"Às vezes não acredito no que estou vendo. Às vezes não entendo. Não deve dar certo." ��
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Ainda sobre bolsonaristas
Há tempos ando com vontade de comprar uma mesa de jogar xadrez, das que vêm com peças em tamanho e peso oficiais. Seria um item de decoração que me deixaria satisfeito, podendo até servir para eventual jogo com um amigo que me visitasse, embora seja difícil que eu receba alguém. Nos últimos dez anos não lembro de ninguém que tenha me visitado. Das pessoas que entraram em meu apartamento, foi para fazer algum pequeno reparo ou faxina como diarista. E só, que eu me lembre.
Existe uma loja bem pertinho daqui, a menos de cem metros, que vende esse tipo de mesa, bem como centenas de outros itens feitos principalmente em madeira, com reputação de boa qualidade.
O problema é que o dono mandou colocar uma bandeira do Brasil na porta de entrada, que está lá desde antes do 7 de setembro de 2021, para sinalizar que é um dos apoiadores obstinados de Bolsonaro. Também costuma vestir roupas com estampas militarizadas, para deixar ainda mais claro.
Caso resolva mesmo comprar a mesa, com certeza vou buscar por outro fornecedor que tenha preço e prazo de entrega razoáveis. Permanecendo, assim, no zero com meu vizinho, sem saber se o estou boicotando, ou se eu seria um cliente indesejado para seus produtos. Quem sabe as duas coisas e mais um pouco.
O que me leva a falar de um amigo dos mais antigos que tenho, ou tive. Na verdade, tenho pouquíssimos amigos, a rigor, nenhum. Mas esta é, ou foi, uma amizade longeva o suficiente para fazer frente às grandes amizades daqueles que têm muitos amigos.
Pois este amigo é outro bolsonarista.
O responsável pela duração da amizade sempre foi ele. Nos conhecemos no último ano do colégio e seria natural uma separação após o fim do curso, cada qual seguindo seu caminho para a faculdade ou para o trabalho. Mas ele continuou aparecendo em minha casa e convidando para sua casa, apesar de morarmos longe um do outro.
Fizemos muita coisa juntos. Uma delas foi transportar uma geladeira por três quilômetros usando apenas nossas bicicletas amarradas uma à outra, num trajeto que incluía uma descida íngreme, só esperando lá embaixo. A coisa esteve perto de não dar certo o tempo todo. Outra foi irmos a um baile do chopp em outra cidade, daqueles em que se bebe quanto quiser e puder, bastando ter comprado o caneco. Tomamos o porre que meu fígado de 18 anos e que o fígado dele, de 22, permitiram. E corremos sério risco de apanhar bastante ao mexer com umas moças, sendo nós uns moços de fora. Não percebi direito pela tonteira, mas acho que saímos meio que fugidos.
Uns dois anos mais tarde ele voltou para o Rio Grande do Sul, sua terra natal. Passou, então, a mandar cartas todo mês e eu, que escrevo até de graça, sempre respondi. Para se ver como a coisa é antiga: escrevíamos cartas, coisa do tempo do Ariri Pistola.
Naquele período em que morou distante, numas férias, apareceu em casa para me visitar, sem aviso, como se fosse um parente a quem se é obrigado a acolher. Mas este sempre foi o seu jeito, sempre soube se intrometer como ninguém, na vida de todos que o cercaram. O que, para alguém reservado como eu - muito mais reservado que a média das pessoas - poderia ter sido fatal em muitos momentos.
Pois bem. Durante as décadas que passaram ele acabou voltando a Quatro Trevos, ficando aqui por uns quinze anos e dois endereços diferentes, época em que começou a prosperar. Depois novamente retornou ao Rio Grande, e depois novamente retornou a Quatro Trevos, época em que começou a falir. E voltou para o Rio Grande, até agora definitivamente.
Poderia suscitar alguns momentos de sua biografia que certamente se conciliam seu bolsonarismo. Mas é algo que prefiro deixar de fazer, também tenho o que gostaria de ver omitido no dia do juízo final.
Não sei se ele acha que a Lua é plana, parece que não. Mas não aceita vacinas, acha que as eleições foram roubadas, suspeita de um plano para matar Bolsonaro. Andou conhecendo alguns novos amigos nos últimos tempos, pela internet, que pensam como ele. Por aí.
Está lá, com muito pouco dinheiro, atirando para todos os lados (felizmente não há ninguém por perto).
Por mim não consigo ver ideia que preste no compêndio bolsonarista. Se perguntarem a um bolsonarista o que é um brasileiro, sua resposta vai excluir mais de metade da população brasileira. Basta imaginar o que querem dizer quando declaram que supremo é o povo.
Mas a linha que eu traçaria no chão, que não deve ser ultrapassada, é a questão democrática. Sempre será inaceitável resolver eleição na bala, chamar as forças armadas para impor um governante, desacreditar eleições que despejaram uma caldeirada de bolsonaristas no Congresso.
Quanto ao meu velho amigo, de minha parte a amizade se encerrou no dia em que me encaminhou um vídeo do Alexandre Garcia. Se me pedisse dinheiro emprestado e nunca mais pagasse, talvez fosse jogo jogado. Mas ter enviado aquele apostema não tem perdão, nunca terá.
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Respondendo aos comentários dos leitores
Volta e meia me passa pela cabeça fazer uma resenha em que possa responder aos comentários dos leitores. Nunca me foi possível, pela completa ausência de comentários e, provável e consequentemente, de leitores.
A solução que acabo de encontrar é responder comentários dirigidos a outros comentaristas e colunistas da imprensa. Não parece muito boa, mas pode dar certo. É mais ou menos como plagiar o leitor, para depois detoná-lo.
Para correr menos riscos não vou identificar diretamente os escribas e leitores. O assunto se identifica por si só.
“Que texto formoso! E que interessante descobrir que a palavra avião vem de ave grande.”
Minha Resposta: Faço minhas essas palavras.
“Não sei se sou alcoólatra ou não, mas tomo diária e religiosamente duas doses de cachaça ou de whisky, duas taças de vinho no almoço e duas cervejas à noite. Bebo sim, estou vivendo! E viva a vida!!!”
Minha Resposta: Escreveu essa depois de qual?
“A Decisão foi torpe, mísero, nojento, baixo, indigno, hediondo, repugnante, desprezível, esquálido, vil, nauseabundo, asqueroso, ignominioso, ignóbil, miserável, sujo, indecente, indecoroso, infame, reles, contemptível, sórdido, imundo, pífio, pulha, repelente, desprezível, desonesto, obsceno.”
Minha Resposta: Procure organizar melhor suas ideias, talvez colocá-las em ordem alfabética. Nem a Decisão não concorda, em gênero.
“Você tem o direito de acreditar no que você quiser. Mas isso não tem nenhum compromisso com a realidade.”
Minha Resposta: Parece profundo, não vá cair aí dentro.
“(respondendo a outra leitora) Paula, você descreveu perfeitamente a direita agro. Em toda sua cafonice – na moda, na “cultura” e no modo de ver o outro...”
Minha Resposta: Crentes e militares estão na fila, à direita. Também trouxeram seu modo de ver o outro.
“Estude, mulher, e tire notas boas. Destaque-se pela inteligência. Não está escrito na testa de ninguém a religião que frequenta. Universidade não é lugar pra ficar de tró-ló-ló com ninguém. Eu sou preto, veado, católico, e nasci pobre de marré deci. Se não fosse a universidade pública, eu tava no sal. Fé em Deus, boca calada e pé ligeiro. Aprendi isso com a minha mãe centenária. Pare de alardear religião e seja feliz com quem lhe quer bem.” (O conselho do leitor é para uma socióloga que faz mestrado em universidade federal, que se disse discriminada por sua cor e religião. É preta e evangélica.)
Minha Resposta: O conflito deve ser entre sociologia e religião, ambas não admitem ser contrariadas. Tentar explicar uma pela outra, mas nem com doutorado.
“Primeiro, Toffoli era advogado do PT e foi escolhido por Lula para o STF com o claro objetivo de defender os interesses do partido e dar proteção aos seus inúmeros corruptos. Segundo, Lula foi condenado com base em provas (materiais e testemunhais), delações de companheiros de crime, em três instâncias e por nove juízes. Isso elimina qualquer hipótese de injustiça e menos ainda de perseguição. Lula é um corrupto contumaz.”
