praiapreta
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_________ praia preta
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praiapreta · 10 years ago
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Louise x2
Oh Louise,
Louise Bourgeois, oh, Louise. E o querer ser ti, Louise. Pode outra reação teu trabalho suscitar? Louise Bourgeois, quanto mais sei de ti mais entranho-me, e quanto mais vejo tua obra, entranho-me mais, e mais e nisto que já não é ti mas de que fez o parto. Ora Louise, te ofenderia essa maternidade declarada? Se usar de outras palavras, num jorro ou despejo poderia falar-te? E então nessa febre a tentativa de destilar teus coágulos, bem desenhados e projetados, mas sempre um recolhimento do teu corpo, risca da cabeça às mãos.
Ora Louise, o que vejo é o que ti permite. O que ouço é o que fala, o que escolhe falar, e se nos teus objetos faz irromper a emoção por fim, desrraigada, que há eu de fazer senão encolher-me nestas presenças? Teu assombro, assim materializado, desfaz o entorno que tenta encerrá-lo para existir em plena força e solidez de forma, em seu exotismo e suntuosidade, e então como há de ser de teu agrado já não há Louise, Louise é sombra, é as letras grafadas na parede da exposição, e Louise emancipada persegue noutro canto o próximo acúmulo ou destilamento a abastar a próxima galeria, a abarrotar o outro quarto e revestir espaço destes humores febris.
Mas e se fazendo o destraçar de origem e produto que a ti é impossível Louise? Se nego minha atenção ao volume bronco que tu sustenta, teu caráter, tua presença, volto-me à tua obra para o que nela encontrar? Encontrar-me, escondida aos cantos, o básico e esperado. Encontrar as matérias mais próprias à configuração que lhes é dada, por sensibilidade e habilidade. Encontrar objetos de existência autônoma e fincada que no entanto não cessam a ressoar fantasmas de histórias que busco em ímpeto objetivo de ti dissociar. E volto-me a ti desta experiência com uma desconfiança que antes não me inspirava, com os olhos estreitados de quem a boca só dúvidas pode professar.
Se o inconsciente é a mina e a obra a jóia lapidada, então teus processos hão de ser velados a si própria. Como preservar o inconsciente quando se trabalha ele exaustivamente? Procede que a facção de cada peça seja um processo transformativo deste outro nível, e nesta reciclagem encontra tua saúde. Disto não se tira diretriz alguma para artista ou aspirante, apenas confirma a parcela subjetiva que haverá de sempre nos iludir. Apartando também a carga que traz o espectador, o que sobra nesta estreita passagem são criações especulares, capazes apenas de entrelaçar as duas consciências que com pouco êxito tentamos afastar.
Louise, não sou crítica, cometo o pecado de querer generalizar tua obra, de querer apagar o contexto, de tentar captar apenas o sumo que permite vida a uma obra de arte, seja ela tua ou de qualquer alguém. Mas minhas lentes são plenamente por ti tingidas, intenções tem pouca força ante o fluxo de nossas origens e repertórios, influências se assim prefira, pegajosos a tudo que produzamos - mas Louise! Tu faz tua própria figura pública, escancara-nos os motivos de ser dos quebra-cabeças que nos apresenta, com a felicidade de ter resolvido o problema conta-nos a resposta sem titubeios, imperando magnâmica a toda tua obra! Autobiografia!
Tão logo nos explicítam as relações, fixamo-nos com outra intensidade na artista que se nos apresenta, dissolve-se todo pressuposto de distância que só tua palavra recupera, não sei se crê ou se projeta, mas fica que a obra não é ti, que não te representa, que obra alguma há de seu artista representar, Louise, será que não repara que tudo que atirou fora de si, desencarnou, só aos poucos e com fome começamos a sorver? Onde fica nosso espaço assim, se liberta de tuas experiências trata-as com abertura que tanto sufoca o que possamos trazer à mesa...
E se atacou a arte em seu seio, e a ti em teu seio, e agora a nós em nossos peitos para cravar lugar de direito à grande emoção que te descontrola, que fica de nós, invejosos e desejosos desta compreensão catártica que lhe permite o trabalho? Haverão muitos caídos, atingidos com tal eficiência por uma afinidade de passados que não lhe compete, e ainda os que empinarão os narizes sem tentar debulhar-te, e dentre eles a grande horda a que pouco sobra que não a adimiração de tua força e a perplexidade de tua existência.
Louise assim o quis e assim o fez, Louise é a obra!
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Persona Artista - Louise Bourgeois
Devemos carregar o que os artistas nos falam com muita cautela. O cuidado de tratar suas profissões como algo delicado e precioso nos levará uma admiração e confiança desmedidos; seu manuseio, antes, deve ter a segurança e respeito de quem aos braços leva coisa que lhe é nociva, bruta quando oferecida a nossos ouvidos.
Louise Bourgeois é uma figura ativa que desde o início de seu interesse pela arte percorreu as milhas necessárias para se desenvolver e estabelecer. Participou de grupos de artistas dos mais influentes, afiliou-se a diversas instituições de ensino, buscou cara-a-cara, de corpo, as experiências que nutririam sua prática. E deste cara-a-cara surge uma figura pública, a expressão com que podemos lidar e trocar, que nos extende a palavra e que se envolve no mais profundo com a aquilo que nos permite apreciar de sua obra. Em uma artista como Louise, não somos capazes de verdadeiramente delimitar pelos velhos binômios arte-vida, público-privado.
O que não significa que estes mecanismos deixem de agir. Tudo que Louise nos apresenta é, afinal, selecionado, uma medida de claro controle dentro do aclamado inconsciente que rege a crítica de sua produção. Entrar em contato com os fundos de sua pessoa e percepção pode permitir-lhe criar as peças de nosso alto interesse, mas não é deste subconsciente que acontece sua organização e apresentação. O que lidamos aqui é, antes que um puro furor emocional materializado, um jogo de interfaces.
Uma parcela está embutida nas próprias obras. Um espaço que cria possibilidades fixas de movimentação (como é o caso de I Do/I Undo) já nos condiciona a receber sua experiência de maneira particularizada. A seleção de obras, curadoria e as simples decisões de expor neste ou naquele museu, associar-se a este ou aquele grupo etc, implica um distanciamento das forças criativas para poder geri-las. A pessoa Louise com que interagimos é sempre um trabalho de edição calculado a permitir o melhor entendimento e integração de seu trabalho.
É o caso do documentário The Spider, the Misstress and the Tangerine, que a partir da própria artista não se dá ao luxo de apresentar uma narrativa destoante do viés autobiográfico declarado - o que é esperado, com a presença de Louise. Usar as palavras do artista como âncora interpretativa para sua produção, no entanto, dificulta o processo de troca e identificação que a arte deve suscitar, colocando o espectador numa posição de espanto e assombro permanentes, fixando-o na figura da artista por trás da obra antes de processar aquilo que de fato está à sua frente.
Louise já nos fornece as soluções para seus puzzles, e se a escultura é um problema a resolver, o público fica excluído deste processo, restando-nos apenas várias tentativas de criar relações e interpretações para que as respostas dadas e corretas finalmente encaixem. Ao tratar questões pessoais abertamente, uma vez que já as digeriu em parte pela produção, ela cria um contexto hermético que atrai uma atenção e interesse particulares ao que se apresenta pronto e estabelecido para nós. O mesmo interesse por descobertas científicas cujos experimentos não compreendemos.
E no quanto é agressiva, admite-se neste papel de luta e assertividade, que é para além de um "lugar no mundo", pela plena aceitação do que tem a nos mostrar, pelo impacto que irá nos causar, por sua experiência pulsante que leva a segundo plano nossa vivência exterior a ela.
Se Louise clama máximas e generaliza, criando coesão e coerência que alojem seu trabalho no contexto maior da arte, não podemos pagar na mesma moeda assumindo suas afirmações verdades para o plural de artistas que atuavam em seu tempo, e ainda atuam. Longe de acusá-la falsária maquinadora, ou de tentar deslegitimizar-lhe, me interessa este dilema de interpretação, da medida de poder que os artistas tem sobre sua própria obra e como ela é recebida. Tivesse Louise uma persona social reclusa, iríamos aceitar tão bem o que nos trouxesse, sem o caráter autobiográfico plenamente reconhecido?
  2013
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praiapreta · 10 years ago
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sem título (imersa na vida)
Imersa na vida, nos claros cinzas Essa sensação de mergulhado, nesse ar máscaro que se põe película, pele na minha pele e olho tudo em volta para ver tão certo o invisível desse vazio adaptado que enche meus pulmões, enquanto a palavra ar ganha transparência e minha visão vira retícula, vira película. Essa impressão de imersão, afogada no mundo Olho tudo e vejo o que não vejo, mas está lá certeiro, esse ar que não se respira, o éter etéreo, certo, de que nada se desvencilha Que as coisas são as coisas quietas por si só emanam a essência de ser não ser estéril estar
Preenche o vazio que o ar deixou para me afogar, afagar.
