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tonalizador · 3 months ago
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"Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado"
"Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado", ele disse, me olhando pelo retrovisor.
Fiquei sem reação: tinha pegado o táxi na Nove de Julho, o trânsito estava ruim, levamos meia hora para percorrer a Faria Lima e chegar à rua dos Pinheiros, tudo no mais asséptico silêncio, aí, então, ele me encara pelo espelhinho e, como se fosse a continuação de uma longa conversa, solta essa: "Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado".
Meu espanto, contudo, não durou muito, pois ele logo emendou: "Nunca vou esquecer: 1º de junho de 1988. A gente se conheceu num barzinho, lá em Santos, e dali pra frente nunca ficou um dia sem se falar! Até que cinco anos atrás... Fazer o que, né? Se Deus quis assim...".
Houve um breve silêncio, enquanto ultrapassávamos um caminhão de lixo e consegui encaixar um "Sinto muito". "Obrigado. No começo foi complicado, agora tô me acostumando. Mas sabe que que é mais difícil? Não ter foto dela." "Cê não tem nenhuma?" "Não, tenho foto, sim, eu até fiz um álbum, mas não tem foto dela fazendo as coisas dela, entendeu? Que nem: tem ela no casamento da nossa mais velha, toda arrumada. Mas ela não era daquele jeito, com penteado, com vestido. Sabe o jeito que eu mais lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa, festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela. Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal e descobri que é assim, é do ser humano, mesmo. A pessoa, olha só, a pessoa trabalha todo dia numa firma, vamos dizer, todo dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado, lá na Guarapiranga. Entro aqui na Joaquim?" "Isso."
"Ano passado me deu uma agonia, uma saudade, peguei o álbum, só tinha aqueles retratos de casório, de viagem, do jet ski, sabe o que eu fiz? Fui pra Santos. Sei lá, quis voltar naquele bar." "E aí?!" "Aí que o bar tinha fechado em 94, mas o proprietário, um senhor de idade, ainda morava no imóvel. Eu expliquei a minha história, ele falou: 'Entra'. Foi lá num armário, trouxe uma caixa de sapatos e disse: 'É tudo foto do bar, pode escolher uma, leva de recordação'."
Paramos num farol. Ele tirou a carteira do bolso, pegou a foto e me deu: umas 50 pessoas pelas mesas, mais umas tantas no balcão. "Olha a data aí no cantinho, embaixo." "Primeiro de junho de 1988?" "Pois é. Quando eu peguei essa foto e vi a data, nem acreditei, corri o olho pelas mesas, vendo se achava nós aí no meio, mas não. Todo dia eu olho essa foto e fico danado, pensando: será que a gente ainda vai chegar ou será que a gente já foi embora? Vou morrer com essa dúvida. De qualquer forma, taí o testemunho: foi nesse lugar, nesse dia, tá fazendo 25 anos, hoje. Ali do lado da banca, tá bom pra você?"
Antônio Prata
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tonalizador · 8 months ago
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tonalizador · 8 months ago
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tonalizador · 8 months ago
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Preciso correr, preciso parar de correr
PRECISO CORRER do assaltante, dos haters, dos ultraprocessados, do açúcar, do aspartame, do sódio, do caramelo IV, dos operadores de telemarketing, dos agrotóxicos, das sustâncias cancerígenas, da pessoa que tenta me vender assinatura de revistas no aeroporto.
PRECISO PARAR DE CORRER porque meu pai está envelhecendo rápido e todos os dias perco uma chance de tomar com ele uma garapa na feira e falar dos poucos pássaros que ainda vivem na selva de logomarcas em torno de nós.
PRECISO CORRER porque a meta da empresa e o crachá no meu peito e CEO na palestra e o salário na conta e o funcionário mais novo e com mais energia do que eu.
PRECISO PARAR DE CORRER do medo de ficar pobre, de ser uma profissional medíocre, de ser motivo de piada, de não ser lembrada nem nesta data querida.
