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Um balde lantejoulas frias
Entrou na sala e achou graça com os quadros que dançavam Deam Martin e seu volare. Saiu da sala e teve a sensação que só havia de encontrar cimento. Logo ele, que voo sempre alto nas suas fantasias. Que imagina imensos guarda-chuvas vermelhos de camélias pela avenida. Que vê buquês de noiva nos pés de jasmim. Que cria e descria e se expressa pela cena que imagina. Que faz de um apartamento um aquário; que se apaixona quando crianca; que conversa com um morcego a beira da morte. Que fala com bichos, que cura com pedras, que ama o invisível, que faz pratos porque vê neles cor e história. Que joga com heróis, que salva princesas, que faz bruxarias, que batalha, que enfrenta... Que deseja, que sente, ama e goza pela fantasia. Que se veste todo de amor, sem nada por baixo. Nao se lembra do dia que se tornou como é, nem do momento que os dias deixaram de ser assim, nem da noite que a festa acabou. Alto lá, você que também é cria dele, ao maldizer suas fantasias. - Naturalmente, voltou preencher a planilha com o sorriso no rosto por sentir que ainda fantasiava e escrevia poemas.
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Café da Manhã
- Eu não achei minha fruta mordida.
Terminando o suco junto com a música eu pensei E quando ela se levantou da mesa fiquei olhando para a fatia de pão E eu disse, tentando aliviar a tensão, que não choraria pelo leite derramado O que na ocasião fez a garrafa de leite virar sobre a mesa E como tantas outras vezes as mãos falavam mais que a boca A boca mal se mexia comparado ao que os olhos gritavam Foi o que o silêncio deixou ouvir antes do seu fim
“Alguém quando parte É porque outro alguém vai chegar”
Apenas me olhou buscando entender Fez uma uva escorregar para o chão e correr pela sala Quando descansou a colher sobre o prato Porque sempre acreditei que a verdade não prolonga cafés da manhã Eu disse a ela que estava sendo sincera E poderiam ser E que precisava dizer algo que ela pensou que seriam palavras de amor
Só falamos sobre a noite quente que havia se passado. Mas a mesa estava posta, com toda comida que havia Só não tínhamos frutas. Quando ela chegou, eu já estava sentada.
“Pra que sofrer com despedidas?”
E o chiado da agulha foi substituído pela voz da Gal enquanto o disco girava eu sorria Vendo meu esmalte vermelho sobre a roupa verde que ela vestia.
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O Aniversário
O papel do cigarro queimava no escuro. Fumaça. No prédio ao lado, cinco janelas para o alto, contando, ouviu um coro desafinado comemorando mais um ano de vida. Mais real que o ânimo dos convidados, era a brasa que caminhava para seu fim.
"Parabéns para você[...]"
Agora ele precisava entender que muitas vezes as coisas acabam. Os pais morrem, os amores terminam, os amigos se vão. E a vida é esse constante perder de coisas que se julgam importantes. Aceitar o tempo que passa voraz, o desimpedido e incontrolável movimento diário de acabar.
[...] nesta data querida [...]
Havia aprendido que o propósito de tudo era apenas chegar ao fim. E em tudo que se acreditou, até o final, seria nada mais que o início da história. Tudo aquilo que se viveu para ser, agora, seria o antes de ser. Ar, fogo, água e terra. O nada e o início do novo, de novo.
Pensou no que acreditava sobre seus dias e sobre o que crera até então. Se estava caminhando, de fato, para algum lugar e sobre quantas vezes tinha sido bom
[...] muitas felicidades [...]
E no caminho oposto de uma fotografia que se revela em camadas, por horas ele apenas permanecia cobrindo a si mesmo, tornando-se a pose bonita estampada na revista.
Mas, ao perder, retornar e se revelar, compreendeu que nesta vida, onde mais vale a ideia de que é preciso ser, mais essencial que todos os seus pensamentos, era ser aquilo que ninguém vê, ser aquilo que não se é.
"[...] muitos anos de vida."
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Projeto Linha
“Eu te amo”.
Parado em frente ao shopping center, em meio às muitas pessoas que passavam ao seu redor, olhando a garoa, ele pensou mais uma vez “eu te amo”. Era oito e meia da noite e às duas e vinte e cinco da manhã pensou, novamente, que amava.
Ao acordar, com frio, colocou os pés quentes no chão gelado e achou que entendia o que sentia. Espreguiçou-se, como em todas as manhãs, principalmente após noites mal dormidas, e resolveu começar diferente, caminhando sobre uma linha imaginária. Um pé, uma mão, outro pé, outra mão!
Quem olhasse de fora, pensaria ser uma performance, uma dança, um orangotango. Não era! Tocando cada pedaço da linha, caminhou desse jeito estranho por muito tempo, por toda a casa. O cajón, o violão, a máscara branca, o colchão no chão e todos os pelos que apareceram pelo caminho. Estavam todos sobre a linha.
Com o copo de café na mão, sentado no tapete azul questionou se sabia de fato o que era amar, quem amava.
“Você ama tudo aquilo que te cruza as vistas, poxa”.
E no fim do copo de café, em vez de respostas, a borra apenas mantinha a questão. Tanto amor e tantos amores assim só poderiam significar que não se sabe amar ou que se sabe demais.
Enquanto lavava o copo, a borra se dissolvia e diante de tanto medo, tanta insegurança, tanta saudade, tanta história e poesia, decidiu que amava. Sobretudo, o jeito que amava. Pela sinceridade e não pela verdade, decidiu, assim. Porque uma linha traçada não precisa de destino a percorrer, só traçar e marcar! Se ela sobe, se desce, balança ou atravessa, não importa, desde que exista, desde que siga, desde que seja!
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A COBERTA
Encontraram-se no mesmo quarto
Morando em casas diferentes.