Minha Resposta: Primeiro: são poucos os juristas que têm apreço pela atuação de Toffoli. Já decidiu a favor e contra Lula, errando nas duas situações. Segundo: quanto a provas, o pouco que consta no processo é insuficiente para condenar um ex-presidente à prisão. Não encontraram com Lula nenhum real indevido. Também, pelo que se vê publicamente, depois de conhecidas as revelações da Vaza Jato, é improvável que todos os oito juízes que assinaram a condenação mantenham a mesmo voto. Oito, porque um dos ministros de 5ª Turma do STJ se declarou impedido e não participou do julgamento.
Leitores, por ordem de entrada:
Ricardo Batista, FSP; Sergio Vicentin, FSP; Max Morel, FSP; Marcus Vinicius Correa Leite, FSP; Silvia Klein de Barros, FSP; Raimundo Carvalho, FSP; Jorge Rodrigues, FSP
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Confissões
Na maior parte das vezes as pessoas não conseguem ser aquilo que sonharam quando crianças. Heróis, gênios e bem-sucedidos são pequena minoria. A quase totalidade de nós tem que se contentar em aprender a gostar daquilo que em que acabou se tornando, nem que seja pelo dinheiro.
Não tenho como explicar, nem para mim mesmo, como acabei virando padre. Mas hoje sou um modesto e desalumiado pároco aqui num cantinho de Quatro Trevos, ondem constam entre meia e uma dúzia de fiéis, com algum exagero meu nessa conta.
Porém, nem tudo são ossos no ofício, nem tudo tenho que disfarçar, e que Deus não me ouça nem me leia.
Ouvir confissões é das partes que às vezes fazem valer a pena. Claro que quase sempre a confissão é da mesma fiel confessando os mesmos pecados. E a maioria dos pecados que aparecem são os confessáveis, o que não tem lá muita graça.
- Padre, usei canela vencida para preparar o bolo da Dona Tércia. Graças a Deus não aconteceu nada, mas eu preciso confessar, foi preguiça minha de ir até a venda comprar canela nova.
- A senhora poderia usar aquela canela preta, que vem em raminhos...
- Padre, esse é o cravo.
“essa foi na ferradura, pensei comigo...” Acontece.
Às vezes vale a pena:
“Padre, nessa última viagem que fiz a Curitiba, no mês passado, acabei não resistindo.
Juro que não sou homossexual, não me sinto assim. Mas de noite, já no começo da madrugada, saí do hotel de carro, e dei algumas voltas no centro da cidade. Sabia que não devia ir, mas fui até aquela praça. Onde uns travestis fazem ponto. Passei três vezes ali na frente, na quarta vez parei.
O diabo sabe fazer suas armadilhas. Quem veio falar comigo foi uma das loiras mais bonitas que já na vida. Era muuito bonita.”
Pausa.
“Pequei, padre...”
- Pagou muito caro? – perguntei, afetando a severidade que me foi possível. Ainda assim o fiel pareceu se surpreender com minha pergunta. Fiquei em silêncio, deixando-o à vontade para não responder.
“Não chegou a ser um ato sexual, foi pouco dinheiro. Ela fez com a mão...”
Bom, se respondeu talvez eu conseguisse descobrir mais. Mas de forma nenhuma poderia ser direto.
- E havia alguma igreja por perto?
- Sim, havia.
Pausa.
- Aquela igreja na praça Ouvidor Pardinho.
Bingo, geolocalizei! – pensei.
O que sempre posso fazer é prescrever algumas dezenas de rezas, às vezes centenas. Jamais, por ética minha, tentei identificar quanto tal ou qual confidente acabou deixando na caixinha de ofertas.
Às vezes dá para comprar cravo e canela, às vezes para algo mais.
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Indo embora
Passaram-se quase três meses sem que eu tenha escrito uma linha por aqui. Não foram férias, nem reflexo da falta de leitores.
Recebi o resultado de uma broncoscopia, uma espécie de endoscopia feita até a entrada dos pulmões, que apontou a existência de um provável carcinoma. Consultando no Google, um carcinoma nada menos é que câncer.
O médico que pediu o exame remeteu-me a um cirurgião do tórax, dizendo para lhe mandar notícias mais tarde, se pudesse. (penso que ficaria melhor usar encaminhou ao invés de remeteu, mas acho que já estou me sentindo meio sem volta.)
O cirurgião me atendeu na mais longa das consultas médicas que eu tive na vida. Até então, pois as consultas que vieram depois também foram muito demoradas. Das que o médico aconselha que compareça acompanhado de um familiar, para ajudar a lembrar do que foi dito. Ou talvez para outras finalidades, não estimo quais.
Foram pedidos novos exames, mais detalhados, não sei se é o caso de entrar nos detalhes. Posso dizer que eles afastaram a ideia de uma cirurgia para extirpar o tumor, pois existem já algumas metástases.
Então é isso.
Sinto-me sentado na sala de espera do Pedrão. A cadeira não é confortável, mas não tenho pressa. Aproveito para escrever estas coisas, parece que sobra ainda alguma vaidade de escrever. Não sei se é o caso de ter tempo sobrando ou do tempo que me resta.
Pode ser que volte ao assunto, falar de como sinto a ocasião. Caso não me inspire a falar mais, recomendo aos interessados o romance “Malone Morre”, de Samuel Becket. Becket é inclemente.
Mas não li o livro, apenas tenho um exemplar. Como também tenho um exemplar de “Esperando Godot”, texto de Becket para teatro que, este sim, li diversas vezes. Imagino que o desamparo esteja nas duas obras, é formidável.
De minha parte, só espero que nos meus momentos de maior desespero, naqueles que sejam ou que pareçam ser os terminais, que me mantenha firme na intensão de buscar consolo em São Nelsinho, santo protetor dos improcedentes, ou, quando menos, dos que prefeririam sair à francesa.
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Resumo de cachorro
Hoje não tenho animais de estimação. Há uma ou outra mosca que tenta dar vida ao meu apartamento, mas sempre que vejo uma logo procuro refrescá-la com alguns jatos de inseticida, para depois recolher com o aspirador, em cujo compartimento de pó ela pode descansar com tranquilidade. Assim não precisa ficar voando à toa, perdendo tempo.
Por muitos anos tive um pinscher. Ele chegou perto de completar dezoito anos, o que para os cães é uma vida muito longa. Na Wikipédia, a primeira frase para conceituar a raça diz que é uma categoria de cães das mais violentas do mundo, o que me pareceu exagerado. Seguindo na leitura aprendi que o temível e soberbo Dobermann está incluído na categoria, o que trouxe algum sentido. O meu era um pinscher nº 1, variedade que pode ser muito bem definida com apenas uma palavra, bostinha. É ridiculamente pequeno para o tamanho da encrenca que parece querer encontrar. Se pesar mais que três quilos, é porque acabou de comer.
Apesar dos nervos sempre à flor dos pelos, é um doce de pessoa, excelente amigo.
Uma vez, na época de férias, ele ficou por mais de quinze dias na casa de praia do meu cunhado, sem ver ninguém da família. Quando finalmente chegamos fez aquela festa, veio correndo, pulando, se agarrou nas minhas pernas e falou: que saudade, muita saudade...! Pelo que me lembro, aquela foi a única vez em que falou. Outra vez teria sido quando já estava doente, próximo de morrer, mas foram apenas grunhidos, já não conseguia nem latir muito bem. Na verdade, toda ternura que sentimos tem sua ponta de tristeza, de saber que um dia iremos perder o que tanto benqueremos.
Escolhi seu nome como Willlson, assim mesmo, com a letra L repetida três vezes, para driblar eventual constrangimento quando surgisse alguém, ser humano, com o mesmo nome. Também para que ninguém pronunciasse seu nome como um simples Wilson. Era Willlson.
Porém, para o resto da família e em todos os casos em que alguém perguntasse, o nome de nosso pinscher era Koda, perfeitamente decente para um pet. Escolhido pela minha filha, que tem a cabeça no lugar.
Naquela mesma casa de praia, às vezes passava pela frente um ou outro cachorro vadio, seguindo seu caminho. Ao vê-los, Willlson, como todo cachorro que está do lado de dentro da cerca, latia furiosamente para eles. Mas não sem antes subir para o andar superior do sobrado e se posicionar na varanda. Talvez uma forma de compensar seu tamanho insignificante, ou de garantir uma distância segura, em caso de revide. Alguns dizem que o cão assume vários dos principais traços da personalidade do dono, mas não sei se este é o caso. Sou dos que jamais hesitariam em fugir, se ajuda a explicar.