PRECISO CORRER dos negacionistas, da reascensão do fascismo, dos ataques terroristas, dos ataques nas escolas, da misoginia, da xenofobia, da violência urbana, da truculência policial, dos monarquistas, da nova censura, dos ultraimbecis da extrema estupidez.
PRECISO PARAR DE CORRER mas o meu médico não deixa, o meu chefe não deixa, o meu personal não deixa, o meu gerente do banco não deixa, a desvalorização da moeda não deixa, a urgência climática não deixa.
PRECISO CORRER do cabeleireiro que quer pintar meus fios brancos, da depiladora que quer me deixar com vulva de Barbie, da vitrine que quer que eu use a última moda, da vendedora que quer que eu parcele em dez vezes, do dermatologista que não quer saber de pintas, só de Botox, da amiga que diz que isso só se resolve com lipo.
PRECISO PARAR DE CORRER porque o eclipse lunar, o orgasmo múltiplo, as estradas menos viajadas, a aurora boreal, a vontade de aprender piano.
PRECISO PARAR DE CORRER porque há muito não choro e até para poder chorar é preciso tempo.
PRECISO CORRER porque meus bíceps, meus tríceps, meu açúcar no sangue, minha perda de estrógeno, meus ossos com pouco cálcio, minha perda de memória, minha incapacidade de achar a próxima palavra.
PRECISO PARAR DE CORRER porque o poder do agora, a professora de ioga, o psicanalista, a psiquiatra, a massagista, a aula de meditação, o Feng Shui, o Reiki, o acupunturista, a cromoterapia.
PRECISO CORRER para pagar tudo isso.
Giovana Madalosso (Folha de São Paulo)
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tonalizador · 8 months ago
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Quem não está doido está medicado
Encontrei um grande amigo que não via desde dezembro. Estava magro, corado e com o ritmo de quem fumou um baseado ou comeu um cogumelo, o que está mais na moda. Transmitiu uma paz tão grande que quase fiquei entediada. Quis saber o nome do santo porque o milagre era visível.
Antidepressivo, disse com o sorriso que, hoje, só tem quem está medicado ou drogado, o que pode significar a mesma coisa.
Tenho sempre vontade de abraçar forte alguém que se entregou ao remédio e dizer que vai ficar tudo bem, quando eu mesma não tenho certeza se vai. Mas sem eles eu já estaria doida. Com a graça —ou desgraça— da indústria farmacêutica perdi o preconceito depois de cair na lorota de que depressão se trata com sol, força de vontade, meditação e kombuchá.
Tudo o que consegui foi ter vontade de vomitar só de ouvir falar nessa bebida tão hypada que hoje custa uma caixa de antidepressivo, mas não tem nem efeito placebo neste caso. O intestino recuperou sua alegria, mas meu cérebro continuava um deserto de serotonina.
Que bom que meu amigo deixou seus dias cinzentos para trás, até porque está fazendo 40°C no Rio e sofrer com calor é muito pior, não cola a desculpa de que está chovendo ou fazendo frio e a vida não nos deixa abraçar a melancolia em paz.
O Rio tem disso, a gente se sente meio obrigada a ir lá fora ser feliz porque os dias estão lindos. O problema é que meu peito andou nublado durante um tempão e até agora não sei se foi só tristeza, depressão, menopausa, medo do futuro.
Eu achava que só eu vivia um cansaço eterno que não passava nem depois de 14 horas de sono, mas agora tenho a impressão de que todo mundo parece meio doido. Quem não está doido está medicado.
Como ninguém mais fala de política quando se encontra, agora falamos de remédio, até porque discutir o país foi o que deixou todo mundo fora da casinha nos últimos anos. Felizmente, o tema foi banido das mesas de bar, agora falamos de outras drogas, mas isso também não é bom.
