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um banquete de cáli-se
a guerra em mim começou muito antes de você.
até então, era silenciosa.
vociferou quando tentei calar a angústia calando-me.
ela começou quando eu parei de fingir que não doía:
quando parei de fugir. e é quando você para de fugir que as coisas das quais estava fugindo parecem te alcançar com ímpeto.
foi quando amei você que senti que as coisas poderiam se enfronhar e se aquietar. senti paz e segurança, senti-me amada. foi quando eu não quis mais fugir. pintei em você contornos que me fariam existir e não cair. idealizei em você o que não lhe cabia e que eu tanto precisava.
ofereci a ti esse meu lado frágil, mas também a que não fugiria. ofereci essa parte de mim que se escancarou. não que saiba tudo de mim, nem que eu saiba tudo de você. decifrar o outro a partir do que se quer é acabá-lo.
quando amamos encontramos no outro partes perdidas de nós mesmos que nos mandam sinais; encontramos ternura e alegria, mas também devastação.
fui voraz em te amar, para me amar. sempre me desdobrei para caber, para ser. e, quando não era o que queriam, desaquietava-me.
o cenário que se desdobrou me fez camadas; tantas que aos poucos me fizeram sumir.
o encontro com o impossível. tentei suportar o impossível que não se cabe a um só. desviei para mim tudo o que não era para me caber: o que eu achava ser o que queriam de mim; tudo se misturou.
apressei-me para fugir do que estava voltando, do que sempre carreguei comigo. as dores, as responsabilidades, a fantasia, o desejo e palavras dos outros… só comigo.
tudo se misturou e me confundiu, não sabia o que era meu e o que não era. na tentativa de separar, apressei uma fuga que me cegou. o que tinha ternura, transformou-se em uma grande pressa e impaciência. desmedida.
ao longo dos anos, muito me custou, partes de mim; eu não sei qual a moeda de troca [se há troca].
sempre tive o hábito de criar um cenário de possibilidades e ultimamente tudo para mim encareceu: a companhia, o diálogo e o afeto. o essencial.
sempre que amo, enlaço-me e me desdobro para caber em qualquer espaço que me é dado, ansiando por mais.
nesta quase noite que se forma, daqueles dias em que está claro mas permanece noite, criou-se outra camada em mim: a lucidez escrita. a lucidez que me fez enxergar que, desdobrar-me para caber em qualquer pessoa, em qualquer desejo que têm de mim [há muito tempo] é um preço caro demais para mim; é aniquilar-me.
desdobrar-me para caber no amor e desejo dos outros é desmembrar-me, fazer-me camadas irreconhecíveis de mim.
a guerra começou antes de você, porque vem antes mesmo de mim, antes de me fazerem carne e osso; quando me fizeram ideal de mim e não me permitiram ser para além de seus desejos. quando queriam que eu me rastejasse e paralisasse em um ideal que não sou eu, que não me cabe.
[marcas familiares.]
tantos dias que me custaram, que foram enfadonhos e angustiantes. eu não sabia separar muito bem o que era meu e o que não era: tudo que chegava a mim, entranhava-se, misturava-se e, ao partir, deixava uma dor que não era minha, mas acabava se tornando.
agora que parei de fugir, tudo tem me alcançado fervorosamente. o colo, a ternura e a paciência em assumir a mim mesma para além do que me idealizaram, finalmente fizeram com que eu me ouvisse. ironicamente, porque outra pessoa se fez ouvido e se fez colo, não me pintou como extensão de si e de seu próprio desejo.
eis que de um banquete de cale-se, a angústia não mentiu. tanta coisa ao longo dos anos se misturou e se confundiu que muitos eram os caminhos.
de tanto surrupiar afeto e desejo dos outros que não me cabiam, de tanto consternar, consegui me enxergar.
foram incessantes e precipitadas anulações de mim mesma. é um furo no vazio que tinha de começar em algum lugar. ser, apesar de tanto e da mistura. ser apesar do furo no vazio. apesar dos outros. eis-me aqui começando de algum lugar e parando de fugir de mim mesma.
Autoria: Mayara Félix (Mayara Cristina – Medium).
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Usurpador.
Você cravou suas unhas ao redor do meu pescoço, tirou meu ar e desejou minha destruição. Silenciosamente, desfrutou o estrago feito e se retirou, como quem sustenta o próprio prazer ferindo e, em seguida, fugindo.
Não sossega. Extingue qualquer tipo de amparo para que a dor causada seja imensurável, para que perdure na pele e estremeça os ossos quando você se for.
A adrenalina envolve seu corpo enquanto fere. Você é um viciado, colecionador de dores alheias; você não ama, usurpa. E o que escapa do seu aperto, você destrói ou nega a existência.
A pesar - e apesar da dor - eu sinto muito por você: finge saber viver e sentir suavemente, com zelo; mas você não só aprisiona, faz morrer.
