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É melancólico, mas seguimos
Eu me formei há uns 10 meses e desde então comecei a trabalhar. To cansado. De verdade. Quando eu estava no meio do curso eu acreditava que era possível estimular as pessoas a quererem mudar o mundo através da medicina. Eu ouvia alguns avisos de que as coisas não eram bem assim, mas eu ignorava. Eu era inocente demais, achando que a minha vontade era grande demais pra deixar que a minha fé na mudança fraquejasse. Mas fraquejou.
Não porque eu queira. Mas porque a situação é muito pior do que pintam pra gente, quando a gente é cheio de ideais no movimento estudantil. Eu li muita coisa sobre como funciona a sociedade, participei de muitos debates. Construí atos, e falas, e congressos, simpósios, encontros. Eu tento me manter atualizado no cenário político mundial, acho interessante entender as relações sociais por trás dos fenômenos. E em todos esses momentos, eu acabei pintando a ideia de que do povo viria a força pra transformar a sociedade e que meu papel, era ser um agente fomentador. Eu me preparei pra ser um agente fomentador.
Mas aqui tá a verdade por trás do meu cansaço, por trás de tudo aquilo que não nos dizem nesses espaços de politização, e não nos dizem porque não se sabe disso. O povo está destruído. Não é uma figura de linguagem. Essa é a realidade material. O povo, o povo de verdade, o povo que trabalha na roça, e nos mercados, nos postos de gasolina, nas padarias, limpando casa, fazendo estopa, costurando, vendendo no sinal, cozinhando pros outros, fritando salgado, morando na rua, morando de favor, esse povo está destruído.
Eles tiveram a coluna desgastada de carregar peso e repetir movimento, eles ficaram obesos porque a única coisa que eles conseguem comprar pra comer são processados, eles tomam medicação pra hipertensão, pra diabetes, pra dormir, pra não se matar, pra não infartar, pra aguentar a dor no estômago, nas costas, na cabeça, no joelho. E o pior, eles não fazem nem ideia do que isso significa agora ou do que vai significar no futuro. Eles não se importam com o futuro, porque a dor agora é tão grande que não existe um futuro, existe só a vontade de aliviar ela nesse momento.
E esse tem sido meu papel. Aquele sonho de ser fomentador de mudança foi esmagado pela realidade de ser um apagador de incêndios. Existe uma balança que faz a gente tomar a decisão de agir no sofrimento do agora ou fornecer a possibilidade de alívio duradouro no futuro. Essa balança ta sempre pendendo pro primeiro lado. Eu me preparei pra fazer algo que não se aplica.
Não se aplica, porque para ser um estimulador, pra oferecer pros pacientes a ideia de que um futuro melhor é possível, eu preciso convencer eles de que existe esperança. E eles não acreditam mais nisso. E eu tenho a sensação de que aqueles grupos, que se reúnem em seminários, congressos, debates, encontros, atos, greves e afins, ainda não perceberam isso. Não existe esperança na alma das pessoas de que as coisas podem ser diferentes. E ao invés de tentar estimular esperança, de vender possibilidade, de ganhar de volta a confiança de um povo destruído, nós ainda estamos fazendo pequenas reuniões, seminários, congressos, encontros, atos.
Então, é. To cansado. Eles estão cansados. Daqui 10 meses, vão fazer 20 meses que me formei. Talvez eu esteja menos cansado. Talvez alguma coisa tenha mudado ou eu tenha mudado. Eu acho que eu também perdi a esperança. É melancólico perceber que a nossa fé e a nossa vontade são facilmente substituída por cinismo. Seguimos.
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Sobre bonés, Beyoncé e Revolução
Acho que parte de quem eu sou como militante está relacionada com o lugar de onde eu venho. Pra mim é importante resgatar essas origens, porque elas remontam na minha cabeça o caminho natural da minha história e da minha percepção das construções sociais a minha volta. É isso que eu quero começar a fazer. E nas últimas duas semanas, tem um momento em particular da minha adolescência que não sai da minha cabeça. Dado a discussão deflagrada dentro de alguns setores da esquerda de uma possível capitulação do movimento negro, ou uma pós-modernização, como alguns marxistas ortodoxos gostam de colocar, que teve como gatilho a apresentação de Beyoncé no SuperBowl 50 e seu último clipe Formation. Por mais que na minha análise, alguns malabarismos teóricos feitos em torno da pauta mostrem o quão patético e decadente está hoje o debate dentro da esquerda brasileira, esse episódio me remeteu à essa história, que, para mim, diz muito.
Quando eu tinha 14 anos de idade, estava cursando a sétima série do ensino fundamental, isso era no ano de 2004. Estudava numa escola municipal da periferia de Campinas-SP. Como estudava à tarde, saía de casa por volta do meio dia, atravessava uma ponte (ponte é modo de dizer, na verdade eram 2 vigas de madeira com tábuas pregadas em cima de um córrego) que ligava minha comunidade (uma região de favela) à parte mais “urbanizada” do bairro. Na volta, fazia o mesmo percurso, em torno das 18h, ou seja, à noite. Essa ponte era cercada por uma área de matagal onde havia plantio e estocagem de drogas. Era também o matagal onde rolavam vendas e consumo, e onde se reunia o trafico da região.Esse também foi o ano em que tive a fase mais turbulenta da puberdade. Crescia muito rápido, era alto, bastante magro, sobrancelhas enormes, estranho e introvetido, mas mais importante: passei a odiar com todas as minhas forças o meu cabelo. Parte porque ele era crespo, o que era um sinal de inferioridade pra mim, e parte porque eu era calvo. Eu não era o único na minha escola que odiava o cabelo. Sendo uma escola pública da periferia, a maior parte dos meus colegas eram negros e da mesma faixa etária, então, basicamente todos os meninos usavam bonés ou tocas e as meninas, chapinha. Naturalmente eu segui a norma e passei a usar bonés, de uma forma que, para mim, eles eram mais parte do meu corpo do que um mero acessório. Eu simplesmente não sairia de casa se não tivesse um boné na cabeça. A ideia de me olhar no espelho sem boné era mortificante. E mesmo que meu cabelo crescesse, mesmo que as caspas ficassem insuportáveis e o calor tornasse aquela experiência torturante, eu não tirava o boné, porque aquela era a norma de beleza para me aproximar da tão sonhada branquitude, ou pelo menos me afastar e me esconder dos meus traços negros.