Do batente da porta,
A luz apagada, o espelho pequeno,
O chão frio e a cama torta. Ele.
O colchão macio, a colcha branca,
O travesseiro duro. Na cama posta, Ela.
Ele em pé, ela fechada.
Num súbito enlace, buscando encobrir
Todo o frio que havia ali,
Por de baixo e por dentro se fez quente.
Ela, preenchida por ele.
Ele, encoberto por ela.
Amantes num quarto gelado de hotel.
Desfeita! Exposta!
- Coberta aberta é que esquenta!
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Desvio
Do lado de dentro do automóvel fazia silêncio. O barulho da cidade eram apenas imagens. O tráfego riscando a avenida; o mormaço que já tão cedo se sentia; pedestres cruzando a rua; o céu ficando azul; a luz amarela. Vermelha.
O mundo perpendicular parecia transcorrer mais rápido que o seu. Verde.
Lado a lado dobraram a esquina juntos. Um de carro e outro de bicicleta. O mundo paralelo parecia transcorrer na mesma velocidade que o seu. Um viu a beleza do rosto do outro, a firmeza com que conduzia sua bicicleta e imaginou seu perfume e suor frio de quem pedala logo pela manhã. O outro ouvia uma música qualquer no fone de ouvido e seguiu. Talvez, até tenha percebido a presença do carro que o acompanhava, mas estava focado em seu próprio caminho. O que é bom!
Agora, em novo trajeto, um se atentava mais uma vez à luz vermelha. O outro desapareceu entre os muitos carros. Ambos seguiam seu caminho, cada qual ao seu tempo e modo. Mas seguiam.
Foi o tempo de quebrar a esquina. Mas, quem foi que disse que belas histórias só se contam em mais de dez páginas?
Estampado no poste, um lambe-lambe dizia: “Perca-se do tempo, mas não de boas lembranças”.
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A janela d’água
Por conta da madeira fria e alaranjada do apartamento 804, quase não era possível perceber o calor incessante da noite que transcorria do lado de fora dos doze andares paralelos à praça Dr. Rafael Assunção em cruzamento com a Rua Condessa Maria de Aragão. A luz baixa dos abajures, o silêncio do piano de cauda, os quadros e fotografias pelo cômodo e o relógio da cozinha, a janela alta do oitavo andar e um homem. Ele olhava pela janela e tentava enxergar algo.
Da mesma janela, muitas coisas já tinham acontecido. Presenciou a tarde vermelha de uma mulher descobrindo o calor do seu corpo através das lentes de um jovem desconhecido. Viu estilhaçar no chão, um homem apaixonado do alto de seu trono de cimento e sal. Riu do amor inocente de duas crianças do interior. Ouviu uma conversa entre um homem e um cigarro. Silenciou ao passar a procissão de Jandira.
Douglas beirava os 35 anos, desde muito cedo arriscava rabiscos sobre as coisas que imaginava. E como imaginava! Era um homem alto, corpo largo e trazia por todo o braço direito algumas inscrições tatuadas. Diferente de suas criações, seu estilo era bem comum, e da mesma forma, costumava viver assim também – Minha barba aparada, meu ray-ban discreto, minha camisa xadrez e meu piano afiado: estou no céu!, dizia sempre quando queria expor a imagem de que era um homem satisfeito com sua própria vida. Bem jovem formou-se em administração de empresas, um pedido do pai (ainda que o jovem não tivesse planos de seguir os passos do pai), mas desde então ajuda a administrar as finanças do escritório de arquitetura da família. Tão pouco quis ser arquiteto – minha criatividade constrói histórias, não banheiros – e ria de seu pai toda vez que alguém emendava nesse assunto. Paralelamente à vida de números, o rapaz vivia em seu mundo de letras e toda sua produção era publicada em um site na internet. Religiosamente, ele se sentava ao piano e tecia sons para as histórias que imaginava, sempre na companhia de seu gato, Prado. E eram felizes, exatamente assim.
Naquela noite, a janela parecia não mostrar nada a não ser o reflexo de um homem sem criatividade:
– Vamos, vamos, vamos. Pensa, cara! Por que você não consegue escrever? É só passar para o papel o que você está imaginando, poxa!
Mais uma vez, depois de tantas tentativas, ligou o aparelho de som e colocou seu dispositivo para tocar a música que trouxe a ele a inspiração da cena. Espantou o gato da poltrona cinza da sala, sentou-se confortavelmente, fechou os olhos, suspirou fundo e pensou em algo otimista.
Se Douglas estivesse com os olhos abertos, talvez tivesse visto um fio de água brotar detrás do relógio da cozinha. No compasso de seus ponteiros, era possível ouvir, também, a pia do banheiro e a torneira da área de serviço pingando.
De solavanco ele abriu os olhos e viu em cima do seu colo um amontoado de seixos pretos e sem entender a presença daquilo, levantou e seguiu para seu local de trabalho colocando as pedras sobre a mesa. Já sentado e rascunhando um esboço de história, uma gota de água pingou do teto sobre a folha de papel.
- Preciso arrumar esse ar-condicionado, pensou.
***
“Contam que houve uma época em que os homens e mulheres do mundo haviam se desvinculado da essência e base daquilo que os faziam humanos: a capacidade de cuidar de seus próprios impulsos em respeito aos que os cercam. A falta de humanidade fez com que perdessem suas roupas e suas cores; com que perdessem seus olhos e caminhassem errantes pelas terras daquele novo mundo. Todos tinham na pele a mesma cor de cobre, braços e pernas não se diferenciavam mais, não havia mais homem ou mulher, apenas criaturas disformes que expressavam a inexistência do que era, outrora, a essência da vida humana na Terra.”