Após sua morte ele foi cremado, recebeu mesmo um pequeno funeral, o mínimo que poderíamos fazer pela sua vida dedicada inteiramente à nossa família. Ainda hoje, mais de um ano depois, algumas vezes em que entro no apartamento da minha ex-mulher, tenho a impressão de que o Koda vai sair de sua casinha para me receber, querendo abraço, colo, passeio na rua.
Recebemos uma caixa com as cinzas dele. Resolvemos que seriam jogadas perto do mar, na próxima vez que fôssemos à praia. Imaginamos que foi lá que viveu seus momentos mais felizes, com um grande quintal para se sentir mais bicho.
Mas as cinzas foram esquecidas em casa. Lá ainda jazem.
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Blasfêmias
Ao escrever sempre começo por rodeios, passo por algumas ressalvas (que seriam várias se meus textos não fossem curtos), e quando chego ao ponto, parece-me que não é o lugar em que deveria chegar. Se tivesse um editor chefe, ele provavelmente me aconselharia a ser mais assertivo. E seria bem assertivo ao me aconselhar: “se ficar na conversa mole é melhor procurar outro emprego”.
“É que não tenho certezas para afirmar qualquer coisa”, defendo-me.
Só os mal intencionados proclamam suas verdades por aí, e são tolos os que acreditam nelas. Se alguém tiver mais que duas ou três certezas na vida, é só por Deus.
Podem dizer que uma Maserati é um carro muito melhor que um Fiat Uno, mas consigo arranjar algumas dúvidas. A começar pelo preço, muito mais confortável no Fiat Uno. Além do que, dá para dirigir com os vidros baixados, mesmo trafegando pelo Capão Redondo.
Tendo dito isso, estou sendo transferido para a seção de meteorologia, onde os leitores não esperam muita certeza. Começo na semana que vem.
Estive, acidentalmente, na Marcha para Jesus, aqui em Quatro Trevos. Saí para uma caminhada e a festividade estava acontecendo no centro da cidade, passando pela Avenida Marechal Deodoro, indo na direção da Praça Tira Dentes.
Foi um desfile de grandes trios elétricos, deu para ouvir a música uns sete quarteirões antes de chegar. Músicas com pegada jovem, bem dançáveis, com letras de glórias cristãs. Enquanto esperava para atravessar a Marechal, diante de um trio elétrico, deu para sentir o chão tremer no ritmo do som. Como estava com tosse, senti as batidas martelando no meu peito. Me senti dançando. E, por instantes, maravilhado com aquela música contagiante, feita para converter.
No alto do trio tentei identificar a cantora. Vi uma moça segurando um microfone, no meio da galera que dançava, mas não tive certeza se era ela quem cantava ou se a música era em playback (para se ver como este que vos fala, como repórter, é incompetente).
A multidão que acompanhava era grande, significativa, mas não a mais gigantesca. Pela quantidade de trios elétricos, pelo volume do som, a impressão é que o desfile foi preparado para mais gente do que havia. Impressão minha, porque pude caminhar pelas ruas próximas com mais facilidade do que esperava. Mas, sem dúvida, um evento de grandes proporções, quase do tamanho de um carnaval.
E, já perto do fim, o que me leva a falar no assunto: algumas presenças inapropriadas, ainda que possivelmente bem-vindas pelo clero protestante. Primeiro, estavam sendo vendidos por camelôs uns panos, camisetas e souvenirs com mensagens da igreja e até bíblicas, mas estampados em camuflagem militar. Ganha uma caixa de munição quem conseguir explicar o que pode existir de salutar na relação entre a benevolência cristã e o espírito bélico de quaisquer forças armadas. A munição será de verdade, para incentivar.
Também havia mais pessoas do que normalmente se vê usando roupas com os mesmos motivos militares. Roupa camuflada para mostrar fé, se é que dá para entender.
E a presença, menos esperada por este observador, de um pequeno batalhão de motociclistas, vestidos em couro preto, conduzindo suas tradicionais e gordas motocicletas. Não faltou nem alguém com bandeirinhas do Brasil espetadas no guidão. E havia ao menos dois com triciclos, aquele veículo que não serve bem como moto e nem como carro, serve mais para chamar a atenção. Procurei alguma moto com “Presente de Deus” escrito, mas não encontrei.
Diria que no cruzamento entre política e religião, a política fica com os votos e a religião divide a culpa. Inegável que ambos enriquecem, e não no sentido abstrato.
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Inteligência artificial e caranguejos
O que você está lendo é um texto natural e orgânico, produzido sem interferência de Inteligência Artificial, ainda que me permita o uso de um dicionário de sinônimos e de pesquisas feitas no Google, sem ir muito longe, mantendo os pés no chão (liso). É como um pequeno pepino, cultivado sem agrotóxicos, com pragas por perto.
A questão é saber para onde a IA nos levará, se é que nos levará consigo.
As credenciais que tenho para me meter na discussão não são as que me autorizariam, mas não tenho outras. Por alguns anos atuei numa subsecretaria do Ministério da Ciência e do Turismo, meu cargo era o de Assessor para Assuntos para lá de Internacionais. Atuei e ninguém viu, mas tenho contracheques para provar
Lá pelo fim do século passado, anos 80/90, estudiosos de uma universidade respeitada apresentaram um estudo de como seria o corpo humano no futuro, após toda a evolução tecnológica que veio e viria para poupar trabalho. Eram parafusadeiras para usar sem nenhuma força, vidros elétricos que baixam e levantam sozinhos, robôs em fábricas de carros, controle remoto para televisão - na época a Alexa ainda nem era um projeto. Sem mais necessidade de fazer esforço físico, usando o tempo só para pensar e criar, o corpo das pessoas se atrofiaria, reduzido em massa corporal, enquanto a cabeça tenderia a crescer. Isso foi publicado na imprensa e andou em salas de aula. Há profecias similares, todas com bases científicas e raciocínios que fazem certo sentido.
O que não entrou na conta, até agora, foi a vaidade. Por enquanto as pessoas estão ficando mais altas e mais saradas. O que mais se encontra por aí são academias de ginástica e lojas de suplementos alimentares, para que cada um tente conseguir o corpo que pediu a Deus, que é desumano.
Em menos de seis meses a IA se tornou a maior das ameaças. Até o ano passado era preciso usar muito Ctrl C Ctrl V, ou pagar a terceiros inidôneos, para se obter um bom TCC sem passar pela fase da elaboração. Agora é só fazer as perguntas mais ou menos certas a algum dos “engines” concorrentes entre si, e receber o trabalho pronto. Se quiser aguardar até a semana que vem, o resultado provavelmente será melhor, a IA não para de evoluir.
Vendo como funciona e percebendo como pode funcionar, as possibilidades quase não têm limites. E são altamente disruptivas para o mundo do trabalho, que é de onde cada um tira a sua sobrevivência. Os profissionais que tenho acompanhado mais de perto são os escritores e redatores, que sentem-se como se estivessem prestes a ver um livro ser escrito em menos de um minuto, com a literácia de um Machado de Assis, no idioma que se quiser.
Mas pode aparecer um médico clínico geral, profundo em qualquer especialidade, capaz de cirurgias perfeitas, que pode colocar seus colegas humanos na posição de enfermeiros, para acompanharem o tratamento, se necessário. Ou um engenheiro que finaliza o cálculo estrutural de um prédio de 100 andares ainda hoje, para que amanhã cedo os humanos comecem a carregar os tijolos. E talvez ainda apareça um contador que domine a legislação tributária de todos os países, capaz de perceber onde ela funciona de fato e onde só faz de conta (trocadilho, sem querer).
Com certeza erro e exagero nas minhas predições toscas. Entre várias outras que andam sendo feitas, chamou-me a atenção uma, predizendo que as profissões menos afetadas serão as executoras das tarefas: que recolhem o lixo, que limpam o escritório, que fazem o café e a comida, que consertam o carro, que cortam a grama, que pintam a parede, nunca associadas aos melhores salários. E que as profissões mais afetadas serão aquelas exercidas pelas classes de renda média e de renda meio alta. O que cria um nó meio difícil de desamarrar: que será das economias sem os consumidores que se hospedam em hotéis 3 e 4 estrelas, que alugam casa de veraneio, que compram apartamento novo de 3 quartos em 240 prestações, que embarcam em cruzeiro que vai de Santos a Salvador?