Você cravou suas unhas em mim que angustiei não haver escapatória, mas eu estou arrancando você de mim; junto com estas palavras.
• art by Aleksandra Waliszewska.
— Mayara Cristina.
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penhasco
Como que por mera incompreensão, acabei por afundar em mim mesma.
sempre me abstendo e me contendo…
e nada nunca esteve assim, não ao ponto de[com razão] me devorar; de não mais me reconhecer, frente a este reflexo no espelho e não mais reconhecer o rosto que me era tão familiar: o meu próprio.
Neste caminho, tão custoso e feroz, encontrei pequenos “encantos” que me roubaram e me despedaçaram.
A fachada assumida foi calorosa e gentil, mas o seu âmago vomitava uma brutalidade tirana. Então, foi necessário beber desta dor para que então pudessem esvair tantas outras partes [também doloridas] de mim.
Despejando uma infinidade de afetos que rasgou minhas entranhas e me despedaçou, empurrando sorrateiramente o que sobrou de mim para um penhasco que eu mesma criei.
Agora, o mais simples e cambaleante passo se seguiria de uma queda brusca e, olhando para trás, despi-me desta realidade como quem puxa uma cortina ou quem deixa rastros; mas era certo, por fim, que tudo ficaria bem, desta vez o céu estaria azul.
— Mayara Cristina.
art by Brooke Shaden.
[reeditado]. texto de 13 de junho de 2018: https://poetize-se.tumblr.com/post/174849938969/como-que-por-mera-incompreens%C3%A3o-acabei-por
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apesar do custo doloroso desse processo, sinto prazer em revisitar algumas coisas que escrevo. algumas estranho, outras abraço.
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o contorno que a dor dá.
sinto-me como à espera de tragédias que tornam a aparecer. inevitáveis, previamente cogitadas.
uma espera que dá nós firmes à dor, engessando-a.
e como se defender?
uma fortaleza idealizada para incorporar controle, esquivar-se dos afetos, do que comove; idealizada para ser protegida, impenetrável e resistente [como uma obra única, magistral].
mas não creio [tanto quanto antes] que esta dor me conduziria às ruínas, pelo contrário: parece dar contornos ímpares aos afetos, como uma espécie de fortaleza que de alguma forma lhe escapam brechas.
brechas que afetam, que ferem, que dilaceram e que transparecem o que é de mais intrínseco e próprio à vida: dor e angústia. mas não somente, realçam a vida, o sentir, o abrir-se, o buscar outras afetações.
ao invés de esquivar-se dos afetos, agora a fortaleza passa a ser amargamente interrompida pelas as brechas que gradualmente permitem experimentar, viver o que antes lhe escapava.
penso sobre o que difere a dor que esmaga e a que transforma, a linha tênue entre elas. e isso me remete a como cada um lida com esta dor, ao tempo que leva. erguer um pedestal para cultuá-la ou dar-lhe novas formas, cores e versos?
o laço dado entre dor e angústia pode ser avassalador, nebuloso, mas a lucidez que lhe perpassa é crucial. é essa lucidez que cria brechas e permite transformações.
então, apesar de toda a labuta, a dor pode ser transformada de maneiras únicas e inimagináveis por cada um.
e creio [mais do que nunca] que a dor não nos arruína completamente, não como imaginava.
— Mayara Félix.
art by Nora Gad in pinterest.
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‘The Flood; The Deluge’ 🔱
Artist: Philip James de Loutherbourg Date: ca. 1700-1800 (made) Medium: oil on canvas
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maeria
sentada em sua cadeira, forçando-me a lembrar a posição exata que a colocava. procurei na parede marcas de remendo, já que a forma que encostava a cadeira quando ia sentar, ao longo do tempo, abria buracos na parede. todas as vezes que isso aconteceu, voinho os remendava esbravejando. [risos].
não consegui achar, o remendo foi bem feito.
tentei resgatar essa lembrança, mas não consegui. então apenas me sentei na posição que achei mais parecida, e agora... nesta noite de quatorze de julho, sinto a dor da sua partida com mais afinco porque outra pessoa querida também se foi.
compadeço-me da dor de seus familiares porque entendo a desolação, o vazio e a angústia que essa partida traz... e trará. gostaria de confortá-los, mas também sei que não serei capaz, nem ao menos oferecer minha presença sou capaz... e sinto demasiadamente [também] por isso.
tudo isso me faz reviver a falta voraz que a senhora faz, voinha... o vazio que deixou, proporcional tal qual o amor e a sensação de lar cultivados.
quase onze meses...
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“O médico perguntou: — O que sentes? E eu respondi: — Sinto lonjuras, doutor. Sofro de distâncias.”
— Caio Fernando Abreu.
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— Já disse que te amo. — Não faça isso. Não me ame.
Charles Bukowski. (via construindoversos)
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