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Eneatipo IV - Caráter e Neuroses
A INVEJA E O CARÁTER DEPRESSIVO MASOQUISTA
1. NÚCLEO TEÓRICO, NOMENCLATURA E LUGAR NO ENEAGRAMA
O estado emocional da inveja implica um doloroso sentimento de carência e um desejo por aquilo que é percebido como faltante. Essa situação pressupõe uma visão da bondade como algo externo ao indivíduo, que deve ser adquirido.
Como uma reação compreensível à privação e à frustração precoce, a inveja se torna um fator de autofrustração na psique, pois o desejo intenso por amor que a acompanha nunca sacia o sentimento crônico de falta interna e maldade; pelo contrário, estimula uma maior frustração e dor.
A frustração é uma consequência natural da inveja. Além disso, o excesso de desejo pode levar a situações dolorosas, conforme descreve Quevedo em seu sonho do inferno, quando os invejosos chegam e veem as diferentes almas sujeitas a várias torturas, de acordo com os diferentes níveis infernais; eles se sentem frustrados e sofrem ao ver que não há lugar reservado para eles.
A posição da inveja no eneagrama é a de um satélite da vaidade e um vizinho do ponto 5, a avareza, que implica um sentimento de privação comparável ao da inveja, embora se pressuponha uma atitude diferente frente à experiência de escassez. Enquanto o ponto 4 representa uma reivindicação vigorosa ao exterior, uma intensa demanda por aquilo que falta, o ponto 4 se caracteriza por uma atitude psíquica de abandono de qualquer expectativa relacionada ao exterior e, ao contrário, uma preocupação por reter a própria energia, dedicação e atenção.
A conexão com a vaidade é ainda mais importante do que com a avareza, porque o ponto 4 é membro da tríade do canto direito do eneagrama, que, em conjunto, gravita em torno de uma preocupação excessiva pela própria imagem.
Enquanto uma pessoa do eneatipo III se identifica com a parte da personalidade que se alinha com a imagem idealizada, o indivíduo do eneatipo IV se identifica com a parte da psique que não consegue se ajustar à imagem idealizada e está sempre tentando alcançar o inalcançável. Trata-se de uma pessoa animada por uma vaidade que não alcançou seu objetivo devido à mistura que contém de sentimentos de escassez e de carência de valor (do ponto 5).
Embora os eneatipos representados nas posições 4 e 5 (inveja e avareza) tenham em comum o sentimento de falta de valor, de culpa, de carência, e embora ambos possam ser descritos como deprimidos, estão em evidente contraste em vários aspectos.
Enquanto na inveja a culpa é uma tortura consciente, na avareza ela está parcialmente velada por uma aparente indiferença moral (que compartilha com o eneatipo VIII e que constitui uma rebelião contra suas próprias exigências e acusações excessivas). Enquanto na inveja a depressão se manifesta como uma aflição à mostra, o avarento costuma achar difícil chorar ou conectar-se com sua dor, de maneira que sua depressão se manifesta mais como uma apatia e uma sensação de vazio.
Podemos dizer que a do eneatipo V é uma depressão “seca”, oposta à depressão “úmida” do eneatipo IV: se a avareza é resignada, a inveja é apaixonada.
Isso reflete uma característica fortemente distinta: a avareza seca é apática, a inveja úmida é mais intensa; se a primeira é um deserto, a segunda é um pântano (o uso francês do termo envié para designar “desejo” revela a observação implícita de que a inveja é a mais apaixonada das paixões). Enquanto o eneatipo V implica uma atmosfera interior de quietude, o eneatipo IV pressupõe uma atmosfera de redemoinho e turbulência. O aspecto mais característico do eneatipo IV, além da motivação da inveja, pode ser vista na tendência à autovitimização e à frustração.
2. ANTECEDENTES NA LITERATURA CIENTÍFICA SOBRE O CARÁCTER
Embora a síndrome masoquista e autofrustrantes de personalidade não fosse reconhecida no DSM III82, isso se devia ao fato de ter incluído a tendência à depressão, tão característica deste caráter, entre as perturbações do estado de ânimo. No entanto, o reconhecimento de um estilo de personalidade definido em torno da depressão é muito antigo, e Schneider cita Kraepelin83, que fala de personalidades que apresentam “uma constante ênfase emocional nas emoções sombrias presentes em todas as experiências da vida”. Schneider descreve um tipo de pessoas que são “pessimistas e céticas e que, no fundo, negam a vida [...] envolvendo-a em uma espécie de amor não correspondido”. “Trata-se de uma classe de pessoas supersérias, amargas, para quem tudo está podre [...] No entanto, tudo isso não é necessariamente evidente, pois o indivíduo melancólico se oculta [...] pode manifestar alegria e exibir uma atitude hipomaníaca como uma forma de escapar da tristeza”. Schneider cita a esse respeito um poema de Hölderlin relativo aos brincalhões, em que diz: “vocês estão sempre julgando e brincando, não podem evitar, amigos, e eu me sinto profundamente tocado, porque só os desesperados se veem forçados a agir assim.” Schneider também observa nos melancólicos a tendência à vaidade:
“A comparação de si mesmos com aqueles que vivem felizmente e o conhecimento da simplicidade característica dessas pessoas os leva a ver o sofrimento como algo nobre e a considerarem-se de maneira aristocrática. Outros veem no sofrimento um mérito, o que, unido à sua tendência a refletir e a ponderar sobre a amargura da vida terrena e a profunda necessidade de serem ajudados, os leva a buscar um refúgio de ordem filosófica ou religiosa”.
Também salienta “uma preocupação estética nos melancólicos, que pode se manifestar em sua forma de vestir e de viver, e que pode até mesmo resultar em presunção.” Por fim, estabelece uma distinção entre os indivíduos que são propriamente melancólicos (como aqueles que Kretschmer incluía entre os ciclotímicos e aos que etiquetava como dotados de “sangue pesado”) e outros que são predominantemente “mal-humorados”: “são frios e egoístas, rabugentos e odiosos, irritáveis e críticos, e até mesmo mesquinhos e mal-intencionados. Seu pessimismo em relação a tudo, e mesmo em relação a seu próprio destino, tem algo de fanático. Quase se alegram diante de um novo fracasso, e também não desejam nada de bom para os outros.”
A síndrome do eneatipo IV tem sido reconhecida desde os tempos antigos na história da psiquiatria, como podemos observar lendo o volume de Schneider sobre as personalidades psicopáticas84. Resumindo publicações alemãs anteriores ao seu tempo, cita, por exemplo, a seguinte observação sobre o “psicopático depressivo”, em termos quase repetitivos dos citados acima:
“No fundo, recusa a vida, e atém esmo a envolve em uma espécie de amor não correspondido. Com frequência, também vemos se desenvolver nele uma tendência à vaidade, a se comparar com aqueles que vivem contentes e felizes, e a consciência de sua simplicidade, mesmo da simplicidade excessiva que muitas vezes caracteriza essas pessoas, leva os sofredores a considerar seu sofrimento como algo nobre e a si mesmos como aristocratas [...] Outros veem no sofrimento um mérito, que não é diferente de sua tendência a refletir e a ponderar [...] Não raramente, pode-se perceber em seu entorno e modo de vida uma preocupação estética, que pode levar à arrogância e que dissimula seu próprio abatimento interno. Outros depressivos estão mais de mau humor, são frios e egoístas, rabugentos e amargurados, irritáveis e críticos, cruéis e mal-intencionados. São pessimistas em relação a tudo, e até mesmo em relação a si mesmos, se alegram quando ocorre um novo fracasso.”
Este caráter foi designado por Kraepelin como “predisposição irritável”, e por Bleuler como “distimia irritável”, denominações que também correspondem à do eterno descontentamento e ressentimento de Aschaffenburg.85
Na história da psicanálise, foi Karl Abraham quem primeiro chamou a atenção para síndrome do eneatipo IV em sua descrição do “caráter agressivo oral”, buscando estabelecer uma relação entre a estrutura de caráter com as vicissitudes do desenvolvimento da libido de acordo com a teoria freudiana. Eis aqui como Goldman-Eisler descreve o caráter oral agressivo, ou oral pessimista, em sua clássica pesquisa “Lactancia y Formación del Carácter”:86
“Esse tipo se caracteriza por uma visão da vida profundamente pessimista, às vezes acompanhada por estados de ânimo depressivos e atitudes de retirada, uma postura passivo-receptiva, sentimento de insegurança, necessidade de ter garantida sua subsistência, uma ambição que combina um intenso desejo de ascender com um sentimento de incapacidade de realizá-lo, uma sensação rancorosa de injustiça, uma suscetibilidade competitiva, um desgosto diante da ideia de compartilhar e uma inoportunidade cheia de impaciência.”
Edmund Bergier descreve uma síndrome semelhante, à qual chama de “pessimismo oral”. Ele destaca seu aspecto narcisista e o interpreta como uma compulsão para repetir a experiência de frustração original, supostamente causada pela perda do seio materno. Na tentativa de interpretar essa orientação de personalidade em linha com a ideia freudiana da fixação, pensa que, ao estar fixado na frustração, o pessimista oral extrairia prazer de antecipar desgraças e desilusões, o que deveria proporcionar uma compensação ao fato de ser uma vítima.