É ponto de interrogação que fica sobre a mesa, ao lado de um pepino. Não sei.
O fato é que a IA é imparável, na velocidade em que resolver acontecer. Houve um manifesto que interveio por uma trégua de pelo menos uns seis meses no desenvolvimento da coisa, proposto por quem está lá no Vale do Silício, ou muito ligado aos negócios de lá. Por si só, é inaudito. Mas é difícil que um país ou que uma big tech venham a se conter enquanto outros podem avançar à sua frente. Quem conseguir seguir dominando melhor a IA, vai dando as cartas e explicando as regras do jogo.
É da natureza humana, pelo menos enquanto ela pesar nas decisões.
Continua...
(não o texto, continua todo o resto)
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2123, mais ou menos
Meu genro manda notícias de Marte.
Sou do tempo em que, quando se falava numa pessoa que não estava sabendo dos últimos acontecimentos importantes, dizia-se que ela havia estado em Marte. Ou de quando alguém estava muito distraído, sem prestar atenção na conversa, dizia-se que estava no mundo da Lua.
O Dà Wèi me comunica que vou ter uma tataraneta. Vejam só, uma marciana na família!
Meu genro é daqueles que têm o nome em mandarim, vertido em fonemas abrasileirados. É um tipo de nome comum na geração dos que nasceram logo antes da Terceira Grande Guerra. Eu, nascido em 2012, não precisei fazer quase nenhuma alteração no meu nome. Ficou Roberto? mesmo, só precisou colocar um ponto de interrogação no final para interagir com os sistemas oficiais, sem maior problema.
Por mim, nem sei se tataraneto ainda é parte da família. É um parentesco tão distante que já não emociona tanto. Mas, se ainda tenho alguma importância do ponto de vista deles, vou saber se mandarem uma passagem para visitá-los. Nunca estive em Marte, é uma oportunidade para conhecer.
Ele é engenheiro contábil, deve estar ganhando muito bem. Sei pelo Noticiário que as transações comerciais entre os dois planetas estão cada vez mais complexas, cheias de comissões no meio do caminho, sujeitas a muita pirataria. Problema muito natural depois que o Brasil se tornou a maior potência mundial. A arquitetura da contabilidade criativa é quase infinita.
Por enquanto, lá em Marte o grosso da população está concentrado no que seria a linha do Equador, onde a temperatura é mais amena. Mas na próxima década devem seguir na direção dos polos, onde já existem algumas colônias experimentais. Estão criando inibidores de temperatura externa cada vez mais fortes.
E falando nisso, meu inibidor está com problema. Nas últimas noites a temperatura real aqui em Curitiba tem passado dos 40° C, e comecei a sentir um pouco desse calor. Por sorte tenho um ar-condicionado antigo que ainda funciona e que por enquanto está resolvendo. Tentei resolver on line, mas parece que vão ter que mexer na minha placa mãe. Estou esperando que mandem o agendamento para a minha consciência.
Por sorte tenho um plano de saúde razoável. Há gente por aí que nem tem placa mãe, mesmo no Brasil.
É desolador saber o que acontece nas regiões das Grandes Cicatrizes. Os chineses restantes estão vivendo na Sibéria, acomodados ao longo do Lago Baikal, juntamente com os descendentes dos russos. Parece que se aquecem com velhos climatizadores à gás, o que os obriga a permanecer em ambientes fechados. Isso num inverno que dura treze meses, redimensionado após a Terceira Guerra. E pensar que gente da minha geração ainda viu eles construírem os prédios mais altos do mundo em cidades que foram as maiores do mundo, para tê-los destruídos em poucos meses, dando lugar a cicatrizes no solo, terras para as quais ninguém poderá voltar tão cedo.
E parece que aconteceu mais um terremoto na Califórnia, desta vez bem perto de onde era Los Angeles. Aconteceram dois ou três a cada década, nos últimos trinta anos, mas nunca chegaram a fazer alguma vítima. Praticamente não existem moradores por lá. A região ainda não chegou a ser uma cicatriz, continua ferida aberta.
Recebo mensagem da minha filha, casada com o Dà Wèi. Diz: “a mãe te achou ridículo com esse visual emulado de Cristiano Ronaldo, parece com quando faziam harmonização facial. E você só tem 1,72 de altura.” Vi que deixei habilitada a função para me visualizarem durante as mensagens. Desabilitei.
E liguei o botão do foda-se, direito de quem há muito passou dos cem anos, para abusar.
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Dispensando leitores
Dia desses – ou daqueles, já que faz um bom tempo – li o Gregório Duvivier comentando, na sua coluna na Folha de S. Paulo, uma fotografia do ex-presidente João Figueiredo – que Deus o tenha em maus lençóis, conforme seus desejos. Na foto o ex-presidente aparece só de sunga e tênis, se exercitando. O comentário era que ele bem que deveria nos poupar do espetáculo desanimador de sua aparência, assim tão exposta.
Cá comigo, não achei que ele estivesse tão mal. Já corri muitas vezes na praia com o mesmo figurino, e acho que meu visual ficava mais próximo do adjetivo que o Gregório usou: lamentável, se não me engano. Pior era quando eu resolvia correr usando um calção roxo, que ainda tenho e que parece uma cueca samba-canção. A única vantagem era que ninguém tinha um calção igual.
Então, tendo baleado minha reputação, acho que tenho uns créditos para falar mal dos outros. Nada melhor para aquecer uma conversa, desde que os alvos não estejam por perto. Ou ainda melhor, que estejam por perto mas não escutem.
Assim como quem diz, “não olhe agora, mas aquela garota de blusa azul que está atrás de você, ela matou os pais. De desgosto”. Pois então:
Os ciclistas. Estão sempre trafegando em lugar errado. Ou estão na calçada, lugar natural dos pedestres, indo devagar demais (quando não conseguem manter a linha reta) ou rápido demais (quando põem em risco a integridade física, própria e alheia). Lembrando que não existe velocidade certa em caminho errado.
Ou estão no leito das avenidas, demonstrando como um veículo tão pequeno pode atrapalhar meia centena de carros. Fica parecendo casa onde tem porquinho-da-índia, em que o dono pede cuidado para não pisar em cima. Não menos piores são os capacetes que os ciclistas mais cuidadosos se obrigam a usar, não há como ficar mais bonito usando aquela coisa.
E que dizer dos que andam de motocicleta? Primeiramente é aconselhável separá-los entre motoqueiros e motociclistas. Os motoqueiros são mais o estilo do motoboy, cuja característica dominante é o menor respeito possível às leis de trânsito. Se bem que generalizar é um pouco indevido, porque no grupo há mais uma diferença, não muito difícil de perceber: pela forma como conduzem a moto, é possível saber quem já se quebrou todo e quem ainda vai se quebrar.
Já os motociclistas se diferenciam por usar motos mais poderosas, exuberantes, cheias de brilhos e detalhes . O típico entre eles é o cidadão que ganhou dinheiro, que já está na metade posterior da meia idade, querendo mostrar que ainda é novo e tem queda por aventuras. Foi revelador que muitos deles, bem provável que a maioria, se fizeram participantes e fãs nas motociatas em apoio a Bolsonaro. Deram uma arruinada na imagem, irremediável. É de se perguntar por que o cidadão compra uma moto veloz para se mostrar atrasado, falando das ideias.
Tão difíceis de entender quanto os motociclistas, são aqueles que fazem do UFC e do MMA sucessos tão grandes. Não sou dos que reprovam lutas esportivas, até sou apreciador de boxe. Mas apenas apreciador; meus punhos de alface, meus reflexos de sócio do Clube dos Sem Pressa e minha coragem na vazante impedem que eu sequer sonhe em subir num ringue.
O boxe tem seu charme, mais de um século de história. Acho bem procedentes as razões de quem o chama de ‘a nobre arte’. Com muita técnica que envolve movimento das pernas, meneios com o corpo, posicionamento, defesa e ataque com os braços, os lutadores tentam abrir alguma vantagem. Uma das técnicas que tem nome é o clinch, em que um lutador tenta conter os ataques do outro com um abraço, imobilizando seus braços. Por ser um recurso que suspende o combate, que tende a tornar a luta chata, o árbitro logo separa os lutadores para que reiniciem a troca de golpes.
