas com a data de validade entre os anos 50 e 60. Além disso, não existe um script ou qualquer direção narrativa, Ilya não desejava extrair a melhor atuação de sua equipe, e sim transportar as pessoas para o passado e filmá-las, em uma espécie de Sinédoque, Nova York (Charlie Kaufman, 2009) da vida real ou até mesmo O Show de Truman (Peter Weir, 1998) stalinista.
DAU. Natasha e DAU. Degeneration somam oito horas e meia de duração e são considerados as portas de entrada do projeto. O primeiro centra a trama na vida de Natasha, mulher de meia idade que comanda uma cantina junto de Olya, uma versão mais jovem de si. As duas parecem viver em uma espécie de constante estudo próximo de personagem; elas têm uma estranha relação mãe-filha em que uma conversa casual se torna abusiva e violenta em um estalar de dedos. Além disso, é constante os abusos que Natasha sofre por parte de oficiais que serve. Um oficial da KGB tira a roupa e a agride sexualmente para forçá-la a espionar um cientista estrangeiro. Em dado momento, no mesmo interrogatório, os abusos e torturas sexuais alcançam altos níveis de desconforto, sobretudo quando se leva em conta que provavelmente estas cenas não são encenadas. Em justificativa ao The Guardian, a produtora executiva defende o projeto dizendo que “ela sabe que pode parar. Todo mundo pararia se ela dissesse que não poderia mais continuar. Mas ela escolheu se colocar naquela situação… quase incendiária. Provavelmente para encontrar algo do outro lado.”
Na cena seguinte, a personagem principal, vivida por Natália Berezhnaya, experimenta um colapso sob o qual lamenta ser forçada a viver pressões dia e noite. “Estou farta desse diretor”, ela grita. Supostamente estaria se referindo ao diretor do instituto, um homem que deve visitá-la no dia seguinte e que age como uma presença invisível mantendo-a na linha. No entanto, não parece que ela esteja se referindo a ficção do filme. Essa cena, mostrada por um longo período, dispõe de uma ambientação sádica. A câmera não está perto o suficiente para revelar a humanidade da personagem e nem longe o bastante para caracterizar um olhar voyeurístico. É uma filmagem que se orgulha das emoções arrancadas daquela mulher de um diretor cuja presença parece ser opressivamente próxima. Ademais, essa impressão se fortalece ao levar em conta que o filme não tem uma conclusão real, além de retratar estas pressões autoritárias que o experimento DAU. criou e assistir aos corpos padecentes destas situação. Não está claro por que a história traumática de Natasha foi dramatizada, além do desejo de Khrzhanovsky de levar seus súditos à submissão emocional. É ele, atrás das câmeras, que é o verdadeiro sujeito de DAU.
É notável o desprezo do diretor pelas personagens mulheres e isso se consuma em Degeneration em que é possível ver alguns personagens do primeiro filme, com exceção das principais, Natasha e sua amiga, mesmo em cenas que se passam na cantina em que elas outrora gerenciavam. Talvez elas tenham sido absorvidas pela máquina soviética. Talvez Khrzhanovsky não se importe tanto com elas para além do sofrimento do primeiro filme. Em vez disso, somos submetidos a testemunhar ainda mais cenas de sexo bêbado e não simuladas, ainda mais ataques sexuais cuja única consensualidade se deve ao fato de se tratar de instituições soviéticas e ainda mais colapsos mentais que quebram a quarta parede, sempre com mulheres os protagonizando.
Este suposto abuso de poder sobre mulheres é anunciado. O diretor tem fama de oferecer incontáveis cargos de assistente para moças que ele sente atração sexual em entrevistas com perguntas íntimas e antiéticas. Uma delas revelou anonimamente a um jornal que foi surpreendida sobre uma batelada de questões sexuais e sua disposição para praticá-las. Além disso, outras alegações caem sobre seus ombros como as que surgiram no jornal francês Le Monde: alguns dos figurantes neonazistas, liderados por Maxim Martsinkevich (que cumpre pena atualmente por agressão) atacaram fisicamente e repetidamente um artista americano chamado Andrew Ondrejcak, que interpretava um psicólogo no set de DAU.
