OLHO NU > ROGÉRIO REIS
Olho nu-Rogério Reis (Instituto Olga Kos, 2021) do fotógrafo carioca Rogério Reis é um daqueles livros da estante essencial. Não somente pelo seu autor, um renomado fotógrafo brasileiro que transita com tranquilidade pelo fotojornalismo e pela arte tanto no Brasil quanto no exterior, mas porque reúne em seu bojo uma espécie de pequena antologia de seu formidável trabalho que já conta cerca de 40 anos ininterruptos. De antemão, já não seria pouca coisa, ainda mais não fosse a rara coerência e articulação criativa que consegue reunir diferentes propostas sem perder sua linha estética e também ética. Em resumo, entre outros de seus livros, é o que faz um consistente apanhado de sua vasta obra.
Em forma de um bônus, ou mais do que isso, a publicação mostra ao leitor, o registro de uma conversa do autor com o editor do livro, o fotógrafo paulistano João Farkas; a artista e professora paraense Mayra Rodrigues; o fotógrafo paulista Edu Simões; o jornalista e professor carioca Rosental Alves; a historiadora fluminense Ana Mauad e o historiador carioca Maurício Lissovsky, um elenco estelar da produção e do pensamento da arte, da imagem fotográfica e da história social brasileira.
Olho Nu é todo em preto e branco, dividido em trabalhos conhecidos de Rogério Reis, como Na Lona (editora Aeroplano, 2001) o maior portfólio; uma imagem originalmente publicada em cor no seu livro Ninguém é de Ninguém ( Ed.Olhavê+Edições de Janeiro, 2015); fragmentos de sua longa carreira como fotojornalista que traz imagens históricas como o belo retrato de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), de 1982, quando o poeta completava 80 anos, produzido para o Jornal do Brasil (JB) e os surfistas de trem do Rio de Janeiro, trabalho de repercussão internacional, para a Agência F4. entre outras imagens nas ruas e praias do Rio de Janeiro. [ leia review sobre o livro Ninguém é de Ninguém este livro em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/129376701736/ningu%C3%A9m-%C3%A9-de-ningu%C3%A9m-rog%C3%A9rio-reis] .
Rogério Reis conta que a fotografia apareceu na sua vida ainda na adolescência, por influência do ambiente da contracultura, onde se buscava então profissões menos convencionais. Entrou no fluxo dos Domingos da Criação*, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), importantíssima experiência desenvolvida pelo crítico mineiro Frederico de Morais. Mais precisamente, quando nos anos 1970, teve aulas com o húngaro George Racz nas oficinas do Bloco Escola deste museu e nos cursos do fotógrafo americano Dick Welton, que trabalhava para a revista Manchete, da Editora Bloch.
O fotógrafo também é capaz de ressignificar sua própria obra. Vejamos a série Ninguém é de Ninguém, cujas pessoas, tem bolinhas nos rostos não os identificando, "À la Baldessari" como ele mesmo diz, uma referência ao grande artista americano John Anthony Baldessari (1931-2020) um dos expoentes da chamada arte conceitual. A partir de snapshots não consensuais nas praias cariocas, que, como alerta João Farkas, já são imagens interessantes, Reis adiciona as bolinhas nos rostos das pessoas problematizando a questão da identidade e da exposição pública das pessoas. No entanto, as mesmas retomam o humor do mestre americano e se inserem no que podemos chamar de arte fotográfica.
O fotojornalismo factual também surge com força em imagens contundentes, como os adolescentes da periferia carioca que "surfavam" nos trens, arriscando a própria vida desviando-se dos mortais fios elétricos, no final dos anos 1980. O fotojornalista e documentarista Edu Simões, lembra que já nos anos 1970 estava no auge o pensamento da fotografia no estilo da icônica cooperativa francesa Magnum Photos, que iria influenciar os próprios autores da Agência F4, como ele e Reis.
Hoje, diz Simões, a fotografia documental "esbarra'' na fotografia dita de arte, e esta, por sua vez, invade os jornais, a tornando mais "mundana". A resposta do autor é que hoje queremos viver de forma multicultural, exemplificando ao lembrar do livro 59 retratos deda juventude negra brasileira ( Ed.Bazar do Tempo ( 2020) do seu colega. [leia aqui review deste livro de Simões em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/635954469694291968/o-paulistano-edu-sim%C3%B5es-conta-que-a-primeira-vez ]. Para Reis, "as imagens pertencem ao rico repertório da expressão visual" Hoje, os fotógrafos da época do ouro do fotojornalismo dos anos 1970 estão reposicionados pelo campo da arte, completa.
O historiador Maurício Lissovsky, pesquisador arguto da nossa fotografia, já enxergava na carreira fotojornalística de Reis "um certo impulso conceitual" que surgia quando havia esta oportunidade. Ele explica: "Que introduziu uma ambiguidade, que eu acho que, frequentemente, aparecia como uma coisa arbitrária." Ele cita como exemplo, o retrato do poeta Carlos Drummond de Andrade, sentado no meio da sala, o que não seria o normal do fotojornalismo da época. Uma arbitrariedade que transcende o próprio registro, porque não sabemos o que dizer sobre isso. "Uma experiência estética que você não sabe classificar." Outra coisa interessante proposta pelo historiador é a questão do que é registro e o que é testemunho. "O registro supõe uma certa isenção, mas o testemunho não."
Ana Mauad completa a questão do testemunho, lembrando das coberturas da Anistia e das Diretas. A ideia de que um repórter fotográfico trabalha, mas também é uma espécie de testemunha ocular da história. Período que Reis qualifica como o mais vibrante de sua carreira. Já com relação ao trabalho na Lona, o que tem o maior espaço neste livro, Lissovsky diz que há uma dimensão dialógica, que está além do registro, além do ponto de vista. A ideia, segundo o autor, era "virar as costas para o carnaval midiático do Sambódromo" e recém criado pelo gaúcho Leonel Brizola (1922-2004), então governador do Rio de Janeiro.