2012
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praiapreta · 10 years ago
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quando escrevo
tudo posto lá é inventado brotou dos meus olhos encarando o papel intentos e minhas mãos ansiando rechear dobrando dedos e humores para tirar do vazio lembrar se o sonho valeu a pena
quis falar com significado mas as letras tilintam bonitas e secas tem o aroma e a poeira da máquina bonitas e secas conchas vazias
preencher com palavras a ressaca do sentimento com sílabas ritmadas que estalam e batem nas frases para fazer trincar e daí soltar a cor e o cheiro do que sobra lá
processado nos ecos dos passos que a gente dá o som não é de se guardar no traço da tinta nem na memória talvez no ar que viaja daqui até um bosque, um vale deixa ver deixa querer emanar gritar vida pra fazer sentir água na minha boca desce pelo peito e sobrepuja aquilo foi verdadeiro então quando escrevo
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praiapreta · 10 years ago
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sem título (as coisas etéreas)
quero discutir as coisas etéreas tomando chá e olhando para o concreto no chão inventar problemas que posso resolver cuspindo suspiros agradecer a conversa, pegar meu livro e minha carteira minhas chaves e ir para o metrô como se andasse no próprio concreto do céu debochando de seu azul [clichê para não me arrepender dos suspiros que engulo
  ABRIL/2015
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praiapreta · 10 years ago
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sem título (haja fôlego)
Haja fôlego, para respirar que todos os fôlegos não me bastam neste ar quente quente ar ameaça apodrecer, agarra puxando para fora, desenrola para fora toda coisa minha, me tira o ar A brisa sufoca antes de entrar, o abano estica meu sono, que o vento leva e traz de volta pelo ar grande massa se uma única nuvem distendesse por todo si, por toda a pele, penetrando a crosta Se o ar quente fizesse dilatar esvaindo seu branco pulmonar (permanente) fazendo-nos vítimas de um sufoco, perpétuo, recobriria a cada ponto supérfluo, a cada membrana e superfície distendendo seus grãos de umidade, perdidos, irreconhecíveis! A superfície se choca e treme, de repente areia! que a nuvem era feita de ar quente e essa massa toda me envolve, me prende um campo expandido, explodindo em distensão puxa puxa puxa toda a tensão! um único plano toda ela se soma, todas ela Desfragmenta Todas as forças que ficam sendo todos os pontos, todos os grãos, reverberando e girando doidos Cada cada ar todos os fôlegos está tão quente (e nem é verão)
  2012
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praiapreta · 10 years ago
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E a festa do Imigrante sempre continua...
Nos dias 20, 26 e 27 de Julho, o reinaugurado Museu da Imigração comemorou a já tradicional Festa do Imigrante, em sua 19ª edição. É claro que o Mundo Cabe em São Paulo não poderia ficar fora dessa, e aproveitamos os dias de muita comida, dança e artesanato também para rever e fazer amigos. Afinal, nosso trabalho não teria sentido não fossem pelas pessoas das comunidades e da cidade. Mas... e aqui na festa, quem são essas pessoas?
 Em tempos de mídias sociais, conhecer gente nova é jogo de colecionismo, e em São Paulo acima de tudo, o que dá mais pontos é o exótico. Viajantes globais à parte, dar com novas caras nesta cidade conta com uma pergunta bônus no questionário de praxe: Oi, qual é seu nome? Onde você mora? De onde você é? Qual a sua ascendência?
A resposta, pode relaxar, é sim. Diferente de Portugal onde os portugueses são portugueses, e das tribos onde índios são índios, brasileiro é índio com português, negro, e tudo de bom. A que vos escreve não vale muitos pontos não, brasileira autêntica, filha desses três vergões mais aparentes; mas não precisa fuçar muito para achar as colônias européias, orientais e africanas pululando a cidade e daí suas combinações mais “inusitadas”: egípcio, espanhol e italiano com japonês, chinês com sírio-libanês, indígena com italiano e moçambicano; o amor é livre e nossa terra é fértil.
A 19ª Festa do Imigrante é a maior celebração do sabor cultural tão particular da cidade, embora tenha que ser sorvida sem pressa e por partes: distribuídas pelas dependências do Museu da Imigração, barracas enfileiradas despojam as artes culinárias das comunidades imigrantes, enquanto um palco dedicado às danças e cantos tradicionais permanece ativo sem intervalos, rotacionando apresentações paraguaias, gregas, bolivianas, austríacas e em diante pela festa. No gramado externo, uma tenda dedicada à contação de histórias, no pátio interno outra para oficinas de dança e artesanato e uma terceira para aulas de culinária – tudo de toda parte do mundo. E ainda uma feira de produtos feitos à mão ou importados direto da fonte.
Sem contar a possibilidade de visitar as exposições do museu e o bazar que ali opera. Já que estamos aqui, é para aproveitar, né não? Capiche? Pois?
Enquanto o palco ao fundo dá o tom da festa, vamos andando pelas fileiras de barracas e já escolhendo o que dá mais gosto; as comunidades mais tradicionais e mais conhecidas detém os espaços maiores e com mais filas: Japão, Alemanha, Itália, Portugal, Grécia, Rússia com duas barracas distintas. Mas procuramos sabores mais exóticos: Lituânia, Bélgica e Coréia do Sul já estão, em menor medida, assimilados. Índia, Peru, Congo, a água vai juntando na boca, as cabeças vão girando, olhando e catalogando tudo para referência futura – mas pera aí, como é que não tem uma barraca da China?
E esgueirando também pelo mar de cabeças que vamos esgueirando em nosso reconhecimento; a festa vai enchendo e fica aparente que a comida é a atração principal. Dentre as gentes se destacam aqueles vestidos a caráter, zanzando ou comendo e conversando, gente que nem a gente mas um pouco diferente: aquela roupa é de tirolês? E o vestido, da Ilha da Madeira ou dos Açores? A maioria nem reconheço. Estariam prontos para a dança ou só exuberando a graça da cultura? Acaba que estamos aqui mais é para aprender e apreender. Mas uma coisa é fato: dada a longuíssima lista de atrações folclóricas e culinárias, abundam também os rostos contentados dos familiares e amigos das referidas atrações.
Dos que se apresentam no palco, muitos são jovens e animados, mas no público a regra geral é outra: cabeleiras esparsas e fofas, nos tons pastel que reanimam os fios com a primavera da terceira idade, óculos grossos, blusas fartas para proteger do frio; o mar é de cabeças velhas, e é engraçado ver-se nesta situação quando se está acostumado a, digamos, a Virada Cultural. A tarja de familiar se gruda a este evento numa relação simbiótica inevitável. Estamos andando meio aos filhos e familiares dos imigrantes legítimos, e tropeçamos nas gerações tentando sondar os rostos que nos cerqueiam. Quantos deles, e de seus pais, marcaram passagem pela antiga Hospedaria dos Imigrantes, sediada neste mesmo espaço? O refeitório e o dormitório estão ainda amplos e operantes, como eram então.
Mas antes de mais nada, esta é uma festa de orgulho de ser – italiano, espanhol, português, alemão, russo, lituano, búlgaro, grego, belga, imigrante e brasileiro. Orgulho da tradição, da luta e da cultura. Entre risos, esboço meu próprio sorriso torto: o quanto das demonstrações culturais a que estamos aqui expostos retém sua legitimidade? Ainda se dança com essas roupas coloridas e engraçadas Europa afora? Talvez em vilarejos remotos. Ou apresentações modernas de patrimônio cultural, como esta. Um dos denominadores comuns de muitos dos grupos é a idéia de “folclórico”, que para o brasileiro inclui a mula-sem-cabeça.  
E de ser – boliviano, peruano, paraguaio, colombiano, congolês e moçambicano. Orgulho da origem, do trabalho, do pertencer. As ondas imigratórias já processadas pela história estão fincadas na consciência de São Paulo, mas aquelas mais recentes ainda não tem um registro em que se apoiar. São óbvias para qualquer um que preste atenção nas ruas do centro velho, ou do Brás, que os netos de Dráuzio Varella talvez lembrem como lar de bolivianos mil.
Perguntamos para uma família ao acaso, que alegaram serem frequentadores assíduos da festa, se repararam em um aumento do número de imigrantes da América Latina participando dos festejos. Nos olharam sem resposta, antes de jogar um não, não repararam. No entanto a proporção entre os dois grupos (América Latina e Europa) está bem representada na programação; tratam-se de comunidades numerosas e bem-estruturadas.
Mais difícil é encontrar indícios das imigrações mais preconceituadas: as de países africanos. Congo e Moçambique eram os únicos representantes de peso. E que peso! Comida deliciosa e uma felicidade contagiante é a impressão que parte desses representantes, que só agora começam a se organizar em grupos culturais concretos para salva-guardar suas origens.  
Mencionei um bazar. E que raios faz um bazar no Museu da Imigração? O trabalho que este local desempenhava, como Hospedaria dos Imigrantes, nos idos dias de ouro da economia cafeeira, não acabou. Infelizmente, instituições governamentais como aquela já não existem para o amparo e garantia dos direitos dos imigrantes até hoje atraídos por São Paulo. E muitos deles se encontram em situação precária e irregular, em situação de rua.
Entre o Arsenal da Esperança. Espaços destoantes da festa carregam o emblema do Arsenal, o dizer paz (“pace”, em italiano) rodeado por bandeiras das mais diversas nações. No refeitório, no bazar, em barraquinhas e nas mãos dos visitantes, as bandeirolas chamam a atenção por não dizerem respeito a uma comunidade única e tangível.
O Arsenal da Esperança é um braço da SERMIG (Servizio Missionario Giovani), organização sem fins lucrativos que nasce em 1964 na Itália com os objetivos gerais de “derrotar a fome e as injustiças sociais no mundo, promover ações de justiça e de desenvolvimento, viver a solidariedade para com os mais pobres e dar uma especial atenção aos jovens, procurando com eles a paz.” A partir de 1996, as instalações do Arsenal passam a dividir o espaço da finada Hospedaria dos Imigrantes com o então chamado Memorial do Imigrante, aproveitando a estrutura ali existente. Destina-se principalmente aos homens moradores de rua da região, mas muitos procuram seus serviços diretamente. Embora não seja direcionado especificamente à questão da Imigração, responde junto a diversas outras casas de acolhimento à necessidade de abrigo e integração social de parte dessa população.
Nos festejos, o refeitório principal é ocupado pelo Arsenal: funcionários e voluntários (que inclui parte dos próprios hospedados) preparam e servem comida italiana e sonhos – doce tradicional da organização. São eles também responsáveis pelo bazar, que abre ao público geral uma vez por semana (e em todos os dias da festa) e no resto do tempo serve às demandas da população atendida.
A crônica dos livros escolares é clara, evidente até: índios, portugueses, escravos negros, italianos, árabes, mais portugueses, alemães e espanhóis. E uns outros europeus. Japoneses. E de tudo mais um pouco. São os ingredientes para São Paulo. Latino-americanos? Mais africanos? Nesta parte da história já não chegam – e tão pouco nós.