Já nas lutas de UFC, o que menos demora é os lutadores se atracarem e irem ao chão, e ali ficarem por um, dois minutos, firmemente engalfinhados, fazendo enorme força. É claro que existe a tensão da luta, que eles estão usando a técnica mais eficiente para vencer o combate (já que não se pode usar a mordida). Mas, desculpem, a parte mais visível do corpo dos lutadores é a bunda, sempre. É um sucesso não muito fácil de entender.
E por aqui me contenho, outros casos ficam para depois do almoço.
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Pai e mãe
Sinto certa nostalgia ao ler uma crônica escrita lá por 1956, em que o autor disserta sobre um dia em que esteve flanando em Copacabana. Dá para imaginar um Chevrolet Bel Air circulando pela avenida Atlântica como sendo a coisa mais cotidiana, e, em algum lugar por perto, anúncios do dentifrício Kolynos.
E pensar que o motorista do Bel Air já não está mais vivo, que hoje Copacabana não é o lugar mais importante do Brasil - se bem que isso não sei como discutir, algumas opiniões saem da boca pela força da gravidade.
Meu pai costumava usar bigode, adereço que estava na moda em sua época. Significava mais ou menos que um homem era homem. Também era guarda civil, o que fazia com que precisasse usar uniforme, o qual tinha que ser mantido o mais impecável possível. Era o tipo de vestimenta que precisava ser engomada, coisa que ainda se deve fazer com ternos. Quanto a isso paro por aqui, já que nunca me passou pela imaginação usar bigode e, se houve ocasião em que usei terno, era alugado.
Ele teve problema sérios, graves mesmo, com a bebida. Suficientes para que a farda às vezes ficasse suja após uma queda. Segundo me contaram, sem detalhes, amanheceu morto numa praça do centro da cidade. Ou foi encontrado caído no fim da noite. Nas entrelinhas do que me foi contado, também havia tomado remédios fortes, o que desvela alguma intenção de ir-se embora. Deixou viúva e filho com menos de um ano de idade.
Como herança deixou-me o gosto pela boemia, de buscar saber o que acontece nas madrugadas das grandes cidades, estando num estado algo mais embriagado que o habitual. “À procura das moças bonitas”, como ele teria dito.
Minha mãe sofreu com o câncer. Foram alguns anos de tratamento, numa época em que quase nenhum câncer tinha cura. Na última vez que a levei ao hospital, em estado grave, voltei para casa e ali fiquei, apavorado. Não estive presente para ouvir suas últimas palavras. Talvez me aconselhasse a ter menos medo, mas continuar evitando comer peixe com espinhas.
Entre meus maiores pecados, aquela ausência foi o pior que cometi. Daqueles que acompanham a pessoa pela vida inteira, quando não se merece nenhum consolo. Não havia ninguém por perto para me dizer o que fazer.
Ela trabalhava fazendo chinelos para usar dentro de casa. Com retalhos de napa conseguidos de graça numa estofaria, mais embalagens de papelão e linha de pesca, fez milhares de chinelinhos vendidos na vizinhança. Isso numa época em que não se falava de reciclagem, sustentabilidade, nem mesmo de artesanato, como coisas descoladas.
Aí, um dia ela entrou no prédio e foi até o balcão de atendimento. Apresentou a conta de luz e passou a procurar na bolsa por algumas notas e moedas, colocando-as ao lado da conta. Quando levantou o rosto, o recepcionista lhe explicou que ali era um hotel, o banco ficava no prédio ao lado. O pior foram os longos instantes até juntar tudo de volta para poder sair.
As reminiscências ensinam que não é porque a gente passou dos cem anos que ficou adulto. Existem os erros que não tem conserto, que ficarão conosco como cicatriz; os erros que continuamos cometendo, porque afinal somos humanos; e os melhores, aqueles que ainda estamos dispostos a cometer, também conhecidos como os doces pecados. Por último, aquele que exige muito cuidado, o erro de coçar a cicatriz até que ela volte a ser uma ferida.
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Culpa e desculpa
Quase sempre adiciono a tag “humor” a essas coisas que escrevo. A tentativa, em geral vã, não é exatamente ser engraçado, mas desconcertante (ou algo parecido). No mínimo, é advertência para que não me levem a sério. Não canso de repetir que a consistência de meus conhecimentos gerais é de gelatina exposta ao calor, que o instrumento de trabalho que mais uso, meu achômetro, está meio empenado e que a margem de erro das conclusões a que chego é de uns 360 graus. Mais ou menos por aí.
Muitas vezes, as tentativas de humor são só para disfarçar o mau humor. Sou daqueles que ouvindo um bom-dia, vai logo respondendo “que é dia já percebi, só não vi o que pode haver de bom nele”.
Segue o presente, então, com a tag “mau humor”. Já matei umas três abelhas que tentaram entrar pela janela.
Estive observando, ainda que de lado, uma cepa de deputados que vêm tentando se destacar dentre as cinco centenas que povoam a Câmara, lá em Brasília. Por força dos regulamentos e das pertinências, devem ser tratados por excelências, apesar da densidade intelectual meio rarefeita, que não é exclusiva de parlamentares. Mas é algo que, pelo menos, me deixa em paz pelos tão poucos bons-dias que dou às pessoas com que cruzo na rua: aqueles personagens foram eleitos por elas.
Um deles, o deputado Gilvan da Federal (PL-ES), se apresenta no plenário com a bandeira do Brasil cobrindo-lhe o ombro, ostensivamente. O que não fica justo dentro de qualquer debate, já que sua posição política é de uma parte do povo brasileiro, da qual outras partes ficam felizes de não fazer parte. Faz sugerir que a bandeira brasileira é somente para uso daqueles que pensam como ele.
Numa fala sua, disse que ninguém pode discordar da esquerda e dos progressistas, senão já vai sendo chamado de nazista, fascista e um et cetera repleto de coisas ruins. A parte boa, muito boa, é que deu a entender que fascismo e nazismo são para se abominar, pelo menos.
A ocasião em que o vi falando foi numa reunião sobre direitos humanos, defendendo aqueles que foram presos pelo ataque às sedes dos três poderes no 8 de janeiro. Para ele são cidadãos que foram encarcerados aleatoriamente, sem individualização da conduta, sem respeito a seus direitos constitucionais, e muitos deles são inocentes. Pelo que diz, seria conveniente que o deputado fosse arrolado como testemunha de defesa daqueles que afirma saber inocentes. Sabendo de fatos e circunstâncias que mostrem a inocência de pelo menos um dos acusados, é o certo a se fazer.
Na mesma reunião atacou o pessoal dos direitos humanos por defender bandidos, desencarceramento, progressão da pena, dando a entender que estava se referindo a bandidos de verdade, que vivem do tráfico ou fazem vítimas em seus assaltos e roubos. O que se pode dizer, em qualquer caso, é que nenhum cidadão é criminoso até o momento em que comete um crime. E que certos crimes são realmente graves, seja contra a vida ou contra a república.
Outra que se faz de exemplo é a deputada Júlia Zanatta (PL-SC), que se fotografou segurando uma metralhadora, vestindo camiseta ilustrada com uma mão com quatro dedos, sem o dedo mínimo, alvejada por três tiros. Segundo sua defesa e para fins legais, qualquer alusão à Lula, que teve o dedo mínimo da mão esquerda amputado, não é literal. Ou não é incitação a crime nenhum. Ou é questão de liberdade de expressão.
Em outro episódio, essa deputada está acusando um parlamentar do campo político adversário de assédio sexual. Como prova apresentou a fotografia em que o deputado parece enterrar o nariz em seu cabelo, o que, em conversa reta, seria uma inequívoca cafungada. A foto é instantâneo de um vídeo, em que essa impressão inicial parece se desfazer: o deputado se aproximou para pedir respeito enquanto ela discutia com a deputada Lídice da Mata, numa roda de parlamentares.
Lembra muito a ética daquele jogador que recebe um leve empurrão e se atira no gramado, contorcendo-se todo, na tentativa de que o outro receba cartão vermelho. É do futebol e da política.