O leitor dirá que perdi o juízo porque todo mundo ainda continua sequestrado pelas notícias. Só nas redes sociais e na caixa de comentários dos jornais. Nos almoços, na areia da praia, nas festas do Leme ao Pontal, o que está bombando mesmo é trocar impressões sobre antidepressivos, ansiolíticos, remédios pra TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), para emagrecer, para dormir, para não dormir, para ganhar massa muscular, para estimular o colágeno, para não ter escape de urina.
Não sei se é exagero, mas quem sou eu para julgar a falta de neurotransmissores alheia, ou se a vida resolveu elevar o nível do jogo da crueldade e nos deu um pacote extra de intolerância, egoísmo e desumanidade para ter que lidar.
E encarar tudo isso, mais uma tonelada de informações, responsabilidades e compromissos, parece ter ficado impossível sem uma pílula colorida —bem, sempre com a devida indicação médica. Como a vida é de escolhas, uma conhecida disse que abandonou o tratamento para bipolaridade para poder parcelar o Ozempic. Pelo menos estou magra, disse.
Nem todo mundo está medicado, mas muita gente está doida.
Mariliz Pereira Jorge (Folha de São Paulo)
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tonalizador · 9 months ago
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tonalizador · 9 months ago
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snoopy as things i did in january
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tonalizador · 9 months ago
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Hoje atravessei lentamente a rua sem olhar para os lados, à espera de um caminhão que me amassasse contra o chão, mas me dei conta que a travessia estava fechada há 2 dias para manutenção na pista.
Fiquei furioso pela ausência da tragédia. Eu não sabia que a droga da rua estava fechada justamente no dia que mais desejava ser atropelado e morrer.
Talvez eu soubesse.
Só que… pensando bem, acredito que no fundo me coloquei em risco sabendo que o risco não viria. Tenho a grande crença de que, apesar da imensa vontade de não-existir, a minha ânsia por viver e ser feliz é maior ainda.
Theo Lima
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tonalizador · 9 months ago
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Não consigo manter as coisas.
É quase como se os espaços entre os dedos fossem abismos infinitos. Tudo se esvai.
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tonalizador · 9 months ago
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Minhas lembranças de infância são carregadas de coisas que eu não consigo colocar em ordem, mas eu lembro exatamente do dia em que vi você pela primeira vez.
Era manhã, fazia muito calor, o vô passou na nossa casa e buscou eu e o pai para irmos à maternidade te encontrar — naquele tempo o pai não tinha carro e todos da família se mobilizaram para buscar você.
Quando vi a mãe passar pela saída do hospital com você nos braços fiquei assustado, não conseguia imaginar como era ter um irmão e, naquele momento, senti que a vida tinha mudado para sempre.
Enquanto você tinha 1 dia de nascido, eu beirava os 4 anos de idade, mas até hoje NÃO consigo lembrar como eu era antes de você nascer. Era tudo sem registro até aquele momento e eu só comecei a existir, de fato, depois que você chegou na minha vida. Você nasceu e eu renasci contigo.
Nunca te contei, mas ser o seu irmão mais velho fez de mim uma criança muito preocupada. Entender que você era frágil e que o mundo era sombrio deixou minhas noites de sono angustiantes pois o instinto de proteção a sua vida era enorme dentro de mim. Cuidei de você todas as noites em que minha mãe foi pra faculdade e vi você repetir todas as fases de crescimento que eu já havia passado — você era um mini-ser-humano.
Naquela manhã de 2020, quando você se machucou feio na varanda de casa, eu senti na pele como a vida é breve. Isso me quebrou em milhões de pedaços. Estávamos sozinhos em casa e te ver frágil e machucado trouxe à tona todo o senso de cuidado que eu sempre tive por você, inclusive, enquanto limpava seu rosto sujo de sangue, eu segurei o choro com todas as forças porque estava me sentindo culpado por não conseguir te proteger sempre.