Da mesma maneira que o Bixiga tem sua marca étnica própria, e a Vila Zelina festeja origens de paragens mais frias, as comunidades de imigração recente vão conquistando seu espaço na cidade. O tecido urbano vai mudando, se adaptando às necessidades e humores de sua ocupação - mas permanece a cegueira para essa movimentação e suas implicações sociais ao nível de cidadão, deixando sobreviverem velhos preconceitos e mistificações. Ponto para quem souber nomear os países de origem dos moços que percorrem o centro velho da cidade, muitas vezes camelôs, falando em línguas estrangeiras, ou diferenciar os traços de um boliviano dos de um chileno ou peruano, quando se encontrar ao lado deles no vagão do trem.
São Paulo é este fluxo de estranhezas, novidades, luta, conquista, contentamento. Essa massa urbana medonha e gigantesca atraiu e ainda atrai todo tipo de gente – e isto pode ser dito tanto com condescendência quanto com genuína alegria. Para ser São Paulo, nada menos que necessário o amálgama cultural que respira a cada nova comunidade que aqui encontra sua casa, e pessoa que aqui busca a tal vida melhor. Que talvez nem exista, afinal. Mas porquanto consigamos ter a capacidade de acolhimento que ações como as do Arsenal da Esperança e do Museu da Imigração tem desenvolvido, ao menos aquela força vai estar à disposição em meio ao caos identitário da megalópole. Que enquanto mega, tem um cantinho para quem estiver disposto a procurar – e aí depois, dá-lhe festa!
 Para saber mais:
http://museudaimigracao.org.br/
http://www.sermig.org/it/arsenal-da-esperanca
  AGO/2014
Texto originalmente escrito para o site O Mundo Cabe em São Paulo (não publicado).
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praiapreta · 10 years ago
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Copa Gringos
No domingo dia 25 a equipe do Mundo Cabe em São Paulo se embaralhou com tantas linhas de ônibus quanto pôde até que encontrou seu caminho – facílimo quando se sabe o que está fazendo – ao Playball Pompéia, espaço de aluguel de quadras onde está em curso a primeira edição da Copa Gringos, uma mini copa do mundo formada por equipes de imigrantes residentes em São Paulo, com finais previstas para o domingo que vem, dia 8/06, no Parque da Aclimação.
O mundial acontece assim, sem muito espalhafato, no seio de um labirinto de grades azuis e gramados de plástico, onde times de escolinhas e amadores em geral praticam seus passes, dribles e corridas. Mas o campo adornado com bandeiras do México e do Peru – aiai, isso é diferente: a seriedade no jogo só se supera pelo bom humor, perdendo ou ganhando essas seleções estão em clima de festa!
Não é todo dia que se pode representar o país, falar na própria língua e comemorar o futebol em ano copa – mas a taça da FIFA é pensamento dos mais distantes para esses jogadores e torcedores que se articularam em prol da confraternização, valor em que o futebol amador ganha de 10 a 0 do megaevento, combinando empresários e funcionários de multinacionais e consulados, estudantes intercambistas, trabalhadores da feira do Brás e operários, europeus, latino-americanos, asiáticos, africanos, e no meio, uns brasileiros, que tem a São Paulo por chão que pisam, lar comum desses imigrantes que cá já vivem há 3 meses, 7, 10 ou 30 anos.
A Copa Gringos, idealizada pelo francês Stephan Darmani, especialista em futebol junto à produtora La Vista, conta com 24 seleções de nacionalidades distintas – com direito ao time Esperanto multinacional para quem quis jogar mas não pode reunir representantes suficientes de sua pátria. Foi feita uma comunicação aos consulados convidando a organização de times, mas a partir daí o fator humano é o que conta, desde amigos com times que jogam juntos há anos, até times novos em folha que se conheceram em campo.
O momento de organização já traz consigo novas conexões e desafios de se configurar enquanto equipe: além da vontade e envolvimento, os times precisaram pagar uma taxa de inscrição de cerca de R$3.000,00. Esse processo, então, não deixa de ser reflexo da própria experiência de integração do imigrante em São Paulo, que tem seu devido caminho das pedras: conhecer novas pessoas, associar-se aqueles que são de sua pátria tendo esse por único laço comum, manter suas origens e estabelecer uma situação de vida digna. Para tanto, conta com comunidades culturais próprias de sua nação a seu dispor enquanto participa da multiplicidade daí advinda.
Enquanto muitos times se apresentam para seus respectivos jogos e logo desaparecem terminada a comemoração ou lamentação, dependendo do resultado, pode-se observar uma facilidade de vivência das comunidades com maior número de imigrantes e organizações culturais próprias, o que é dizer, a América Latina faz a festa em terras brasileiras, e também no gramado – espelhando a copa de 2010, os times sul-americanos foram maioria em prosseguir para as quartas de final.
No dia que passamos por lá, vimos a Itália muito escrachada consigo própria, Camarões e Nigéria brigando e jogando feito velhos amigos, uma China (o time com os jogadores mais novos da competição, ainda adolescentes) dedicada treinando antes da partida e irritada com a perda, um Chile descontraído acompanhando todos os jogos e uma Bolívia vitoriosa sobre o Paraguai – partida mais antecipada, em que o time boliviano fez jus ao seu favoritismo no torneio. Não é para menos, já que a comunidade boliviana (que dobrou o número de torcedores com seu time em campo) conta com um torneio próprio de 42 times, cujo campeão foi enviado para representá-la.
Fica nosso panorama dessa primeira edição da Copa Gringos, e para quem animou com essa idéia e não aguenta esperar até domingo para ver ao vivo as finais entre Peru e Chile e Camarões e Bolívia no Parque da Aclimação, fica uma recomendação de leitura: o acompanhamento da primeira rodada pelo blogueiro Rodrigo Borges Delfim:
http://migramundo.com/2014/04/14/copa-gringos-agita-e-surpreende-comunidades-migrantes-de-sao-paulo/
 Para mais informações, acesse o site da Copa Gringos:
http://www.queremosjogar.com.br/l/fg/2_500846178.html
           JUN/2014
Publicado originalmente em O Mundo Cabe em São Paulo.
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praiapreta · 10 years ago
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Rua Aracati Mirim - Vila Zelina
Não espremida, mas delimitada – a rua parece existir para fazer fronteira e dar acesso ao Senai Vila Alpina e ao Parque Ecológico de Vila Prudente, como se os dois espaços tivessem sido  uma coisa só que cindiu, moveu e fez brotar da terra uma ruela sem saída, talvez desimportante pra quem olha de fora – mas esse tipo de rua é sempre um cantinho da melhor qualidade, e a Associação de Moradores e Comerciantes do Bairro de Vila Zelina, AMOVIZA, teve o olho para isso (como perderam a chance de enfiar “amor” na sigla, já é um mistério).
Outro mistério é o que, afinal e exatamente, é este lugar. A convite da equipe do Mundo Cabe em São Paulo, desci no metrô Vila Prudente para traçar um bocadinho da avenida Salim Farah Maluf de ônibus, encarar uma subida e lá pelo meio do morro entranhar essa ruela, já perdida na geografia: isso aqui é Vila Prudente, Vila Alpina ou Vila Zelina? Nada disso, é Leste Europeu. A AMOVIZA faz a média entre as muitas comunidades imigrantes que se instalaram por aqui, imitando suas proximidades geográficas originais num único espaço que parece querer gritar aquele jargão do caldeirão (multi)cultural. Sinto dizer que não sou dada a evitar clichês, e entrando lá não dá outra: todo mundo muito brasileiro e muito sorriso cheio de dentes, gente da nova geração ou que veio muito pequeno e que já incorporaram o calor (estereo)típico do Brasil brasileiro (tanto que preciso nem apontar do nome tupi da rua).
Para além da opção tropical na hora de imigrar, os brotos dessas famílias se reúnem pelo desejo de manter vivas e resgatar suas raízes, a ponte Europa-Brasil, fortalecendo essas fundações para que mais pessoas pisem e se interessem por este novo aqui, a terceira coisa que existe em Vila Zelina. A riqueza cultural que trazem fica também um tanto paulistana, e para todos nós, brasileira.  A AMOVIZA tem por objetivo integrar as comunidades entre si e à cidade, fazendo desta região a cara do leste europeu em São Paulo. Presam por suas origens, pelas tradições contadas pelos avós, pela língua, pelas danças e pelo folclore, muito presentes nas festas e feiras promovidos pela associação e que se condensam na Rua Aracati Mirim.
As feiras vem acontecendo com regularidade desde 2011. Fui na feira de páscoa, uma das muitas temáticas que já estão programadas para todo o ano (com a Feira do Leste Europeu de Vila Prudente – Especial de Dia das Mães despontando no já próximo 4 de maio), e entrando na ruazinha charmosa - que olhando da boca pra fora não parece divergir em muito de sua feira de artesanato de bairro - fui conhecer um pedaço da Lituânia, da Bulgária, da Romênia, da Rússia, da República Tcheca. Da Polônia, da Ucrânia, da Bielo-Rússia, da Croácia, da Eslovênia. Da Letônia, da Eslováquia. Ufa!
E haja vontade e água na boca! O forte aqui são as tradições gastronômicas e práticas artesanais. Como era páscoa, destaque para as diferentes técnicas de pintura de ovos – cada país tem a sua, e as técnicas lituana e polaca tiveram workshops dedicados – coisa séria, mais que brincadeira de criança, embora elas também fossem bem-vindas! Para além disso a feira contava com a presença do Automóvel Clube Vila Zelina, expondo carros de época bem conservados, e [nome do grupo ‘”viking’”], entusiastas pela recriação histórica equipados com réplicas de armaduras, espadas, facas e peles utilizadas pelos grupos medievais que guerreavam naquelas bandas frias do que então ainda nem era Europa.
Para o paladar, muita coisa que minha língua travaria de dizer o nome. Muitas consonantes, sabe? Mas que na boca derretem – bolinhos de batata recheados com carne suína cobertos por molho de couve, cortesia da República Tcheca, que tem ainda deliciosas linguiças, doce de abóbora e frutos secos da Bulgária, uma seleção de bolos tradicionais da Lituânia. Chegamos cedo e fomos conversando, no momento de fazer o rolê gastronômico metade das iguarias já tinham escapado guela abaixo dos outros visitantes – ficamos na vontade de muita coisa, o que não é de se reclamar – só significa que vamos ter que ir ali mais vezes para degustar o cardápio completo.