***
Ouviu um barulho forte no quarto, levantou da cadeira impaciente por saber que mais uma vez seu gato teria derrubado o relógio da mesa de cabeceira. Cruzou com o gato que ainda dormia na cadeira da sala de jantar, e, então, já não estava mais certo da origem do barulho. Ele viu em pé, no final do corredor, em frente à porta do quarto, algo que se pronunciou ao mesmo tempo em que ele:
– ikooko.
Assustado fechou os olhos e quase caiu para trás, não fosse o apoio da cadeira onde o gato continuava dormindo. Na esperança de que aquela alucinação tivesse terminado, abriu os olhos, e viu que a criatura disforme, sem olhos, nem nada, continuava parada, prostrada no fim do corredor, imóvel.
– QUEM É VOCÊ?, gritou.
Olhou para os lados, apanhou um vaso em cima da mesa e seguiu na direção da criatura e percebeu que ela continuava parada. Frente a frente, ele e criatura disseram juntos – ikooko – e ele não entendeu como aquilo era possível. Aquela era a criatura do texto que ele havia imaginado e por tantas vezes iniciado sua escrita sem sucesso. Atordoado, voltou para sala e percebeu que conforme caminhava pelo corredor, sua camiseta antiga de dormir recebia pequenos pingos invisíveis de água. Como se chovesse sobre seu corpo, o que seria impossível já que estava dentro de casa.
Foi quando avistou no chão da sala a mesma criatura de minutos antes – e ela já não estava no mesmo lugar. Ikooko uivava um grito de dor e clemência, chorava por piedade.
Balançando a cabeça perdida sobre o corpo cumprido, Douglas, tentava buscar compreensão a respeito de tudo aquilo. Suas roupas molhadas, aquele uivo amargurante, o gato que continuava dormindo.
Ao sentir o frio que o tomara subitamente, Douglas percebeu que se espalhava por todo o apartamento uma camada de água alta o suficiente para que encobrisse seus pés. Na dúvida, se mais desesperado ou assustado, ele apenas olhou em volta.
Brotavam das paredes pequenas galhos de pinheiro. De alguns cantos do cômodo, viam-se largas toras escuras de madeira, árvores que se misturavam e adentravam os quadros pendurados – e que agora se pareciam com profundas florestas de pinho. Era possível ouvir o barulho das folhas, o cheiro de uma noite quente saindo de dentro das molduras e o constante lamento da criatura.
Silêncio.
Nesse momento, era possível ouvir apenas o som muito baixo que a água escura e translúcida que cobria o chão do apartamento fazia. Repentinamente, por entre as folhas da floresta, um vento muito leve caminhou em direção ao lago que parecia ter se formado em sua sala, passando sobre ele em quietude total. Rodeou a criatura, agora também silenciada, e nesse movimento a água subiu pela pele de Ikooko envolvendo seu corpo sem forma.
Diante seus olhos escuros e assustados, viu surgir por debaixo da película de água, dois outros olhos. O queixo arredondado e em harmonia com todo o rosto que surgia, trazia traços femininos cobertos por cabelos escuros e curtos, uma mulher nua, contornada por uma fina camada de água, ela o olhava profundamente trazendo nos olhos o brilho de quem respirava pela primeira vez.
***
– Meu nome é Maya, e o seu?
– Douglas.
– Onde estou?, perguntou ela.
– Não sei... Quero dizer, na minha casa! Mas, não é minha casa. Eu não sei o que está acontecendo, por que você está aqui?
– Eu renasci da redenção de Idajo e estou pronta para o meu julgamento.
Douglas segurando o queixo barbado sem conseguir buscar lógica em tudo aquilo que estava acontecendo, esfregou o rosto com as duas mãos e olhou, por entre os dedos, que Maya estava parada e o observava atentamente. Ele se deu conta de que a água que cobria seus pés, agora tocava o meio de suas canelas. As árvores continuavam crescendo pelas paredes e o gato continuava dormindo sobre a cadeira. Era possível ouvir da cozinha um som baixo e constante, um tipo de canto em reza, como se uma pequena multidão de pessoas estivesse lá em prece.
– Hoje é seu julgamento também?, indagou Maya.
– Do que você está falando? Julgamento?
– Hoje é o dia da pesagem das pedras - respondeu a mulher. Quando a divindade é invocada para o julgamento de seus filhos. Muito tempo atrás, quando a humanidade se extinguiu dos seres humanos e eles se tornaram Ikookos, de dentro da floresta de pinheiros que rodeava aquela região, surgiu através de uma aura de justiça uma figura alta e fina. Caminhava sobre o vento, lentamente, e olhava para as criaturas assustadas que se silenciavam. Vestia-se com um manto de madeira e escondia-se nua por de trás do mesmo, trazendo no semblante o desejo de ser justa com o sofrimento das criaturas que ali viviam e morriam. Seu longo cabelo de cor vermelha escura e muito intensa escondia seu peito e descia até seus pés sem tocar o chão. Em suas mãos, trazia um amontoado de seixos escuros como todas as noites juntas e mais pesados que todos os arrependimentos do mundo. Seu nome era Idajo e Ayanjê.
– Eram dois nomes?, enrugaram as duas largas sobrancelhas.
– Sim – respondeu muito rápido, como se não quisesse ser interrompida em sua história sagrada – Após o silêncio que se fez na Terra diante da sua presença, a divindade olhou para aquelas criaturas e disse ao mesmo tempo “IDAJO/AYANJÊ”. Sua voz era doce, como um conjunto de harpas, e forte, como mil notas graves de um órgão de tubos. Naquele momento, o tempo passou mais rápido, as estrelas e o sol riscavam o céu, ininterrupta e simultaneamente, flores e animais nasciam e morriam, a terra secava e a chuva molhava os corpos das criaturas emudecidas e a humanidade parecia querer existir.