Porém, nesse ano, minha família sofreu alguns golpes. No final de 2003 minha avó tinha falecido de uma maneira abrupta por um aneurisma roto de aorta. No início de 2004, um primo, de de pouco mais de 20 anos, com dois filhos para criar, também faleceu por conta de uma série de comorbidades, muito relacionadas ao fato de que pela sua religião do seguimento evangélico, o pastor orientava o não tratamento de doenças na expectativa da cura divina. Um tio faleceu de infarto durante uma festa. Então esse ano em particular, foi traumático e trouxe em todo mundo o medo da morte e da perda. Foi perto do final do ano, que outro primo, também dentro dos seus vinte e tantos anos, pai de 4 filhos pequenos, que morava na mesma rua que eu, foi a assassinado com 3 tiros à queima roupa, na mesma ponte que eu passava todos os dias para ir à escola. Tudo aconteceu ha cerca de 100 metros da minha casa. Quando cheguei no local, ele ainda estava vivo. Ainda fiquei lá a tempo de ver sua esposa, (minha prima) e seus filhos chegarem no local. Ainda me lembro da ambulância demorar mais de 1 hora e ninguém se chocar, porque na favela, isso é o esperado. Lembro de um dos filhos desse meu primo jurar vingança durante o velório. Mas o que mais me marcou foi o que se seguiu.A morte dele foi a luz do dia de um fim de semana, o que significa que várias pessoas viram quem foi o atirador. Aparentemente foi uma execução relacionada à uma dívida de 10 reais com um pequeno traficante da região. Mas na quebrada existem regras e leis que não podem ser quebras. Não tem defesa nem presunção de inocência. Na quebrada a pena leve é o espancamento e a expulsão (quando se tem sorte), porque no geral a pena é de morte. E esse pequeno traficante cometeu um erro. Ele matou a pessoa errada no lugar errado. Não tenho os detalhes do que se seguiu, acho que pode ter havido mais fatos que eu não soube, mas sei que alguns dias após a morte do meu primo, ele foi jurado de morte. Muitos dos pequenos traficantes da região tinham interesse em vê-lo morto.
O problema é que esse rapaz tinha uma fisionomia muito parecida com a minha: alto, magro, sobrancelhas enormes e jamais tirava o boné. Obviamente isso trouxe pânico para os meus pais e para minha família. Lembro de um almoço em que foi sugerido que eu saísse da cidade por algum tempo e fosse ficar com meus avós no interior do pernambuco. O fato de eu chegar da escola perto da noite, um período escuro, de boné, passando por um lugar onde certamente haveriam pessoas prontas para emboscar o rapaz caso ele ousasse voltar na comunidade, apavorava a todos pela possibilidade de eu sofrer algo por engano. Mas a solução não podia ser meu afastamento, era ridículo pensar nisso quando existia algo mais óbvio: parar de usar bonés. O meu uso de boné, na cabeça de todos da família, estava intimamente ligado com o risco de levar um tiro voltando da escola. Nós não podíamos recorrer à polícia. Não haviam outros recursos. Mas por mais que eu entendesse o risco (e eu entendia), o asco pela minha auto imagem e o medo da humilaçao não me deixavam tirar o boné. E eu não tirei. Na verdade eu fui apenas UM dia para escola sem usar boné e eu jamais vou esquecer a humilhação daquelas 5 horas e meia de aula. Eu não saí da sala no recreio. Não tive coragem de ir ao banheiro para não olhar sem querer no espelho. Todos os meus amigos faziam questão de apontar pra mim e dizer que, com meu cabelo “ruim” e minha careca, eu parecia um palhaço. Então eu preferi assumir o risco de ser confundido com alguém jurado de morte e levar um tiro a ter que assumir meu cabelo e minha negritude. Meus pais nunca souberam disso, mas eu saía de casa com o boné escondido na mochila e colocava na cabeça na primeira esquina. Isso, meus caros, era viver onde eu vivi.
Mas eu cheguei a mencionar que o ano era 2004, certo? Sabem quem era o maior ícone pop entre os jovens da favela naquela época? Beyoncé. Ela tinha recém lançado Crazy in Love, e me lembro de todos os carros rebaixados em frente a escola tocando as suas músicas e de que as pessoas só se interessavam pelas aulas de inglês, para poder tentar traduzir o que ela dizia. Não só ela como também: snoop dog, 50 cent, nelly, akon, etc. A questão é que nenhum desses artistas negros falavam sobre a sua negritude. Nenhum deles falava que ser preto e ter cabelo crespo era lindo. Nenhum deles falava que o gueto merecia respeito e dignidade, e não merecia levar um tiro em plena a luz do dia sem que ninguém se importasse. Talvez se eles falassem àquela época, eu tivesse me inspirado a ser mais negro e a me achar bonito, como acho hoje.
Eu sei que Beyoncé não é, e provavelmente nunca será, uma revolucionária. Eu sei que nessa última música ela exalta a ostentação e várias contradições inerentes à representação da indústria cultural hegemônica.Ninguém nega isso. É absolutamente ingênuo esperar mais dessa figura, falando ela do que lugar onde ela está. Mas é inegável que a mensagem de auto-aceitação da própria negritude, que o estímulo a entender a própria história, que a exaltação da beleza negra tem impacto relevante na vida de muita gente. E o que me irrita bastante são, esses setores da esquerda branca e ortodoxa, tratarem a pauta racial sempre de uma perspectiva arrogante e vertical, de quem acha que entende mais do que nós vivemos, do que nós mesmos.
Como um marxista ferrenho me sinto bastante incomodado com o fato de se usarem das teorias marxistas de libertação da classe trabalhadora, sem o menor entendimento da formação social brasileira, que está intimamente ligada com a formação racial brasileira, para desqualificar toda uma militância, que com certeza tem muito mais acesso às massas marginalizadas dessa sociedade do que qualquer um desses grupos seletos de intelectualóides pseudo-revolucionários. E ao ignorarem a centralidade da questão racial, ignoram a disputa da consciência de classe nesse país. Ignoram a principal tarefa da dialética materialista: a transformação da materialidade, que determina a mudança do paradigma social. E não só, ao se recusarem a realizar um auto exame da própria incapacidade de sair do pedestal da branquitude, rasgam um dos principais traços da teoria marxiana que é o da crítica e da auto crítica. Vocês sabotam tudo que Marx trouxe de fundamental para uma análise sobre um processo revolucionário, porque vocês não tem interesse e portanto desconhecem nossa materialidade, as nuances da nossa história e da cultura dos povos africanos - haja visto que a maior parte do debate que fazem em torno da escravidão brasileira busca uma explicação de relação de forças econômicas, sem qualquer interesse para o impacto cultural e subjetivo dessa história na atual conjuntura- e desconhecem a vida nas periferias e todo o genocídio físico e cultural pelo qual passa o povo negro. E tudo isso porque do alto dos seus privilégios e da “delícia” de ter uma academia completamente isolada da realidade, vocês se perdem em debates teóricos homéricos sobre quem tem a maior verdade revolucionária, que tem a melhor leitura (europeia, sempre europeia) da obra marxiana, ao invés de adaptar suas hipóteses com a disputa do real, do agora, daquilo que é latente na vida de um trabalhador negro. Vocês não conhecem nossas prioridades. Vocês acham que a sua prioridade de branco é igual a nossa e é por isso que a classe trabalhadora, sumariamente negra, com vivência negra, não se reconhece, nem se reconhecerá nos seus projetos de sociedade, e vocês todos vão morrer a míngua sem ser direção de revolução alguma.