Mesmo antes dessas acusações, quando foi anunciado como parte do Festival de Berlim, vários críticos russos se uniram em uma carta repudiando as escolhas éticas que o projeto tomou, sobretudo Natasha e Degeneration que estavam escalados na competição, e desafiando os realizadores a responder algumas questões acerca da polêmica produção. O principal questionamento foi se não seria possível alcançar os mesmos resultados que DAU. alcançou, porém em um ambiente respeitoso e livre de abusos.
Perguntado se aos 43 anos ele se considerava um gênio o diretor respondeu: “Não definitivamente NÃO. Só sei que tenho uma grande intuição. Mas eu não sou inteligente. Se eu fosse inteligente, nunca faria [DAU] acontecer, porque então começaria a pensar e, se você pensar, não conseguirá ”. De fato, DAU. Natasha e DAU. Degeneration não se parecem filmes que são produtos racionais. Ao invés disso, olhamos para a USSR pelas lentes de um diretor que quer brincar de Deus. Várias pessoas foram colocadas em situações miseráveis em nome da arte e por um suposto olhar real do que foi a união soviética dos anos 1950. Não é difícil concordar com os críticos russos, já que depois de quase dez horas do projeto, o que sobra é um mal estar resultado da incapacidade de se separar o contexto da obra.
DAU. Natasha e DAU. Degeneration estão disponíveis na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Mostra de SP: Dançando no Fim do Mundo (Sibéria)
por Leonardo Amorim
Em 4:44 (2011), filme de Abel Ferrara sobre o último dia do mundo, as falas da conversa final perante o apocalipse ditas por sua esposa são: “E tudo que temos é o agora, e tudo que temos somos nós dois.” Agora em 2020, o alterego de Ferrara, Clint, interpretado por Willem Dafoe, vê-se isolado em um bar no “fim do mundo”; alheio à sociedade, sua família, seu passado e de si. Um homem que vê o tempo marchar contra ele, apesar dele, as elipses que ele não tem coragem de apostar contra, até perceber que essa maneira limitada, racional e linear de ver a realidade será sua ruína.
Já em Sibéria, Clint decide partir em uma jornada para confrontar seus medos, memórias, culpas; uma viagem através da dureza do mundo e do seu interior. Nesse processo, o espaço-tempo se dissolve, seja pelas abstrações, seja pelos saltos temporais, e no intervalo entre cada imagem se denuncia um abismo, uma angústia. É a surpresa de um corte não anunciado que violenta não só ao espectador, mas também o próprio Clint, Willem, Abel, um ataque que faz com que ele perceba que algo está errado, que algo tem que ser buscado, e que faz do gesto cinematográfico do corte um terror iminente.
Uma das cenas mais perturbadoras acontece na caverna onde Clint decide passar a noite, e tem uma série de visões de pessoas doentes, homens com a virilha sangrando, corpos debilitados e violentados, trazendo um aspecto conhecido do cinema de Ferrara. A dureza do explícito, do aspecto gráfico dessas imagens de violência e sexualidade, recheadas de uma culpa católica que se manifesta de forma direta na mutilação dos órgãos sexuais, uma constante penitência. O horror se intensifica na caverna, o som se sobrepõe em gritos de dor, cantorias e pedidos por ajuda, a câmera se movimenta e se permite mergulhar na sensorialidade, no fluxo dessas imagens, desses corpos, até tudo ficar em silêncio e o pai do personagem principal aparecer, interpretado pelo próprio Willem. Uma conversa entre pai e filho em que o plano e contra plano se iniciam e o fluxo quebra. O filme nos leva através de uma abordagem não-linear e sensorial até uma mise-em-scene clássica, e faz de Sibéria um filme que constantemente se reinventa a cada momento, a cada plano.
Essa não é uma experimentação nova para Ferrara, que tem na carreira exemplos como Enigma do Poder, mas em Siberia esse deslocamento se encontra com os momentos finais de 4:44, quando os corpos se dissolvem perante a existência, e tudo se mescla ao digital, ao fim do mundo, o branco da neve que nunca é branco, mas verde, cibernético. Como Rafael Dornellas falou em seu texto para o Estado da Arte, “Ferrara aglutina em sua formação o trânsito entre cultura popular, cultura erudita, cinema experimental e cinema clássico como o coração de seus melhores filmes, realizados com um senso de urgência inabalável.”