– E então?, perguntou insistente.
– Na fração de tempo que um julgamento acontece, Idajo/Ayanjê, olhou para seus seres humanos e desejou que houvesse justiça naquele lugar. Quis legislar, pautada na ideia de que a paz é justa e é proveniente do bem que fazemos aos nossos semelhantes. Foi então que seu manto de madeira começou a talhar em si mesmo as leis que iriam reger os caminhos daquele povo perdido em suas ações humanas. De dentro das inscrições, começou a minar água e com agilidade e cuidado, Idajo/Ayanjê colocou seixos nas mãos dos novos Homens que ali haviam se erguido. Pairou no ar e disse: “Que cada qual seja julgado pela leveza de suas histórias e responsável pelas pedras que carregam e pesam o mundo”.
A sensação molhada e fria que Douglas sentiu em sua barriga, fez com que os pelos do largo corpo denunciassem o nível da água que até então cobria apenas o chão do seu apartamento. Estranhamente, o gato continuava dormindo sobre a cadeira da sala de jantar, que agora estava submersa. O que lhe causou tamanha estranheza que se questionou há quanto tempo estaria ali parado ouvindo aquela história. Lembrou-se das anotações e livros que estavam sobre a mesa de trabalho e que agora não passavam de papel molhado. Preocupou-se com o computador, com o sofá novo e, principalmente, com o piano debaixo d’água – que deixava ver apenas a tampa levantada. As paredes tomadas por densa folhagem tinham perdido o toque reconfortante da madeira clara de outrora. Os cânticos que ele havia ouvido na cozinha, pareciam estar cada vez mais fortes e mais próximos da sala. Ele ainda não compreendia o que estava acontecendo, mas o único sentimento que tinha era o de continuar ouvindo a história daquela mulher.
– Então, continuou Maya orgulhosa de sua história – homens e mulheres caminharam em direção ao lago que existia próximo à floresta e, assim, se iniciava o ritual de justiça da divindade. Cada ser humano, naquele local, afundou dentro do lago de acordo com o peso de suas pedras. Muitos tentavam nadar de volta à superfície, mas suas pedras eram tão pesadas que todos os seus esforços eram inúteis diante do destino que tinham criado a si mesmos. Outros, com dificuldade, conseguiam emergir de dentro do lago, mas traziam a pele agora acinzentada, como que marcada pela escuridão líquida da justiça. Outros poucos se mantiveram na superfície do lago escuro, pois suas histórias leves eram mais fortes que suas pequenas pedras.
– Diante daquele cenário frio, de desespero e salvação – continuou ela, Idajo/Ayanjê apenas observava os corpos que obedientemente caminhavam em direção às profundezas do lago. Esboçava um sorriso tão fino e discreto que de longe parecia ser apenas um fio de cabelo. Sentia-se satisfeita por ver que a justiça estava sendo feita baseada na história de cada pessoa e que seus próprios seixos determinariam serem merecedores ou não do leito do lago. Desse dia em diante, sempre que a lua se faz grande o suficiente para subir as águas dos rios, meu povo invoca a divindade para o julgamento do peso das pedras de cada um. Hoje é a noite em que serei julgada, abençoada com a misericórdia de Idajo ou sacrificada pela tirania de Ayanjê.
***
Assustado com o estrondo que ouviu, Douglas, com os olhos arregalados, percebeu que um totem muito grande de madeira havia rompido o teto de seu apartamento e atingido sua mesa de trabalho já submersa, quebrando-a ao meio. Era um totem que exibia o desenho de um rosto inexpressivo sempre a fitar o horizonte. A madeira desenhava o olhar de um homem justo, capaz de enxergar a salvação dos seres do mundo, e ao mesmo tempo o olhar de uma mulher tirana que ignorava a realidade e os fatos à sua volta.
– OraraKabê, saldou Maya ao totem.
– O que é isso?, perguntou Douglas.
– É a imagem da divindade representada pelo meu povo. Ela é homem e mulher, a misericórdia e a tirania, o equilíbrio do mundo, o amparo e a ação, a justiça mais pura que já existiu.
– Mas, como ela pode ser justa, se você diz que ela é uma tirana? Ela não me parece ser algo bom!
– NUNCA MAIS REPITA ALGO ASSIM, repreendeu Maya no mesmo momento em que sobre os entalhes do totem pulsou uma luz azul celeste muito intensa fazendo com que todo o apartamento vibrasse.
Recompondo-se, Maya continuou:
– No dia do julgamento inicial, após todos serem mandados ao lago para validar o peso de suas pedras, fora da água, homens e mulheres se arrastavam sobre os pedregulhos da margem do lago. Uns choravam e agradeciam pela salvação que tinham alcançado, apontavam para o ar e se embeveciam da alegria de observar seu justiceiro, plácido, sereno, com seus longos cabelos vermelhos e entoavam um cântico calmo em homenagem a Idajo, senhor dos seixos escuros marginais. Outros observavam atentamente, e aterrorizados, a mesma imagem, porém fria e plácida diante o massacre. Seus olhos escuros, impiedosos, amedrontavam aqueles que por pouco haviam sobrevivido ao afogamento, mas tinha presenciado a dor daqueles que tiveram seus pulmões transbordados; Ayanjê, senhora dos leitos profundos.
Sob a barba já encharcada, conseguia ver através da escura e translúcida água, a face de homens e mulheres olhando de volta com profundo pesar. Todos entoavam uma oração submersa, Maya também começara a rezar.
“Ó, Senhor dos seixos escuros
Ó, Senhora dos oceanos impuros
Patrono dos barcos abandonados
Magistrais águas para os quais
todos os barcos são levados
e, por teu princípio, enferrujados
tendes misericórdia de nós, tuas víboras.
