#fronteiradopossivel
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na guerra de libertação
A língua colada no céu da boca feito velcro. Suor na nuca, atrás das orelhas. Têmporas latejanto. A primeira conclusão era ressaca. Aquele destilado nojento que ele fazia quando vinha batata nas rações dos soldados, que ele tinha aprendido a fazer na cadeia... bastava dois goles pra você querer morrer no dia seguinte. Mas não tinha batata nas rações fazia semanas. Tentou mexer as mãos — amarradas. Os pés, mesma coisa. Tinha sido capturado. Abriu os olhos e percebeu, para sua surpresa, que estava sentado. As mãos atadas atrás do encosto da cadeira de madeira e palha, surpreendentemente confortável. Seus pés fixados aos pés da cadeira. Diante de si, uma mesa, também de madeira, com dois copos de papel e uma garrafa de plástico com água. Do outro lado da mesa havia outra cadeira, vazia. E mais atrás, olhando para ele, um soldado, alto, moreno, com o rosto relaxado e um rifle atravessado em frente ao peito. O soldado percebeu quando ele abriu os olhos. Virou-se para trás, onde havia uma porta, abriu uma frestinha e falou baixo algo para alguém que estava do outro lado. Poderia ter falado alto, não fazia diferença; ele não entendia o idioma. O soldado fechou a porta e voltou a olhar na direção da mesa. Além do suor na nuca, sentia também as virilhas umedecidas. Os pés, dentro das botas, moviam-se como se estivessem submersos. Se conseguisse soltar as mãos... mas talvez não fosse inteligente fazer isso. Mexeu os membros procurando folgas nos nós, mas não achou nada: poderia muito bem estar pregado à cadeira. Olhou em volta mas com exceção da mesa, das cadeiras, dos copos e da garrafa, a sala estava vazia. A cabeça continuava latejando. Tentou se lembrar de como tinha ido parar lá. A memória mais recente que tinha era de quando saiu da base. Onde tinha ido? Ele e mais dois especialistas sob seu comando tinham uma missão. Lembrava dos holofotes dolorosamente fortes que iluminavam a saída da base com algo pesado nas costas, e as luzes foram sumindo na distância quando eles andavam. Batidas na porta. O soldado virou-se, abriu a porta e se afastou, olhando para o chão. Por ele passou um homem de altura baixa mas postura imponente. O rosto dele também estava tranquilo, assim como seus passos, e se não fosse o respeito evidente do soldado por ele, seria difícil imaginar que ele seria importante. Mas era o que parecia. Fez uma breve pergunta ao soldado, que lhe respondeu sem tirar os olhos do chão. Então virou-se e falou: "Me disseram que você já tentou matar um dos nossos. Quero soltar suas mãos, mas preciso que você prometa que não vai tentar nada de estranho". Por um momento, o espanto por ter entendido superou a dor de cabeça. Afinal, aquele homem de postura imponente tinha lhe falado na sua língua materna. Não tinha vontade de responder.