É interessante observar que o conceito de “caráter masoquista”, introduzido por Reich em um artigo publicado no “International Journal for Psychoanalysis” (1932-33), não faz referência à síndrome agressiva-oral ou pessimista-oral, o que indica que Reich acreditava estar descrevendo uma estrutura de caráter independente. A marca distintiva do caráter masoquista é, para ele, “um sentimento subjetivo crônico de sofrimento, que se manifesta objetivamente e que se mostra especialmente como uma tendência a se queixar. O traço adicional mais importante é a “tendência crônica” a se rebaixar e a infligir dor contra si mesmo.
O principal escopo do artigo de Reich surge da controvérsia que trava com Freud a respeito da existência do instinto de morte, controvérsia que motivou a publicação desse artigo junto com outra réplica intitulada “La Discusión Comunista da Psicoanálisis”. Não obstante a precisão de seus termos descritivos, acredito que a maioria de nós estaria hoje em desacordo tanto com Freud como com a alternativa de Reich à teoria freudiana do comportamento masoquista: “a específica inibição masoquista da função orgástica, manifestada como medo de morrer ou de explodir.”
No entanto, entre os teóricos da psicologia, ninguém destacou tanto o papel da inveja como Melanie Klein. Leiamos em “Envidia y Gratitud”:87
“Cheguei à conclusão de que a inveja é o fator mais poderoso ao minar pela raiz os sentimentos de amor e de gratidão, uma vez que afeta a relação mais precoce de todas, a relação materna. A importância fundamental dessa relação para o conjunto da vida emocional do indivíduo tem sido exposta em toda uma série de escritos psicanalíticos, e acredito que, ao explorar ulteriormente um fator específico que pode ser muito perturbador nessa idade precoce, acrescentei algo importante a minhas descobertas anteriores sobre o desenvolvimento infantil e a formação da personalidade.”
Essencialmente, Klein mostra como a inveja contribui para aumentar as dificuldades da criança em construir seu objeto bom, pois sua frustração a leva a perceber sua mãe como má. Klein estabelece uma distinção entre inveja e cobiça, que podemos traduzir como diferenciação entre “inveja” e “ânsia”:
“A ânsia é um desejo impetuoso e insaciável, que excede o que o indivíduo necessita e o que o objeto pode ou está disposto a dar. A nível inconsciente, a ânsia pretende primariamente esvaziar, exaurir e devorar o seio, ou seja, seu objetivo é a introjeção destrutiva; enquanto a inveja não apenas busca essa forma de pilhagem, mas também atribui à mãe, e a todo seu seio, uma espécie de maldade, principalmente os excrementos e a parte má de si mesma, a fim de prejudicá-la e destituí-la. No sentido mais profundo, isso significa destruir sua criatividade.”
Ainda que estejamos dispostos a acreditar, como os kleinianos, que a criança realmente fantasia encher a mãe de excrementos, ou mais precisamente, pensem que essa é uma fantasia que o adulto projeta em retrospecto na tela da infância, podemos considerar as afirmações de Melanie Klein de maneira semelhante à interpretação de uma caricatura surrealista, isso é, de maneira simbólica e fenomenológica.
Algo semelhante pode ser dito das clássicas afirmações psicanalíticas relacionadas à situação edípica: os símbolos sexuais, quer tomemos eles literalmente ou não, contêm uma descrição apropriada da relação da criança com seus pais. A autora prossegue na mesma obra:
“Nesta seção, abordo a inveja primária do seio materno, que deveríamos diferenciar de outras formas tardias da mesma (como aquela que subjaz o desejo da jovem de ocupar o lugar da mãe, e também na atitude feminina do rapaz), nas quais a inveja não se concentra mais no seio, mas sim no fato de que a mãe é quem recebe o pênis do pai, quem carrega os bebês dentro de si, quem os dá à luz e que é capaz de alimentá-los.”
A inveja do pênis é, certamente, uma realidade, se a entendermos num sentido metafórico, como inveja das prerrogativas masculinas e, ocasionalmente, também no sentido literal, como parte do desejo de se identificar com o sexo privilegiado até mesmo fisicamente, e também apontando uma desidentificação correlata da mãe odiada. Não obstante, tenho por certo que o tema fundamental é amor, e apenas em posição secundária o sexo. A contribuição mais original de Klein ao destacar a natureza primitiva da inveja advém de enfatizar seu aspecto destrutivo de “estragar o objeto”.
Se a estrutura masoquista é hoje amplamente reconhecida entre os leigos de certa cultura psicológica, isso não deve ser atribuído tanto à influência de Melanie Klein (que não chegou a delinear um tipo de personalidade centrada na inveja) nem à de Reich (pois, na bioenergética, a palavra masoquista desviou-se de seu significado original para passar a designar a nosso ciclotímico eneatipo IX), mas sim à obra de Erich Berne “Games People Play”,88 que oferece diversos ecos disso nos jogos intitulados “Ain’t it awful”, “Blamish”, “Kick Me” e “Broken Skin”. Segundo Berne, o jogo “Ain’t it awful” encontra sua expressão mais dramática nos “viciados em multicirurgia”: “Existem consumidores de médicos, pessoas que buscam ativamente se submeter a qualquer tipo de cirurgia, mesmo acima de uma certa oposição por parte dos médicos.” Em relação a esse tipo de pessoas, ele faz a mesma observação que Schneider constata em seus psicopatas “depressivos”: “Publicamente, mostram-se angustiados, mas em oculto, para si, sentem-se gratificados diante da perspectiva da satisfação que poderão extrair de sua desgraça.”
O jogo “Kick Me” (Dê-me um chute), diz Berne, “é o jogado por aqueles cujo comportamento social equivale a usar um cartaz que diga desde “Por favor, não me chute” até “Minhas desgraças são melhores que as suas”.”
Em “Scripts People Play”, de Steiner, é descrita uma pauta de conduta vital, rotulada como “Coitadinho de Mim”, que se caracteriza por desempenhar o papel de um vítima que está buscando um salvador.89 Cito algumas de suas observações mais originais:
“Ela experimenta alguma intimidade ao se colocar em seu estado de “Menina” em relação ao estado de “Pai” dos outros, mas raramente experimentou a intimidade a um nível de igualdade. Ao ter permissão para ser infantil, pode ser espontânea de uma maneira infantil e impotente e pode inventar muitas formas de agir como uma “louca”. Aprende que consegue as coisas mais facilmente ao contar seus problemas aos outros, e assim se vê impelida a não abandonar essa imagem de si. Gasta um monte de tempo queixando-se de como tudo é horrível, tentando conseguir que alguém faça algo para remediar. Ela continua demonstrando que é uma vítima, criando situações nas quais primeiro manipula os outros para que façam algo por ela que eles realmente não querem fazer, sentindo-se depois perseguida por eles quando estes se sentem ressentidos com ela.”
Otto Kernberg,90 como já mencionei, chama a atenção ao fato de que o DSM III ignorou a personalidade masoquista-depressiva. Eis aqui sua descrição:
“A pessoa insere a si mesma em situações que a levam ao fracasso e que trazem consequências dolorosas, mesmo quando claramente tem outras opções melhores disponíveis [...]
Recusa ofertas razoáveis de ajuda de outras pessoas [...] Reage a eventos pessoais positivos com depressão ou com sentimentos de culpa [...] Caracteristicamente, as pessoas que apresentam este transtorno agem de modo a irritar ou serem rejeitadas pelos outros [...] Podem evitar repetidamente oportunidades prazerosas [...] Com frequência, tentam fazer pelos outros coisas que exigem um sacrifício excessivo, o que lhes proporciona um sentimento de orgulho e eleva sua autoestima.”
Dado que as pessoas que apresentam um caráter masoquista tipicamente percebem a si mesmas como carregadas de problemas e buscam ajuda, podemos nos perguntar como eram diagnosticadas até agora pelos usuários do DSM III. Imagino que muitos seriam classificados na categoria de “transtorno de personalidade borderline”, pois, apesar de Kernberg ter proposto uma acepção mais geral da expressão “borderline” (referindo-se a um nível psicopatológico mais do que a um estilo interpessoal específico), na prática o diagnóstico de “borderline” é realizado em termos de características próprias do eneatipo IV, tais como a variabilidade do estado de ânimo, autocondenação, impulsividade, raiva, dependência excessiva e transferência tempestuosa.91
A análise grupal de Grinker, baseada em uma amostra de população borderline, também confirma a associação dessa categoria diagnóstica com o eneatipo IV, pois nos três grupos resultantes posso reconhecer os três subtipos do eneatipo IV da protoanálise: o enfurecido cheio de ódio, o culpado envergonhado e o deprimido.92
Em sua descrição dos borderlines, Millon escreve:93
“Não apenas precisam de proteção e segurança para manter sua equanimidade, mas também são extremamente vulneráveis à separação dessas fontes externas de apoio. O isolamento ou a solidão pode aterrorizá-los, não só porque os borderlines carecem de um sentido intrínseco de seu próprio ser, mas também porque lhes faltam os meios, a perícia e o equipamento necessários para poder empreender ações maduras, decididas por si mesmos e independentes. Incapazes de se valerem por si adequadamente, não apenas temem eventualmente perder algo, mas frequentemente antecipam essa perda, “veem” como vai acontecer, quando de fato não tem por que ser assim. Além disso, como a maioria dos borderlines subestimam seus próprios méritos, acham difícil acreditar que aqueles de quem dependem possam pensar bem deles.”