Esse senso de urgência se materializa naquilo que Tag Gallagher escreve em seu texto Geometria da Força, que analisa o cinema de Ferrara a partir de aspectos formais da imagem e relaciona o diretor com a escritora Simone Weil, iniciando com a citação da autora que diz: “para definir força: é o fator que transforma qualquer corpo sujeito a ela em coisa... Da primeira propriedade da Força (a habilidade de transformar um ser humano em uma Coisa ao matá-lo) flui outro..., a habilidade de transformar um ser humano em uma Coisa enquanto ele está vivo. Ele está vivo, tem uma alma, e ainda assim é uma Coisa... e para a alma, que casa extraordinária em que ela se encontra!” No entanto, nos últimos anos Ferrara vem repensando a maneira como lida com essa força. As imagens impactantes e suas experiências formais ainda estão aqui: as sobreposições, a gopro por uma caverna cercada pelo desconhecido da escuridão, o gore explícito, os jovens prontos para atacar qualquer coisa, o nascer do sol no centro do mundo. A câmera em steadycam flutua em volta das personagens, ignorante sobre a próxima ação, com os gestos deles alguns segundos à frente dos movimentos dela, que tateiam a encenação com incerteza. Isso salienta a potência dos corpos que se veem em tela, uma imagem aberta para suas possibilidades que encontra nas dobras e contrações dessa casa extraordinária resistências contra o peso do mundo.
Gallagher diz sobre Ferrara que “Prazer, no mundo de seus filmes, geralmente se torna dor, sexo se torna violência, virtude se torna vício; o vencedor é destruído assim como a vítima.” Hoje, as culpas de Abel se veem confrontadas e catalisadas pela experiência da paternidade, da perspectiva de filho e de pai, debatendo-se em suas masculinidades e violências, as que lhe foram infligidas, as que infligiu, “culpa não foi feita para ser compartilhada”; tudo se mescla em Sibéria como parte do processo de individualização desse personagem, de sua implicação consigo mesmo, na busca pelo contato com sua alma.
Em todos os momentos em que Clint confronta a si mesmo, seja no abismo do mundo, seja na caverna ao se ver em seu pai, Ferrara poderia ter filmado os dois Willem ao mesmo tempo, aplicando efeitos especiais. Contudo, ele entende que o corte se faz necessário como mediador nessa conversa, o plano e o contra plano, pois entre um e outro há a quebra com a razão. O arco do personagem atravessa a percepção entre tempo e espaço e alcança uma sensibilidade espiritual que vai em direção ao oriente, ao budismo, entende o carma que a vida traz. A aceitação da culpa, das consequências, ao invés do martírio. Como diz Simone Weil, “nossos pensamentos bloqueiam a graça de Deus, que só pode entrar onde há um vazio.” Ferrara encontra na não-linearidade, na abstração, no abismo das elipses e das imagens, onde não há começo e não há fim, um terror, para então perceber nisso a linguagem da alma.
Em Siberia, Ferrara se movimenta a partir da violência em direção a serenidade, contrariando o movimento de pura degeneração mencionado por Gallagher, e se reencontra com a potência do seu olhar infantil, quando percebe que não sobrou nada, que o mundo ainda é duro e imenso, porém ele é passível de recomeço, pode “ser humano, aproveitar, errar, balançar a bunda, dançar.”
Sibéria está disponível na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Mostra de São Paulo: A Imagem que Falta (Mamãe, Mamãe, Mamãe)
por Lucas Andrade
Embora eu esteja certo que essa discussão já foi levantada diversas vezes no passado, as vezes penso que as pessoas não têm consciência da influência que o cinema latino da virada do século possui na máquina de produção e exibição que anualmente desboca nos festivais e circuitos de arte. Finais abertos, ausência de ênfase, personagens ambíguos, aversão ao cinema de tese, trajetória algo erratica da narrativa, omissão de dados nacionais contextuais, oposição à demanda identitária e política: códigos que em maior ou maior medida se viam nos filmes de Lisandro Alonso, Martin Reitman e Lucrecia Martel quando irromperam no cenário duas décadas atrás e que ainda hoje encontram ecos, de cópias insossas até reconstruções vigorosas do que pode ser considerado um certo cinema latinoamericano, e mais especificamente um cinema argentino, com toda a vagueza e imprecisão que esses termos sugerem.