Devo-te milhões de desculpas pois a nossa relação foi muito atravessada pelas dores que tenho e nunca falei sobre — a gente nunca foi de se falar muito. Constantemente, sinto-me culpado por ter tantas barreiras emocionais, não sei se um dia você vai compreender isso, mas espero que sinta que te amo de verdade, desde o dia em que você nasceu.
Você já está grande e o mundo se abriu em possibilidades na sua vida, e eu entendo que isso dá um puta medo e, por vezes, gera muitas dúvidas, mas de onde eu estiver torcerei por ti e sempre mandarei forças para você quebrar todas as dúvidas que possam te cercar. Quando você entrou naquele avião você levou consigo metade da minha alma e saiba que sempre estou pensando em ti e torcendo para que as coisas estejam tranquilas e dando certo.
Theo Lima.
Rio Branco, Acre. 05 de Agosto de 2023.
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tonalizador · 9 months ago
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Ninguém morre quando se é amado. Vive no coração de quem ama, até que esse expire também.
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tonalizador · 1 year ago
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Dezembro é foda
Quando eu era criança, meus avós maternos achavam dezembro um mês tristíssimo. Diziam que já tinham sofrido a morte de muitos amigos e parentes –incluindo a mais impensável de todas, a de um filho — e que, por isso, não conseguiriam comemorar mais nada na vida.
No entanto, celebravam jogos do Palmeiras, Copas do Mundo, aniversários, Páscoa. Era só dezembro que pegava pra eles. E como pegava! Meu avô tinha o "troço" (que é igualzinho ao meu "negócio", mas agora sabemos que se chama crise de pânico), e minha avó ficava com questões intestinais agudíssimas, soltava uma quantidade invejável de palavrões portugueses, contava a famigerada história de que, por conta de uma promessa, nunca mais poderia dizer a frase "estou com preguiça" (fazia uma mímica pra gente entender) e, por fim, chorava e ia dormir.
Na adolescência, notei que ocorriam fenômenos parecidos com meus pais. Era só chegar o final do ano para eles ficarem à flor da pele: "Dezembro é foda!". Evitavam sair de casa por causa do trânsito insuportável e do comportamento "apressado e violento" das pessoas; faziam as compras no começo de novembro para não verem os enfeites nos shoppings "sem saber direito o motivo"; e, de repente, todos aqueles amigos mais importantes não eram "exatamente como alguém da família", todos os parentes mais próximos não eram "exatamente o que podemos chamar de pessoas amigas".
Desde que tenho lembranças dos meus Natais, passei todos desejando que minha família pudesse aumentar. Filha única de pais separados, eu também era neta única e, obviamente, sobrinha única.
Sonhava que as poucas pessoas ali reunidas fossem mais tolas e emotivas. Eu fui criada numa espécie de hub do cinismo e do deboche. A gente tirava sarro de tudo e, sobretudo, de nós mesmos. Se passássemos a ceia com uma tia qualquer, ainda que por meia hora (meu avô detestava sair de casa), tal passeio rendia meses de deliciosas maldades e infinitas imitações.
A mordacidade, como tática de sobrevivência no mundo e no meu trabalho como roteirista de humor, é um talento vantajoso e recreativo em todos os outros meses do ano. Mas é absolutamente inútil e cruel em se tratando de dezembro. Ser uma pessoa irônica, em dezembro, é complicadíssimo. O mundo aparentemente está acreditando em absurdos como o amor e a fé, e você está lá, sozinha, montando esquetes que misturam libertinagem com escatologia em sua cabecinha doente.
Depois que meus avós morreram, minha mãe piorou muito. Passei a notar em seu rosto aquele semblante heroico de quem internaliza o mantra: "Vai, não adoece não, mais um ano! Força! Você é pobre demais pra abraçar a depressão!".