“Portanto, são excessivamente temerosos quanto à desvalorização e rejeição dos outros. Com uma base de autoestima tão instável, e carentes dos meios para levar uma existência autônoma, os borderlines se mantêm constantemente à beira, prestes a cair na ansiedade da separação e prontos para antecipar o abandono inevitável. Os eventos que despertam esses medos podem precipitar esforços extremos para restabelecer o equilíbrio, seja através da idealização ou da própria abnegação, ou por outras atitudes autodestrutivas com as quais buscam atrair a atenção, ou ainda, pelo contrário, através de atitudes autoassertivas e o impulso da raiva.”
O aspecto masoquista do eneatipo IV fica claramente retratado na observação de Millon de que “sacrificando” a si mesmos, os borderlines:
“não apenas garante o contato contínuo com os outros, mas também oferece a estes um modelo implícito de como receber, por sua vez, um tratamento gentil e considerado por parte deles. A atitude de mártir virtuoso, mais do que a de sacrifício, é uma artimanha de submissa devoção com a qual o borderline reforça o vínculo que necessita.”
Sobre a própria depressão, observa que:
“[...] a angústia, desespero e resignação suplicantes que os borderlines expressam servem para aliviar as tensões e exteriorizar a tortura que sentem em seu interior. Alguns, no entanto, expressam sua raiva principalmente através de uma atitude de letargia depressiva e comportamento mal-humorado. A depressão lhes serve como um instrumento para frustrar e retaliar contra aqueles que “falharam” ou que “exigem demais” deles. Irritados com a “falta de consideração” dos outros, esses borderlines usam sua tristeza sombria e melancólica como meio de “se vingar” ou de “dar uma lição” a eles. Além disso, ao exagerar a dificuldade de sua situação e se mostrarem impotentemente deprimidos, conseguem evitar com eficácia responsabilidades e lançar cargas adicionais sobre os ombros dos outros, fazendo com que suas famílias não apenas cuidem deles, mas também sofram e se sintam culpados enquanto o fazem.”
Acredito que a discussão mais completa e intuitiva do caráter masoquista até hoje na literatura é a de Karen Horney, que, no entanto, às vezes fala dessa síndrome generalizando em excesso o aspecto de “autonegação”. Eis aqui o que Harold Kelman, discípulo de Horney, disse do masoquismo na “International Encyclopedia of Psychology”:94
“Segundo Horney, o masoquismo não é nem um amar o sofrimento como tal, nem tampouco um processo de autonegação biologicamente predeterminado. É uma forma de se relacionar e sua essência é o enfraquecimento ou a extinção do eu individual e a fusão com uma pessoa ou poder que se pensa ser maior do que si mesmo.”
“Essa observação corresponde ao aspecto autolimitador da inveja e ao intenso desejo de absorver em si mesmo os valores percebidos nos outros, bem como à sua disposição a sofrer por este “amor”, ou, mais precisamente, por essa necessidade de amor. O artigo continua: “O masoquismo é uma forma de lidar com a vida através da dependência e da autodiminuição. Embora isso seja mais evidente na área sexual, abrange todo o espectro das relações humanas. Como parte do desenvolvimento de um caráter neurótico, o masoquismo tem seus próprios objetivos específicos e um sistema de valores. O sofrimento neurótico pode servir aos propósitos de evitar recriminações, competitividade e responsabilidades. É uma forma de expressar acusações e vingança disfarçadamente. Atraindo e exagerando seu sofrimento, justifica suas exigências de afeto, controle e reparação. No sistema distorcido de valores do masoquismo, o sofrimento é elevado a uma virtude e serve de base para reivindicar amor, aceitação e recompensa. Uma vez que o masoquista se orgulha e se identifica com seu eu aotonegador, sofredor e desvitalizado, a consciência de impulsos contrários, de ordem expansiva ou autoexaltante, assim como o esforço saudável para crescer, seriam destrutivos para sua autoimagem. Abandonando-se a um ódio intransigente pela parte intolerável de si mesmo, o masoquista tenta eliminar o conflito que lhe é imposto por seus impulsos contraditórios, e assim ele mergulha no ódio a si mesmo e no sofrimento.”
Em “Neurosis and Human Growth” (“Neurose e Crescimento Humano”), Karen Horney dedica um capítulo à “Dependência Doentia”, onde começa comentando o fato de que, entre as três possíveis “soluções” para o conflito básico entre aproximar-se dos outros, afirmar-se contra eles e se retirar, a que implica “apagar a si mesmo” envolve maiores sentimentos subjetivos de infelicidade do que as demais:
“O sofrimento genuíno do tipo aotonegador pode não ser superior ao de outras formas de neurose, mas subjetivamente esse indivíduo se sente desgraçado com maior frequência e intensidade do que os outros indivíduos devido às muitas funções que o sofrimento passou a desempenhar para ele. Além disso, suas necessidades e expectativas em relação aos outros lhe provocam uma dependência excessiva deles, e se toda dependência forçada é dolorosa, esta é particularmente infeliz, pois sua relação com as pessoas não pode deixar de ser dividida. No entanto, o amor (mesmo em um sentido amplo) é a única coisa que proporciona um conteúdo positivo à sua vida.”
“O amor erótico atrai esse tipo como uma plenitude suprema. O amor lhes parece, e não pode ser de outra forma, como um passaporte para o paraíso, onde toda a penitência termina: não mais solidão, não mais sentir-se perdido, culpado ou indigno; não mais responsabilidade por si mesmo; não mais luta contra um mundo áspero diante do qual se sente irremediavelmente desprotegido. Em vez disso, o amor se apresenta para eles como uma promessa de proteção, apoio, afeto, ânimo, simpatia, compreensão. O amor deve dar um sentido de merecimento e um significado à sua vida, sendo para ele a salvação e a redenção. Não é de se surpreender, portanto, que para ele as pessoas muitas vezes se dividam entre quem tem e quem não tem, não em termos de dinheiro ou status social, mas de estar (ou não estar) casado ou ter um relacionamento equivalente.”
Além de destacar essa “inveja de amor”, essa autora continua explicando o significado que reveste o amor para este tipo, em termos de tudo o que ele espera do fato ser amado, e observa também como os psiquiatras, ao descrever a qualidade do amor das pessoas dependentes, insistem unanimemente nesse aspecto, rotulando-o de parasitário, absorvente ou “erótico oral”:
“E este aspecto deve, de fato, ser posto em primeiro plano. No entanto, para a pessoa autonegadoras típica (isso é, aquela em que predominam as tendências autonegadoras) é tão atraente amar como ser amada. Para ela, amar significa se perder, mergulhar em sentimentos mais ou menos extáticos, fundir-se com outro ser, tornar-se um só coração e uma só carne com ele, e encontrar nessa fusão a unidade que não pode encontrar em si mesmo.”
Se o fato de uma descrição do eneatipo IV não constar no DSM III (antes de sua revisão) era surpreendente, é igualmente surpreendente não encontrar um eco claro do mesmo entre os tipos psicológicos de Jung. Eu esperaria encontrar suas características sob a etiqueta do “tipo sentimental introvertido”, pois certamente é um dos tipos em que predomina o sentimento e é, além disso, o mais introvertido de todos eles, como indica sua proximidade ao eneatipo V no eneagrama. No entanto, o que Jung diz sobre o tipo sentimental introvertido se aplica apenas de uma maneira muito fragmentada. Sua afirmação de que “é principalmente entre as mulheres onde encontrei que predomina o sentimento introvertido” é aplicável, já que, de fato, o tipo masoquista depressivo predomina principalmente entre as mulheres. A importante afirmação de Jung de que “seu temperamento se inclina à melancolia” também se encaixa. No entanto, a maior parte do que Jung afirma a este respeito acaba sendo mais apropriado aos eneatipos V e IX do que para o eneatipo IV.95
Voltando aos retratos feitos por Keirsey e Bates96 de indivíduos ajustados aos resultados dos testes correspondentes, encontro incluídas características do eneatipo IV nos dois subtipos do sentimental introvertido, o INFJ e o INFP. Os INFJ (nos quais predomina o julgamento sobre a percepção) são descritos como dotados de fortes habilidades empáticas, especialmente em relação a enfermidades ou infortúnios dos outros; também, como vulneráveis e inclinados à introjeção, imaginativos e capazes de criar obras de arte; são “os mais poéticos dentre todos os tipos”. Os INFP (nos quais predomina a percepção sobre o julgamento) são descritos como pessoas que têm “a capacidade de cuidar dos outros”, o que nem sempre se encontra em outros tipos, e também como idealistas que vivem um paradoxo: “buscadores da pureza e da unidade, mas olhando com desdém para os desonrados e deformados.”
