Círio, d. 1900 / Exposição Círio 1900
“Outubro e estou aqui no Leblon, manhã de domingo, a praia com redes de arrastão e moças queimadas jogando peteca, este companheiro que é o mar e duas ilhas, longe, desabrochando na espuma. No entanto deve sair esta manhã do largo da Sé, em Belém do Pará, o Círio de Nazaré, a velha e grande romaria paraense.
Vejo a Catedral, os telhados da Cidade Velha, tão preciosos e velhos, a voz colonial dos sinos, a multidão de pés descalços e embrulhos de promessas, um pé de cera, uma cabeça, velhas e meninas confundidas na mesma velha esperança e na ilusão do primitivo milagre.
Vou à Doca do Ver-o-Peso onde os barcos e as canoas, as montarias, os caboclos e as mulheres se agitam num estranho acompanhamento de romeiros. É a Doca, tão decorativa e suja, que me oferecia as alegres velas secando ao sol, quando eu vinha do Curro, triste e cheio de solidão e pobreza. Via na Doca os canoeiros, ao amanhecer, levantarem as velas para o sol. Na véspera caíra uma grande chuva, a pesada chuva do Pará. As canoas entravam na doca atordoadas pelo vento e batidas pela maresia. Traziam o açaí de Ponta de Pedras, o peixe de Marapanim e do lago Arari, os potes de barro e a lenha do Arienga, o fumo do Acará, o mel, a farinha e a cachaça de Abaeté. Ver-o-Peso é a doca dos barcos marajoaras, das canoas do Tocantins, Guamá, Salgado e do mar alto. Ali os canoeiros assam os peixes na proa dos barcos, tocam viola no toldo das canoas e das igarités, contam histórias do mau tempo e das enchentes, festas de santo, pescarias, pajelanças e fumam liamba que traz o sonho, o delírio e o encanto das caboclas distantes. É o Ver-o-Peso coloridos de velas, cheio de meus irmãos canoeiros paraenses. No amanhecer, as velas erguidas se enchem de sol e parecem crescer sobre os telhados, os velhos telhados coloniais da Cidade Velha. Eu descia do meu bonde de Curro Velho e sentia que, no amanhecer, toda a cidade, depois da chuva e da noite, ia acordando para ver surgir o que todos os canoeiros esperam na sua vida, entre as marés e os temporais: a fabulosa Cobra Norato que dorme debaixo da igreja da Sé, a rica e bela Catedral da Santa Maria de Belém.
No Ver-o-Peso, os canoeiros de Soure e da Vigia comiam os peixes mais gostosos do mundo e bebiam a cachaça mais doida que os homens inventaram, o cavaquinho do canoeiro acompanhava o ritmo da água enchendo na doca. A liamba andava entre os mastros ou levava os barqueiros para o fundo dos lagos e da igreja da Sé, para os tesouros enterrados. Esperei pela Cobra Norato na proa de uma canoa do Arari, os caboclos fumavam liamba, as caboclas estavam longe entre os aningais e as redes estendidas nas praias selvagens. A liamba adormece e traz o amor, a doçura de tudo alcançar, a febre e a morte. Nem os pajés têm a força para tirar o poder da liamba de cima dos caboclos. Tristes barqueiros solitários na madrugada ou na noite de chuva do Guajará.
Sujo, alegre de canoeiros, trançado de mastros - Ver-o-Peso. Penso na história dos seus barcos, dos seus barqueiros, dos seus navegantes fluviais. Na sua lama e nas suas velas que se levantam para o sol e os telhados coloniais, o Ver-o-Peso conta história do meu tio Antônio Piloto, barqueiro da Contra Costa, do Catumbi, que atravessava temporais bêbedo e acabou doido, do Mala Real e do Domingos do Araquiçaua que foi com a sua canoa para o fundo do rio diante do farol do Cutijuba.
Na manhã do Círio, as velas estão arriadas. Os caboclos caminham para o largo da Sé. Crianças choram nas ruas. Mulheres de sítios e vilas, pitorescas e graves, caminham descalças com o dinheiro e doces embrulhados nos lenços. Cobra Norato debaixo das pedras da Sé não acorda. Nem os portugueses da colônia, nem os frades e os cabanos. Nem os mortos de febre amarela que dormem hoje no Soledade. Defronte da Catedral está a Berlinda da Senhora de Nazaré, a santa sairá a caminho da Basílica e me lembro do primeiro Círio no meu tempo de menino. Meu espanto, meu medo de me perder no meio do povo, a romaria de estivadores, marinheiros, soldados, bêbedos gingando e gritando, uma onda suada e ruidosa de dia de Carnaval festejando a Senhora de Nazaré. Mas este Círio morreu, está debaixo da Sé com a Cobra Norato e debaixo da terra com os velhos canoeiros e as velhas vendedoras de tacacá e açaí do Jurunas e Umarizal.
Agora descalço, caminharei para o largo da Sé. Beberei na canoa ‘Deus te guie’ e jogarei uma vela de cera no carro de milagres. Sei que não acredito mas para mim o Círio é ainda festa do povo e Nossa Senhora uma senhora do povo.
No Ver-o-Peso, meu tio Antônio Piloto, pescador do Pinheiro e barqueiro da Contra Costa, me dará piramutaba assada e cachaça. Meu tio Manuel, rezador de ladainha e sacristão da vila de Ponta de Pedras, sairá descalço e dirá depois que o Círio do ano passado ‘tinha mais gente’. No toldo da canoa ‘Deus te guie’, estarei com Jaques Flores, Bruno e Flaviano, comendo peixe assado e bebendo cachaça em louvor de Nossa Senhora, em louvor do povo. Comprarei espelhos bem baratos para Margarida, perfumes, talcos, balões. Levarei do Círio para meu pai um grande pão Palmeira e meia dúzia de pratos ganhos na sorte. Margarida correrá no aeroplano e rirá muito nos teatrinhos e cavalinhos. Dançaria depois na festa do Uberabinha, no subúrbio, a três cruzeiros a entrada, virando no apertão grosso e suado dos festeiros do Círio.
Mas não sei o que acontece agora em Belém. Os aflitos, os tristes, os doentes, os devotos caminham mudos. Estou encabulado. Falei em peixe, falei em Cobra Norato, falei em pão. Será certo que o Círio mudou? Não, não fui eu que mudei. Meu tio Antônio e meu tio Manuel dirão que foi o Círio mesmo que mudou”.
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Dalcídio Jurandir ~ Círio de Nazaré. Em: Revista Rio nº 66 (1944)*
*O artigo foi encontrado na Hemeroteca da Biblioteca Nacional pelo pesquisador Aristóteles Guilliod e gentilmente compartilhado.
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