Digo tudo isso porque foi inevitável trazer essas comparações enquanto eu assistia Mamãe, Mamãe, Mamãe, seja pelas similaridades com obras dos diretores acima ou pelas formas com que a diretora Sol Berruezo Pichon-Riviére torce essa tradição. Uma casa suburbana num espaço e tempo não especificado é palco de uma tragédia familiar, anunciada rapidamente logo nos primeiros segundos: uma criança morre afogada na piscina da tia. O que vemos em seguida é o processo de recuperação dessa família observada tanto do ponto de vista das crianças (sua irmã e as quatro primas) quanto dos adultos (a mãe e a tia) enquanto tentam lidar com essa súbita mudança no tecido familiar; as mães tentando esconder as dores do luto para suas filhas e as filhas tentando compreender esse evento cuja própria natureza ainda lhes escapa a compreensão.
O filme funciona como uma peça de música de câmara: melodias reduzidas que em conjunção constroem complexas harmonias. O mundo explorado por Pichon-Riviére é micro, não se estendendo muito além da casa em que essas mulheres coabitam e a diretora está mais interessada nos climas íntimos dessas relações familiares específicas, a casa como esse palco onde as garotas performam os primeiros registros de uma feminilidade nascente e onde nos colocamos neste estatuto de personagem junto com a câmera, esquadrinhada por entre os cômodos apertados acompanhando esse amadurecimento. Não é à toa que o maior ponto de tensão do filme ocorre justamente quando abandonamos a segurança dos muros domésticos e as personagens se aventuram do lado de fora, não mais protegidas pela familiaridade de seu refúgio doméstico. As quatro paredes constituem um habitat de exploração, e acompanhamos essas garotas enquanto elas tentam preencher o vazio deixado pelo inesperado da tragédia, amadurecendo sob o constante espectro da morte sempre a espreitar por fora do plano.
Mamãe, Mamãe, Mamãe é um filme submerso num estado de constante melancolia, mas ainda assim é um desses filmes raros que nunca permite o trágico da morte eclipsar seu aspecto humano e ao invés explora as infinitas possibilidades de reinvenção através do drama, uma crença nessa constante fabulação e reinvenção como aspecto renovador e porque não restaurador. Pichon-Riviére possui a voracidade típica de uma diretora estreante, mas sua honestidade e curiosidade para com seus personagens é apaixonante a ponto de suas imperfeições ao fim se transformarem nas suas qualidades mais sedutoras. Superar a morte significa não necessariamente esquecê-la, mas construir novas formas de viver através dela, e Mamãe, Mamãe, Mamãe entende isso muito bem.
Mamãe, Mamãe, Mamãe está disponível na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Mostra de São Paulo: Corpos Errantes (Dias)
por Davi Barros
Com Dias, Tsai Ming-liang continua com seu estilo mais contemplativo e ainda menos narrativo de filmes como Jornada ao Oeste, como se todo o "tempo morto" presente desde os primeiros longas se tornassem a sua matéria prima principal, uma espécime de radicalização. Entretanto, ainda é possível ver traços de um Tsai mais "jovem". O primeiro paralelo mais evidente se dá no corpo enfermo de Lee Kang-Sheng aqui e em O Rio, em uma busca por alguma forma de cura ou alívio. O tempo se repete, mas se outrora em seus filmes se tinha uma sensação de que algo possivelmente ruim estava prestes a se desencadear, aqui há uma espécime de relaxamento, os takes longos não parecem mais carregar uma ruptura ou ameaça com o que estava se desenrolando até ali. Não só o tema de enfermidade retorna, assim como os encontros e desencontros, tão presentes em O Buraco e Que Horas São Aí, como se Lee Kang-Sheng e Anong Houngheuan fossem amantes de um filme de Jacques Demy, destinados a se encontrar, separados por uma rua, um caminho diferente, encontro esse que só o cinema é capaz de proporcionar. Mas essas "repetições" não denotam um esvaziamento ou pobreza de ideias, mas sim reformulações da mesma ("É uma repetição, que se repete e se repete. É um lembrete que te diz que isso não é novo, é só algo que acontece novamente. Como a vida em si.").
O tom um tanto documental de Dias está mais perto de filmes dos irmãos Lumière do que de documentários mais recentes, um registro com um certo encanto, mesmo que melancólico, desses corpos em busca de um conforto físico e espiritual, uma forma de capturar a beleza daquele momento fugaz e mundano. Esse lado mais clássico também não é algo novo no cinema de Tsai, e aqui se manifesta também pela caixa de música, que toca o tema de Luzes da Ribalta, como se ele estivesse regredindo ainda mais às raízes do cinema, de Jean-Pierre Léaud/François Truffaut à Charles Chaplin. Aqui a imagem basta por si só, sem a necessidade de legendas ou algum outro meio que torne o filme mais "palatável", com o rosto de Lee Kang-Sheng sendo o suficiente para sustentar todo o projeto, como se ele fosse um ator da era do cinema mudo.