A personalidade correspondente ao eneatipo IV na tradição homeopática é a considerada afim ao Natrum muriaticum, isso é, o sal comum. Cito Catherine R. Coulter:97
“Mesmo na idade adulta, pode continuar insistindo erros ou ofensas cometidos por seus pais [...] No entanto, faz parte da complexidade e perversidade de sua natureza sofrer extremamente pela carência de afeto de seus pais, mesmo quando o rejeitam. Dessa forma, cria uma situação em que é impossível “ganhar” tanto para seus pais como para si mesmo [...] Às vezes, a patologia do Natrum Muriaticum decorre de uma rivalidade precoce com algum irmão [...]”
“Mais tarde, ao projetar suas experiências infantis sobre o mundo em geral, será fácil para ele detectar as repressões, rejeições, anseios frustrados e vitimizações dos outros [...] Provavelmente, o remédio está indicado sempre que o médico se sente tentado a aconselhar um paciente dos que “nunca esquecem” e passam a vida remoendo ofensas e desdéns passados, “esqueça sua dor” [...][...]”
O médico pode suspeitar que o Natrum Muriaticum “busque se ferir, mesmo inconscientemente, ou busque pelo menos se colocar em uma situação onde pode ser ferido [...]”
“Por outro lado, o Natrum Muriaticum pode ser seu pior inimigo ao permitir que alguma ferida emocional ou a nuvem de depressão que paira constantemente sobre ele se converta na lente através da qual enxerga a realidade. Um adjetivo apropriado para essa lente é o de “sombria”, pois implica não só isolamento, esterilidade e desolação, mas também tristeza e desânimo (“triste e abatido”: Hahnemann) [...]”
A pessoa Natrum Muriaticum é capaz de apreciar a beleza artística pelas associações melancólicas que ela desperta:
“às vezes, poderia escutar alguma música emotiva para se deleitar em sua dor agridoce ou para reforçar voluptuosamente alguma antiga (ou recente) ferida [...]”
“(“Evita a companhia, porque intui que pode facilmente entediar os outros”: Hahnemann). Isso se deve em parte à sua insegurança e também em parte ao seu egoísmo, que não lhe permite se resignar a permanecer um membro insignificante do grupo. Assim, o reverso dessa sincera preferência por permanecer inadvertido e em um segundo plano é a exigência subliminar por atenção especial e o sentimento de agravo quando os outros não respondem a isso [...] Em termos mais abstratos, a felicidade para o Natrum Muriaticum é apenas um sentimento efêmero, “transitório” (Alien). Como alguém pode sentir uma felicidade duradoura quando a perda está sempre esperando ao virar à esquina [...]”
“No entanto, acima e além de tudo, há o amor romântico! Com seu enorme potencial para dor, desilusão e tristeza, essa forma de amor está destinada a agarrar o Natrum Muriaticum por seu lado mais vulnerável [...] Mesmo se o seu amor for correspondido, ele pode se colocar diante de dificuldades insuperáveis, fomentando relações que inevitavelmente lhe causarão dor.”
Embora a personalidade enérgica de Lachesis possa evocar a do eneatipo VI contrafóbico, penso que sua correspondência perfeita seja a do eneatipo IV sexual:
“É altamente emocional, muito mais do que o Sulphur, em quem claramente predomina o intelecto. De fato, a intensidade do sentimento, que o Phosphorus trata de manter, está presente na Lachesis, tanto que frequentemente é incapaz de soltá-lo (o sentimento o possui mais do que ele possui o sentimento). Por último, este tipo tente fortemente à gratificação sensual [...] Se falta o efeito calmante de uma vida sexual normal, uma profunda depressão pode se instalar nele. O paciente pode apresentar um comportamento maníaco em sua paixão sexual.”
Como não é difícil reconhecer em Voltaire um eneatipo IV, considero particularmente interessante o seguinte:
“Voltaire, educado pelos jesuítas, o exemplo mais ressonante da ilustração do século XVIII (cuja natureza Lachesis podemos deduzir a partir de sua volumosa correspondência epistolar e dos comentários de seus contemporâneos sobre a deliberada exibição pública que gostava de fazer em sua vida), que passou grande parte de sua vida atacando a Igreja com sua língua afiada e sua pena maliciosa, e lançando invectivas fulminantes contra a existência da moral ou de uma deidade benevolente, deixou entrever através dessa obsessão que o acompanhou por toda a sua vida a fascinação pelo tema próprio de um Lachesis.”
3. ESTRUTURA DO TRAÇO
Inveja
Se entendermos a essência da inveja como um desejo excessivamente intenso de incorporação da “boa mãe”, o conceito se alinha com a noção psicanalítica de “impulso canibal”, que pode ser manifestar não somente como uma fome de amor, mas como uma voracidade ou avidez mais generalizada.
Embora uma cobiça culposa e controlada faça parte da psicologia do tipo IV, não é maior do que a cobiça exploradora e desinibida do tipo VIII, e não é tão peculiar dos carácteres invejosos como é a inveja na concepção de Melanie Klein.98
Estando ou não de acordo com Melanie Klein sobre as fantasias invejosas que ela atribui ao bebê em amamentação, creio ser razoável tomá-las como expressão simbólica de experiências do adulto e, mais particularmente, do característico processo de autofrustração que parece inseparável da inveja, como base constante de seu característico superdesejo. Qualquer que seja a verdade sobre os inícios da inveja durante a amamentação, na experiência de muitos a inveja não é experimentada conscientemente em relação à mãe, mas em relação a um irmão favorito, de tal modo que o indivíduo procurou ser este irmão, mais do que si mesmo, em busca do amor dos pais.
Há frequentemente um elemento de inveja sexual que Freud observou nas mulheres e que, a partir do ponto de vista de sua interpretação sexual e biológica, denominou como “inveja do pênis”. Como a inveja das mulheres também é experimentada por alguns homens em distintos termos eróticos, também poderíamos falar de “inveja vaginal”, embora eu acredite que as fantasias sexuais estão derivam de um fenômeno mais básico de “inveja de gênero”, que supõe um sentimento de superioridade do outro sexo. Dado o caráter patriarcal de nossa civilização, não é de se estranhar que a inveja em relação ao homem seja mais comum (de fato, as mulheres do eneatipo IV se destacam no movimento de libertação), mas ambas as formas da inveja sexual são notáveis no caso da identificação contrassexual que que subjaz a homossexualidade e o lesbianismo (ambos mais frequentes no eneatipo IV do que em qualquer outro carácter).
Outro campo de expressão da inveja é o social, onde pode se manifestar como uma idealização das classes superiores e um forte impulso de ascensão social — como retratou Proust, em “Recuerdo de las cosas pasadas” — ou, pelo contrário, como uma competitividade odiosa com o privilegiado, como Stendhal retratou em “Rojo y Negro”. Ainda mais sutilmente, a inveja pode se manifestar como uma busca constante pelo extraordinário e pelo intenso, com a correspondente insatisfação com o ordinário e o não dramático. Uma manifestação patológica primitiva da mesma disposição é o sintoma da bulimia, que observei ocorrer no contexto do eneatipo IV. Muita gente experimenta um eco sutil dessa condição: uma sensação ocasional de um vazio doloroso na boca do estômago.
Enquanto a avareza e, mais caracteristicamente, a ira são traços ocultos em síndromes de personalidades dos quais fazem parte (já que foram compensados por um desapego patológico e por traços reativos de bondade e de dignidade, respectivamente), no caso da inveja a própria paixão é evidente e a pessoa sofre pela contradição entre uma necessidade extrema e o preconceito contra ela. De igual maneira, à luz deste choque entre a percepção de uma inveja intensa e o correspondente sentimento de vergonha e vilania por ser invejoso, podemos compreender o traço de “má imagem” que abordamos a seguir.
Autoimagem pobre
O traço mais notável, do ponto de vista do número de descritores incluídos, é aquele que implica um conceito pobre de si mesmo. Entre suas características específicas, além da “má autoimagem” em si, figuram outras como “sentimento de inadequação”, “inclinação à vergonha”, “senso de ridículo”, “sentimento de baixa inteligência”, “feio”, “repulsivo”, “corrompido”, “venenoso”, etc.
Embora eu tenha preferido tratar a “autoimagem pobre” separadamente (refletindo assim a existência de um grupo conceitual independente de descritores), é impossível dissociar o fenômeno da inveja do desse sentimento negativo em relação a si mesmos, que os teóricos das relações objetais interpretam como a consequência da introjeção de um “objeto maligno”. Tal autodenigração é o que origina o “vazio” do qual surge a voracidade da inveja propriamente dita, em suas manifestações de agarramento, exigência, mordacidade, dependência e apego excessivo.