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Branco, quem disse que eu quero estar com você?
Hoje vai ser difícil, mas preciso colocar pra fora essa inquietação, que também tem sido sintomática entre várias irmãs e irmãos e LGBTs negras. Uma inquietação chamada “percepção” dentro de um relacionamento entre duas pessoas. Qualquer relacionamento. Qualquer interação cósmica que se possa ter. Mas para ser mais específico, a percepção de pessoas brancas dentro de um relacionamento inter-racial e a sutileza do sistema racista, mediando mais uma vez toda a nossa existência.
Recentemente saí com uma pessoa. Um encontro normal, com seus desconfortos e suas descobertas, aquela dancinha leve para tentar descobrir sutilmente um pouco mais sobre o outro. Correu tudo bem. Seguimos nos conversando. De repente não estava mais tudo bem. Após 1 semana de conversa eu ouço o já famoso: “Não estou interessado em um relacionamento agora”. Minha primeira reação foi me perguntar com um tonzinho um pouco irritado duas perguntinhas básicas: 1. O que te faz pensar que EU quero um relacionamento agora, que justifique a necessidade de me comunicar esse fato? 2. Que tipo de sinal fantasmagórico, se é que ele existe, eu posso estar dando para que se levante a hipótese de que eu preciso imediatamente ser informado de que não vai rolar um relacionamento comigo? Duas perguntas que eu passei as duas últimas semanas tentando aceitar a seguinte resposta: Eu devo realmente estar parecendo desesperado por alguém.
Hoje já me ocorre algo diferente. Esse padrão de comportamento se repetiu tantas vezes ao longo do ano e com tantas pessoas que não é possível que não exista uma explicação macropolítica pra esses questionamentos. Não dou conta sozinho, por mais que minha personalidade egocêntrica queira fazer, de explicar esse fenômeno pura e simplesmente por “parecer estar carente”. Então vamos aos fatos: Isso aconteceu comigo quatro vezes ao longo do ano. A conversa em si aconteceu em uma média de 2 a 4 semanas após conhecer essas pessoas.Todas elas estavam passando por um período de transição na vida: ou era o fim de um relacionamento, ou era uma mudança drástica de ambiente, etc. Em todas as ocasiões o meu comportamento teve um padrão similar: conhecer a pessoa, me aproximar dela, sugerir encontros e questionar quando necessário. E claro, todas elas eram brancas. A partir desses fatos e através da observação da dinâmica dessas interações eu levantei uma hipótese (sim, é só uma hipótese) pra esse desfecho. Que sim, foi igual em todas as ocasiões. E quando eu digo igual, eu quero dizer que inclusive as mesmas frases foram usadas.
Minha hipótese é a seguinte: as pessoas, bombardeadas todos os dias por uma representação subalterna de pessoas negras, que são mistificadas como seres exóticos, submissos aos interesses brancos e hostis quando contrariadas, passam a nos enxergar como seres irracionais, incapazes de usar qualquer razão para avaliar nossas próprias necessidades. Sendo assim, para brancos, nós só podemos agir mediados por impulsos emocionais. Em debates por exemplos nós nos “exaltamos” demais, somos os “negros nervosos”. Quem não se lembra da intervenção do movimento negro em uma aula na USP na qual à branquitude desqualificou todo o debate de cotas sob o argumento de “muito violento” ou “não dialogável”? Nesse tumblr mesmo eu fui agredido pela branquitude ao fazer um texto sobre o curso de medicina que para eles era muito “agressivo” e “ofensivo”, descaracterizando toda a problematização trazida não só por mim, mas por diversos negros do curso? Em um relacionamento a lógica utilizada parece ser mais ou menos a mesma: nós não temos a capacidade de racionalizar nossos desejos e fazer escolhas baseadas na lógica. Agimos sempre de forma animalesca. E partindo do princípio que, se somos subalternos à branquitude, isso só pode significar que a temos como um objeto de desejo à ser perseguido, conquistado e guardado a 7 chaves, uma vez que estar em um relacionamento com um branco para nós significaria não só sanar a nossa solidão (que para eles “precisa” ser sanada), mas também a elevação social de “negro sozinho” para “negro socializável” , já que para sermos seres dignos de civilidade, precisamos de um branco.
Esse conjunto de ideias que compõe a ideologia racista é fundamental pra manutenção desse sistema. Nos inferiorizar em todos os âmbitos da vida, incluindo a forma como nos relacionamos amorosamente, é o que permite o sistema produzir mão de obra barata, dócil e animalesca o suficiente para estar sempre pronta para realização dos seus fetiches sexuais e suas doses diárias de sadismo. É assim que se mantém o privilégio branco, tanto a nível social, quanto a nível individual e é aí que está o meu nó.
Cada vez que eu ouvi que “precisava ir com calma” ou “não quero nada sério agora” na verdade o que eu ouvia era uma inferiorização da minha racionalidade. Usar esses termos de forma prepotente, sem nos consultar sobre quais são nossos desejos reais, assumindo uma posição de vantagem e poder sobre a relação estabelecida, é usar do seu bom e velho lugar social, é usar de privilégio de raça, ou seja: é racista. É racista porqur nos inferioriza e também porque em boa parte das vezes, isso não passa de uma tentativa de colocar sobre nós a responsabilidade pela sua covardia de assumir que nós somos só um fetiche, um segundo plano, uma “quentinha” enquanto espera teus brancos “pra casar”. Em todas as ocasiões não importaram como EU estava me sentindo e meus questionamentos eram sempre os mesmos: Quem disse que EU quero algo AGORA? Quem disse que não podemos ir com calma? Quem disse que a minha postura significa um desejo incontrolável de estar em um romance com você? Será que é tão difícil assimilar a ideia de que eu tenho tão pouco interesse em me envolver com você quanto você comigo?