Há uma opção dos editores, os irmãos João e Kiko Farkas, por uma visão quase contemplativa da obra de Reis, distanciando-se do fotojornalismo hardnews, embora João Farkas tenha feito, como ele mesmo diz, uma edição afastada dos clichês: Há fotografias sensuais profundas e imagens como os policiais dentro do caveirão, e acerta quando coloca que passamos de uma simples situação jornalística para uma realidade absolutamente sintética. "A soma dessas pequenas sínteses, através de olhares que vamos chamar de editorial, de editores, compõe um todo, que de repente vamos chamar de universo, uma visão pessoal de uma cidade." diz o fotógrafo.
Na lona não é por acaso o maior conjunto da publicação. Certamente é um dos fotolivros do cânone brasileiro. Não somente por tratar de um assunto popular como o carnaval, mas por suas aproximações intensas com a questão etnográfica, social e antropológica, como vemos por exemplo na obra mais contemporânea dos africanos Seidou Keïta (1921-2001) e Malick Sidibé (1935-2016), ambos em Bamako, capital do Mali, que produziram um compêndio antropológico a partir de retratos, na tradição dos antigos estúdios fotográficos. Quando pensamos na influência e popularização da cultura africana no Rio de Janeiro, lembramos que o surgimento do samba veio das casas das baianas de origem africana que emigraram para a cidade no início do século XX e o posterior desenvolvimento do carnaval como o vemos hoje.
Em seu movimento, Rogério Reis em suas imagens tendo como fundo uma velha lona também olha para o passado, não apenas referenciando-o, mas ficcionalizando, reexaminando, interrogando, e em uma ética pós-colonial, reescrevendo-o, nos moldes já teorizados pela a historiadora da arte e da cultura visual sul-africana Ruth Simbao, professora do Fine Art Department/Rhodes University, na África do Sul, que está entre os autores da ótima coleção Visual Century-South Africa in context 1907-2007 (Wits University Press, 2011).
Apesar de conter apenas uma imagem no livro, a série Linha do campo, como explica Mayra Rodrigues, "um ritual geométrico litúrgico" da despedida do antigo estádio Maracanã, pré-Copa de 2014, podemos ver que essa tendência artística se conecta com a série Exaustão, de 2018, onde uma exaustores pintados de branco também criam formas geométricas, a nos lembrar do genial artista carioca Sergio Camargo (1930-1990). Mas além destas conexões, a questão social ou dos nossos problemas contemporâneos, suas propostas direcionam-se à arte. Como também explica a artista, com relação a série Ninguém é de Ninguém: "ele vai buscar um incômodo muito forte de uma relação, de um choque entre o que era o lugar do fotógrafo apreciado nos anos 1970, e o incômodo desse lugar agora, com a superabundância da fotografia, como ela é usada e manipulada."
Além dos fragmentos das séries representadas neste novo livro, Reis trabalhou outras questões como a violência em Microondas, de 2004 e Travesseiros Vermelhos, de 2006 impulsionado por uma série de fatos dramáticos acontecidos na cidade ou com amigos e até com ele mesmo, uma espécie de resposta a sociedade resultando em rupturas formais, como a opção pela instalação fotográfica. O perfeito título "Olho nu", configura-se em uma grande metáfora para um artista sempre despido de preconceitos, inquieto, multidisciplinar, com disposição a criar e recriar, unindo distintas temáticas com maestria em sua consistente e ampla obra.
Imagens © Rogério Reis Texto © Juan Esteves
* No início dos anos 1970, o crítico e curador Frederico Morais, então coordenador de cursos do Museu de Arte Moderna ( MAM) do Rio de Janeiro, criou os Domingos da Criação, que teve seis edições. Ele já trabalhava com certa informalidade o Bloco Escola desde 1969, práticas educativas peculiares, que descartavam paulatinamente o ensino mais tradicional ou de técnicas específicas. Por eles passaram artistas importantes como o gaúcho Carlos Vergara e a carioca Anna Bella Geiger entre outros.
Essa experiência pode melhor ser compreendida na leitura do livro Domingos da Criação, uma coleção poética do experimental em arte e educação (Instituto Mesa, 2017) , com a coordenação e pesquisa da curadora Jessica Gogan com colaboração do próprio Frederico de Moraes.
dados técnicos:
Fotografias de Rogério Reis, Texto João Farkas, Edição de João Farkas e Kiko Farkas, Design de Kiko Farkas/Máquina Estúdio, Digitalização e tratamento das imagens de Mayra Rodrigues/Tyba, edição bilíngue português e inglês, pré-impressão e impressão Gráfica Ipsis em papel Couché Matte.
Conheça mais sobre a Coleção IOK / publicações do Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural.
Estudos Fotográficos de Thomaz Farkas
https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/186313247856/estudos-fotogr%C3%A1ficos-thomaz-farkas
Caretas de Maragojipe de João Farkas
https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/179872336636/caretas-de-maragojipe-jo%C3%A3o-farkas
Como adquirir o livro:
O valor do livro com entrega é de 120 reais em território nacional e para outros países o valor é de 200 reais.
Também logo mais nas livrarias distribuídos pela Martins Fontes.
Os valores arrecados pelo autor na venda serão repassados a projetos sociais.
* nestes tempos bicudos de pandemia e irresponsabilidade política com a cultura vamos apoiar artistas, pesquisadores, editoras, gráficas e toda nossa cultura. A contribuição deles é essencial para além da nossa existência e conforto doméstico nesta quarentena *
8 notes
·
View notes