Livre-nos, por piedade, dos pesos
das pedras que nos são como âncoras.
Senhora do leito marginal profundo
Mestre da força que suspende o mundo
Patrona cruel da barganha justa da vida
que levas nossos amados, mas curas as feridas
rogamos que a tua tirania, sobre nós, seja branda
e que, aos merecidos, restitua a luz como tu mandas.”
Ainda consciente do que sentia pelo seu corpo, o escritor começou perceber que a água subia cada vez mais rápida e que seus pés estavam enterrados sob seixos muito escuros, como os que ele havia encontrado sobre suas pernas. Olhando para Maya disse:
– E seu povo aceitou o julgamento dessa mulher, dessa tal de Ayanjê?
E então, ela, apavorada, começou a chorar e bradar maldições – você vê Ayanjê e não Idajo! Porque meu deus caridoso, porque me deixaste ao lado desse filho do leito? Eu não mereço ser afundada junto dele. Orarakabê, Idajo, me salve dos olhos de Ayanjê, por tua misericórdia.
A respiração ofegante e o respingar de água que ela promoveu, anunciou que seu nariz estava quase coberto pela escuridão do lago que se formara e o fez entender que estava no meio do ritual de julgamento. Maya gritava como se fosse um Ikooko novamente e as orações ficavam cada vez mais altas. Ele tomou seu último gole de ar e foi bruscamente engolido.
***
Tudo era azul por conta do reflexo de luz que o totem emanava, era como se fosse outra realidade debaixo d’água. Sob seus pés era possível ver uma profunda escuridão. Parecia como se os doze andares tivessem sido inundados. Não se viam mais os rostos que outrora rezavam por ele, não haviam mais os móveis da casa, nem piano ou gato sobre a cadeira da sala de jantar. O cômodo estava vazio e as únicas coisas que se via eram um corpo flutuando pela água e a janela muito grande do apartamento.
Douglas conseguiu perceber que o corpo não era o de Maya. Fixou o olhar e percebeu que a familiaridade com figura a boiar era mais que uma impressão. Era o corpo de Prado, seu gato! Mas, desta vez não dormia, estava morto. Afogado. As tatuagens se elevaram em um arrepio e uma dor grande tomou conta de seus pulmões. Usando o pouco ar que lhe restava, Douglas nadou até o corpo de seu companheiro e o pegou nas mãos. Suas lágrimas salgadas e claras subiam pela água doce e escura que o afogava – riscando o ambiente com tristeza e pesar. Não que ele acreditasse ter sido um ótimo dono de gatos, mas jamais imaginaria ver seu silencioso Prado morrer dessa forma. O dorminhoco sempre esteve em todas as histórias que já havia contado. Sentiu como se tudo o que ele havia criado até então, estivesse morto também.
O movimento da água fez com que a cauda de Prado se enrolasse ao braço de Douglas, o que fez com que o homem atonitamente se lembrasse da necessidade de tentar respirar. Era preciso emergir, era preciso manter-se vivo para que as coisas pudessem de fato continuar a existir e Douglas galgou do rés-do-chão de sua consciência afogada em busca de ar, de vida, de sua transbordação.
Como quem solta à imaginação, soltou o gato e tentou nadar com toda a força que tinha para a superfície. Foi quando, nesse momento, sentiu um pulso sonoro atravessar o cômodo e ao olhar para baixo viu o corpo de seu antigo amigo inflar na mesma cor azul-celeste que havia visto fazer o totem brilhar. Ele olhou pela grande janela de seu apartamento submerso e viu do lado de fora uma chuva de corpos caindo, choviam Douglas, de todas as idades, em diferentes momentos de sua vida. O bichano miava e a cada miado um vórtice de água se formava e uma criatura fantástica aparecia. Personagens antigos escritos e coisas que Douglas jamais havia imaginado. Ele estava rodeado de todas as coisas possíveis de serem imaginadas no mundo.
Do alto do oitavo andar, pela janela do apartamento 804, foi possível ver um homem debruçado sobre o parapeito da sua janela e esse homem sorria.
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Prece à Jandira
Vinham elas arrastando suas histórias pelas ladeiras, uma onda branca de véus cantando seus lamentos e seus desejos. Elas eram as luzes daquele lugar, tremulando suas vozes. Vinham elas, maresia de mulheres invadindo a cidade.
Quem das janelas via a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes cruzar a noite quente e úmida, dividia-se entre orações e comentários sobre os passos das mulheres que passavam...
Da casa fronte à rua, que se dividia em dois novos caminhos, debruçado sobre a janela verde, pitava o resto de um cigarro o jovem André, com seu chapéu de couro na cabeça e sua cara não tão bonita. Apesar de ter o rosto parecido com a casca da caliandra, ele desfilava sempre sobre o passo seguro de quem se aventura sem medo mata adentro. André enfrentava bicho bravo, espinho venenoso e os mistérios noturnos da mata que rodeava o vilarejo. Sempre pitando seu cigarrinho. André era um homem de coragem.
Mirantes altivos de cor Jatobá puseram-se atentos. Os olhos espreitos de André viram uma presença escura em meio ao mar branco de mulheres. Ela era o avesso da renda das senhoras que continuavam passando enquanto sua pele escura refletia a luz das velas que desciam pela rua. Parada, rosto baixo, iluminada de mulheres. Jandira, nome que ele ainda não sabia.