O privilégio de raça se manifesta de várias formas e a ideia de uma raça inferior também está na forma como nós agimos diante dela. Então para minhas irmãs e irmãos que talvez estejam aí, se culpando por terem sido “intensos demais” ou por terem “assustado” os brancos: relaxem. Levem sempre em consideração que pode haver muito mais na postura deles ao terminar relacionamentos. Uma coisa que ajuda também a fazer essa avaliação é a forma como esses términos acontecem: Eles falaram olhando nos seus olhos ou foi de um jeito que dificultasse você a questioná-los? Eles perguntaram o que VOCÊ quer/espera antes de jogaram na sua cara que você está indo rápido demais? Eles aparecem envolvidos com pessoas brancas pouco tempo depois de terminarem com você? Tudo isso ajuda a selecionar melhor pessoas que valem a pena estar com você ou com aqueles que você ama. E não se preocupem em os assustarem. Eles estão assustados com a gente desde que nasceram. Alguns deles parecem até estar dispostos à ir contra toda a maré construção social na qual foram mergulhados, mas esses não são a regra. Relaxa e sigamos juntos!
PS: Eu não to dizendo aqui que negros não possam ter posturas assim, afinal passei por uma situação similar com uma pessoa negra, e eu tento entender esse fenômeno sob a ideia de que a opressão racista é tão pesada que faz muito negro aderir à ideia do embranquecimento pra tentar aliviar a dor, acho um erro, mas acontece. O que to trazendo aqui é que um determinado padrão histórico, gerador de sofrimento e mutilação da auto estima entre nós tem essa característica quase sempre quando se trata de brancos.
Alguns materiais que usei pra pensar:
http://bichanago.tumblr.com/post/112086456111/a-solid%C3%A3o-do-preto-gay
http://www.geledes.org.br/eu-racista/
https://www.youtube.com/watch?v=whzgp12xPM8
http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2015/06/08/o-ano-em-que-so-fiquei-com-pretos/
http://negronegus.tumblr.com/post/128041929919/esse-texto-n%C3%A3o-ser%C3%A1-muito-longo-como-eu-gostaria
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Que dia é hoje?
20 de Novembro. Dia da Consciência Negra. Preciso estar no aeroporto às 12:15. Saio por volta de 11:20 do estágio e não da tempo de almoçar. Penso: “putz, tenho que comer no aeroporto, mas é caro”. Chego no aeroporto na hora e vou pra fila do check in. Procuro um guichê automático pois não tenho bagagem pra despachar. Não acho. Vou até um atendente e pergunto onde tem. Ele não me responde. Pergunto novamente, achando que ele não ouviu. Ele vira de costas e atende um casal (branco). Sem saco pra brigar, acho o guichê sozinho. Faço check in e vou procurar um lugar para comer. Entro no único restaurante com comida e procuro o garçon. Faço sinal e ele ignora. Espero ele olhar. Ele olha, faço novo sinal e ele acena que já vem. Ele se aproxima de mim, e se dirige à senhora atrás de mim (branca). Dirijo-me ao caixa e pergunto à moça (negra) como funciona. Ela me explica com um sorriso no rosto. Sirvo-me do buffet e chego ao churrasqueiro. Peço a carne mais bem passada. Ele olha pra mim com certo desprezo e diz: tem adicional se pegar churrasco. Digo que sei e confirmo que quero. A pergunta não se repete ao casal de trás (brancos). Sento, começo a comer. Termino minha refeição e ninguém me atendeu. Levanto, vou até um garçon e peço um suco. Ele me diz o preço. Irritado eu respondo: não perguntei o preço, traga sem açucar e sem gelo. Ele trás e vai até a mesa ao lado e oferece a carta de sobremesa à 2 homens (brancos). Tomo meu suco, levanto, vou até o caixa. A moça simpática me diz o valor e eu peço a ela que exclua os 10%. Ela pergunta se fui mal atendido. Digo que sim. Ela não me pergunta o porque e pede desculpas, faz uma expressão no rosto como quem sabe na pele o “porque”. Pago. Me dirijo até a sala de embarque. Um homem (branco) entra na minha frente, passa pelo detector de metal, diz “acho que é do cinto”, retira o cinto e passa de novo. Não apita e ele segue. Minha vez. Eu passo pelo detector e ele não apita. O segurança solicita uma revista. Pergunto o porque, se não apitou o detector. Ele diz: é procedimento padrão. Entro na sala de embarque, me sento na cadeira na qual me encontro por ter um carregador de celular ao lado. Na outra ponta da cadeira está um rapaz (branco) também carregando um celular. Entre nós dois apenas 1 banco. Um casal (branco) se aproxima de mim. O homem pede com educação se eu não poderia ceder o lugar para ele e sua esposa sentarem juntos. Respondo com educação que estou carregando meu celular e sugiro pedir ao outro rapaz. A resposta deles? “Mas ele também está carregando o celular”. Eu pergunto “então porque vocês pediram pra mim? Porque EU tenho que ceder meu lugar?”. A mulher, ríspida, diz para o marido: deixa amor, com esse pessoal é assim mesmo.
Hoje é dia 20 de Novembro de 2015. Dia da Consciência Negra. E ainda são 13:22. O dia ainda está na metade.