Concentração no sofrimento
Todavia, ainda não comentei sobre o grupo de traços designados habitualmente com a etiqueta de “masoquistas”. Para compreendê-los, deveríamos evocar, para além do sofrimento resultante de uma autoimagem pobre e da frustração de uma necessidade exagerada, o uso da dor como vingança e uma esperança consciente de obter o amor através do sofrimento.
Como resultado destes fatores dinâmicos e também de uma disposição emocional básica, os indivíduos do eneatipo IV não somente são sensíveis, intensos, apaixonados e românticos, mas também tendem a sofrer de solidão e podem abrigar um sentimento trágico em relação à sua vida ou à vida em geral.
Possuídos por um anseio profundo, dominados pela nostalgia, intimamente melancólicos e às vezes visivelmente lânguidos e chorosos, são em geral pessimistas, frequentemente amargos e algumas vezes cínicos. Traços associados são lamentação, queixa, desânimos e autopiedade. De particular importância no doloroso panorama da psicologia do eneatipo IV é o relacionado ao sentimento de perda, geralmente eco de experiências reais de perda e privação, às vezes presente como medo de uma perda futura e marcadamente manifestado como uma inclinação a sofrer intensamente pelas separações e pelas frustrações da vida. É particularmente notável a propensão do eneatipo IV à adesão ao luto, não só pelas pessoas, mas também pelos animais domésticos. É neste grupo, acredito, onde estamos mais perto do núcleo do caráter deste eneatipo, sobretudo na manobra de se concentrar no sofrimento e expressá-lo para obter amor.
Assim como em uma criança um aspecto funcional do choro é atrair os cuidados protetores da mãe, acredito que a experiência de chorar contém o aspecto de buscar atenção. Da mesma forma que as crianças do eneatipo III aprendem a brilhar para obter atenção (e aqueles que desenvolverão o eneatipo V ou o eneatipo VIII, sem esperanças de consegui-lo, preferiram a vida da retirada ou a vida do poder), aqui o indivíduo aprende a conseguir uma atenção “negativa” através da intensificação da necessidade, que opera não somente de maneira histriônica (por amplificação imaginativa do sofrimento e da expressão do sofrimento), mas também buscando situações dolorosas, ou seja, através de um curso doloroso da vida. De fato, para um indivíduo do eneatipo IV, o pranto pode significar não somente dor, mas também satisfação. Resta dizer que, como sugere a palavra “masoquista”, pode existir uma doçura triste no sofrimento. Embora seja sentido como real, por outro lado, não é, pois o principal autoengano do eneatipo IV consiste em exagerar uma postura de vitimização, que está intimamente ligada com uma atitude exigente e “reivindicadora”99.
Necessidade de comover
Mais do que qualquer outro caráter, os indivíduos do eneatipo IV podem ser chamados de “viciados em amor”, e sua ânsia de amor é, por sua vez, mantida por uma necessidade de reconhecimento que são incapazes de dar a si mesmos. A “dependência” que deriva disso pode se manifestar não somente como um agarrar-se às relações frustrantes, mas como uma aderência, um sutil abuso de contato que parece derivar não só da necessidade de contato, mas também de uma prevenção antecipada ou adiamento da separação.
O “desamparo”, comumente observado nos indivíduos do eneatipo IV, que, assim como no eneatipo V, se manifesta como uma incapacidade motivacional para cuidar de forma apropriada de si mesmos e pode ser interpretada como uma manobra inconsciente para atrair proteção, também está relacionado com a ânsia de carinho. A necessidade de proteção econômica, especificamente, pode ser baseada no desejo de se sentir cuidado.
Prodigalidade
As pessoas do eneatipo IV geralmente se consideram atentas, compreensivas, muito dispostas a pedir perdão, ternas, amáveis, cordiais, sacrificadas, humildes e, em algumas ocasiões, acolhedoras. Sua qualidade cuidadora não parece ser apenas uma forma de “dar para receber”, ou seja, dependente apenas da necessidade de amor, mas também de uma identificação empática com as necessidades dos demais, que algumas vezes os tornam pais preocupados, assistentes sociais compreensivos, psicoterapeutas atentos e defensores dos desvalidos.
A dinâmica dessa atitude cuidadora do eneatipo IV pode ser entendida como uma forma de sedução a serviço da intensa necessidade do outro e de sua dolorosa frustração. O cuidado com os outros pode ser exageradamente masoquista ao ponto de se autoescravizar, contribuindo assim para a autofrustração e a dor, que por sua vez ativam os aspectos exigentes e disputadores do caráter.
Emocionalidade
Embora implícita num alto nível de sofrimento, a palavra “emocional” merece um lugar à parte por si mesma, tendo em vista a determinante contribuição do domínio dos sentimentos à estrutura de caráter do eneatipo IV.
Estamos diante de um “eneatipo emocional”, como no caso do eneatipo II, mas aqui com uma maior dose de interesses intelectuais e introversão (de fato, estes são os dois tipos de caráter mais apropriadamente considerados emocionais, pois a palavra se ajusta com mais precisão a eles do que no caso da alegre e solícita sedução do glutão ou da ternura defensiva do covarde, mais abertamente medroso e dependente).
A qualidade de emocionalidade intensa se refere não só aos sentimentos românticos, à dramatização do sofrimento e às características de vício ao amor e dedicação aos outros, mas também à expressão de ira. As pessoas invejosas sentem o ódio intensamente e seus gritos são o mais impressionante.
Também presente nos eneatipos II e III, no canto direito do eneagrama, está essa qualidade que a psiquiatria chamou de “plasticidade”, referenciando a capacidade de interpretar papéis (relacionada com a capacidade de modular a expressão dos sentimentos).
Arrogância competitiva
Relacionada à emocionalidade do ódio, às vezes existe uma atitude de superioridade junto com — e em compensação de — uma má autoimagem. Embora o indivíduo possa estar fervendo de autodesprezo e ódio por si mesmo, sua atitude em relação ao mundo externo é a de uma “prima-dona” ou, ao menos, a de uma pessoa muito especial. Quando essa demanda de ser especial é frustrada, se pode ver complicada por um papel vitimista de “gênio incompreendido”.
Nessa linha, os indivíduos também desenvolvem traços de engenhosidade, conversação agradável, etc., com uma disposição natural para a capacidade imaginativa, a análise ou a profundidade emocional (por exemplo), que estão secundariamente postas e serviço da necessidade de contato e o desejo de despertar admiração.
Refinamento
Há uma inclinação ao refinamento (e sua correspondente aversão à grosseria) manifestada em descritores tais como “com estilo”, “delicado”, “elegante”, “com gosto”, “artístico”, “sensível” e, algumas vezes, “fazer-se de artista”, “afetado”, “maneirado” e “presunçoso”. Esses podem ser entendidos como esforços por parte da pessoa para compensar uma autoimagem pobre (de tal maneira que se pode considerar que a autoimagem feia e o autoideal refinado se mantêm reciprocamente).
Esses esforços pressupõem uma tentativa da pessoa de ser algo diferente do que é, talvez relacionado com a inveja de classe. A falta de originalidade que acompanha essa atitude imitativa perpetua, por sua vez, uma inveja da originalidade, do mesmo modo que a tentativa de imitar os indivíduos originais e o desejo de emular a espontaneidade estão destinados a fracassar.
Interesses artísticos
A característica inclinação do eneatipo IV à arte está sobredeterminada: ao menos uma de suas raízes reside no traço de refinamento do caráter invejoso. Também se baseia na disposição deste eneatipo, centrado no sentimento. Outros componentes são a possibilidade de idealizar a dor através da arte e, até mesmo, transmutá-la até o ponto de convertê-las em um elemento na configuração da beleza.
Superego forte
O refinamento talvez seja a forma mais característica no eneatipo IV de buscar ser melhor do que se é e, com isso, exerce a disciplina. De maneira mais geral, há um superego tipicamente forte que o caráter do eneatipo IV compartilha com o eneatipo I, mas, como um todo, o eneatipo IV tem mais consciência de seus padrões e seu ego ideal é mais estético do que ético. Juntamente com a disciplina (que pode atingir um grau masoquista), o superego característico do eneatipo IV inclui descrições de tenacidade e orientação às normas.
O gosto por formalidades sociais reflete tanto a característica de refinamento como a orientação às normas. Há, é claro, um forte superego implícito na propensão à culpa do eneatipo IV, em sua vergonha, auto-ódio e autodenigração.
4. MECANISMOS DE DEFESA
De acordo com a minha experiência, o mecanismo de defesa marcadamente dominante no tipo IV é a introjeção, cujo funcionamento torna-se evidente ao considerar a própria estrutura do caráter. Podemos dizer que a má autoimagem que o tipo IV possui é a expressão direta de ter introjetado um pai ou mãe que se rejeitava, e que do ódio a si mesmo implicado por tal introjeção resulta em uma necessidade invejosa de aprovação externa e de amor, como uma necessidade de compensar a incapacidade de amar a si mesmo.