Pode ser que os alinhados à destra digam que se a situação tivesse acontecido com sinais invertidos, entre uma deputada de esquerda e um suposto assediador de direita, a ala progressista teria outra interpretação. A grita seria enorme pela cassação, cancelamento, enxovalhamento e degredo do agressor. O que é bem possível.
O fato é que não estamos conseguindo fazer com que nos entendam. Muito menos querendo entender.
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Fraquinhos de feição
Há pessoas que passam as suas vidas inteiras bem longe de serem consideradas bacanas. Prefiro até trocar o adjetivo “bacana” por um similar que explique melhor; penso que “bem-parecida” sirva bem.
Uma pessoa bem-parecida tem a aparência adequada para os melhores papeis que a vida oferece. Tem não só a aparência, mas a atitude que eventuais talentos acima de média lhe conferem. Sempre parece à vontade nas situações sociais, seja numa festa ou estando na rua em meio à multidão.
Talvez se trate de charme pessoal. Ou de carisma. Mas o assunto, conforme anunciado na primeira frase, são as pessoas que são o avesso das bem-parecidas. São aquelas que quando aparecem como figurantes, a cena é cortada - por mérito ou por azar.
A pessoa passa toda a vida toda se olhando no espelho, diariamente, e nunca encontra um reflexo animador. Quando criança sua mãe até tenta ajudar, dizendo que ela é bonita, só parece feia porque se olha com a cara preocupada. Um pouco mais tarde acaba por se perguntar por que motivo a mãe falou isso. E, como geralmente faz quando algo lhe é muito pessoal, prefere não pedir explicações.
Deve passar por uma adolescência terrível, mais do que este período da vida normalmente é para as pessoas. À medida que algumas características de adulto lhe vão aparecendo, percebe que são um tanto mais débeis quando comparadas com as dos outros adolescentes, que conhece no colégio e na rua. É quase certo que chegará aos vinte anos sem ter passado por um primeiro amor. Vai começar pelo terceiro e não deve dar nada certo. Ou vai começar o primeiro quando já seria hora de estar no terceiro.
Há uma boa frase numa das peças de Plínio Marcos, se mal me lembro é “Navalha na Carne”. A personagem, uma prostituta decadente, ensina que “todos são lindos aos dezessete anos”. Apesar de ser o ponto de vista de quem não é mais jovem, contém alguns litros de verdade. Mas, na visão de quem está nos seus dezessete anos, é fala de alguém tão velho que já não existe mais.
Durante três quartos da sua vida adulta a pessoa panga vai passar encaixada no conceito do loser, exatamente como definido e difundido nos filmes americanos. O quarto restante vai passar pensando se a culpa é sua e de seus atributos ou se é do mundo e das outras pessoas. O que dá no mesmo.
Em inúmeras oportunidades pensei se seria viável enquadrar os pangos como o estrato verdadeiramente oprimido e discriminado pela sociedade. Que não se fale mais em negros, não binários, mulheres, minorias; que se passe a falar nos que, entre eles, são os pangos: os que nasceram para servir, mas não conseguem nem agradar.
Desconfio que tal enquadramento só possa ser feito como piada, para não ser levado muito a sério. Mas não tem como ter graça.
A situação só começa a ficar menos desigual entre os lindos e os feios, os fortes e os fracos, os rápidos e os lentos, os longos e os nanicos, os argentinos e os brasileiros, é na terceira idade, quando todos começam a se tornar mais perdedores. Ela só não separa os ricos dos pobres, deixa para a morte, que os una.
Mas, para que não se fique só no lado negativo de tudo, recomendaria conhecer algo sobre o estoicismo, deve iluminar a vida de qualquer um. Ou arriscaria um conselho mais prático: as casas lotéricas ficam abertas até as 17 horas.
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Apetites de um magro
Quando o assunto passa a ser boa comida, meu medo é estragar a conversa. Como degustador sou um dos piores garfos que andam por aí, minha experiência gastronômica não vai além de um prato de sopa de chuchu. Nunca comi lula, polvo, faisão, pato, dobradinha, carneiro, rosbife, não sei qual o sabor do coentro, e por aí vai. Já como cozinheiro, bem, basta dizer que nunca tive coragem de oferecer para alguém algo que eu tenha preparado no fogão.
Posso dizer que sou enjoado para comer. Daquelas pessoas que tem restrições para um monte de coisas, absolutamente incapaz de encarar uma feijoada completa. Ou arroz de carreteiro. Até mesmo o estrogonofe recebe meu veto, acho inaceitável a mistura de creme de leite com carne e sal, ainda que não tenha experimentado.
Vivendo distante de tantos alimentos queridos pelas pessoas, e sem maior curiosidade de conhecer novos sabores, sempre fui bem magro. Até os 25 anos, excepcionalmente magro. Entre os mais espirituosos havia sempre quem me pedisse para ficar de frente, para conseguir me enxergar. Ou que me aconselhasse a não sair no vento, que poderia ser perigoso.
Só depois que fiquei órfão foi que procurei me encorpar um pouco. A noção de quem “ninguém cuidaria de mim a não ser eu mesmo” fez-me buscar alguma reação. Consegui acrescentar dez quilos ao meu peso, e ainda assim não deixei de ser franzino. O pouco que posso ter aprendido é que, indo além de um determinado peso e de uma certa idade, tudo passa a ser uma questão de barriga. É a primeira e mais fácil parte do corpo a se sobressair, e mais tarde, em caso de regime, a última a obedecer.
Por uma questão cultural, aqui no Metaverso do Sul não há como falar de comida sem falar de churrasco. Não importa a carne, não importa o tempero (desde que seja só sal grosso), o que faz um bom churrasqueiro é o domínio do fogo. É uma ciência que só se aprende na prática. Tem semelhança com a sinuca, onde o que faz o bom jogador é o domínio da bola branca, a habilidade de, após cada tacada, fazer com que pare no melhor lugar para você ou no pior para o adversário. Se conseguir fazer bem isso, é porque matar as bolas já ficou sendo a parte mais fácil.
Mas se pareceu que entendo de uma coisa e de outra, preciso contar que minha breve carreira de churrasqueiro se encerrou bem cedo. Na última vez que tentei fazer churrasco não estava nem conseguindo atear fogo no carvão - e nas vezes anteriores já tinha derrubado a carne na brasa. Os paladares que chegaram a provar a carne pronta, certamente não deixaram de perceber sua pétrea maciez e seu sabor de outro mundo – mas foram educados em não comentar.
Quanto à sinuca, o único problema é que perco as partidas.
Mas para que não se perca o apetite e a conversa possa mudar de assunto, vou enfileirar meus três pratos preferidos: feijão com arroz, qualquer coisa com pimenta, qualquer coisa com camarão. E todas as sobremesas são bem-vindas.
Obs: Se lhe parece que ficou faltando alguma coisa no texto, você deve estar com fome.
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BDSM
É estreito o caminho que leva ao reino dos céus. Numa analogia pouco inspirada, parece um jogo em que temos de passar por fases, evitando os pecados plantados à direita e à esquerda ao longo da travessia. Sendo que, provavelmente, o prêmio que espera no final não vale um Ki-suco.
Há coisa de uma década atrás, talvez menos, foi posto em tramitação no legislativo federal um projeto de lei que proibia qualquer representação audiovisual de estupros. Apesar do apoio de parte considerável dos setores progressistas, a iniciativa não resultou em lei, ao menos por enquanto. Lembro que escrevi a respeito (no espaço reservado aos comentários dos leitores, no rodapé de um site), alertando que a instituição de tal ilegalidade faria com que precisassem ser cortadas cenas de filmes muito bem considerados. Citei “Laranja Mecânica”, cult dirigido por Stanley Kubrik, baseado no livro homônimo escrito por Anthony Burgess, que por sua vez é um clássico da literatura. Poderia ter citado “Bonitinha, mas Ordinária”, a versão de 1981, com Lucélia Santos, sobre a peça de Nelson Rodrigues; “Tangos, o Exílio de Gardel”, dirigido por Fernando Solanas; “Thelma e Louise”, com Susan Sarandon e Geena Davis, dirigido por Ridley Scott; e algumas dezenas de filmes acima de três estrelas.
Pode ser que algum defensor do projeto diga que os alvos da lei seriam basicamente as obras pornográficas, onde as cenas, ao contrário de serem feitas para se abominar, são feitas para se gostar. Mas há por onde se duvidar: iniciativas como a de corrigir as obras de Monteiro Lobato, de derrubar a estátua de Borba Gato e de vestir meninos de azul e meninas de rosa demonstram que a intenção é modelar nossas vidas como se fôssemos chineses – talvez eu esteja exagerando, acho que não.