A trajetória dos dois personagens remete levemente a Chantal Akerman em Eu, tu, ele, ela, da casa para o mundo, do mundo para o quarto, jornadas majoritariamente silenciosas movidas por um desejo queer, se encontrar nos braços de outra pessoa. Mas como no longa da própria Chantal, a hora da partida sempre chega, cada um segue seu caminho, talvez para nunca mais se reverem, ou por acaso, como Geneviève e Guy em Os Guarda-Chuvas do Amor, e relembrarem por um momento, mesmo que com um certo amargor, o que se deu entre eles. O cinema de Tsai anda a passos lentos, como o monge da série Walker, em contraste ao meio turbulento no qual ele se encontra, bem como a caixa de música em meio aos barulhos da cidade à noite no fim de Dias, a possibilidade de algo diferente, talvez até mesmo mágico, em meio a rotina solitária daquelas pessoas, parar o mundo por alguns segundos. Mas a vida continua...
Dias está disponível na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Mostra de São Paulo: Diante da Dor dos Outros (Welcome to Chechnya)
por Lucas Andrade
Welcome to Chechnya começa nos pondo no olho do furacão. David Isteev, o Coordenador de Resposta à Crise da Rede de Proteção LGBT russa, recebe um a chamada de uma jovem chechena que preferiu ser chamada de Anya (um dentre vários pseudônimos usados no filme para proteger a identidade dos refugiados). Num tom aflito, ela diz que está sendo chantageada pelo tio em troca de sexo, que ameaça contar para seu pai que ela é lésbica, uma acusação que poderia levar a sua morte. A cena é inquietante não só pela urgência da situação que estamos acompanhando, mas pelo diretor David France estar disposto a criar uma panela de pressão dramática em constante iminência de explosão, uma urgência de olhar que reflete uma espécie de acordo tácito formado entre diretor e espectador: lhe ofereço a verdade e agora o que você vai fazer a respeito disso? Estamos diante de um filme cuja própria existência de certo modo é um milagre, com suas câmeras escondidas e deepfakes preservando a anonimidade dos refugiados nos revelando na própria imagem a sua natureza escusa e clandestina: a fluidez identitária enquanto forma de sobrevivência materializada através da manipulação digital. É um trabalho de contrabando de narrativas silenciadas e que France faz questão de ir até às últimas consequências para trazê-las em primeira mão em toda sua aflição e horror.
Welcome to Chechnya acaba com um link (welcometochechnya.com) que leva para o para o site do documentário, que trata-se apenas uma parte de um grande projeto que visa dar visibilidade e cobrar responsabilidade dos governos mundiais sobre os expurgos relacionados a sexualidade e gênero que tem acontecido na Chechênia e Rússia nos últimos anos. Lá temos acesso não só às informações relativas ao filme mas também como apoiar a evacuação de vítimas, amplificar o protesto internacional e até uma página onde podemos doar diretamente para a rede LGBT russa e o Centro Comunitário de Iniciativas LGBT+ de Moscou, além de Maxim Lapunov e seu caso criminal no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Com tudo isso em jogo, como se critica um filme abertamente aliado a uma certa tradição jornalística ativista sem esbarrar nas armadilhas que seu conteúdo incendiário já nos coloca no primeiro minuto? Pois ao mesmo tempo em que se compreende sua importância enquanto uma obra de denúncia e exposição, também se torna claro que as qualidades do filme desvanecem depois que se esgota essa primeira camada de “necessidade” e “importância”. É difícil esconder a abordagem monotônica e as vezes manipuladora, pendendo entre sentimentos revolta e compaixão que o filme ressalta através da trilha, montagem e até inserção de snuff movies, uma pontuação desnecessária num documentário que já conseguia revelar o impacto do governo desumano de Ramzan Kadyrov e o medo experienciado pela comunidade LGBTQ+ sem precisar recorrer a esses recursos exploratórios.