De barraca em barraca, cada um ali tem uma cultura, uma família e uma história – tem que arriscar uma conversa e uma simpatia, ficar atento e interessado que talvez um velhinho ucraniano acompanhado de seus filhos comece a falar na língua natal com a moça da barraca à sua frente, enquanto o filho te tira para o lado e clama o aniversário do pai centagenário... E isso de uma feira com os mesmos toldos brancos que vemos para vender no setor de jardinagem do Carrefour. Entre ali, coma algo que nunca comeu antes, mas pare e enrole um pouco, sente e preste atenção. À sua volta no miúdo e no alheio você vai poder ver e o ouvir o coração vivo e renovado das muitas comunidades imigrantes, se estiver aberto para encontrar em São Paulo este novo Leste Europeu.
Abril / 2014
Texto publicado originalmente em O Mundo Cabe em São Paulo.
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praiapreta · 10 years ago
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Macieiridade
Há um paredão com grandes janelas ao leste da sala de aula. Atreva-se a espiar ali, e verá o teto de concreto duma ala dois andares abaixo.
No marasmo matutino das aulas, saboreiam um grupo de marmanjos sumarentas maçãs, na esperança da tonificação de sua saúde e papilas gustativas.
Chupadas até as sementes, procediam pelo atirar dos rejeitos miolos através dos raios de sol, que encontravam caminho junto às janelas, e, finalmente, aninhavam-se lá embaixo ao concreto com apropriado “tchuc”.
Eis que ao cabo de três semanas já um mar de restos frutíferos podres assentava no concreto, castigados os alunos pelo sol e pelo fétido odor emanando sala adentro e então pelas narinas de risonhos marmanjos a gozarem sua façanha.
Intervalo de carnaval.
Terminados, assim, os festejos, volta às aulas os alunos, que se surpreendem ao serem recebidos por graciosa copa verdejante, galhos e ramos tímidos infiltrando-se pelas frestas das vidraças.
Tão frondosa macieira brotara, ali fora, da massa frutosa apodrecida. Surpresa e espanto logo desvaneceram, perante fresca sombra provida pelas folhas, bonitos gorjeios de pássaros e deliciosos frutos, maçãs, que os alunos se organizam para recolher com um cesto preso a uma vara e um cutucante pau longo, derrubando, cutucada em cutucada, fruto por fruto, para o deleite dos colegiais.
A classe foi feliz, até que, ao cabo e novas três semanas, se fez na laje perceber restituído mar de maçãs; agora os miolos aliados às frutas caídas de maduras e àquelas bicadas pelos pássaros, em nova insalubre massa orgânica.
O cheiro pestilento, potencializado pelo multiplicado consumo dos estudantes, não demorou a cruzar o extremo de suportabilidade. Os ramos se alongaram de tal modo a pinicar os jovens mais próximos, os dias de chuva se tornaram demasiadamente abafados e mexia e virava pequenas aves mergulhavam sala adentro, acompanhadas por folhas secas e diversificados insetos, para o pavor das moças e, secretamente, dos rapazes.
À noite, os funcionários notavam ratos voadores de aspecto vampiresco pendendo dos galhos.  
Em três semanas a árvore era odiada.
Os colegas se puseram a conspirar. Ora, antes o tronco do que eles; que a madeira viesse abaixo! Mas agora as raízes eram maciças, recobrindo todo o teto da ala inferior, o corpo do vegetal tão grande e grosso que não havia machado o qual cortá-lo em menos dum ano. Queimá-la significaria incendiar também a construção, e criar tóxica coluna de fumaça negra.  Alguém sugeriu soltar uma praga de cupins, uma vez que, de cadeiras a carteiras, tudo na sala era de plástico industrializado, porém, como insinuou o atento professor, aonde arranjar tão larga quantidade dos pequenos carpinteiros? Acirrando a situação, o fato de que todo acesso não-aéreo à planta encontrava-se estreitado pelo crescimento desse próprio ser.
Estagnados, assim, em seus esforços de vingança, pouco mais restou fazer aos alunos senão conformarem-se com a situação. “Colhes o que semeias” como diz... alguém.
Três semanas se passaram, e como que se por três anos tivesse crescido a antes acolhedora árvore lançou perfídias sobre todo o prédio institucional, suas raízes penetras do subterrâneo, suas copas novas nuvens, integrada madeira e concreto; uma verdadeira floresta de uma árvore só, lentamente consumindo, apropriando a atividade à volta.
Três semanas, três anos... algo que já não se sabe mais. Prevalece hoje o cheiro doce das maçãs, maçãs daquela uma planta, maçãs de todos os seus rebentos. As maiores macieiras do mundo, nutridas pelas paredes duras que um dia foram habitadas por aqueles que se julgaram além dos ecossistemas. Simples garotos.
Hoje, pomar verdejante e acolhedor.
2009
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praiapreta · 10 years ago
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O Palácio D’Ouro
Era uma vez, num reino tão próximo e familiar que espanta, pequena trupe de sócios e amigos, que, tendo prosperado em certa província por um trio de anos, decidiram traçar jornada para expandir seus horizontes.
Seguiram trilha empoeirada, carcomida pelas pegadas de vários forasteiros e pelo peso do passado. Um dos jovens se destacou do grupo e adiantou-se. Não tardou a descobrir-se defronte O Palácio D’Ouro, assunto de todas as instituições e misterioso almejo de todos os súditos.
Ainda maravilhado por seu achado, naquela insuspeita estrada de terra, contemplou os arredores e fixou olhar no único portão de entrada. Muito único, sem carregar cadeados ou ostentar fechaduras e trancas, composto apenas por quarenta e duas barras metálicas extremamente enferrujadas, e fincado ao chão por exatos noventa espinhos de matérias selecionadas.
Ligeiramente irritado, percorreu o muro que ladeava o palácio por duas vezes, e por duas vezes não encontrou arrombamento que permitisse a um homem passagem. Por fim, prostou-se a frente à velharia, e, convencido de que ela haveria de lhe permitir transpor o obstáculo, empurrou com força. Tudo que essa iniciativa lhe conferiu foram palmas feridas pelas ferrugens. Ao chutá-lo, em desgosto, teve certeza o gradeado estar emperrado. Tomou um momento puxando idéias para si.
Não sendo capaz de organizar maneira ou trejeito para vencer a barreira, ainda de pensamento nublado, o homem, cujo nome aludia aos comandantes nórdicos, se pôs a coletar escombros – com as próprias mãos fez um castelo. Fê-lo de madeiras e de pedras, a oeste do caminho que trilhara, de modo a poder vigiá-lo por sinais de seus companheiros.
Esperou uma medida de tempo e pôde ver o primeiro de seus camaradas surgir e mirar atônito o ferro velho. Aquele primeiro comparsa considerava seu melhor parceiro, mas seus berros não se provaram suficientes para penetrar a introspecção do outro. Despreparado para a presença do portão, o outro, quieto e conformado, passou para trás e se impulsionou, ganhando as barras, que cantaram aos rangidos. E as ferragens rangeram com mais vontade e força quando o homem deu um salto de seu topo e verificou, com satisfação, estar do outro lado dos muros. Lá aguardou seus companheiros. Ali, os gritos do primeiro jovem já eram emudecidos pelo vento.
Não teve muito tempo para desenvolver sua mistificação com o ocorrido – logo um segundo colega se arrastou pela estrada. Ela encarou cobiçosa o palácio, e, também desprevenida da existência de um muro, demorou-se a tomar um curso de ação. Atirou-se ao chão. O homem pensou a moça ter desmaiado em exaustão, mas logo percebeu que cavava a terra com as próprias mãos.
Ocasionalmente ela lançava um olhar em sua direção, mas como se não notasse nada fora do ordinário, voltava ao trabalho. Lentamente, buraco fez-se túnel e se espremeu por aí, encontrando, saudosa, um de seus amigos do lado de lá da passagem. O palácio imponente por cenário, ambos atentaram, ansiosos, o portão. O primeiro viajante suspirou, se perguntando onde estaria a sua porção de determinação daquela trupe.
Agora O Palácio D’Ouro, casa de incontáveis riquezas e sede de infindáveis conhecimentos, o provocava, debochando seu castelo. Mas não teve oportunidade de se enraivecer – o terceiro comparsa surgia à distância.
E trazia consigo intrincado maquinário – não hesitou em pôr o portão e suas ferragens a baixo, barra por barra. Os colegas que já haviam conquistado o solo além ouviram os barulhos e o incentivaram em eufórica balbúrdia, encobrindo os infrutíferos chamados do rei em seu castelo. O desmonte foi feito preciso e potente, e, com o obstáculo jazendo ao chão, o terceiro entrou a passadas largas no desejado terreno.
Vendo seu inimigo desmantelado, sentindo a adrenalina pelo corpo, o homem se pôs a correr para se juntar aos companheiros. Mas a pressa lhe traiu. O castelo, de pedras e de madeiras, se desconstruiu sob a firmeza de seus pés, o soterrou aos escombros da passividade, da incerteza. Seu desespero não serviu a nenhum propósito.
Ao cabo de duas semanas, os sócios desistiram de reaver seu amigo. Descansaram as esperanças e jogaram mãos e braços aos ombros uns dos outros, lançando olhares lamentosos para trás a intervalos. Desejaram que o amigo tivesse sido mais centrado, desejaram que os fragmentos novamente se fizessem todo. Transpassaram as portarias d’O Palácio D’Ouro, ao que se reergueu o portão, rejuvenescido, e se fizeram sulcos nos muros, testamentos da perseverança.          
2009?
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praiapreta · 10 years ago
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nome
Antes simples formação de letras, palavra num mar de tantas outras, por umas dúzias de meses esse nome ganhou corpo e forma em minha mente, atraindo a atenção de todo o meu ser num momento de feliz constatação, coincidência.
E por mais que um nome ilustre inúmeras pessoas, é única a imagem em minha consciência, memória e abrigo de um singular ser cuja denominação não só lhe chama, como também se apropria de toda eu – mais que coração ou mente, o corpo todo cessa sua irreverência, vida pausada em constatação.