Com sua negra trança negra caída sobre o rosto, Jandira não mexia nada mais que o peito que respirava forçosamente, tentando colher ar onde não havia. Ergueu seus lábios, sentiu seus pés descalços na rua de pedras e a renda branca que contornava sua pele escura e com os olhos escorridos, sorriu bravamente. Ela andou, passou pelas luzes, nada relava em Jandira e ela apenas passava, sem pena nem dor, caminhava intocável pela secura do mundo, pois ela era toda a água que há. Era assim, todo o mundo que existe. E dançava sobre os pedriscos e folhas caídas da rua, ignorava o tempo, ignorava o fogo, Jandira ignorava tudo aquilo que não lhe podia fazer repleta. E toda vez que Jandira girava, suas tranças rodavam no ar passando por cima das cabeças baixas de véu, vez em quando tocavam as chamas das velas que quase as apagavam, e junto da sua gira um rio de lágrimas brotava dos seus olhos, e dos seus lábios uma onda branca e forte arrebentava no ar.
Quando chegou ao final da rua, bem debaixo da casa de André, Jandira, que era o fluxo doce e a ressaca salgada, atentou-se para seus grandes bico pretos furando a renda e sentindo-se a própria noite da procissão gargalhou olhando para cima. Nesse momento, seus olhos marejados encontraram os olhos desconfiados de André. E no sinal de respeito dele de tirar o chapéu para moça que chegara, ela desapareceu.
André assustado percebeu o silêncio em que a noite se conduzia. Durante todo o tempo que observou Jandira, parecia ouvir o compasso do mundo se construindo. E de repente, mais nada se mexia; a não ser as sandálias pesadas da rezaria que seguia.
Da esquina da frente, umas duas janelas mais altas, um velho sentado sobre uma janela branca avistou uma mulher negra contornada pela luz da lua correndo em direção à praia, enquanto assobiava a reza cantada pelo rio de véus que passava:
“Brilham as estrelas no céu,
brincam os peixinhos no mar.
Calunga ê. Calunga a.”.
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Silêncio
Qual a lua sozinha na escuridão do céu, cintilava no escuro, entre as árvores, os olhos amarelos e cegos que procuravam por comida. Soltou as garras do galho em que estava e voou mata adentro atrás de sua presa, sendo a voz que ecoava pela noite.
.
Um homem sentado sozinho na varanda de seu chalé observava a noite. A noite que era escura, sozinha e quieta. Do lado de fora da casa está o silêncio que é o barulho da natureza ao seu redor. Do lado de dentro toca uma música. Entre o distante som do rádio e o barulho tão próximo da brasa do cigarro estalando, ouve-se também ao longe, de dentro da floresta que rodeava a casa, o guinchar de alguns morcegos.
O motor da geladeira distante. Insetos se queimando na luz. Folhas farfalhando. Um pigarro vez em quando.
- Eu deveria colocar uma rede contra insetos nessa varanda!
- Por quê? – perguntou o cigarro.
- Eu não gosto da sensação de quando eles encostam em mim e toda noite é o mesmo pesar. Eu procurando apenas o silêncio de uma noite quente e insetos se debatendo contra mim.
- E porque não coloca, então?
- Eu tenho medo de perder o mundo. De não conseguir mais enxergar o que tem do lado de fora, escondido dentro da floresta.
- Mas, é só uma rede, isso não vai te impossibilitar a visão.
- O invisível é a maior clareza de quem tem medo de enxergar.
30 segundos contados pelo barulho do relógio da sala. Um pigarro vez em quando. Um balde de ferro que se mexe com o vento.
Inesperadamente, com o barulho mais alto que se podia fazer na noite, um morcego adentra a varanda e tromba com a parede da casa, caindo desacordado no chão. De salto o homem se afastou assustado. Compreendida a situação ele vira a cadeira e olha para o bicho no chão.
- (...)
O bicho respira forçosamente, a cabeça sangra, os olhos amarelos se esvaem.
- Hey irmão... Aguente firme, você vai morrer essa noite. – falou sinceramente o homem.
- Eu não sei, eu não sei o que aconteceu. Eu estava voando quando de repente tudo se perdeu na minha escuridão e, então, aqui estou. Eu não quero morrer. Eu não quero morrer essa noite.
- Acho que você não tem essa opção, camarada.
- Aquele rato estava bem na minha frente, eu conseguia senti-lo, ouvi-lo. E então uma ideia me passou pela cabeça: porque eu não conseguia enxergar aquele pedaço vivo que corria bem na minha frente. E então tudo se escureceu em meus ouvidos. A natureza se emudeceu. [Respirando profundamente] o único som que eu ouvia era uma música antiga ao longe e, então, aqui estou.
E o homem apenas olhou o sangue que aumentava no chão da varanda.
- E agora eu sou um pedaço vivo na sua frente e você me olha e não faz nada. A ambição de correr de uns só existe pelo sádico desejo de observar do outro. Este é o meu lugar, o meu mundo, que direito tem você de construir essas paredes no meio do caminho, com a madeira das árvores da minha morada? Por que ao menos não teve o cuidado de nos proteger contra você? Sei lá, porque não...
- Uma rede? – perguntou o homem.
- Já bastaria, eu teria apenas me enroscado e voltado a voar.
O olho escuro do homem e o amarelo e cintilante olho do morcego se olharam pela última vez com vida. Ele se recostou na cadeira mais uma vez, olhou para a floresta que rodeava a casa e acendeu outro cigarro. O homem pensava sobre as dúvidas que só temos antes do fim das coisas. Onde elas estão quando as coisas começam?
Um miado curioso tentando cheirar o sangue. Insetos se queimando na luz. O vento entre as árvores e a música do lado de dentro:
- The answer, my friend, is blowin' in the Wind. The answer is blowin' in the Wind.
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Do cais pintado de azul
Do seu corpo que já era parte do cais Ele percebeu a cor esverdeada das cordas que rodeavam suas pernas E desciam mar adentro. Ancorado à profundeza de não se saber o que.
Era, a noite, infinita e muito escura; Via-se ao longe um barco ou uma estrela. A perna ancorada, o corpo encharcado de lágrima e sal; As últimas gotas de água em seus pulmões E a espera pelo barco perdido em seu mar sem farol.