Por isso não chega a ser surpresa que os momentos mais interessantes do filme são aqueles onde deixamos a urgência dos resgates de lado e foca nos laços de união e comunidade construídos por esses refugiados que ainda vivem escondidos em território russo, e como a opressão se revela na materialidade das suas rotinas. É uma realidade igualmente dura e violenta, mas ao mesmo tempo France abre espaço para discutir o poder desses laços e a importância que eles possuem na vida dessas pessoas expatriadas, algo que poderia facilmente fornecer um documentário por si só, embora talvez não tão chamativo ou “urgente” quanto o que temos aqui.
É evidente que para muitos o poder de choque do documentário não se perca com o tempo, mas também é questionável se os horrores mostrados por France ajudam grande coisa além do seu propósito imediato e se ele existe aqui alguma meia-vida duradoura para além desse choque inicial. Embora seja admirável as intenções de Welcome to Chechnya em primeiro momento, é de se pensar o quanto ele está se perdendo na minha memória e que agora se encontra reduzido ao seu estado primordial de matéria informativa. Para uma causa urgente e necessária é inegável, mas ainda assim pouco além de um documento: quando as imagens se tornam artigos necessários em prol de uma mensagem, o que sobra delas infelizmente é material descartável, não importa de quantas boas intenções elas sejam feitas.
Welcome To Chechnya está disponível na 44º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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O Luto e as Transformações
por Lucas Andrade
Beatriz, também apelidada de Triz, se apaixona por Henrique. Ela tem apenas 21 anos quando se casam. Henrique é marinheiro, e por isso passa longos períodos longe de casa, enquanto sua esposa fica em Portugal cuidando dos seus 6 filhos. Um dia, ela morre inesperadamente. Essa é a ideia que da início á Metamorfose dos Pássaros, estreia da diretora portuguesa Catarina Vasconcelos, que embora pareça ser material de um clássico drama familiar é na verdade um documentário sobre a família da própria diretora. Por meio das cartas trocadas durante anos entre Beatriz e Henrique, bem como uma boa quantidade de invenção, Catarina tece uma rica tapeçaria familiar, construindo uma ponte entre sua avó e sua mãe, que também morreu de forma inesperada e que a deixou, assim como seu pai, num estado de atordoamento cuja única forma de reparação parece ser através das imagens.
A Metamorfose dos Pássaros funciona então como uma forma de terapia familiar, onde pai e filha procuram formas de dar vazão aos sentimentos de luto compartilhados ao mesmo tempo em que reconstituem as memórias da falecida Beatriz. É uma obra rica, visualmente e textualmente, com uma prosa vibrante que constantemente nos lembra dos textos de escritoras como Virginia Wolf, Clarice Lispector e Hilda Hilst, conjurando através de um fluxo ininterrupto de imagens e rememorações o retrato de uma mulher que aos poucos se perdia entre os recantos da história familiar.
Embora se classifique como documentário, se torna claro desde os primeiros minutos que a Metamorfose dos Pássaros é uma peça distinta dentro do cenário do gênero. Os seus primos mais próximos talvez sejam as obras ensaísticas que proliferaram no circuito brasileiro da década passada, como Os Dias com Ele de Maria Clara Escobar e Elena de Petra Costa, ambos também feitos por mulheres que através do cinema procuraram analisar os complicados sentimentos do luto e seus efeitos naqueles ao redor. Mas enquanto tais documentários se utilizavam de dispositivos conhecidos do gênero como entrevistas e utilização de imagens de arquivo, Catarina Vasconcelos mergulha seus pés na auto ficção, procurando construir não apenas uma mera reconstituição da memória mas sim peças evocativas de um passado que lhe é impossível acessar de outra forma.
O filme abraça seu núcleo íntimo e cujos momentos de maior força emergem justamente de quando ele se volta para dentro de si, se construindo em torno de uma noção de domesticidade e de pequenos momentos, como uma série de naturezas mortas que por um momento ganham vida própria: a potência da imagem se revela justamente nos seus momentos de composta simplicidade. A arte como entalhe de um tempo e de um espaço específicos que de outra forma seriam esquecidos pela História, e esse parece ser a pedra angular com qual Catarina Vasconcelos constrói seu filme: trazer Beatriz de volta á vida através do cinema. O esquecimento não deixa de ser uma espécie de segunda morte, e a Metamorfose dos Pássaros é um belíssimo testamento não apenas á passagem do tempo, e o que guardamos e perdemos com os anos, mas as nossas tentativas de preservar a memória daqueles que não queremos deixar.
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