O homem imponente virou-se para o soldado e falou, de novo, no idioma deles. Rapidamente o soldado foi até atrás da cadeira e desatou suas mãos. Esfregou-as uma na outra para recuperar a sensibilidade. O soldado já tinha voltado à porta. Não havia nada que ele pudesse fazer com as mãos que compensasse a desvantagem de ter alguém com um rifle tão perto de si, e bloqueando a única saída. ** "Posso te servir de água"? "..." Pegou a garrafa e despejou água em um dos copos. Deslizou-o pela mesa até ele. Enchou o outro copo e pegou-o na mão, dando um gole. Depois ficou olhando por cima da mesa, com olhar de expectativa. "Não vou beber isso aí". Dobrando o corpo pequeno para a frente e esticando o braço, o homem imponente pegou o copo que estava do outro lado da mesa e deu outro gole. Voltou a sentar-se na cadeira. "Se é de veneno ou drogas que você tem medo, espero que isso te tranquilize". Talvez, se não fosse a dor de cabeça, ele conseguiria dizer se havia risco naquilo. Com a dor, só conseguia pensar na água. Esticou o braço, pegou o copo e bebeu. Tentou não demonstrar como estava sedento. "Por aqui me chamam de comandante Costa. Talvez você já tenha ouvido falar de mim”. Ele não tinha. “E você, como se chama?" "Vocês pegaram meus papeis, vocês sabem meu nome". "Sim, mas o costume é que quando duas pessoas se encontram assim, elas falam seus nomes uma para a outra" Hesitou "Meu nome é John Wick" O comandante Costa e o soldado atrás dele riram "Também é costume rir do nome dos outros? Só porque eles tem o mesmo nome de um personagem de filme?" "Não é isso. É que esse não é seu nome". "Vocês não viram meus papeis?" "Sim, e sabemos que eles não trazem seu nome verdadeiro". "Não sei o que dizer". "Bom, que tal dizer 'Jack Gonzalez'?" Gelou. Como ele sabia? "O que você está falando" "Ora, seu nome. Não precisa fingir" "Eu não sei quem você acha que capturou, mas..." "Jack Gonzalez, marido da Mirah Celadon, pai da Julie e da Valerie"? Era demais. "Que porra é essa? Como você sabe??" Queria bater na mesa, mas percebeu que seria inútil, além de perigoso. Só de ter levantado a voz, percebeu o soldado ajeitando as mãos no fuzil. "A gente sabe de coisa pra caramba. Mas não se preocupe, elas estão bem. E, para você não ficar muito em desvantagem..." Se mexeu na cadeira e tirou do bolso da bunda uma polaroid borrada que fez deslizar sobre a mesa até perto dele. Mostrava um casa abraçado, em trajes de gala. "Minha esposa se chama Cleide. Esse ao lado dela sou eu, embora hoje eu esteja com a cara toda acabada. Infelizmente ainda não tivemos a oportunidade de ter filhos". Olhou de volta para o comandante. De fato, o rosto dele estava endurecido, envelhecido. Quem visse apenas o rosto dele diria que a tropa da qual ele fazia parte estava sendo massacrada. E, no entanto, cá estavam. Mexeu nervosamente os dedos enxarcados de suor nas botas antes de perguntar: "O que você quer?" O comandante tinha se esticado de novo sobre a mesa para pegar a foto de volta. Nessa hora, pensou em tentar agarrar e torcer aquele braço, mas hesitou — ainda tinha os pés presos, e aquele homem não parecia alguém que se deixaria cair numa armadilha tão simplória. "Nós queremos te fazer uma oferta, Jack. Você tem algo que nós queremos muito. A localização da central de comando e comunicações — a C3. Em troca, nós também estamos dispostos a te dar algo muito valioso". De uma só vez, lembrou-se de tudo: a elusiva C3, que ninguém sabia onde ficava. As mochilas com os cartões de memória, os mapas, os códigos. As senhas e chaves criptográficas que ele teve que memorizar. A emboscada... depois da emboscada não havia mais nada. O comandante já tinha sentado de novo. Testou de novo a corda dos pés: ainda estavam presos. Limpou a garganta e provocou: "Minha vida, eu imagino?" "Sim... Mas talvez não como você imagina". "Como então? Vão cortar minhas mãos antes de me mandar de volta?" "Eu não sei qual propaganda passaram para o seu pelotão antes de te despacharem para cá, mas a gente não faz esse tipo de coisa por aqui". "Então?". "A informação que você tem é capaz de realizar o mesmo objetivo que eu tenho e que você tem: acabar a guerra. Se você colaborar, em algumas semanas você será um cidadão pleno nosso. Terá moradia e alimentação garantida