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Agora é sua vez
Oi João de 35. Eu falei com você quando você tinha 6, agora quero falar com você de novo, mesmo não sabendo onde você tá. Se passaram 10 anos desde que você tinha 25 anos. Foi um ano conturbado, de certo você se lembra. Você estava cheio de dúvidas, cheio de desejos. Não fossem seus amigos você não teria aguentado até o fim de outubro. Foi um ano que a vida te espancou muito. Fez você sentir a pior coisa que alguém pode sentir na vida: culpa. Eu espero muitas coisas pra você depois de 10 anos. Eu espero sinceramente que você nunca se sinta daquele jeito de novo. Eu espero que você entenda que você não foi responsável por todo aquele sofrimento. Hoje você não entende isso, mas espero que mude. Foi a unica coisa que você não aprendeu a lidar. Eu espero que você tenha se apaixonado de novo e que tudo que aconteceu não tenha te deixado cínico e duro. Apesar do que algumas pessoas acreditam, você gosta de estar apaixonado. Você gosta de se entregar. Tomara que você tenha se entregado de novo e que tenha sido bom, mesmo que não tenha durado. Eu espero que você não tenha perdido ninguém que você ama. Nada te assustava mais do que essa ideia nos seus 25. Seus pais, que você ama cada vez mais. Seus amigos mais próximos. Eu espero que, mesmo se longe, todos eles estejam levando uma vida tranquila. Eu espero que você tenha conhecido o mundo, as piramides de gizé, o kremilin, o deserto do sal, espero que você tenha conhecido as belezas da africa. Espero que você tenha feito seu mochilão pela europa e conhecido a cidade em que marx nasceu. Espero que aos 35 você tenha morado no Rio de Janeiro por um tempo, como você queria. E que nesse momento esteja pelo menos considerando a ideia de ser professor, que sempre te pareceu boa. Eu espero que você finalmente tenha aprendido a acordar mais cedo e tomar um bom café da manhã. E que você tenha aprendido alguma luta de auto defesa, bem o suficiente pra ensinar outras pessoas a se defenderem. Espero que você ainda mantenha a barba. Que tenha finalmente assumido a careca total. Espero que você tenha conseguido participar da festa de 16 anos da Ana Rosa. Que você tenha visto o Isaque passar no vestibular e tenha participado da formatura do Antônio. Espero que o Filipe ainda não tenha te enlouquecido depois de alguns anos morando juntos. Que o Cherem tenha dado um jeito naquele pé. Espero que o Thiago ainda seja seu confidente e que o Rigo ainda mantenha a porta aberta quando você precisar chorar. Espero que a Itali já tenha ganhado o Nobel e o Gardenal tenha largado os RPGs. Espero e acho muito bom que você seja padrinho do Ale e da Belly. Espero que a Monique esteja perto de você te ensinando a ser forte, como sempre. Tomara que você ainda mantenha sua revolta e que tenha arranjado um jeito de ser mais organizado na sua militância. Gostaria muito se você me dissesse que a essa altura ja temos uma revoluçao em curso, ou que pelo menos as pessoas vivam com um pouco mais de dignidade, sem tanto medo de morrer ou de ser agredido por ser pobre, por ser mulher, por ser negro, por ser trans. Espero que o curso de medicina tenha mudado e tenha muito mais negros e negras nele. Espero que você ainda tenha esse dom de provocar os racistas da categoria. Espero que você ainda atenda as pessoas com um sorriso no rosto e trate elas como um ser humano, sem usar a desculpa do excesso de trabalho pra ser arrogante com quem pede sua ajuda. Espero que você continue se amando o quanto você se ama agora me que mantenha a mesma vaidade com um pouco menos de narcisismo. E que você não contamine tanto todos os lugares que você entra com o seu ego. Que a tranquilidade de se amar sem se impor tenha te atingido. Por favor, me diz que você ja cuida de um cachorro há uns 9 anos. Que você colocou o nome dele de Anakin. Mas mais importante de tudo, me diz que você realizou o maior sonho da sua vida até agora. Me diz que a essa altura você já pai e ja partilha com alguma(s) criança(s) todo esse amor que ta preso ai dentro. Já to terminando. Eu sei que isso talvez seja demais, mas perde uns 8 kg em 10 anos é super viável. Nessa sua idade é errado ter pressão alta. Hidrata essa pele e usa um protetor solar. Você já deve ter se tocado disso por agora, mas você não tem mais aquela resistência pra tequila. Você já chora menos? Já aprendeu a lidar com enxaquecas? E com essa claustrofobia? Me conta daquele Lolapalloza de 2016. Eu sei que tinha uns 5 itens da sua bucket list nele. Ah e me diz que você não se tornou um desses esnobes de academia que dizem frases do tipo “eu escolho meus desafetos intelectuais com base em…” E João, me diz que você se orgulha de quem você é, e que mesmo depois de tanto tempo você ainda tem planos. Me diz que você não se acomodou e se contentou com migalhas. Que você ainda tem mais dúvidas do que certezas. Me diz que ta valendo a pena aí na frente, pra eu poder me acalmar aqui atrás. Daqui 10 anos a gente vai se ver e eu vou te cobrar.
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Eu sou racista, mas...
Há algum tempo venho percebendo algo que parece ser sintomático dentro do grupo de pessoas que se classificam como mais progressistas ou contra todas as formas de opressão, ao qual eu vou dar o nome fictício de “esquerda” . Existe nesse grupo um pessoal que eu gosto de chamar de a galera do “mas” (conjunção adversativa que indica oposição). É assim: o branco comete um ato de racismo. O Movimento Negro denuncia. Aí o branco se “desculpa” e lança alguma declaração pública onde ele, emocionado, explica todo o processo doloroso que é ser taxado de racista (foda-se se é doloroso pro preto sofrer com o racismo na pele) e ele coloca como foi importante os apontamentos feitos contra a sua atitude e que ele foi racista, MAS... e aí começa.
O que significa esse “mas”? Pra mim, qualquer coisa que o segue está opondo aquela afirmação feita. Significa em última instância que não importa o quão racista e violenta foi a sua atitude, ela tem uma explicação. Pegando as últimas explicações e fazendo um cálculo bem rápido sobre quais são as frases mais recorrentes depois do “mas”, essas foram as que apareceram:
1)...o problema não sou só eu, o problema é que a sociedade é racista.
Sim, o problema também é você. Você não está fora do contexto social. Se a polícia, a mando do Estado, está matando a juventude negra, se os negros são marginalizados das políticas sociais e do aceso à direitos fundamentais, se a mídia ainda exotifica nossos, corpos mistifica nossa estética e ataca nossa autoestima todos os dias, é porque ainda se encontra legitimidade e reforço social para se fazer tudo isso. E sabe quem dá esse reforço, ainda que de forma microscópica? Você. E sim, mesmo que de forma microscópica, esse reforço importa, porque ataca negras e negros do seu cotidiano. Então não me venha justificar o seu racismo tentando projeta-lo nesse ente abstrato chamado “a Sociedade” ou “o Outro”.
2)...foi uma brincadeira.