Por umas dúzias de meses, uma palavra destoada do mundo, nela qualquer coisa de luminoso, objeto de desejo de meu campo de visão.
Mas – e qual o ponto de tudo isso se não houvesse um mas? – idealização romântica se perde brutal no realismo. Foram umas dúzias de meses e nada mais; a satisfação já extinta, as esperanças perdidas, distâncias reerguidas ao que um dia foi coração leve, mente domina.
Lentamente, as vogais perdem a sonoridade, o arcado doce, as consoantes os ritmos, as pausas, o momento seu sabor. A palavra se coordena e subordina novamente, perde alma e se integra à usualidade. Já não a distingo dentre o João ou a Maria.
Minto, que aquele verbete, definição do que um dia foi, de tão peculiar acento – a gramática envergonhada -, ainda me salta aos olhos, me dificulta a respiração. Tudo aquilo no âmago de mim foge na brevidade, remoendo um passado indistinto.
As letras mais secas, um futuro perdido que me ressoa a alma – sentimentalismo inflado -, acorda o fantasma de resquícios d’outrora, espectro fugaz da subconsciência, ditando minha prisão – o nome agora para sempre definido.
 Anexo -
E todas as fibras do meu corpo negando minha devoção ao texto, buscando sinal que seja da escrita, suplicando que se deixe esquecer essa sombra, que gire inverso o planeta, umas dúzias de meses antes de qualquer recordação.
Um dizer que me persegue para dentro de mim.  
2009?
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praiapreta · 10 years ago
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A Pedra da Montanha
Vencido, já sem força para usar as chamas ou envergar a cauda, rouca saiu a voz do dragão, dirigida a um vaidoso herói dos humanos e matador das bestas:
         - Que vergonha perecer sob a lâmina de um homem tão ordinário. Que se gravem essas palavras em meu túmulo e também no seu; de heróico não tem nada, você que age por dinheiro e fama; de corajoso não tem nada, você que se esconde do destino com um escudo; de forte não tem nada, você que tanto depende da lâmina. Vai, dá o golpe de misericórdia neste dragão vermelho que um dia foi glorioso; prefiro morrer a ver-me derrotado por um homem mais imprestável que uma pedra!
E o homem obedeceu, empalando sua espada pela cabeça do ser moribundo, cessando seu desgosto. Mas o desgosto do primeiro apenas se entremeou no segundo, incapaz de ver mérito em seu feito por mais que os vilarejos locais o afogassem em gratificações, elogios, mulheres e riquezas.
Então, foi se consultar com o chefe da maior aldeia; este lhe disse não ver fundo à anedota do dragão; pedras eram utilíssimas para serem atiradas e para se construírem fortificações. Não satisfeito, o herói questionou onde poderia encontrar uma pedra à altura de seu desafio. O chefe não soube lhe responder; apenas recomendou que subisse a montanha, uma pedra em si só, e interrogasse o velho que mora no topo, que dizem ele ser descendente dos deuses.
O herói escalou a montanha por um dia e uma noite, só vendo em seu caminho rochedos e pedregulhos. Desabou em sono no primeiro patamar que cruzou. Ao amanhecer, se encontrou ao lado de uma pedra, um marco, tão alta quanto ele e de mesmas dimensões. O objeto parecia místico.
O cascalho cortando seus pés e o sol queimando sua face, o couro das roupas causando horrível atrito, empunhou sua espada e berrou, irracional:
          - Marco de pedra no meio da montanha! Não é mais imponente que eu! Passa a vida a erodir!
A pedra nada fez.
          - O que faz de você, no conceito de ancião dragão, mais digno que o herói que vos fala!?
A pedra nada fez.  
          - Debochas de mim em seu silêncio, ó pedra!
A pedra nada fez.
          - Te desafio! Provo meu valor!, provocou.
A pedra nada fez.
E como a pedra nada fizesse, ansioso, segurando o escudo bem alto, incerto, o herói brandiu sua espada e avançou para a pedra; a superfície dura desta destruiu a lâmina, o impacto mandou estilhaços para o céu e para a cara do homem, cujos olhos arderam.
A dor, e a certeza da desfiguração, fizeram o corpo do homem se contorcer de encontro ao chão, cegado pelos fragmentos metálicos em seus olhos; berrou de agonia, ficou rouco e emudeceu. Amargurou-se rente ao solo por um dia e uma noite.
A pedra nada fez.
Ao seguinte amanhecer, foi acordado por pássaros e ouviu o correr d’água de um riacho. O vento lhe confiou ter o único habitante da montanha falecido. Então o herói tateou seu caminho até a cabana do velho, e, incapacitado, lá ficou.
Seus cabelos e barba cresceram longos e brancos. Cego e emudecido, vive em meditação. Quem vai a seu encontro recebe os pesadíssimos olhares foscos de um sábio e herói. Os viajantes o chamam Pedra da Montanha. Dizem ser descendente dos deuses.
2009?
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praiapreta · 10 years ago
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Ânsia de Eternidade
A chuva chove, o sol queima, as nuvens se deslocam preguiçosas no ar. Para os astros, para as coisas da terra, a eternidade é uma certeza. A luz, uma vez emitida, cruza barreiras e navega todo o universo, vê e ilumina tudo dentro de um céu, até ter o privilégio de desbravar um buraco negro. Já dentro, não acredito ser escuro.
Por outro lado, os próprios astros, as próprias forças, são povoados por uma vivência latente, numa paz suspensa à sua volta, flutuando no espaço, onde mais nada há, apenas a certeza e as constâncias.
A chuva chove, o sol queima, e as pessoas mudam. Não em essência, que isso é segredo velado contra mãos mortais. Somos, em corpo e massa única da humanidade, o astro desfortunado, único com poder, vontade e mesmo necessidade de mudança. A lua sempre está no céu, as estrelas, mesmo mortas, continuam a cintilar. O homem questiona, pensa e conclui, que em todo esse mundo de latências, continuidades e repetições, a malha dimensional se cansa, e do que é plano e predizível, brota o espontâneo. Uma mudança. A mesma que melhora e dá gosto à vida, perante sofreguidão.
Como humanos queremos nos manter, ficar na permanência terrestre, assim como somos. Queremos a eternidade de que desfrutam os astros. Instituímos rotinas, expectativas e objetivamos prosperidade. Mas que é esta, sem desenvolvimento? E as políticas econômicas, todas elas hipocrisias... Não conseguimos viver dentro de nossos próprios parâmetros. O que a sociedade regula põe em questão os desejos da alma. Regras existem para ser quebradas, como dizem.
Toda essa existência, da qual estamos tão cheios, é um borrão – o que deu errado nos projetos celestes, para que, apenas de erros, o mesmo desse tão certo. Acima de tudo, ser humano é viver de incoerências, se transportar dentre as diversas esferas de pensamento, e não se deixar levar pelos esquemas terrenos. Tudo o que repete e mantém aprisiona, depena nossas asas. O jeito é se livrar de toda essa ânsia de eternidade.
Há pessoas que flutuam, nos próprios pensamentos, tangenciando a fronteira entre a pasta cotidiana e a dinâmica de vida, só precisando jogar o peso fora para poder voar. Ironicamente, aqueles que se tornaram eternos são os mesmos que foram mais livres de espírito – frente a englobação das vicissitudes, eles apenas deram cargo à palavras e imagens, preservando em si apenas resquícios dos ideais. Alguns foram tomados pela loucura, e estes sim, cortaram os ares como raios e se espalharam pelo cosmos popular.
Não há nada de condenável em manter réstias de idéias – estas se assemelham a nós e integram, afinal, nossa essência, a ponto de não mais tormentarem uma consciência em paz. Mas não podemos deixar a vida nos levar, ignorar as possibilidades que cada um traz. Não somos, nem seremos, eternos enquanto indivíduos; mas a valorização da diversidade e a busca de experiências que nos mudam e nos abalam, para bem ou para mal, ameaça ser, verdadeiramente, a única constância que eternize a humanidade.
2009?
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praiapreta · 10 years ago
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(o ateliê de) Ricardo Pistola
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Sorriso horizontal, e aquela calma toda. Abriu a porta e passamos por ele, subimos a escada e alojamo-nos em sua toca. Bem humorado, leve, pálido. Nervosismo contido pela sistemática intromissão? Toda risada forçada? Não, estamos a falar de um homem que tem tudo sob seu controle, que conhece cada canto e aresta sujeitos a sua articulação (e é esse conhecimento sua arte), seu campo de ação possível, e agora somos nós varões despontantes em sua pessoa; mesmo que insolícita, nossa atenção é sua e fica assim escalonada esta particular relação, sentado a sua mesa, cabeça em riste - ou é postura apenas? - no agauardo do inquérito.
O que ouvimos é o que o espaço já nos segredava, este ateliê de exatamente o tamanho de uma pessoa. E daquela pessoa. Nas pinturas afixadas nas paredes, cobertas para não sujar de tinta, nos materiais acostados em suas prateleiras e mesas designadas, vemos a rotina estampada das passadas pelo apartamento, das pausas para pensar, da concentração das pinceladas, de pé pondo nas mãos a cautela e segurança adquiridos pela disciplina automatizada da prática, a calma de se fazer linhas retas.
Tratamos de um artesão do controle, da correção que lhe é necessária a ver e fixar estes traços e cores, que permita extender uma vazão de cor que é a modelação de um espaço, que faça de linhas sequenciadas o corpo que delimita e ocupa. Ateliê, trabalho e espaço espiralam do artista num simples e consistente traçado, alimentando-se retroativamente em sua busca deste equilíbrio natural e necessário.
Acomada-se em pleno aqui, neste recôndito feito segundo seu modelo para lhe ser o máximo acolhedor. Para que o responda. Toda superfície orientada para que o trabalho flua, para que ali, suavemente, o habite. Mas não se iluda; dentro desta organização não há a previsão por uma diluição total de trabalho e artista, está tudo impregnado de uma consciência ativa que deixa inerte seu espaço até surja nova exigência de criação. E criar ele vai. Seleciona seus elementos, ferramentas à mão e executa as delicadas tramas que reproduzem este espaço de possível ação.