Hoje fica claro para mim que sou fruto de uma família que ria muito e não aparentava grande tristeza, mas era sim deprimida. E sei disso porque tenho a mesma doença. Nada grave que os paralisassem no resto do ano –apenas em dezembro. Nada grave que me bote de cama nos outros meses do ano –somente em dezembro. Eu tentei correr. Eu sou a única maçã da árvore da depressão da minha família que fez de tudo para cair muito longe. Eu rolei, dancei, capotei, me lancei, me esfolei inteira. Mudei de povoado, de arredores, de nome, de voz. E também fiz muita terapia. Apodreci e voltei verde e apodreci e voltei verde. Um looping ensimesmado e repetitivo de negação genética, cognitiva, espiritual, existencial e psicológica.
E isso tudo –ai, ai, dezembro é mesmo foda e já estou chorando– só me deixou ainda mais deprimida. (Saudade da angústia de não pertencimento que nos unia. Tinha sim muito amor, muita fé e muito Natal).
Tati Bernardi
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tonalizador · 1 year ago
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as coisas não acabam pra mim elas me matam. a.
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tonalizador · 1 year ago
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Três homens e uma marreta
Isso parece, sei lá, um título troncho dado pelo ChatGPT 4 para uma comédia da Sessão da Tarde. (O ChatGPT 5, mais aprimorado, provavelmente o batizaria como "Três homens e uma marreta muito louca"). Não tem nada a ver, no entanto, com Sessão da Tarde ou IA: foi o que vi pela janela logo após despertar de sonhos tranquilos e encontrar o bufê vizinho metamorfoseado numa monstruosa demolição.
Vou deixar para outra crônica os lamentos sobre um mastodonte sendo erguido a três metros do meu nariz, sobre a desgraça que é vivermos numa cidade que etc. O assunto aqui é outro.
Há meses, passo longos minutos bisbilhotando o trabalho, sete andares abaixo. Na primeira semana foi só marreta. Em poucos dias, três caras de macacão azul e capacete amarelo derrubaram o telhado e todas as paredes do casarão. (Quando chegavam perto dos batentes e das esquadrias, vinham com uma marreta menor e talhadeira, iam recortando em volta, com esmero, até tirar as janelas e portas intactas).
Quando restou só estrutura de concreto armado —pilares, vigas, lajes—, a brincadeira ficou mais interessante. Com marteletes (umas minibritadeiras —ou, deveria dizer, megafuradeiras?) eles foram escavando o concreto armado, até ficarem só as redes de vergalhões, que eram cortadas com maçarico.
Quarta passada, começaram a recortar uma laje de uns 12 metros quadrados, no martelete. Não entendo patavinas de (des)construção civil, mas intuí que uma hora aquele rinoceronte ia desabar e se espatifar no chão, três metros abaixo. Dia após dia, assisti ao corte da laje como se fosse novela, até sentir que ontem era o capítulo final da trama. Terminado o trabalho do martelete, o outro maçaricou os metais, e a laje veio abaixo como um Odete Roitman de cinco toneladas, deixando não um rastro de sangue na parede, mas um cogumelo atômico de poeira.
Nos primeiros dias de demolição, achei que o meu interesse brotava de algum instinto ogro, um rincão Homer Simpson do meu córtex. Aos poucos, porém, fui entendendo que era bem o contrário. O que eu invejava nos demolidores era apolíneo, não dionisíaco. Invejava a certeza daquele trabalho, o contrário do meu. Eles chegam numa obra pronta e vão desmontando. Eu paro diante da página em branco e vou construindo. Eles sabem, desde o início, aonde vão chegar e cada passo que darão para tanto. Eu passo semanas diante de dois pilares com sete janelas. Derrubo. Ergo três portas e um telhado. Apago tudo e recomeço só pela caixa d’água, uma caixa d’água gigante, de 500 mil litros, que não tenho a menor ideia de para que me servirá.
Tem vezes, não raro, que depois de dias, semanas, meses ou anos eu descubro que não havia obra nenhuma a ser construída sobre aquele terreno. Entre as frases abandonadas já cresce mato, sujeitos molambentos chutam objetos diretos e indiretos em busca de predicados. Não é muito agradável.