Brincadeira vs Violência. A velha discussão do humor e seus limites. Pra atestar o óbvio: se você faz algo que atinge alguém ou algum grupo psicológicamente, físicamente ou socialmente, isso é uma violência, não uma brincadeira. É realmente preciso, nessa altura do campeonato, dizer que as pessoas tem percepções diferentes de mundo? Que talvez o que seja uma brincadeira para você pode ser extremamente ofensivo pra mim? Que talvez o que você fez ou disse possa ter desencadeado uma série de emoções que podem ser extremamente nocivas pro outro? Além disso, você ignora que a sua brincadeira tem referência na sociedade à sua volta? Que ela vem de um história de opressão, de subalternização, de diminuição, de violência? Por isso não me venha justificar seu racismo com humor, se você ri de nós é porque você ainda se acha superior.
3)...eu sou oprimido também.
Um clássico do movimento GGGG (Gays, Gays, Gays e somente Gays). O fato de você sofrer algum tipo de opressão, não significa em nenhuma instância, que você tem o direito de diminuir qualquer outro grupo do qual você não faz parte. As opressões não se dão no mesmo plano, e a formação histórica e social de cada opressão são diferentes, por isso elas são percebidas de formas diferentes. Então não venha você, que é um gay branco e nunca teve que passar pelas humilhações, pelos desmandos que nós passamos, me dizer que estamos no mesmo lugar de fala e que você tem qualquer propriedade para falar sobre como nós devemos lidar com o racismo.
4)...eu sou militante de esquerda, construo lutas de partidos/sindicatos/movimento estudantil/movimentos sociais. Eu sou classe trabalhadora.
Eu quero deixar uma coisa bem escura aqui: eu sou militante de esquerda que construo partido e movimento social. TAMBÉM uso a ferramenta marxista para ler o mundo. Acredito fundamentalmente que vivemos um período inconciliável de luta de classes e de profunda crise estrutural do modelo capitalista de produção. Dito isso quero afirmar com muita escureza: enquanto essa esquerda for dominada por brancos que negam o racismo enquanto questão central, não haverá revolução! Se vocês acham, que a luta de classes se dá nesse suposto plano suprarracial, onde os trabalhadores organizados vão se juntar sobre um projeto anticapitalista sob o mesmo páreo de disputa, desconsiderando o lugar de fala das trabalhadoras e trabalhadores desse país, é sinal de que vocês não sabem o que é classe trabalhadora. Vocês não sabem (e na maioria das vezes não querem) disputar a consciência das massas. E não vão. Porque é a população negra que carrega isso aqui nas costas. Então se você é um militante, desses que se acha muito letrado, e entendedor do bom marxismo, que usa esse tipo de justificativa para atos racistas, ou que legitima esse tipo de besteira dita pelos seus pares, saiba que você é uma boa parte do problema.
5)...eu também estou sofrendo com a situação.
A lógica usada aqui parece ser: eu agredi mas queria que você tivesse empatia por mim, que fui o agressor. Não interessa o contexto momentâneo individual no qual você se encontra quando comete um ato de racismo. Não interessa se você está bêbado, ou estressado, ou triste, ou alegre, ou de “cabeça quente” ou virado no loló. Violência não é um conceito abstrato que se pode desfazer com palavras bonitinhas. o racismo é uma vivência material nossa, que tem impacto real na nossa vida. Não nos interessa se você tem um milhão de problemas individuais, se você sofre pressão familiar, no trabalho, na faculdade, na militância, entre seus “amigos”: é sua obrigação nos respeitar.
Em resumo, não nos interessa a contextualização individual e emocionada do seu racismo. Não queremos entender o seu momento, nem os seus problemas ou o processo que o levou a cometer o ato de racismo. Queremos sim a sua responsabilização e o completo silenciamento das suas posturas racistas, ainda que isso signifique seu isolamento. Queremos justiça social e histórica. Queremos igualdade real e material. E não, não te aplaudiremos quando você se desculpar, especialmente se você fizer esse uso nocivo do “mas”. Não ser racista não é mais do que a sua obrigação.
Texto por João Roger
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Quero saber quem disse que não tem racismo no SUS?
Relato de uma preta canceriana com ascendente em áries.
Esse relato rodou pelo whatsapp, entre amigos mais próximos. E sempre me doeu muito. Até hoje dói. E não sei, nem nunca saberei o fim da história.
Na emergência. Estou há 3 dias no estágio em Emergência de um um grande Hospital Geral do Rio de Janeiro. 3 dias. Sabia que não ia ser fácil. É a realidade mais cruel chegando sem bater na porta. Um ritmo que me encanta. Um compasso que me espanta.
Sala Vermelha tinha 3 acadêmicos por leito. Decido ir para Sala Verde. A preceptora deixa. Começo pelos prontuários.
10h30min
Menino, 13 anos, situação de rua. Deu entrada ontem as 20h vítima de atropelamento. Estava desorientado, por uso de loló. Assim estava escrito no boletim de entrada, assim ele também me disse.
"Não lembro de nada, tia. Usei muito loló."
Franzino, negro, roupa rasgada. Estava querendo fazer xixi e com muita dor. Não conseguia mover 1 cm na maca. Levei a comadre, mas era impossível.
"Quero ir embora! Ninguém cuida de mim! Esse é o pior lugar que eu já fiquei na minha vida."
Entrou com uma faca. Ali era um hospital. Sala fria. E outras coisas frias.
Faltava a ortopedia ao meu ver. E ninguém pediu para ortopedia ver. A neuro deu alta, a cirurgia geral também. Nenhuma prescrição de analgésico. Nada. Nem soro.
Ninguém chamou o serviço social. Ele é menor. Ali era lugar para ele? Não tem um NESA¹ aqui? Corri atrás de um médico para pelo menos passar um analgésico e ver se não faltava nada. Cadê o médico da sala verde?
Aí lembraram que ele era gente.
Troquei a roupa de cama dele por conta própria. Acadêmico tem disso. Ele tava cheio de xixi, porque falaram para ele fazer ali mesmo.
Ele foi fazer o raio X. Bacia fraturada e cabeça do fêmur também. 13 anos, preto, menino de rua.
Ouço o seguinte:
- pior é que a gente faz isso e daqui a pouco vai estar assaltando a gente.
- Que assalte, nosso trabalho aqui não é de juiz.
Ainda me dou o trabalho de responder.
Não dá pra bater muita boca. Posso parar?
Me perguntei: e se ele fosse branco, 20 anos, alcoolizado, acidente de carro, na Lagoa?
Se a medicina me permite: há 3 meses ele perdeu a mãe, usuária de drogas e vivia em situação de rua. O pai não existe há muito tempo. Aos 11 ele se cansou da vida de ir e vir ao IPUB ² e decidiu sair de casa. Tem cadastro no abrigo do Centro com o número e endereço da Vó. A avó disse que ele estava feio, mas ele era o mais lindo. Disse para o médico que era a mãe. Ele não entendeu. Ela virou a mãe.