O conceito de introjeção foi introduzido por Ferenczi em “Transferencia e introyección”100. Freud posteriormente adotou o conceito em sua análise dos processos de duelo (em “Duelo y melancolía”), onde observa que o indivíduo reage à perda de amor tornando-se como o amado (como se dissesse ao amado falecido: “não preciso de você, agora te levo dentro de mim”).
Enquanto Ferenczi e Freud enfatizam a ideia de introduzir em si mesmo um “bom objeto”, Melanie Klein destacou a importância dos maus introjetos. Nesses casos, é como se a pessoa, impulsionada por uma ânsia excessiva por amor, quisesse levar dentro de si uma figura parental a todo custo (ou seja, “masoquistamente”).
Seria útil destacar, quanto ao tema da introjeção, que Freud usava com frequência os termos introjeção e incorporação, sem diferenciar seus significados. No uso atual, “incorporação” tem o significado de uma fantasia de levar uma pessoa dentro do próprio corpo, enquanto a noção de “introjeção” é mais abstrata, de modo que ao falar de “introjeção do ego”, por exemplo, não haja uma referência particular aos limites do corpo. Da mesma forma, a palavra “internalização” às vezes é usada com o mesmo sentido de introjeção, embora fosse mais apropriado restringi-la para designar a transposição de uma relação do mundo externo para o mundo interno.
De qualquer maneira, mesmo nesse caso, o funcionamento está associado com uma introjeção. Como observam Laplanche e Pontalis101, “podemos dizer que [...] ao declinar o complexo de Édipo, o sujeito introjeta a imagem parental, ao mesmo tempo que internaliza o conflito de autoridade com o pai”. Da mesma forma, e mais especificamente em relação ao que estamos tratando, poderíamos dizer que o tipo IV internaliza a rejeição parental ou introjeta um pai ou mãe não amoroso, introduzindo em sua psique uma constelação de traços de variam desde uma má conceituação de si mesmo até a busca de uma distinção especial, contraindo um sofrimento crônico e uma dependência (compensatória) do reconhecimento externo.
Embora Melanie Klein dê muita importância a projeção no mecanismo da inveja (como na paradigmática fantasia de depositar excrementos no colo da mãe), acredito que o processo pelo qual no tipo IV “a familiaridade gera desprezo” (e pelo qual o disponível nunca é tão desejável como o indisponível) é mais como um “contágio”, no qual a autodenigração se estende àqueles que, por intimidade, chegaram a participar de alguma forma da “qualidade de si mesmo”. Ao contrário da situação de projeção, na qual algo é “expulso” da psique para não reconhecer sua presença, nessa situação não há uma negação das características pessoais, mas a manifestação do fato de que, nas personalidades mais dependentes, o sentimento de “eu” (que nunca é fixo, mas é, como Perls propôs, uma “função identificativa”) parece se estender ao mundo das relações íntimas.
Destaca-se também na psicologia do tipo IV (particularmente quando evidenciado no processo terapêutico) o mecanismo que a psicanálise chama de “voltar-se contra si mesmo” (mais ou menos o mesmo mecanismo que Perls chama de “retroflexão”). Se o ódio ou rejeição a si mesmo está implícito na noção de ter introjetado um “mau objeto”, a ideia de retroflexão sugere que a ira produzida como consequência da frustração é dirigida não unicamente à fonte externa de frustração (e ao frustrador original da própria vida), mas, devido à introjeção, a si mesmo.
Resta considerar, além do mecanismo de defesa principal, a existência de um forte conteúdo de repressão no tipo IV, para o qual a introjeção seria, especificamente, um mecanismo mais adequado. Acredito que poderia ser dito que a atitude mais evitada do tipo IV é a de uma superioridade exigente, tão natural no tipo I. À luz disso, podemos afirmar que a introjeção é um mecanismo que possibilita que a pessoa transforme a superioridade em inferioridade, ao adotar a estratégia masoquista nas relações interpessoais. É como se o introjeto fosse uma pedra amarrada ao pé da pessoa para garantir que ela afunde, ao mesmo tempo que mantém uma posição de necessidade e evitação de uma superioridade que poderia ter sido disfuncional no processo de adaptação da primeira infância. A exigência sobreviverá à transição do tipo I ao tipo IV, mas o senso de justiça ao exigir será transformado nesse trânsito associando a reclamação com a culpa, o que perpetuará a posição de inferioridade. Como em outros casos, a dinâmica representada na estrutura do Eneagrama não significa somente a repressão de uma emoção (a ira), mas sua transformação na seguinte (a inveja). Porque na inveja, pela intensificação das ânsias orais, o indivíduo busca satisfazer as mesmas necessidades que, na perspectiva do tipo I, são atendidas através de uma exigência assertiva.
5. OBSERVAÇÕES ETIOLÓGICAS E OUTRAS CONSIDERAÇÕES PSICODINÂMICAS
Constitucionalmente, o eneatipo IV apresenta na grande maioria dos casos uma estrutura corporal ectomesomórfica — nem com um ectomorfismo tão elevado como o tipo V, nem tão mesomórfico como o tipo III —, embora em alguns casos possam ter contornos corporais mais arredondados, sobretudo conforme vão tendo mais idade e também entre os homens. A hipersensibilidade e o nível de retraimento característicos do eneatipo IV estão, assim, em conformidade com a cerebrotonia que constitui a contrapartida do ectomorfismo. A plasticidade ou capacidade dramática do tipo IV (que compartilha com os outros carácteres que ocupam o canto histeroide do eneagrama) podem também ser devidas à sua específica dotação constitucional. Embora a presença de defeitos congênitos possa, por vezes, sustentar um sentimento de inferioridade (no sentido em que se diz, por exemplo, que os coxos são invejosos), mais comumente a estatura ou a falta de beleza física têm parte nisso. É claro, no entanto, que algumas mulheres do eneatipo IV são extraordinariamente belas, e a fonte de sua inveja deve ser encontrada em fontes de privação ou feridas à sua autoestima provenientes de seu ambiente.
Considero pertinente citar aqui o famoso estudo de Frieda Goldman-Eisler102, que apresenta uma correlação entre as tendências orais-agressivas e a problemática da amamentação. Essa correlação geralmente tem sido entendida como uma confirmação da ideia de que uma amamentação insuficiente persiste na forma de dor adulta; não obstante, cabe pensar que pode também refletir o fato de que uma criança dotada constitucionalmente de uma maior agressividade oral (isso é, com tendência a morder o mamilo) desagrada sua mãe, e isso pode contribuir para interromper o aleitamento. Além do que demonstra literalmente, pode ser considerado paradigmático da relação que, em termos mais gerais, existe entre a frustração infantil e o descontentamento adulto. Efetivamente, a psicanálise posterior tem destacado a importância da frustração em relação ao afeto materno em uma fase mais tardia, após a fase de “rapprochement”, em que se estabelece um vínculo precoce com ela. Isso explica a qualidade de “paraíso perdido que a experiência dos indivíduos do tipo IV oferece. Ao contrário do tipo V, que não sabe o que foi perdido, a pessoa do tipo IV se lembra muito bem ao nível emocional, embora não necessariamente na forma de memórias.
Em alguns casos, a intensa experiência de abandono não foi apoiada por um fato externo evidente, mas foi suficientemente sutil para não ser percebida pelos outros e pode ter permanecido esquecida até ser recuperada durante o curso de uma psicoterapia. Mais do que abandono, o que vemos nesses casos são eventos nos quais a criança ficou desiludida a respeito de um de seus pais, momentos em que descobriu que seu pai ou sua mãe nunca haviam estado realmente ali para ele ou para ela. Isso ocorre, por exemplo, no seguinte trecho retirado de uma entrevista:
“Eu queria ser uma dançarina de sapateado, tinha sete ou oito anos, e estava entusiasmada com a ideia. Lembro-me de que tínhamos muito pouco dinheiro. Tínhamos acabado de chegar a Nova York, e havíamos perdido tudo com a depressão econômica, e minha mãe tinha economizado e economizado e economizado. E de alguma forma, naquele exato dia, eu iria ter os meus sapatos de dança, os sapatos de sapateado e os collants, e meu pai iria à zona baixa de Nova York, no lado leste, para comprar alguns baratos, e lembro-me de que durante todo o dia eu estava, oh!, me sentindo transportada ao topo do mundo, no auge, e nessa tarde, enquanto subia a escada, lembro da minha mãe indo abrir a porta, e eu fui até ela, e a porta se abriu e ele não trazia nada consigo. Não trazia nada. Não trazia nenhum pacote. E então mamãe, quero dizer, eu não falava de outra coisa há anos, e mamãe se aproximou dele e disse “Bem, onde estão? Sabe, onde estão os sapatos de Mônica?”. E ele olhou pra ela, e naquele momento não conseguia lembrar. Não sei se ele não se lembrava ou o quê, mas disse: “Oh, acabei dormindo e esqueci eles no metrô”. E foi horrível. Acho que era tipo, sabe?, “você não vale a pena”.”