Eu sei, eu sei que este senhor do sétimo andar é um privilegiado, que trabalha com o que gosta e goza de uma vida confortável, enquanto os três operários ganham mal para suar de sol a sol, sonhando em ser jogadores de futebol, astronautas, médicos, tiktokers ou xás da Pérsia. Não é disso que tô falando. (Ainda existe espaço pra crônica ou ela já foi cancelada em nome das guerras culturais?).
O que eu queria dizer é que, às vezes, eu não queria dizer nada. Queria pegar uma marreta ou um martelete e sair quebrando tudo até que houvesse só um papel sulfite de 2.000 metros quadrados. Outro que decida o que erguer ali.
Antônio Prata
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tonalizador · 1 year ago
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tonalizador · 1 year ago
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The Dukes of Hazzard - 1.07 - Luke's Love Story
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tonalizador · 1 year ago
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Desculpe o transtorno, preciso falar da Clarice
Conheci ela no jazz. Essa frase pode parecer romântica se você imaginar alguém tocando Cole Porter num subsolo esfumaçado de Nova York. Mas o jazz em questão era aquela aula de dança que todas as garotas faziam nos anos 1990 –onde ouvia-se tudo menos jazz. Ela fazia jazz. Minha irmã fazia jazz. Eu não fazia jazz mas ia buscar minha irmã no jazz. Ela estava lá. Dançando. Nunca vou me esquecer: a música era "You Oughta Know", da Alanis.
Quando as meninas se jogavam no chão, ela ficava no alto. Quando iam pra ponta dos pés, ela caía de joelhos. Quando se atiravam pro lado, trombavam com ela que se lançava pro lado oposto. Os olhos, sempre imensos e verdes, deixavam claro que ela não fazia ideia do que estava fazendo. Foi paixão à primeira vista. Só pra mim, acho.
Passamos algumas madrugadas conversando no ICQ ao som de Blink 182 e Goo Goo Dolls. De lá, migramos pro MSN. Do MSN pro Orkut, do Orkut pro inbox, do inbox pro SMS.
Começamos a namorar quando ela tinha 20 e eu 23, mas parecia que a vida começava ali. Vimos todas as séries. Algumas várias vezes. Fizemos todas as receitas existentes de risoto. Queimamos algumas panelas de comida porque a conversa tava boa. Escolhemos móveis sem pesquisar se eles passavam pela porta. Escrevemos juntos séries, peças de teatro, filmes. Fizemos uma dúzia de amigos novos e junto com eles o Porta dos Fundos. Fizemos mais de 50 curtas só nós dois —acabei de contar. Sofremos com os haters, rimos com os shippers. Viajamos o mundo dividindo o fone de ouvido. Das dez músicas que mais gosto, sete foi ela que me mostrou. As outras três foi ela que compôs. Aprendi o que era feminismo e também o que era cisgênero, gaslighting, heteronormatividade, mansplaining e outras palavras que o Word tá sublinhando de vermelho porque o Word não teve a sorte de ser casado com ela.
Um dia, terminamos. E não foi fácil. Choramos mais que no final de "How I Met Your Mother". Mais que no começo de "Up". Até hoje, não tem um lugar que eu vá em que alguém não diga, em algum momento: cadê ela? Parece que, pra sempre, ela vai fazer falta. Se ao menos a gente tivesse tido um filho, eu penso. Levaria pra sempre ela comigo.
Essa semana, pela primeira vez, vi o filme que a gente fez juntos —não por acaso uma história de amor. Achei que fosse chorar tudo de novo. E o que me deu foi uma felicidade muito profunda de ter vivido um grande amor na vida. E de ter esse amor documentado num filme —e em tantos vídeos, músicas e crônicas. Não falta nada.
Gregorio Duvivier
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