A avó tinha que ir embora logo, porque as 17h o irmão dele ia sair da escola e ele não anda na rua sozinho. Não anda sozinho porque já foi espancado sendo confundido com o irmão.
Ele disse para a avó que tinha 50 reais na cueca se precisasse.
Em tempo: no dia seguinte quis saber dele.
Foi me dito: não procura, isso não é sua função.
1. NESA - Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente 2. Instituto de Psiaquiatria da UFRJ
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Ambulatório Trans, a defesa do SUS e uma esperança
Antes de mais nada, quero começar dedicando esse relato para todas as pessoas Trans que tenho tido contato nesse ambulatório. Vocês são maravilhosas e não fazem ideia do quanto tem me ajudado a aguentar a barra que é estar no meio em que eu estou. A força de vocês tem sido meu exemplo. Muito obrigado!
Segunda feira, 24h após 2 plantões agitados no fim de semana, após ter que aguentar a tentativa de assédio dos racistas autodeclarados que não suportaram as palavras do meu primeiro texto, após uma manhã de estágio e uma tarde resolvendo problemas, chego na Lagoa da Conceição à beira da exaustão. Quatro horas depois saio como se o mundo fizesse mais sentido. Foi a 7ª semana de atendimentos no ambulatório de medicina de família e comunidade voltado para pessoas trans, que acontece todas as segundas feiras à noite no Centro de Saúde da Lagoa da Conceição aqui em Floripa. Esse é um projeto construído junto da ADEH (Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade)e o Núcleo Margens da UFSC, que tem uma luta histórica fenomenal da defesa de pessoas Trans em Florianópolis, 3 médicos residentes da Medicina de Família e Comunidade maravilhosos (Thi, Ane e Cherem) e eu. Tem o apoio importante da Gestão da Residência de MFC da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, além de contar com a participação das Médicas de Família e Comunidade Mayra e Adriana.
Todas as vezes em que acompanhei esse ambulatório, a sensação foi a mesma: isso é a defesa de um S.U.S universal e equânime. Promover a assistência qualificada, que tenta enxergar o ser humano como um todo, que se preocupa com as suas especificidades e que não fica alheia à opressão que as diversas minorias desse país sofrem, significa no sentido mais pragmático, praticar a medicina com uma outra concepção de saúde.
Falo do lugar de um homem cisgênero - que por muito tempo reproduziu (e infelizmente às vezes ainda reproduz) uma prática transfóbica e invisibilizadora - que poder participar desse projeto tem sido transformador sob vários aspectos. O principal é poder desconstruir em mim o privilégio do qual ocupo (da cisgeneridade) JUNTO com pessoas trans e não alheio à elas pela abstração do discurso pseudo revolucionário. Ouvir suas demandas, ter a oportunidade de desenvolver a prática da empatia com quem sofre por viver em um dos países mais transfóbicos do mundo, tem sido a coisa mais importante que me aconteceu nos últimos tempos. Aprender a respeitar o lugar de fala do outro, sem julgamentos, sem transferir a minha moral e a minha vivência, foi algo que nenhum momento aprendi na academia, e para ser franco, nem no primeiro e segundo grau.
E além disso pensar que faço parte de um projeto de real promoção à saúde. Não essa que se ensina na saúde pública clássica, de que saúde é o contrário de doença e se eu evitar doença estou automaticamente promovendo saúde, porque é essa concepção que tem levado à atitude prepotente das áreas da saúde de patologizar processos naturais. Estou falando de realizar uma ação em saúde que possa tornar a vida das pessoas mais felizes, que possa fazer com que as pessoas que vivem na base dessa sociedade tenham uma vida digna e feliz. Acredito profundamente que esse ambulatório esteja fazendo ações de promoção à saúde, porque não entendo a Transgeneridade como uma doença, como gosta de fazer a medicina. Por isso garantir um acesso seguro dessas pessoas à hormônioterapia, e a todas as terapias que temos ao nosso alcance para que elas sejam quem elas são, é sim promover bem-estar.
Obviamente, nem tudo é fácil. Ainda não conseguimos disponibilizar os hormônios gratuitamente no ambulatório, porque o ministério da saúde ainda não libera eles para a rede de atenção básica. Talvez porque a ideologia patologizadora da transsexualidade ainda permeia o Governo a ponto de eles não entenderem que o atendimento de pessoas Trans não é exclusivo de um especialista focal, e deve ser integral e multidisciplinar como o de qualquer outra pessoa. Por isso as pacientes ainda tem que enfrentar os desmandos da rede particular de farmácia e dispender do próprio bolso o dinheiro para comprar algo que lhes é de direito, já que elas também pagam impostos, elas também contribuem como qualquer pessoa. Ainda temos que enfrentar a dificuldade de não poder usar o nome da pessoa como o oficial no prontuário do SUS, o que acaba fazendo com que receitas, pedidos de exame e outros documentos ainda sejam impressos com o nome de registro. Mas isso em nenhum um momento significa frear os atendimentos ou esfriar a luta, muito pelo contrário. Vamos fazendo o máximo possível para que essas questões sejam melhoradas ao máximo na prática do atendimento cotidiano, ao mesmo tempo que mantemos a luta ao lado da ADEH pela garantia desses direitos como um todo.
Além disso, trazer a responsabilidade desse atendimento para a atenção básica, nos dá subsídio para provar que o médico generalista, pode e deve ter qualificação para promover um atendimento respeitoso e baseado em evidências. Portanto, a faculdade de medicina não pode excluir essa temática do seu currículo sob a justificativa desse papel ser do especialista focal, seja ele o endocrinologista, psiquiatra, cirurgião plástico ou qualquer que seja a desculpa da vez. Assim como para qualquer outra área, o especialista é necessário quando o manejo do atendimento exige mais especificidade. Por isso é sim responsabilidade de todo médico ter conhecimento (e respeito) para atender pessoas Trans. Mas isso é o que se espera, na prática, a negligência, o desrespeito e em algumas situações até a violência moral (que eu já presenciei) é o que reina nas aulas que tratam da temática ou nos atendimentos que acompanhamos durante a graduação.
Por isso a esperança. A esperança de que apesar de toda a opressão do estado, do sistema de saúde, da sociedade como um todo, apesar de todas as barreiras que essas pessoas encontram para chegar a um atendimento em saúde, pelo risco de violência, pelo desrespeito ao uso do nome, pelo incapacidade das equipes, pela falta de estrutura na rede: ainda assim tenho a oportunidade de participar de um projeto desses e me sentir tão bem, tão agradecido. Vocês fazem muito por mim e para minha saúde também!