A história típica do tipo IV é dolorosa, e muitas vezes fica evidente que as causas que originaram a dor foram incomumente chamativas, de modo que as lembranças dolorosas não são apenas uma consequência de sua atitude reclamona ou de sua tendência a dramatizar sua dor. Além dos casos de rejeição, encontrei alguns exemplos em que houve a perda de algum dos pais ou outros membros da família. Também observei quão frequentemente sofreram a experiência de se sentirem ridicularizados ou menosprezados pelos pais ou por algum irmão. Às vezes, a pobreza contribuía para tornar a situação mais dolorosa para todos, e em outros casos, a sensação generalizada de vergonha era apoiada em uma diferença de cultura ou nacionalidade entre a família de origem e o ambiente.
No exemplo seguinte, convergem várias fontes de dor:
“Cresci numa rua onde predominava um grupo étnico. Mamãe e papai eram eslovacos, e todo mundo na rua falava eslovaco, e tínhamos uma pequena loja onde se vendia de tudo, e as crianças brincavam juntas. Então, para mim, era muito estranho ir à escola, uma escola inglesa, e logo voltar para casa e me encontrar em um ambiente completamente distinto, numa cultura diferente. E minha cunhada, que estava casada com meu irmão, é inglesa, e diz que lhe diziam para nunca ir à Water Street, a minha rua, porque era onde estavam todos “aqueles garotos”, já sabe, com os que não se deve andar, e, conforme ia crescendo, sempre tive a sensação de que eu era muito diferente. O que eu também gostaria de comentar é o abandono por parte da mamãe, e isso aconteceu por umas duas ou três vezes. Quando o papai se enfurecia, mamãe recuava. Quando precisávamos fazer alguma mudança, como quando precisamos nos mudar de casa, ou encontrar um emprego para ele, ela era quem mandava, mas quando ele ficava violento e rude — e ele era violento —, então ela recuava e ficava em segundo plano, e podia dizer “não faça isso”, ou nem sequer isso [...] Uma vez em que houve muita violência, nem mesmo me lembro dela cuidando de mim depois. Não me senti abandonada por minha mãe fisicamente. Ela estava lá e eu me senti usada para, de alguma forma, satisfazer as necessidades dela. Meu pai foi à guerra, e ela me vestia e me deixava bonita, e me levava com ela para todos os lugares, e eu era a primogênita, a primeira filha, a primeira neta por parte do meu pai, e minha avó cuidou muito de mim mais tarde, quando minha mãe estava muito ocupada com a loja depois que nos mudamos da casa da minha avó, mas minha mãe me levou para a casa da minha avó quando eu tinha dois meses, já estávamos viajando no trem de ida e volta. E eu tive que viajar muito toda a minha vida, muito movimento de ir e voltar. Talvez eu [...], ou isso tenha conexão com meu mundo interno, sempre estou indo de um lado para outro, não sei. Outra coisa que queria [...] bem, ser usada, usada de todas as formas possíveis — vítima e bode expiatório —, e por quase todos os membros da família, e então o sentimento de ser usada em meus relacionamentos depois de um tempo sempre que me permiti sentir bem o prazer e a me sentir cheia e completa, chegar a um ponto em que de repente me senti usada. E então, tipo, deixar tudo, e parar tudo, e em tudo isso com muitíssimo medo. Não sei por que o sentimento de ser usada e o medo têm que vir juntos aí.”
Além do contexto racial, o sentimento de não ter uma família normal pode ser inspirado pela presença do alcoolismo ou por outras vergonhas familiares, tornando-se assim uma fonte de inveja. Uma filha de pais pobres, por exemplo, disse: “Sentia inveja de uma menina que ia para a escola de uniforme.”
A presença de irmãos é, evidentemente, um fator frequente na gênese da inveja. Assim, por exemplo, diz um jovem: “Eu era o quinto de sete, e não andava nem com os mais velhos nem com os mais novos. Me sentia sozinho, não havia espaço para mim.”
Outro homem diz: "Eu era um menino entre quatro meninas. Minha mãe não me tocava muito, como se evitasse me fazer 'mole', para não ser como as meninas, mas ao mesmo tempo eu recebia a mensagem de 'não seja como seu pai'. Eu sentia muito a falta de carinho e sentia vergonha."
Outro ainda diz: “Eu fui o mais velho dos meus irmãos, e tudo correu bem até que os outros começaram a aparecer, então entrei em uma dinâmica de incessante competitividade e muita queixa.”
E outro: “Eu chorava muito, sentia a concorrência de meu irmão, que estudava muito e era um atleta. Eu buscava refúgio nos livros e me identificava com o que lia.”
Particularmente chamativo na história precoce das mulheres do eneatipo IV é a presença frequente de uma relação mais ou menos incestuosa com o pai, ou de abuso sexual por parte de algum outro parente masculino.103 Para algumas, essa experiência não foi problemática (“Sinto falta do contato físico que costumava ter com meu pai”). Para outras, foi fonte de dificuldades com o progenitor do mesmo sexo. E outras o lembram com repugnância ou com sentimento de culpa. A seguinte situação com certeza não é única: “Eu amava meu pai, ele me fez sentir uma mulher feliz, mas me ridicularizou e mais tarde me rejeitou.”
A maioria dos indivíduos do eneatipo IV responde “sim” à pergunta de se receberam mais atenção e cuidado através do sofrimento e da necessidade. “O prazer estava proibido”, diz um, “o melhor incentivo era uma causa razoável”. Outra observa: “Não prestavam a menor atenção se a surra que me davam estava justificada”. E outra apontava que sempre se fazia de vítima para chamar a atenção, mas que geralmente não conseguia e, em vez disso, era rejeitada.
É claro que, em algumas ocasiões, o menino ou a menina do tipo IV não era consciente de seu sofrimento até a puberdade, ou então sofria em segredo. Assim, um respondia à pergunta anterior “sim e não, “não” porque era um sofrimento silencioso e poucas pessoas o viam, e “sim” porque minha cara e meu corpo o expressavam e isso atraía a atenção.” Naturalmente, não é raro que os pais reajam de modo diferente às necessidades do filho: “Minha mãe tinha compaixão e acolhia bem meu sofrimento, embora nem sempre me prestasse atenção quando eu chorava.” Ocasionalmente, é possível descobrir um elemento de sedução ao adoecer, como quando a mãe gosta de fazer o papel de enfermeira: “Minha mãe gostava de cuidar de mim quando eu ficava doente, e assim ela me dominava.”
É muito comum entre as mulheres "autonegadoras" terem tido uma mãe do mesmo caráter junto com um pai fraco. Também observei uma maior presença de pais sádicos (eneatipo VIII) nas histórias dos indivíduos do tipo IV do que em qualquer outro tipo, exceto o próprio tipo VIII. Em tais casos, naturalmente, a relação sadomasoquista com o progenitor do sexo oposto contribuiu para a cristalização do estilo geral de personalidade.
Em geral, podemos dizer que o indivíduo sofredor cultiva internamente seu sofrimento, como esses mendigos em países do Oriente que cultivam suas próprias feridas. Enquanto o tipo I busca ser bom e reclama o que lhe é devido em nome da justiça, o tipo IV reclama somente em nome de sua dor e de sua necessidade insatisfeita. Se a busca pelo amor no eneatipo I é uma busca por respeito, no tipo que se autorrejeita ela se torna, em algum grau, uma busca implicitamente dependente por cuidado e empatia.104
6. PSICODINÂMICA EXISTENCIAL
Embora tenhamos boas razões para crer que o modelo da inveja se origina na frustração das necessidades precoces da criança e possamos entender a dor crônica deste caráter como um resíduo da dor do passado, é útil considerar que, para os indivíduos do eneatipo IV, prender-se em seus lamentos sobre o passado também pode ser uma armadilha. Da mesma forma, embora seja bastante verdadeiro que o que a criança necessitava e buscava com urgência era amor, a busca exagerada e compulsiva por amor no presente pode ser considerada como uma disfunção e apenas como uma miragem ou interpretação aproximada do que o adulto necessita urgentemente, que, mais do que apoio exterior, reconhecimento e carinho, é a capacidade de se reconhecer, se apoiar e amar a si mesmo, bem como o desenvolvimento do sentido de si mesmo como centro, que poderia contrabalancear a expectativa “exocêntrica” de bondade vinda do exterior.
Podemos considerar a psicologia do eneatipo IV precisamente do ponto de vista de um empobrecimento do ser ou da individualidade que a inveja tenta “completar” e que, por sua vez, é perpetuado através da autodenigração, da busca do ser através do amor e da emulação dos outros (“Sou como Einstein, logo existo”). A psique do eneatipo IV funciona como se, numa idade precoce, tivesse chegado à conclusão: “não sou amado, logo não tenho valor”, e agora perseguisse o valor através do amor que uma vez lhe faltou (“me ame tanto que eu saiba que está tudo bem como sou”) e através de um processo de distorção por autoaperfeiçoamento, pela busca de algo diferente e presumivelmente melhor e mais nobre do que o que se é.