Com relação à pornografia, embora correndo risco de afundar um texto raso como este, pode ser que as observações a seguir façam sentido. O pornô explora fixações, fantasias e taras sexuais, além de contribuir muito na educação sexual dos adolescentes que estão na faixa entre os 9 e os 75 anos.
Quando explora um tema como estupro, uma das principais questões é se o pornô atinge mais a estupradores em potencial, funcionando como sublimação ou incentivo, ou atinge mais às pessoas que têm a fantasia masoquista de serem estupradas, neste caso sendo algo menos ofensivo. Penso dizer que o segundo caso é mais frequente, muito mais. Mas não conheço dados nem pesquisas que possam comprovar.
Nas cenas em que a vítima é uma mulher, ela é a estrela da cena, o foco são seu corpo e suas reações, funcionando o estuprador apenas como coadjuvante, mera escada. Quando muito ele tem aspecto assustador, para compor o clima. Naturalmente, é assim porque o público-alvo é predominantemente masculino. Mas seria interessante perceber que o espectador tem unicamente a vítima com quem se identificar. Mas viajo.
Há pessoas que têm fantasias masoquistas, conheci algumas. Um alter ego meu, por exemplo, no tempo que ganhava um salário maior do que merecia, deu para frequentar uma casa da luz vermelha. Tarde da madrugada, já nas piores horas, já sendo o último cliente, pagava para as meretrizes se reunirem e o agarrarem como se o estivessem estuprando. O que elas faziam com gosto, arrancando suas roupas e usando as unhas em sua pele.
Certamente é bizarro. Há quem tenha imenso prazer em lamber pés, há quem deseje ser pisoteado, há quem sinta prazeres ao ser amarrado. São perversões que não se consegue compreender muito bem, valem só para os interessados. Uma grande parte delas envolve algum grau de dor, em conta gotas. Mas tenha-se certeza de que ninguém nunca ficou excitado ao sofrer uma crise de enxaqueca.
Uma vez fui assaltado na rua e ameaçado com uma faca. Nos seis meses seguintes tive dificuldade para voltar a sair de casa. Passei a enxergar assaltantes em quaisquer pessoas minimamente suspeitas. É o trauma de verdade que experimentei. Com certeza é incomparavelmente mais suave que um estupro de verdade, em que o trauma é para a vida toda.
As regras de ouro da pornografia sadomasoquista são a consensualidade e o respeito ao limite de cada um. Basicamente é a mesma coisa quando a mulher se delimita com a sentença “meu corpo, minhas regras”. Nunca se toca no cabelo de alguém como se ele fosse seu.
Tendo dito isso, vetar, suprimir, censurar ou proibir qualquer coisa que seja relevante, instigante, significativa, irresistível ou ainda não proibida, é algo que só se faz olhando em todas as direções. Vide o exemplo da proibição às drogas, uma das unanimidades mais burras que vem percorrendo as décadas mais recentes da nossa história. Mas viajo.
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Caminhando a pé
Posso dizer que pratiquei corrida de rua durante muitos anos. Nunca participei de nenhum evento ou corrida organizada, mas corria sempre, regularmente. Ou, levando em conta a pobreza da minha performance, me arrastava.
Num dia de sol moderado, ali pelo começo da primavera, podia correr do Leme até o começo da avenida Niemayer, passando por Copacabana, Ipanema e Leblon, o que deve dar uns oito quilômetros. Fazia ida e volta, nos melhores dias sem nenhum sofrimento.
Havia a opção de dar um ou duas voltas na Lagoa, com pista mais segura, mas preferia a paisagem humana da praia. Onde se consegue ver uns tipos bem fora de esquadro, não importa dia e horário. E dá para aproveitar melhor o sol: consegue-se correr de sunga sem quebrar o dress code da área.
Um belo dia, caminhando rápido pelo supermercado, ao mudar de direção senti um esticamento do joelho, dolorido demais para ser pouca coisa. Continuei caminhando bem até o dia seguinte, sentindo alguma instabilidade provocada pela entorse. No dia seguinte, num movimento doméstico, um giro sobre a perna depois de apanhar um pano de prato na gaveta mais baixa, senti uma dor absurda, daquelas que só nosso corpo sabe nos proporcionar.
Esfolei o menisco, fiquei sabendo depois. Desde então venho mancando, caminhando com medo, frequentando o médico regularmente, fazendo fisioterapia, uma cirurgia, essas coisas. E descobri que a corrida pode fazer mal para meus quadris, que a exemplo dos joelhos, têm algum grau de artrose. Para ver que nem sempre fazemos a coisa mais sensata, nem mesmo quando seguimos bons conselhos.
Sem nada mais de bom para fazer no Rio, voltei para Quatro Trevos, para me acostumar com a nulidade de meus novos tempos. Como disse J. Somethink, “os restaurantes não servem boa comida às segundas-feiras”. Confesso que não sei o que ele quis dizer com isso, ainda mais que hoje é sábado.
Pense numa manhã de sábado bonita. Daquelas que você acorda bem disposto e se é dos que trabalham aos sábados, por acaso está de folga e seu dia de pagamento foi ontem. Eu, sentindo uma dorzinha na lateral do jeolho, que é como meu joelho esquerdo se sente, não resisto a dar uma caminhada até a praça Tira Dentes. Preciso caminhar devagarinho, dando passos bem curtos. O que facilita a prestar atenção nas pessoas e nas construções pelo caminho.
Eis que veio no sentido contrário um velho extremamente magro, presumo que além de seus setenta anos, pele clara de eslavo que não toma sol. Pensei que vestia uma bermuda feita de calça jeans, mas ao me aproximar vi que era uma saia, meio palmo acima dos joelhos. Olhei para ele, que passou por mim fazendo-se de paisagem; pareceu-me que tinha consciência de que estava usando uma saia.
Fez-me lembrar de outro idoso que vi recentemente, este um pouco mais encorpado. Passou em frente às Lojas Americanas vestindo uma calça feminina, bem justa, ouso dizer que do tipo levanta bumbum. São dos tipos um tanto fora do esquadro a que me referi texto acima.
Chegando na praça vi um grupo Hare Krishna em sua cerimônia, cantando, dançando e tocando seus instrumentos. Eram oito rapazes, duas moças, percorrendo a praça. Os Hare Krishna são sempre jovens, faz cinquenta anos são só jovens fazendo o mesmo ritual público. Gostaria de saber o que lhes acontece depois que fazem trinta anos. Lembrei, porém, que alguns deles tornam-se os gurus. De qualquer forma, gostei de ouvir a música, alguém ali no meio tinha uma bela voz.
Já no caminho de volta, em sentido contrário vinha mais um senhor. Vestindo a camisa amarela da seleção, escolhida como símbolo pelos reacionários. Passou por mim, a calçada estreita não permitiu a devida distância. Felizmente as ideias não têm cheiro. O cheiro de enxofre, segundo dizem, é parecido com o de ovo podre aquecido na brasa.
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Burrices, balelas e falácias das mais comuns
Para eliminar o leitor que está em busca do que não existe aqui, esclareço que o texto a seguir contém apenas três ou quatro exemplos de raciocínios bem conhecidos que vivem repetidos por aí. São conclusões a que as pessoas chegam não só com firmeza, mas com propósito de condenar.
1 - Afirmam que as campanhas e leis contra o tabagismo, que desde os anos 90 impuseram restrições cada vez mais severas ao fumo, dentro do saldo positivo que produziram, fizeram com que o governo economizasse muito dinheiro no tratamento das doenças causados pelo vício. Se forem feitos os cálculos, são bilhões economizados a cada ano.
Vou fazer cálculos, mas dão resultado diferente. A bem grosso modo, pelo menos uns 20 milhões de pessoas pararam de fumar nos últimos vinte anos. Cada uma, em média, fumava um maço de cigarros por dia, com preço médio de 8 reais, dos quais 83% derivam de impostos. Dá para dizer, continuando no grosso modo, que parando de fumar o cidadão deixa de recolher 6,64 reais de impostos por dia. Em um ano são 2.423 reais, e se formos considerar os 20 milhões que pararam de fumar, 48 bilhões de reais por ano de impostos que não aconteceram.