OBS: Aproveitando para divulgar - a ADEH tá com um projeto sensacional de vaquinha solidária para financiar uma casa de acolhimento a Mulheres travestis e Mulheres e Homens Transsexuais em situação de vulnerabilidade. Por favor pessoal, contribuam com o que puder! Segue o link para contribuir:
https://www.vakinha.com.br/vaquinha/projeto-casulo-casa-de-acolhimento-lgbt
*Texto por João Roger
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Eu odeio o curso de Medicina
Sim, é isso mesmo. Sou estudante do 6° ano do curso de Medicina da UFSC, e posso dizer com toda certeza do mundo, que odeio esse curso. Mas preciso deixar claro: sou apaixonado pela medicina enquanto profissão, enquanto prática humanizadora. Dito isso, preciso reafirmar para que não haja dúvida: o curso de medicina, me desperta um asco incomparável. Listo aqui alguns dos motivos.
O principal problema do curso de medicina, está na minha absoluta falta de identidade com a maioria esmagadora dos estudantes e professores que fazem parte desses 6 anos. Pra alguém que nasceu e conviveu com a periferia campinense, e sempre teve amigos mais próximos da realidade, foi foda entrar num lugar e dar de cara com a pequena burguesia branca catarinense. A primeira sensação foi de total desconforto, mas com o tempo e com a militância do ME, fui encontrando meus pares. A parada é que esses pares são a exceção. O que me leva a outro problema.
Por esse perfil do estudante de medicina (e dos professores), que não se deparou ainda com a realidade na qual a enorme maioria de nós estamos submetidos, ele tende a ter a empatia que lhe é peculiar. O racismo, machismo, LGBTfobia são cotidianos nesse curso. São incontáveis as denúncias de assédio moral de professor (seletivo por raça e gênero, é claro), assédio moral de atléticas e centros acadêmicos coniventes, e até mesmo (e mais graves ainda) supostos militantes de esquerda ligados à movimento estudantil nacional sendo denunciados por situações bizarras.
Claro que essa não é a realidade específica do curso de medicina, essa é a realidade social, porém na medicina isso toma um caráter peculiar pelo fato de a ideologia dominante nas escolas médicas partir de um pressuposto: a medicina está acima e à parte da sociedade. Quantas vezes colegas já não usaram a frase: “os médicos não são racistas, a sociedade que é” como se essas duas entidades fossem separadas. Não foram uma nem duas vezes que vi mulheres negras serem largadas a esmo nos centros obstétricos em que estagiei, enquanto mulheres brancas tinham toda a atenção das equipes! Não foram uma nem duas vezes que ouvi comentários do tipo “boa coisa não estava fazendo”, “ta aqui atrás de atestado” , “deixa esperar mais um pouco” na maioria das vezes quando o paciente era negro e/ou pobre! Quantas vezes já não reparei olhar de reprovação de colegas e preceptores para o meu cabelo, para minha barba, para minha roupa?
Um amigo preto é brutalmente violentado e algemado em uma festa da medicina, e a turma organizadora é conivente e tenta silenciar o caso. Um otário da medicina UFRJ compartilha foto extremamente racista, gordofóbica e misógina e ameaça militantes negrxs com o uso do poder judiciário, que sabemos muito bem a quem serve. Estudantes fazem blackface a rodo e nada, absolutamente nada acontece. Não é fácil conviver com essa realidade que é tão vívida durante a graduação.
Mas esses não são os únicos motivos pra esse sentimento de ódio e desamparo, existe outro, menos importante mas com impacto enorme na nossa percepção: o currículo. Diante de um cenário assustador do sistema de saúde, da falta de acesso de uma massa negligenciada de trabalhadores, de falta de recursos pra saúde pública, de um lobby da indústria da doença (farmacêutica, planos e seguradoras, exames de imagem, laboratórios, etc) sobre o poder executivo, legislativo e judiciário, o que se vê nos currículos de medicina é um total distanciamento com todas essas questões.
Malemal sabemos fazer medicina generalista, que dirá crítica. Hoje, fazendo minha graduação em uma escola supostamente avançada na qualificação generalista, com um bom aporte de carga horária na atenção básica, ainda sim consigo observar o quanto temos pra avançar. No sexto ano, portanto no internato, ainda somos forçados a passar por estágios super especialistas sem o menor fundamento pedagógico, numa clara demonstração de falta interesse pela qualidade do que se aprende, ou para o reforço do ego de alguns especialistas que acreditam que a solução para os problemas do mundo é a sua especialidade focal e centrada na doença.
E meus colegas? Bom, há de se imaginar como eles se posicionam diante disso: submissos, passivos e dóceis. Se não pelo assédio moral e pela hierarquia escravagista dentro dos hospitais-escola, pelo desejo individualista de ser um especialista focal (ao mesmo tempo que compartilham #LutoPelaSaúde e #ForaCubanos). Dos comentários mais comuns que se ouve ao problematizar a função pedagógica de algum estágio inútil (que são INÚMEROS), os mais comuns são: “você reclama demais”, “eu achei legal” , “ai mas a gente tem que conhecer a especialidade”. Esse tipo de comentário não só revela um completo analfabetismo político, mas também uma falta de perspectiva prática: a maioria vai trabalhar em Atenção Primária ou em Emergência antes de seguir sua especialidade, logo não faz muito sentido ficar perdendo semanas em estágios que não dão nenhuma contribuição para a formação nessas áreas.
Por isso essa sensação de asco, de desamparo, de descrédito. Que vai se manter até a formatura, e sendo bem realista: não vai acabar depois dela. Mas pelo menos terei a oportunidade de tentar fazer a medicina pra qual me dispus a passar por tudo isso, que é a medicina pro povo trabalhador. É claro que essas questões tem continuidade em toda a categoria, mas a diferença fundamental entre esses dois momentos é que enquanto eu não tiver meu diploma, estarei pisando em ovos e submetido aos mais diversos assédios.
Dura realidade, mas é a que se apresenta. A mudança? Tomara que venha logo. Tomara que seja radical. Temos bons instrumentos pra isso. Haja visto a força de vários militantes da DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina) e alguns poucos dentro da ABEM ( Associação Brasileira de Educação Médica). Mas enquanto isso não for reivindicação do povo organizado, a mudança será microscópica.
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