A precisão aqui significa um resultado limpo e único, sem os desperdícios da tentativa e erro. Daí que a geometria não lhe seja mais que aparato reflexo desta situação interna que exporta por cada gesto. Que as cores não irrompam ou invadam, que mesmo o mais cartesiano não se ponha agressivo, que o mais preciso conserve seu trajeto em aparência, modelo de si mesmo.
Por este ateliê medem-se humor e necessidade em confluência de equilíbrio. E aqui fica expurgado o trabalho, o quanto possível, de um cotidiano lá fora do qual possa ser acessado; fica templo, quieto até que requisitado. Fica para o artista sua leve aura, essa personalidade que não se impõe mas recebe com graça. Até que ria, aí são risadas explosivas, são talvez risadas encanadas, a tensão que o trabalho tanto guarda e desmente. Ou foi impressão? Esse pulso mais sentido, velado de serenidade, essa breve e alegre confusão, constrangimento por nossa presença?
Fico quieta. Ponho-me à calma, calo-me segundo o verde opaco das paredes e o frio da luz artificial, segundo os planos de cor branda e inoperante que suportam as formulações deste trabalho de dobras e arestas, que espiralando voltam. Pela mesma moeda do respeito nos despedimos, agradecemos, descemos a escada e deixamos trás da porta um homem que talvez inspire fundo, como já lhe é hábito, e encare com alívio a volta de seu silêncio, reconheça novamente seu espaço. E mãos à obra.
NOV/2013
Ricardo Pistola
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praiapreta · 10 years ago
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Inventou a fotografia um passado permeável?
Quisera fosse serendipidade, mas admito que busco com certa frequência os nomes de meus amigos neste maravilhoso engenhoque chamado google. Numa dessas estranhas sessões de curiosidade, tédio e perversão, dei com várias fotografias de um tempo em que não conhecia um desses nomes, em que a combinação de palavras me era nulidade, um tempo quando não estávamos na vida um do outro, e quando ainda o próprio não sabia do porvir dos últimos dois anos que então estavam ainda passíveis.
Como é estranho ver os traços, reconhecíveis traços, de quem se conhece agora mas não antes. Essas pequenas janelas por que invadi um passado que não vivi. Tudo ali se recobre de imediato de uma espécie de nostalgia às avessas, não guardam familiaridade, mas se recompõe por imediato ao que já se sabe, sem comoção alguma te olham de volta como olhariam às paredes que estavam e estão dentro de lá, quase categoricamente apreendem à lógica da sua própria sapiência e versão dos fatos, se embaralham e camuflam para satisfazer a ordem que seu futuro agora lhe impõe, e com que os novos olhos lhe revestem.
Nos traços das pessoas, seu desenho, vejo o substrato do que são agora, deslocado para este outro corpo de plástico, estes bonecos que atuam em diorama para justificar o futuro. As fotos não mostram o que foram, são engrenagens do que está aqui agora, regresso no tempo como profeta do determinismo. Só agora faz sentido falar em destino.
Os atores ali ainda não carregavam os fardos que lhes trago, sua interpretação era descompromissada. Suas relações não podiam ser fraseadas como tal. Muitos laços ali se refizeram multiplamente, se alongaram, romperam, tencionaram elasticamente na periferia da visão, comprimidos no quadro da câmera, invariável. E ainda a mão que aperta o botão! Quem foi você?
Saberia meu amigo dos resultados daquele processo em que se meteu? Ali se comprometia. Sentiria meu olhar atravessando o tempo e o visitando noutro estado seu? O processo em si, provável lhe era um mistério. Mas o caso é que não o vejo. A pessoa que se me apresenta é outra que jamais reconhecerei. A cada foto de cada tempo penso ver quem me agora é próximo, mas o efeito é o mesmo de buscar quem se espera na multidão, falsos positivos em todas as partes, em todos os tempos.
Sua essência deslocada; não sei se por ação mundana ou lances da percepção, seu rosto desconjuntado em cada conforme estranhíssimo que surpreende. Perscruto as imagens com muito apego e quase desespero de ler ali inscrito o futuro que vivo, de também ali ter existido, encontrar um lugar comum dessas realidades cruzadas, desprovar a coincidência, a sorte e o erro. Quietas não me respondem, sequer respeitam.
Há algum tempo que não desenterro do fundo das roupas o gaveteiro que está no armário com todas as fotos de infância. Olhando aqueles álbuns meus olhos transbordavam, por quem eram aquelas pessoas, por não saber tê-las conhecido, pelo futuro estragado, e agora incorrigível, que lhes tinha provido. Mas com quem cuja existência era secreta, quem de fato inexistia, sinto diferente. Estas aparições de anos passados são artefatos arqueológicos, são peças de artes e maquinações de que se sabe apenas o resultado, qual problema exato resolvido que a prova foi queimada e agora se reconstituem as cinzas, podendo tomar muitas formas ainda. Aqui o desenrolar é contínuo, a coisa pretérita boiou à tona noutra vida que é minha, entrei sem convites para a surpresa de vagas similitudes a uma presença concreta de minhas imediações e época. Difícil não perguntar – onde estava este tempo todo? Que fazia antes de desabrochar a meu lado? Que fazia você, replica; entretanto meu caminho foi medido, passado e recontado, ocorreu uma vez e não se repetirá. Foi tudo premeditado. Tudo fora dele permanece cambiável, imutável, altamente cambiável.
Que dizer das fotos despejadas sem carinho nesta expansão enorme e repetitiva, neste labirinto que mero nome navega e leva de volta a quem você nunca foi, querendo contrariar? Posto ali para deleite que não meu, mas público, público e por tanto para meu acesso, tal qual caderno aberto, íntimo ou não está para ser lido, como deve – senão, porque teria escrito? Por mão sua ou não, ficou marcado, meu caro, e o que assim está é meu.
Tudo a partir de agora posso retocar, o que me disser haverá profundidade para trás, as peças são imantadas e te abrigam, nem que por associação, aproximação, ou ainda a alma que quer retornar ao corpo seu agora e cá. Que tremenda malícia querer disjuntar as partes do todo, o molde da obra. As coisas se apresentam todas, tolas e unas como o são, para desvela-las só correndo para trás sem deixar de olhar a frente.
Imagens ou outras manifestações que fossem, de agora até cá ficam massas cruas para serem moldadas, que meus preconceitos cozem e batem, pre, reconceitos dando volume ao inverso, a corpo de outros, pra encher espaço meu, densificado e complexados por essa emanação louca que é a vontade, ganância e enganação de querer te conhecer via dejetos dum tempo que meus olhos não acessam e tampouco enxergam. O que a imagem mostra, você talvez tenha sido, mas o que vejo agora – e o que agora te ponho – é o que de fato é, será. Os manequins nas fotos posam só para rechear-te mutuamente, botar a esperança de autonomidade, contudo a estrutura que te ergue são meus olhos e mãos, meu corpo e os outros. Reconheceremos sua estória? Reconcilio jamais.
Mas oras, está entregue já, sob pena de não haver você pisando no mesmo chão que eu. As redefinições, afinal, são magma volátil que por sob nossas carnes já operam infindáveis, dando um rumo tectônico a essa analogia da terra, um nó outro na falta de compreensão desses processos da memória, identidade, conciliação. De ver o outro ali então quando um então não te existia. Vejo seu passado, que você não viu, e que não vi, mas vivi pela porta da prata agora virtual, digital. Incluo-me, excluída. Permite-me? Ficou tarde, as fotos já vi. E quando olho para meu próprio retrato, vejo também com estranheza penetrante, invado tanto quanto o faço na imagem alheia, casas de bonecas ou de fantasmas, casas decaídas – toda foto é uma ruína para ser explorada, um esqueleto para se pendurar novamente as peles. E o faço de bom grado sem no entanto espantar das narinas o cheiro fétido e a mania de voyeur.
Fixado no papel, nada nos pertence! Já não nos somos ali, é nosso só o que reclamarmos que assim fique e seja. Que é reconhecer. Como renegarmos a doce familiaridade? O que a imagem mostra é só talvez o que tenhamos sido, e no que diz aos snapshots que são a ilha em que sem sutileza atraquei, só você tem mapa, é guia desta coisa desconhecida – seja espaço, tempo, passado, memória, registro e história. No entanto fico aqui perplexa, que as fotos emanam desses espíritos doutros que fomos, para nós e para os comparsas que a vida nos renegociou, pessoas que então se poriam estranhas e com quem nunca nos relacionariamos naquela ou nesta outra forma. E no entanto. Aqui estamos.
 2º semestre/2012
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praiapreta · 10 years ago
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De como o personagem usou de seus métodos e astúcia para salvar os lamentantes
Pegaram um trem sem nome que não para em estação alguma. É que o pai tinha lá que resolver uns assuntos com a argentina que era mãe de uns filhos que não eram irmãos daquele que trazia consigo.
O rapaz tinha lá seus quarenta e nove anos, acompanhando o pai por motivo de herança. Deram eles numa cidadela sertaneja  - mas, não se engane, o lugarejo tinha suas massas cinzentas; tanto das cheias de janelas quanto daquelas que bloqueiam o sol.
Com o pai já sumido pelos becos e ruelas, sobrou ele só, num cruzamento de nada com coisa nenhuma. À sua frente, apenas uns frangos assados abandonados por cães baldios e uma cruz surgindo detrás de uma construção particularmente destruída.
Decidiu ir naquela direção, penetrando a secura daquela localidade sépia, esquecida pelo tempo e pelo vento. A tal cruz se assentava no topo da Paróquia de oferendas à Nossa Senhora das Lamentações, uma igreja cor de vinho construída num palanque na beira de um lago, por cima de onde tinha uma ponte.
Rastejando por cada milímetro da extensão da ponte e do fundo do lago, que há décadas não caía uma gota d’água naquele buraco terroso, tinham lá os lamentantes, patéticos seres que pareciam ter emergido dos panos de prato sujo duma mansão qualquer. Prostrados ao lado de folhas amarelas de jornal, muitas das quais falsas, lamentavam os inúmeros noticiados: aparições, fantasmas alojados na igreja, possessões, exorcismos mal sucedidos, assombrações, maldições, estátuas que sangravam dos olhos, ilusões financeiras, desilusões amorosas e toda sorte de rumores sobre aquele lugar maldito.