Porto esquecido de si mesmo Só queria cantar e não se arrepender antes do sol se fazer.
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DEPOIS DE VOCÊ
[a TV fora do ar chia a expansão barulhenta do universo quando a programação subitamente volta ao ar]
- [...] Claro que não! - [entrevistador faz uma pergunta em off] - São tantas coisas que aconteceram, acho complicado dizer aqui se houve uma causa clara. - [...] - Veja bem... - [...] - Sim, mas veja bem... - [...] - Concordo, mas veja bem... - [...] - E depois de você, o que é que há? Depois de você há ruas que se espalham por aí cheias de gente e de carros tão desorganizados quanto os nossos pensamentos. Depois de você tem serras, árvores, tem bicho deitado, tem bicho de quatro e de pé. Tem mar, espelho do céu quebrado. Depois de você tem nossa origem, tem nossa história, tem tudo aquilo que nos fez algo, tem rosas de barro cheirando a artesanato novo. Depois de você tem cheiros, tem sabores, tem fé... Depois de você tem fé, tem a fé que é preciso ter para sobreviver, por que o que seria de nós sem os deuses que criamos? Depois de você tem o passado, tem o tempo parado rente ao futuro que quer cada dia ser maior. Assim, separados por um muro. Depois de você tem meio dia inteiro de diferença e sempre que eu amanheço você anoitece e a gente não se encontra. Porque o dia e a noite se amam, têm saudades, têm vontades, têm desejos, mas não se falam, não se compreendem, não se encontram nessa língua estranha que se usa. Depois de você tem uma infinidade azul, tem o espaço, a solitude, o pensamento. Depois de você tem gente que parece índio, montanhas e até neve. Depois de você tenho eu, de costas... Depois de você eu me encontro, vejo minha própria nuca ansiosa, olhando pra frente, tentando enxergar o que há depois de você. - [...] - Sim... Me desculpa, mas você trata esse assunto como se fosse qualquer assunto de auditório. - [...] - Se eu estou ou se eu quero? - [...] - Claro que não!
[Entra a música Jabitacá tocando ao fundo]
“Mas não me deixe navegar Se já não crê no encanto deste mar Se nossas manhãs se perderam nas ruas sem jardins”
[Entram os comerciais].
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O Trono de Cimento e Sal
As luzes lá embaixo corriam vermelhas
E o céu se acobertava sobre a neblina típica
Daquele sentimento.
É sempre tudo escuro e frio aqui de cima
E olhando pra baixo
O meu olhar poderoso, vidra
Sobre todo flash de luz que escapa.
O olho olha sem medo
A retina treme tamanha é seu poder
É o vento, a fumaça, o gelo - sou Rei de mim.
No meio do caminho, um violão “lounge”
Dedilha o que eu não quero ouvir
E é só o tempo que passa
E é só a pele que rasga
E é só o ar que falta
O vazio que fica
A ausência
De mim
Sua...
As estrelas e suas luzes são tão longe
E o céu agora some na neblina típica
Desse sentimento.
O decl��nio de um império de olhos
Dá-se em meio às luzes vermelhas Trincado: sou de vidro também!
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Sabe quando meio atrasado com a vida (Vencedora do 3º lugar do concurso de poesia da biblioteca da Unesp de Bauru)
Sabe que ando meio atrasado com a vida São tantos papéis perdidos e amontoados No criado mudo A luz da mesa tem piscado ultimamente E meio sujo de café e embatumado De cinzas de cigarro As coisas têm se acumulado Falta folha e caneta Sobram pensamentos borrados Já são dez horas da noite e o relógio Ilógico grita da prova de amanhã Preciso de uma resenha Uma gaveta vazia
Pra ver se me ponho em dia.
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Depois do Vermelho
Após matar sua sede, a mosca, que estava sobre a pequena poça de água que restara na pia limpa e organizada da cozinha, alçou voo e zanzou pela porta e atravessou a sala, escapando por pouco do tapa desatento dado por Sônia.
Curiosa! Era o nome que podia se dar para aquela tarde quente de terça-feira.
Sônia, uma mulher de 41 anos, mãe de duas filhas, esposa de seu marido. Nesta terceira tarde da semana, sozinha em casa, Sônia zanzava pela internet quando se deparou com um site que lhe chamou a atenção. Estampava a capa do site um homem com seus 26 anos que mirava para si mesmo através de um espelho a lente de uma máquina fotográfica e dizia: arte erótica e descompromissada. Eram cenas eróticas, não pornográficas, de mulheres que haviam se deitado com aquele rapaz. Poses sensuais; seios focados; bocas umedecidas; coxas suadas; pelos arrepiados. Algumas vezes ele se fotografava junto dessas mulheres e raras vezes até dividia o foco com outro homem. “Que curioso...”.Era incrível, na cabeça de Sônia, pensar que mulheres se deitavam com um estranho e permitiam serem fotografadas. “Mas nem ao menos se depilou essa...”, “Hunnn...”, “Gorda! ...”, “e essa pinta, gente?...”, “Nossa! Que grande”. No fim da página, quase que como um desafio despretensioso, o dono do site dizia algo como “Gostou? Agora quero gostar de você” e deixava um endereço de e-mail para aquelas que quisessem ser fotografadas por sua lente.
Sônia, que estava com o notebook sobre suas pernas cruzadas no sofá, espreguiçou o corpo para trás e, com a mão por entre os curtos fios de cabelos vermelhos, olhou para janela e pensou. O sorriso rapidamente foi substituído por um ar sério e culposo, que não durou muito tempo e voltou a se derreter entre dentes e pensamentos enquanto mordia a unha vermelha perfeitamente pintada. “Nunca ninguém vai saber e, pra ser bem sincera, acho que este e-mail nem existe mais”. O Vinil do Chico que tocava terminou junto do “enter” corajoso e desafiador de Sônia que enviou um e-mail desacreditado para o dono do site.