pelo Estado, educação pública para as suas meninas, saúde pública para vocês quatro. Imagino que seja mais do que você tinha antes de te mandarem para tão longe, e muito mais do que você tem agora. Sua vida, do jeito que você merece viver". Era verdade. "E se eu recusar?" "Se você recusar, nós te mandamos embora" "Não é assim que se diz 'matar' nessa língua" "Eu sei como se diz matar. Nós não vamos te matar. Nós vamos te mandar embora. Para fora daqui. Te anestesiamos e você acorda em algum lugar no meio da selva aqui perto, com comida e água para dois dias". "Só isso? Nem um mordomo para me alimentar? Uma enfermeira gostosa pra cuidar das minhas feridas? Um prato típico para eu levar de presente para a base?" ** "Bem Jack, você sabe que isso aqui é uma guerra. A gente te daria um presentinho sim, mas não algo que você vá gostar. Acho que você nunca ouviu falar na doença de Lagas, não?" Ele nunca tinha ouvido falar. Ficou quieto. "Pois é. É uma doença dos países pobres, então muitos conterrâneos seus nem sabem que ela existe. Mas ela existe, e já matou milhões de pessoas no mundo todo... Bom, resumindo: é um verme que entra no seu sangue e se aloja no seu coração. Ele fica lá se alimentando e crescendo, fazendo o seu coração inchar junto com ele. E eventualmente ele faz seu coração explodir. Pode ser em alguns anos, em algumas décadas..." Fazia um tempo já que ele sentia o coração latejar nas têmporas, mas nesse momento parece que a sensação piorou. Queria mover as mãos, queria sair de lá, queria atacar o comandante, mas sabia que não tinha chance. Também não queria mover as mãos sem um propóstivo e por isso sentia-as como duas pedras sobre as coxas. "Por muitas décadas, essa doença devastou famílias por aqui. Não é só o infectado, a comunidade toda se sente condenada quando alguém pega. Imagina viver a vida sabendo que amanhã você pode morrer de repente. Ou que você pode chegar aos 60 e nunca sentir nada. Imagina saber que cada dia do seu pai, do seu marido, do seu filho, podem ser o último. É devastador. E mesmo assim, por décadas, ninguém se interessou muito em achar uma cura. Afinal, é uma doença de pobre. As pessoas que precisariam de uma cura nunca conseguiriam pagar por ela, e por isso a doença continuou arrasando justamente as famílias mais pobres daqui. E olha só, quando a gente finalmente resolveu expulsar daqui quem só nos explorava e investir na nossa própria população, a gente descobriu uma cura em questão de meses. Uma cura que é só um comprimido..." Mexeu de novo na cadeira e tirou, de outro bolso, um comprimido, que ele mostrou com braço esticado. "... que você toma uma vez". Pôs o comprimido na boca, pegou seu copinho de água e bebeu. "Sendo bem claro, Jack. Você agora está infectado com o parasita. Se você colaborar, tem outro comprimido desses no meu bolso pra você. Se não, você acorda amanhã em um local desconhecido, com comida e água para dois dias, e com o verme ainda no seu corpo. Talvez você sobreviva a guerra e talvez o seu lado ganhe, mas isso não vai te curar. E não acho que as três mulheres da sua vida mereçam passar por isso". Tinha afundado na cadeira. Estava ainda consciente demais das batidas do seu coração. O calor tinha passado, mas tinha sido substituído por um frio ainda pior. Seus dedos dos pés formigavam dentro da bota. Em frente à porta, o soldado lhe olhava com o que parecia ser uma mistura de empatia e cuidado. "Vou te dar um tempo para pensar", disse o comandante se levantando. Ao perceber o movimento, o soldado já se virou e abriu a porta. Viu então as costas do comandante Costa: sabia que aquele nome, naquela língua, também se referia àquela parte do corpo. E pensou de novo: quem só visse suas costas diria que seu exército estava sendo massacrado.
O dono das costas foi saindo lentamente e, perto da porta, acrescentou: "Ah, seus dois companheiros já aceitaram. Se você topar, quem sabe daqui a um ano vocês não comemoram junto o aniversário do Ahmet?" Jack não tinha a menor ideia de quem era Ahmet, mas lembrou-se que um dos especialistas que saíram com ele naquela noite tinha traços que ele achou que eram italianos. Seu nome era Dominic Ducocco, mas é claro que aquele não era o nome dele.
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