Esses processos são autofrustrantes, porque é provável que o amor, uma vez conseguido, seja invalidado (“se ele me ama, é porque ele não pode valer nada”) ou, tendo estimulado exigências neuróticas, leve à frustração e também à invalidação nesse aspecto; mas, mais fundamentalmente, a busca do ser através da emulação da personalidade ideal se fundamenta na rejeição de si mesmo e na cegueira ao valor do verdadeiro eu (assim como a perseguição ao extraordinário pressupõe um desprezo pelo ordinário). Por isso, o eneatipo precisa, além de reconhecer tais armadilhas, e mais do que qualquer outro caráter, desenvolver o autoapoio: um autoapoio que deriva, em última instância, de uma consciência apreciativa e de um sentimento de dignidade do eu e da vida em todas as suas formas.
Existe uma patologia de valores implícita na inveja, que pode ser explicada à luz da metáfora (que encontrei em “The Book of Good Love”, de Hita105) do cachorro que carregava um osso e que, acreditando que seu reflexo na poça d’água era outro cão com um osso mais desejável, abriu a boca para tentar apanhá-lo, assim perdendo o osso que já tinha. Podemos dizer: o reflexo de um osso não tem “ser”, assim como não há ser nas autoimagens tanto idealizadas como depreciadas.
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[EBID-3] Ternura & Liberdade
3. Amor; Individuação; Luta; Conexão; Concessão; Descanso
Vejo que o Amor é fruto da mesclagem/amálgama entre a Paixão e o Desprezo. Não é uma estrutura homogênea e definitiva como Luz e Escuridão, ou Desprezo e Paixão. Não. O Amor é ambos, é um estado de equilíbrio entre eles: é inconstante como a Paixão, mas estável como o Desprezo. Impetuoso! Mas controlado. Pensar num estado arcaico de "justiça" imutável onde há uma parte igual para cada um é errôneo quando se pensa em Amor (e, com considerações de que "tudo é Amor", tal compreensão parece muitas vezes ser incabível). Gosto de pensar em um Yin Yang instável, cujo as duas partes de si estão em constante batalha. Não mentalizo algo bem dividido e delimitado, mas unido (conectado) por gradientes... É como o encontro das águas de dois rios.
Amor não seria exatamente um sentimento, que surge de repente e se mantém, e muito menos uma emoção, que é fruto de impulsos carnais momentâneos. Diferente de tudo isso, o Amor é uma prática! Não poderia caracterizar tal estrutura senão pelo termo "luta". Gosto sempre de elaborar sobre Jesus Cristo quando penso sobre o Amor deslumbrista. Digo que "é impossível viver sem virar a outra face", o que também pode nos trazer ao "mantra" de que a luta é a cura e o dever de todos os espíritos desagradados.
Dentro de um edifício de Amor, a temperatura varia com frequência. Ora a frieza é soberana, ora o prédio é incendiado... Constantemente o nível de um ou de outro se eleva sobre o outro, simplesmente porque é necessário. É imprescindível, no Amor, que um dos lados se permita diminuir por um certo tempo para que o outro possa ter o espaço necessário. Amor não é sobre controle e moderação: é sobre intensidade, liberdade, concessão. Se não permitires que a Chama queime, o Ouroboros há de se tornar exponencialmente autoabsorto; e, se não deres à Frieza o tempo e o espaço necessário, serão erguidas muralhas de rancor ante qualquer Paixão.
Uma vez que cada uma das estruturas tem a devida oportunidade de se expressar tão intensamente quanto necessário e de se conectar à mesma medida, existe a verdadeira conexão, que envolve eventuais sacrifícios de si mesmo em nome do outro, que, sabe-se, tornará a sacrificar-se por ti à mesma medida ou superior futuramente. A "verdadeira conexão" que o Amor representa, tendo como núcleo a Paixão, permite a entrada de um indivíduo, ideia ou sentimento através da barreira de Escuridão com a qual protege-se do mundo. A conexão é um estado de "perda de controle" e maturidade, é a permissão de devida intensidade do Fogo, auxiliado pela consciência do Gelo.
E, como "tudo é Amor", é justo compreender que não falo somente de indivíduos - e, até, sinto que Amar a indivíduos e pessoas é muito mais difícil do que a outras coisas. Simplesmente, se não existe luta, sacrifício, concessão, maturidade e esforço, não é Amor. Mas, de igual modo, é preciso que haja uma Paixão intensa, sincera e singela, controlada por um Desprezo consciente, racional, justo e não-rancoroso.
O Amor é o 'destino final' dos espíritos apaixonados. É algo que salva a alma. Uma vida sem Amor não é vida, como uma existência sem Conhecimento não é existência. O Amor nos torna presentes através do movimento, da conexão e do direcionamento ao futuro. Enquanto nos mantivermos olhando para trás, seremos incapazes de Amar algo. Porque não vem do que já se viveu, mas do que tanto anseia. Não do que é averso ou teme, mas do que se conecta. Traz força. Desde a arte até a atividade, do conhecimento à exploração, o Amor está presente em todos os lugares nos quais nos sentimos confortáveis e nos esforçamos para manter. De um escritor a um atleta, de uma criança a um adulto, de uma máscara a uma face, dos presentes aos existentes, dos abismáticos aos paraisiais, todos Amamos algo. Como o Conhecimento, o Amor é o Norte de todos aqueles que desejam viver.
"Vimmo": "A luz e a escuridão seriam o quê?"
Uma forma mais geral de distanciamento. A luz se distancia "para cima", ofuscando. Fica "acima" da realidade concreta. A escuridão consiste numa realidade concreta. Se conecta com a parte mais brutal de ser parte da natureza, e se entende como parte de um todo. Se distancia da realidade concreta afundando nela, e vendo-a cada vez mais de longe, vendo cada vez menos de si. Já a luz, não é "verdade preta", como a escuridão. Luz é mentira, falsidade, imaginação, entre outras coisas.
"Vimmo": "Mas então, tem algo que acho meio contraditório. Se luz representa conhecimento, e a escuridão simula a mais real existência, quanto mais saber, mais deveria se aproximar do que se é real, sendo a escuridão. Só que, nesse caso, se aproximaria mais da luz, e distanciaria da verdade."
Na verdade, a luz representa ofuscamento. Pela velocidade, tudo é distorcido. E pela solidez, tudo é inanimado. A questão é sobre a escuridão é que ela não se aproxima de nada, porque está distante de tudo, porque não tem uma luz ou um calor que a guie e eleve. Podemos imaginar o seguinte esquema: uma linha horizontal, à qual estão amarradas um balão (luz) e uma pedra (escuridão). Conforme crescem, um "afunda" mais, enquanto outro mais se eleva. Assim sendo, no Amor, a luz puxaria a escuridão para cima, e a escuridão traria a luz não mais para "baixo", mas para 'perto'. Chamo essa linha, entre a luz e a escuridão, sejam elas quais forem, de "linha da presença" — ou simplesmente presença. E é justo que "nesse caso, se aproximaria mais da luz, e distanciaria da verdade"; isso infere que não existe "a verdade", somente a presença.
Sei lá, é só imaginar um balão subindo e uma pedra descendo, unidos por uma linha, e atuando separadamente. Uma parada disfuncional, como colocar um pão com geleia em cima de um gato, então não caem, KAKAKAKAKA!
"Vimmo": "Então nenhuma das duas tem uma razão em si, é uma parada irracional. Como se as duas fossem maneiras de distorcer a realidade."
Sim! Falou bem. Se formos tomar essa proclamação, então há o ofuscar-se e o cegar-se. São duas formas de não sentir dor, de fugir. Podemos: 1 - encantar-nos com algo belo e que sobreponha as outras coisas; 2 - optar por não ver nada. Luz, paixão, é guerra; escuridão, conhecimento, é aceitação.
Não acho que grudar o balão e a pedra na linha pode realmente nos fazer completamente conscientes ou completamente carnais. Não acho que o Amor ou mesmo o Conhecimento podem nos trazer essa ideia que chamamos de "verdade". Mas pode nos curar das feridas do egoísmo com a sinceridade. Pode nos trazer à real vida: não à fuga ao prazer o à inconsciência. Não. A viver de verdade, apreendendo todos os oito amores com a devida sapiência: "Fati", Philautia; Pragma, Philia, Ágape, Storge, Ludus, Eros (desconsiderando o Mania).
O Amor, antes de um processo e um trabalho, é uma experiência. O Amor permite o 'abraço': uma experiência de conexão que não "salva", mas liberta; aproxima da presença. Se na vida estamos largados ao oceano, as pedras afundam, e os balões pairam. Uni-los permite uma proximidade maior da superfície. Através do abraço é que nos unimos. Permitimos um processo de individuação de ambas as partes, e é necessária a concessão constante. É impossível que uma árvore mazelada se cure no mesmo terreno árido. O abraço traz leveza à tensão da pedra, e consistência ao sopro do balão. No Amor, entre a luta interna e "contraexterna", existe uma zona segura de descanso: nosso jardim, entre o céu livre, em volta do inferno bem-contido. O Amor permite o cultivo do Éden.
(10/23)
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