Os lamentos, assim tão juntos e fortes, faziam retorcer os galhos desfolhados e espantavam as almas dos covos. Era uma verdadeira sinfonia certa a deprimir o mais gozante dos tolos e ferir profundamente aos mais puros de desesperanças. Dizia-se pela sujeira da cidade que os lamentadores eram exatamente causa de tudo aquilo que provocava suas lamentações, sendo que seu conto de morte enlouquecia a eles próprios, que procediam a se matarem a eles mesmos – incidente tão comum que a paróquia instalou uma forca pública em seus portais, com a engravação: “Se é pra morrerem, que se morram nas mãos de Deus!”. Aliás, a Paróquia e redondezas era o lugar mais vívido em uns bons quilômetros, centro de atenção dos turistas que buscavam experiências sobrenaturais, paranormais.
Vendo essa situação macabra, nosso querido cabra homi de um personagem teve um pensamento claro e único, se bem que dos mais estúpidos: “Estou aqui para salvar esses seres encapuzados, mensageiros da desgraça, os lamentadores a que chamam lamentantes! Essa cidadela empoeirada não mais vai ser vítima desses demoníacos gárgulas de sanguessugas!”. Ou seja, como o mais óbvio dos homens há de apontar, ele não era dos mais iluminados. Mas, sigamos com sua estória – que estória não existe mais.
Sua primeira ação em nome de seu objetivo foi deslanchar em pertinente corrida pela ponte, surrupiar uma saca de uma pilha de lixo e notar o brilho despolido das esmolas espalhadas por ali, antes de alcançar a mencionada forca, cabeça já coberta, e aguardar ali, na ameaça de morte.
Ao entardecer, não menos apaixonados os lamentos perturbantes, surgiu uma freira dos meandros da igreja, tão magra e pálida que, caso ao invés de carregar estivesse usando os panos santos, poderia ser confundida, e bem facilmente, com um dos lamentantes – e dos mais penosos.
“Que faz aí, na beira do abismo?” foram as palavras ocas que vieram emitidas de sua boca. “Cansei de lamentar. Quero ser o lamentado, que me mato e me morro pra voltar à guisa de assombração, mais praga vou rogar nesse lugar!”, foi a resposta que ecoou pelo concreto frio das paredes. “Mentira, que você pode até cobiçar a asfixia, mas não é nenhuma droga de lamentante! Agora desce daí ou vou te arranjar uma palmatória!”.
Após um chazinho de erva daninha numa banque de orações, a freira chefe, ou qualquer a alta posição que ocupasse, a que todos chamavam Mãe, explicou ter nome Mae, e disse também que todo lamentador usa sapatos, que não ousam pisar terreno que não seja puramente humano: a igreja sagrada demais. Assim soubera da espécie de seu convidado, a quem forneceu apenas suspiro ao receber as intenções. Que os lamentantes são como peste bicho parasita, dedicados em exclusividade a maldizer a cidade às ruínas.
“A mim, não me importa, pois que eu ei de salvá-los!”. Pronunciou sua proclamação, ponto final na conversação. Alojou-se ele na torre do sino das lamentações, que vibrava seu som gutural sempre que um lamentador optava pelo fim de sua vida. E ficou ali, até que um serviço se comprovou necessário de sua ajuda. Ouviu o falar dos crentes sobre um acidente que estragou a única estrada que dava na cidade.
É que uma frota de caminhões rumo sul tombou, todos os quatro caminhões e meio, esparramando todo o carregamento de alpiste por tudo em volta, deixando a problemática do que fazer com toda aquela ração de animais menores, tendo o motorista e seus frotistas já concertado seus carros e ido buscar nova carga sementosa.
Chegando no local, o coitado nomeado apenas “personagem” teve epifania daquelas que só os mentecaptos experimentam, resoluto em sua idéia do que fazer quanto à quantidade de alpiste forrando a estrada. Aproximou do encarregado da limpeza da bagunça, um macho grande e, em fraqueza do que ele mesmo admite, burro. Não tendo na cidade balde, vassoura ou disposição bastantes para realizar o trabalho de recolhimento e redistribuição da alpizarada, o único resultado que sua diminuta mente conseguira ruminar era esperar que a fauna aviária local deleitar-se longamente num banquete que duraria meses.
A solução proposta por aquele que acompanhamos, porém, soou muito melhor que esperar pela boa-vontade da passarada. E fizeram assim, conforme a mente perturbada: ofereceram uns trocados e uns miolos de pão aos lamentantes, em troca de sua força de trabalho. Não pense, no entanto, que os lamentos cessaram, que trabalho não corresponde salvamento. Foi em constante lamurio que os lamentantes recolheram, com suas próprias mãos, mãozada por mãozada, toda a alpizarada. E foi a pé que levaram sua bagagem ao riacho próximo, magérrimo córrego duma palma de profundeza, mas as águas mais brabas que não se imaginaria estarem em porte tão pequeno. Toda a espessura de alpiste foi lavada de imediato para fora da visão de qualquer um. Estava aí a resolução. E mal foi condecorado herói, nosso personagem retornou ao puleiro de corujas que vinha chamando de morada.
Mas é que não acaba aí. No dia seguinte chegou notícia da cidade maior, contendo informações relevantes à repentina falta de água na desértica região. Acontecia que a represa estava entupida pela misteriosa aparição de uma alpizarada. Dado o alarde, Mae denunciou, e não demorou a que o responsável fosse posto a caminho da represa, para que concertasse o que tinha quebrado. Acesso, endesertado como estava o local, foi fácil. Análise dos dnos rápida. Concertamento retardado no sentido de problemas mentais da palavra.
Estava assim a situação quando nossa figura chegou: nos dutos do paredão de concreto, só alpiste se via. Oras, bastava fazer a água fluir novamente, e que as sementes permanecessem em seu novo cômodo!; ditou ele, saindo a buscar os materiais preciosos a seu sucesso. Bastou o encontro com uma velha mina antigamente abandonada. Lá achou uma picareta, e bastou uma picaretada prudente numa rachadura fendada para fazer desmoronar o volume d’água d’outro lado e as pedras concretosas em cima do infeliz imbecil, que, consertada sua bagunça, morreu de sua própria estupidez.
Uns dias que talvez formaram semanas depois, o lugarejo que alojava a Paróquia das Lamentações, com todos os seus lamentantes, sofreu de particular miséria, toda sorte de desaventuras se deixando ocorrer. A vasculhar o sino, uma noite, Mae descobriu a fonte de tamanho azar: a assombração de nosso personagem, que voltara como fantasma, e com gosto amargo de vingança e brilho breu de negrume.
Estando insuportáveis, e mais fortes que sempre os lamentos dos lamentantes, os moradores do lugarejo imploraram ao murcho espírito do personagem que deixasse o local, a que receberam a seguinte resposta: “Façam-me imperador – não, melhor, governador, assim não tenho que sair imperando por aí – das banana. Deixem o glorioso pseudofruto invadir tuas terras!”
Mas toda bananeira plantada recusou-se a aflorar. O mesmo repetiu-se quando o mandato mudou para melancias, abóboras, maçãs e jiló. No meio tempo dos fracassos, aproveitou-se o governador para coletar os lamentos dos lamentantes. E, finalmente, ao se cansar dos esforços infrutíferos dos cidadãos, usou de toda sua manha, estupidez, e lamurioso poder lamentoso para fazer de suas fantasmagorices, transformando todo o solo infértil da da cidadela num infinito e batatudo tubérculo.
E é dessa maneira que ele salvou os lamentantes. Foi requerido tamanho poder para a realização da façanha, que além de desaparecer num puffi, o personagem sugou todo o lamento disponível nos lamentantes, que todos, reparando em sua nova condição, se tornaram fazendeiros e negociantes de massa de batata.
A lagoa encheu depois de seu longo hiato, o pai nunca mais foi avistado, e a Paróquia, sua fundação abalada pelo tuberculoso solo, foi desconstruída e reerguida na forma da Paróquia de oferendas à Nossa Senhora do socorro aos tuberculosos, para onde peregrinam os afligidos pela doença. Assim cessa nossa estória.        
2008-2010 
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praiapreta · 10 years ago
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Como todas as estrelas são fingidas, não devem ser creditadas
Numa cidade dessas, não se acontecem essas coisas. Numa cidade dessas, que nada acontece, que é perfeita pra essas coisas, de tanto que é esperado que não se aconteçam essas coisas. Que não se aconteça nada. E nada acontece. E numa cidade perfeita pra nada se acontecer, algo acontece. É nem cidade, prático vilarejo, no sopé de uma montanha, mais um monte que pico, gramado e pacato. Casinhas de alvenaria e madeira, arbustos fartos – ocupação geral do povoado, dependente de poços para abastecer água.
O dia que ela apareceu, os poços secaram. Os poços haviam secado antes, sempre secavam, e quando secavam as pessoas saiam nas caminhonetes para buscar galões de água na cidade vizinha. Quando ela apareceu, apareceu embaixo de uma árvore, sentada de pernas cruzadas; ninguém a conhecia e ninguém parava. Todos notavam, e bem se importavam – mas quais as chances de algo acontecer numa cidade daquelas? Algo que o valha? Nenhuma eram as chances, então bem que não tivesse acontecido e bem que ignorassem – uma cidade daquelas não estava preparada para ocorrência que fosse. Não olhassem, não ocorresse.
Um único cidadão problemático tomou interesse pela moça, agarrando-a pela mão e arrastando para sua casa. Chegando à entrada, uma varanda de toras de costas para o monte pedregoso, ela cessa as resistências e se atira a uma cadeira abaixo de uma janela alta, violenta se recusa a todos os custos a colocar pé no interior do lar; inúteis as súplicas do homem.
Senta lá e fica. A pele escarlate. O cabelo reto cinzento de quase velha. Encara o céu e não tem olhos – nas órbitas, as nuvens.