Pelo mesmo lado, há idosos que pararam de fumar e, talvez por causa disso, vivem mais tempo. Eles recebem pelo menos um salário-mínimo mensal da Previdência. Caso o segurado viva dez anos a mais, são cento e trinta salários-mínimos a serem pagos. E são milhões de segurados neste perfil, com tendência de crescimento.
Não quis dizer nada contra a campanha do Ministério da Saúde. Estou falando do autor da opinião lá de cima, que volta e meia ainda completa, com ar de contribuinte lesado, dizendo “já que o cidadão fuma então que pague seu próprio tratamento”.
Vamos a outra, antes que chova impropério.
2 - Houve um prefeito do Rio de Janeiro, que entre outras coisas era pastor, escritor, cantor, compositor, senador e quase veio a ser diplomata. Na verdade mais que pastor, era bispo. Uma de suas medidas polêmicas foi reduzir os valores destinados às escolas de samba para o desfile de carnaval. Com a justificativa de destinar o dinheiro para escolas de verdade e hospitais, que é para onde deve ir o dinheiro público. O que é inatacável, em princípio. Estamos falando de algo em torno de 9 milhões de reais.
No carnaval de 2023, por outro lado, a economia da cidade carioca deve receber uma injeção de 4,5 bilhões de reais, conforme estimativas de órgãos oficiais. Em impostos coletados diretamente pela prefeitura, no preto no branco, o arrecadado cobre a despesa com escolas de samba e faz existir verba extra para escolas de verdade e hospitais.
Não é o caso de seguir o exemplo de Curitiba, que há quarenta anos perdeu seu carnaval por diversas razões, uma delas com origem fiscal: parece que sobretaxaram as bandas que tocavam em bailes. Durante os dias de carnaval a cidade curitibana roda menos de um quinto de sua economia e muitos de seus cidadãos vão para outros lugares gastar partes graúdas do seu dinheiro. E é melhor não calcular quanto a cidade perde, porque é sempre um bocado a mais do que a contabilidade consegue medir. Sempre há perdas indiretas nesses casos.
3 – Caso parecido é o da cultura. O tempo todo se ouve da má vontade com incentivos e verbas destinados à cultura, ainda que sejam valores módicos se comparados aos gastos monumentais das áreas principais da administração pública.
Quem leva a culpa é o Rouanet. Dez entre dez leitores sabem que a lei Rouanet existe e que trata de incentivos fiscais à cultura; cinco entre dez leitores acham que, sempre ou quase sempre, é mamata de artista. E só um entre dez leitores sabe que Rouanet morreu há apenas sete meses.
Para ficar no raso, já que é assunto para uma biblioteca inteira, não é falso afirmar que os Estados Unidos não representariam a metade do que representam no mundo sem difundir sua cultura. Sabemos os nomes que americanos usam (Joey, Sharon, Bruce, Michael), copiamos os nomes que usam, sabemos o que comem (pela manhã, no almoço, à noite, no que chamam de churrasco), sabemos seus xingamentos, muitas de suas piadas, conhecemos os seus artistas. E acho que serei entendido se disser que o Alaska e o Hawaii não são tão tipicamente americanos, mas os primeiros da lista entre os lugares menos americanos são, com certeza, Orlando e Miami.
Já sobre a China, que é o segundo país mais poderoso do mundo, alguém tem ideia de qual seja o esporte nacional por lá? Alguém sabe pronunciar, imitando sotaque chinês, o nome do presidente Xi Jinping? Alguém tem ideia do que fazem os chineses no fim de semana? Alguém sabe dizer se existem pastelarias na China, ou mesmo pastéis? Como será que os chineses se viram sem pornografia e sem casas da luz vermelha? É verdade que por lá fecharam os cinemas e só vêm Tik Tok?
A cultura está no cinema, na música, nas festas, nos palcos, nas tradições. Certamente saberemos muito mais da China, já que está para se tornar a maior economia do mundo. Os chineses tratarão de propagar sua cultura, ou não chegarão a ser metade do que viriam a ser.
Aqui no Brasil, em palavras figuradas, o último governo fechou a biblioteca e jogou a chave fora, sob aplausos. Os cidadãos têm direito às suas opiniões, os governantes nem tanto.
Penso que seja como diz J. Somethink, em mais um de seus despachos, “um país sem cultura é nada no mundo”.
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Carnaval à noite
O carnaval já me foi importante, muito.
Na minha década dos vinte anos era a festa magna, esperada o ano inteiro, quanto mais próxima mais esperada.
Só não gostaria de explicar as minhas razões, pelo menos não demais. Primeiro porque me faltam elegância e talento para falar de sacanagens sem sair do tom de quem quer ser levado a sério, mais ou menos; segundo porque não vou revelar fantasias sexuais politicamente indecentes, que podem prejudicar minha reputação de boa pessoa, ainda mais que não teriam nenhuma graça para pessoas com outro tipo de normalidade. Terceiro, porque afinal de contas.
O baile de carnaval que poderia chamar de melhor, não fossem alguns outros que também foram muito bons, aconteceu num grande ginásio de esportes, lotado com alguns zilhares de pessoas. Para tocar as marchas e sambas lá estava uma das melhores bandas, completa e bem ensaiada. Lembro da fila para comprar o ingresso, e lá dentro, das filas para comprar tickets que valiam cervejas. Era muita gente. As mulheres e os travestis, claro que sim, abusando de sua quase nudez, com roupinhas reveladoras que colocavam em destaque as partes do corpo que só pessoas maiores de dezoito anos possuíam, de acordo com o código moral daquela época (ainda meio vigente).
Era o tipo de baile em que apareciam fotógrafos dos jornais populares e revistas, que logo depois do carnaval lançavam edições especiais com “os melhores flagras da folia”. Madrugada mais adiante acabei me envolvendo com algumas figuras, pulando carnaval com elas, abraçando uma e outra também, já estava nas penúltimas cervejas, a farra foi das boas.
Claro, falo de um baile acontecido nos anos 80, no século passado.
Conto aqui, como já contei em outras rodas de conversa, como fiquei em pânico na quarta-feira de cinzas. Na capa do jornal, exposta na banca, reconheci algumas daquelas figuras que andei abraçando no baile. Comprei um exemplar e folheei para ver o que havia saído. Mas só escolheram fotos de pessoas interessantes; fiquei de fora, apesar de ter estado ali.
Minha frustração, uma delas, foi ter pulado carnaval na geral, na pipoca, na área vip nem um pouco. Aqui, não muito a ver com qualquer tipo de ostentação, não sou de me sentir bem com privilégios. Ocorreu que, depois de ter pulado carnaval bêbado por algumas horas, sem um cantinho para sentar, um meio-fio que fosse, e percorrer a pé uns cinco quilômetros na volta para casa, meu planos para um carnaval seguinte melhoraram um pouco.
Pois então.
Num carnaval seguinte, anos depois, meus planos deram certo. Havia comprado meu primeiro carro, uma velha banheira de trocar as marchas na coluna de direção, passando da hora de ir para o ferro velho. E havia economizado um dinheiro, suficiente para comprar o direito a uma mesa no baile.
E mais. Vesti uma roupa até que salaz, uma bermuda colorida, predominantemente vermelha, o tomara que caia e fui usando a camisa toda aberta, própria para uma madrugada de muito calor. O tomara que caia era um par de tênis que tive, fazia-me tropeçar o tempo todo.
Choveu muito naquela noite de sábado de carnaval. Tive que usar a canequinha que levava no porta-luvas do Dodge para tirar um pouco da água que empoçava no assoalho do carro. Precisei esperar que parasse de chover, pelo menos um pouco, o suficiente para poder abrir a porta e ir despejando a água, aos poucos. Molhei o tomara que caia.
Estacionei perto, tinha vaga fácil. Chegando na portaria, até que estava animado, mas não tinha nem fila para comprar o ingresso. Lá dentro, o ambiente estava mais para calmo. Adquiri minha mesa, havia bastante delas sobrando, pedi uma cerveja.
Lá na quadra, a multidão ocupava apenas a metade do espaço disponível - não exatamente uma multidão, pouco mais que um grupo. E a música que tocava era gravada. Não sei se foi o primeiro ano em que o carnaval começou a acabar em Curitiba, mas sei que os anos noventa ainda nem tinham começado.
Logo depois fui ser carioca.
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