“Sônia. 41 anos. 1,76 de altura e 69kg. Cabelos curtos e vermelhos. Te encontro em frente à padaria da Rua Almirante Turvo. Hoje, às 15h.”
Sônia duvidava da existência daquele endereço de e-mail e sabia que o horário marcado, 40 minutos depois do seu “enter” corajoso, seria minimamente o empecilho existente para que nada daquilo pudesse acontecer e assim finalizar seu dia suado de imaginação. Teria sido assim, não fosse a notificação de e-mail que subiu ao lado direito da tela dizendo: “Combinado, te aguardo lá Sônia”. Gargalhou. Sônia, apenas Gargalhou.
Acostumada a obedecer, levantou-se do sofá e lavou o corpo. Ria com o rosto molhado e ria mais enquanto secava o cabelo. Saiu de casa e trancou a porta rindo. Parou em frente à padaria e só riu. Ainda não sabia como e porque tinha chegado até ali. Mordeu novamente a unha vermelha e parou de rir ao ver ao longe um menino. Seus cabelos cheios, seu queixo levemente barbado, a câmera pendurada no ombro, a pele branca, a camisa marrom de bolinha branca, o jeans preto desgastado e o sorriso: “Sônia?”. Andaram por umas quatro quadras, ele muito tranquilo, falante, contava rapidamente do quanto tinha gostado de receber o e-mail dela e perguntava coisas que mulheres gostam de responder, como se soubesse lidar com a tensão sufocante que fazia Sônia responder tudo muito rápido e seco. Ao entrar pela porta que se adiantava aos três lances de escada, comentaram da coincidência de morarem tão próximos e isso fez com que as pernas de Sônia automaticamente retornassem para a calçada, desejando voltar para o sofá quente e curioso daquela terça.
“Vem”.
Sônia teve a sensação de que quem falava era a mão firme, mas não forte, que segurava seu braço e assim retomou às escadas.E foram poucas perguntas e muitas poses e posições. Lábios úmidos, coxas suadas, pelos arrepiados, lentes embaçadas, mãos, cabelo, pernas desfocadas, hastes, flashes, closes...
Com a luz vermelha ligada, ele saiu nu do quarto de revelação e disse: “depois do vermelho, a tua vermelhidão é minha arte” e entregou para Sônia uma fotografia em que estava ela, de costas, mostrando as três pintas de cor marrom que tinha na nuca e que formavam, junto do repicado vermelho de seus cabelos, a arte dele.
Sônia não sorria. Caminhou em silêncio pelas quatro quadras. Depois de abrir a porta e zanzar pela sala, deixou a bolsa no sofá; ligou novamente o disco do Chico e debruçou na sacada. Olhou para a noite quente que começava a surgir, fitou o céu avermelhado e pensou. Dessa vez sem sorrir, descobriu que não era culpa o prazer que sentia ainda pelo seu corpo, agora registrado e publicado. Descobriu que não tinha traído seu marido, que não tinha traído sua família, mas, entendeu que para além de uma traição, havia encontrado sua cor. Agora, recostada na sacada, ouvindo a porta da sala abrir, anunciando a chegada da família, descobriu, ao se deixar fotografar, tudo aquilo que existia no mundo e que ela não podia ter.
“Te perdoo por te trair”.
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O retorno
Eis que assim, de repente Dá-se a luz e o som do começo...
Agora o tempo está parado E eu sinto dentro de mim A força de querer nascer E tudo a minha volta É luz, é cor, é som, é vida E eu sou calor, toque e sentimento.
Agora somos eu e vocês O pai e a mãe e as mãos Do ABC às tintas do alívio Dos pequenos sapatos Aos conselhos sinceros Conselhos que hoje eu entendo Que realmente eram para o meu Próprio bem.
Agora somos nós e vocês Outra casa, outras pessoas Outras vidas...
Agora que somos quem somos Sou tua pele, o olho dele, a boca dela O nariz dele e as mãos dele O sorriso dela e a inteligência dela Sou ele... sou ela... somos muitos...
Agora que somos quem somos Dá-me aqui um abraço mãe, Dá-me aqui um beijo pai, Deem-me aqui o conforto
Para onde eu sempre hei de retornar.
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Tristeza maior é a solidão que vem na distância do que acompanha.
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Crônica do que termina mas não se vai
Era uma quinta-feira tranquila, o céu estava azul e o sol estava quentinho, desejando bom dia àqueles que lhe sentiam. Foi quando de repente, em meio ao silêncio barulhento das maritacas, que uma ambulância cruza o estacionamento abaixo da minha janela do quarto, pedindo passagem aos carros estacionados, pois precisava socorrer alguém. Surpresa a minha que essa pessoa era uma senhora do meu bloco. Assim se deu a cena, uma ambulância que já preparava todos os aparelhos insistidores de vida, bombeiros desamarrando escadas e pés-de-cabra e mulheres histéricas que ecoavam em um pranto, talvez de fato humano, o desespero por uma senhora que até então não havia dado sinal de vida, não havia aberto as janelas e não atendia nem à porta nem ao interfone. Ela estava morta. Após muita discussão e estratégias traçadas para que se decidisse a forma de socorre aquela senhora, agora companheira do inevitável fato da vida, um último contato foi tentado. Se fosse meia noite e a lua estivesse coberta por nuvens, esse seria um cenário de história de terror, mas não, era uma quinta-feira de manhã e tal qual a tranquilidade com que ela se iniciara, a senhora atendeu a porta de camisola e com cara de sono apenas disse: bom dia!
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