“Que coisa”, ele sente, se pensássemos o que não sabemos sentir, adentrando a casa, cara amarrada pela ressaca, “alguém espelha o céu.” As nuvens passando num fundo azul, azul, tão azul.
Cata uma cerveja e se acomoda no sofá surrado, pernas pro ar e o braço pendente. Toma uma e encara o teto, vira a cara e repara: não fechou a porta, não fechou a janela. Pensou que tinha fechado? Fechou nada. Coisa séria numa casa toda de madeira. A vista seria a vizinhança, não fosse o pé vermelho da moça estirado na soleira. Gira um pouco a cabeça pra ver também os dedos dela, roçando a beirada da braçada na cadeira, contraste. Apaga.
Acordou na ressaca, nova ressaca, ou talvez fosse a mesma do dia passado que nunca se foi.  O olhar embaçado mira o vermelho, o pé de alguém no meio do bairro, o vermelho no verde do mato, no azul do céu. Céu sem nuvens, esquadrinhado na janela. E a madeira em volta tudo escuro, vermelho só na porta. Muita força de vontade pra se arrastar fora do sofá, questionar a mulher de novo. Ela não diz nada, só encara. Nem dá o gosto de olhar na cara, só encara. Encara o céu, órbitas aguadas, a pele quase borrada pelas lágrimas do esforço. Ela chorava? Não valia a energia descobrir, foi pedir água emprestada pro vizinho, que foi inútil dada a notícia: os riachos daquele e do outro lado dessa e da cidade de trás tinham os dois secado. Não raro, não nessa época do ano, mas ainda incômodo. Água agora só de garrafa. Mas pra que água quando se há cerveja?
A moça não passou batida, vizinho logo protestou. “Ah. Uma pimenta, uma parenta. Alguém aí.” Ouviu de novo: ”Deu de catar mulher na rua agora, depravado? Para de encher a cara e arranja um emprego vagabundo.” Voltou para afronta-la, ele e moça só sabe que veio de debaixo da árvore. Entra, sai. Cerveja em mãos é bem um equipamento. Toma uma e olha bem ela, ela não olha de volta. Lábios contraídos. E nem tinha esperança que ela olhasse – mesmo que fosse na cara dela e bloqueasse a vista, ela não perturbava, inclinava um pouco o pescoço, arrastava um pouco a cadeira, cabelos lisos e longos sacudindo de um lado pro outro – mas o mirar fixo, e para assim sê-lo o que for preciso. “Ei. Você. Ei, mulher.” Cutuca, ela não dá bola. E ele também já não se importa, a cabeça latejando demais – era empenho demais, muito mais que estava disposto a produzir. Se cai no sofá no próprio jogo.
Acorda como que de pesadelo insultando a própria embriaguez, a soneca chupou o sono e se vê no meio da noite. Lá fora o véu negro chamado céu comido pelo brilho das estrelas, que fazem da pele vermelha daquele pé rubi. Estranho aquilo, dado o fosco da moça, tanto em beleza quanto esvaziada maneira. De caráter só a insistência em deixada, seja ali, seja na árvore, de permanências. Tenta focar em qualquer outra coisa que seja, mas entre a ameaça mal dormida do agouro noturno e calorão de meia noite, estava acordado, por bem ou mal querer, e aquele vermelho berrante, embaçando os contornos, aquela mancha bem centrada no vão da porta permanentemente escancarada, magnetizava o olhar. De cara quer cerveja, mas cerveja já não tem – a última garrafa fedia no pé do sofá, uma mancha pegajosa de álcool derrubado no chão. Levanta, confirma a falta da cerveja, senta, indeciso, repara numa luminosidade anormal e penetra pela janela e levanta, vai para a varanda.
A mulher sentada, joelho contra joelho, uma perna esticada para o lado invadindo a portaria, mas sem tensão que buscasse a malícia de um tropeço. Pescoço um tantinho para trás, deixando a cara encarar o céu. Imóvel como se as farpas mesmo da cadeira a fincassem no lugar. Vai à cara dela de novo, ela não esboça reação. “Cansada? Agora você me olha na cara? Me olha na cara e não fala nada.” Agarra o rosto dela e tira a mão, atarantado, é como segurar o nada. O vermelho tão quente é quente nada, é o mesmo calorão do ar da noite, pairando em toda sua pressão. A boca um pouco entreaberta; avança para beijar, mas também retrai a cara, a boca dela é um mar de seca.
Atarantado e com uma raiva mansa, espreita os olhos e mira os dela com mais decisão, só para ver as nuvens, as nuvens melancólicas discorrendo rápidas até, num céu tão azul, tão azul. Não é o escuro da noite, e era de lá, afim, que emanava aquela luz pálida de névoa. Sua face já não amargava como antes, agora só calma, a pele rubra desfeita da compressão que o sol forte comprimia. O astro lá dentro não se mostrava, porém lhe entregavam os contornos flamejantes das nuvens passageiras; preguiças. Sonhou.
Despertou para uma cusparada do vizinho, que vinha de mau grado lhe avisar, os homens estavam indo buscar água mais longe. “Se tiver água vamos querer trazer pra cá, e se for pra trazer precisa de gente pra trabalhar a carga d’água, nem que seja um vagabundo como você, um bom pra nada.” Tropeçou nos pensamentos e foi com eles, e voltaram ao meio dia, sol a pico, sem nada, sem água onde a estrada alcançava. Sem dinheiro pra cerveja. Mãos rachadas pelo quente da tarde, jogou-se ao sofá, mas não suportou o couro batido melando na pele, então saiu e desabou do lado da moça. Tentou fazer dela qualquer utilidade, mas o vermelho violentava seu olhar, e já não se importava, ela era não mais que um pedaço da casa. Uma horrenda decoração. Encarou o céu desanuviado.
Aquele vermelho despejava ao lado e invadia seu olhar, seu viver, via raiva. Acordou de súbito, exasperado, pontinhos brancos debochando no céu. Garganta árida. Levantou nas pernas e logo amoleceu, espantou a idéia de entrar e birrou com a moça. Procurou seus olhos, só achou o céu, rendeu corpo ao chão. Puxou forte a mão dela da cadeira, não conseguiu derrubar. “Mais forte do que parece, hein, beleza.” Montou nela irritado e afundou a cara em seus lábios, só para mergulhar no salgado, seus beiços grudados, ficou com raiva e tentou descarregar, mas era como estar no nada, e isso frustrava, frustrava tanto, não valia o esforço, não valia nada. Caiu ao chão, derrotado. Por ela, por si; pelo céu. O sussurro das estrelas debochava. Era uma troça. Perfuravam suas retinas felizardas na malícia, esfregava os olhos e amaldiçoava, amaldiçoaria, as sombras das luzes perseguindo adentro das pálpebras. Via-se drenado.  Contenda, acima e abaixo contenda.
Então dormido, acordado na noite seguinte, a via de baixo pra cima, as grandes pernas, a pequena cabeça. Um braço jogado fora da cadeira, quase tocava sua própria cabeça. Aquela luz de dia na sua cara, e do outro lado as estrelas cheias de si já o tinham derrotado. Noite a outra apreciava o céu jocoso, noite a outra pensava enquanto dormia, e acordar era alívio. Ora orgânico, ora abrupto, se ajeita nos quadris e prostra mais a frente, encara a moça que enfrentava o céu. “Quem é você? É nada.” Ajoelha e inclina, perscrutando seus olhos novamente, viu as nuvens ora mais negras se carregarem com porte, deslizando ponta à outra daqueles confins faciais, esparramando e entrando na visão, despedaçando e reintegrando; aquele céu ali, aquele céu acima, estava encurralado, e sorria.
Não quisesse arriscar a ansiedade, pregou também os olhos naquilo que quer que ela visse tão irrefutavelmente conspícuo. Como cientes do humor regulado, por vez estrelas não lhe ferem, desfizeram o brilho que cegava, substituíram o negro-azul da imensidão, refletido no mato e nos telhados e no morro. Olharam.
O céu infeccioso.
De outra cidade de nada, outra descaracterizada, veio outro homem de nada, vestido a descarater, veio num carro acompanhado, de outro lugar quieto e revocável, insignificante pronunciado. Veio ao vizinho, berrou “Quer água!” Quero sim, veio resposta, se fez o mal entendido. Vinha de longe, de além da rua e da estrada, de onde não houvesse nada que valesse conto ou causa, história ou emoção. Não tinha água. Às vezes secava, era assim nessa época do ano. Em outra cidade marginalizada de si própria de seus habitantes, os poços secos chiavam e o povo trilhava cede. “Seu palerma, me vem aqui na promessa de água e tem nada! Premissa falsa! Dá o fora daqui seu traquinas descontente!”. E se recolhe para sua propriedade feito atormentado, xingando sob a falta de fôlego.
Pouco notável rapaz se dirige à próxima casa, dando de encontro a uma juventude pasmada. Vai à frente, sobe o degrau e declara sua necessidade por água, só para que diametrais os corpos se desconjuntem desabalados por seu pleito, rodando o torso fora da sombra monumental execrada por um homem ereto. Roda o pescoço e dá de cara com o sol, com um céu sem sol a ele todo entregue. Os olhos ardem e desvia de volta. Dá com a mulher fixa a cadeira e o homem derrapado a seu lado, cada qual com suas pequenas medidas a garantir o deslumbre continuado do tapete celeste, a ele tão abominável quanto a pimenta daquela pele. Murmúrio privado e os pés encaminham ao carro, a face e o torso ainda estranhados, passo em falso, passo de volta, agacha e olha, encara. Os olhos da moça, tão carregados, embaciados numa lenta e transigente espessura, aqui e ali vislumbres celestes, breves talhos do volume cinzento que tão espaçoso corria aquelas órbitas.    
Bateu um vento e subiu o cabelo da moça, deu um susto. Foi-se um pouco e lançou olhar - e o homem por curiosidade? De ali, límpido, desnublado. Assim diria, assim vivia. Correu, que o chamassem do carro e já se foram, ainda passível de quilômetros e penúrias sua empreitada por água. De garganta rachada e olhar ardido.
  2011-FEV/2012
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