Mareando sobre-entre-sob as águas-escritas que compõem o arsenal cronístico das nossas autoras brasileiras.
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Dentre os perfis tão variados de cronistas, apresentados até aqui, deter-se sobre a gaúcha Martha Medeiros é falar de uma autora que ganhou notoriedade já com seu livro de estreia – Divã – publicado em 2002. Adaptado para a televisão, em 2011, a obra já havia ganhado uma versão no teatro e no cinema,tendo como protagonista a atriz Lília Cabral. Como registra em vários momentos, Martha flerta com a psicanálise, sendo uma entusiasta do assunto. Porém, ao longo de seus textos, o mergulho não se dá nas águas tenebrosas do inconsciente, mas em superfícies rasas (e nem por isso menos profundas) do universo de homens e mulheres comuns, retratando jovens, mães, mulheres, pessoas banais e acontecimentos pautados pela trivialidade. Tudo ao sabor perfeito da crônica, gênero completamente ajustado às pequenas poesias da vida, as quais a cronista consegue captar e transmitir com toques de humor, sensibilidade, melancolia ou crítica.
Martha afirma em uma de suas crônicas: “Nós, nem preciso dizer. Nascemos doidas”, e é rindo, refletindo ou se inquietando com a condição da mulher (sua condição também, afinal) que ela nos atrai. Não à toa, a reunião de seus textos escritos para os jornais O Globo e Zero Hora, entre 2005 e 2008, recebeu o nome Doidas e Santas, dois adjetivos que resumem um pouco das facetas variadas que cada mulher carrega dentro de si e as quais a cronista faz emergir. É interessante perceber as diferentes reações que as crônicas de Martha despertam nos leitores: é o esboçar um sorriso por uma frase cheia de humor, é solidarizar-se com a personagem que chora no semáforo ao lado do carro da cronista, é enriquecer-se com as críticas que ela faz a livros, documentários filmes, peças de teatro e sentir-se instigado a procurar aquilo que ela recomenda como produtos culturais a serem consumidos.
Assim, acercar-se de Martha Medeiros é evocar a gênese primeira do texto cronístico: um diálogo ao pé do ouvido com o leitor, como se ao invés de ler um texto, estivéssemos conversando com uma amiga que nos conta histórias saborosas e com quem podemos compartilhar segredos, como ela compartilha conosco. O título de uma de suas crônicas indaga: “O que mais você quer?”, partindo da observação de uma jovem “desajustada” a um contexto social pragmático demais. As respostas à indagação versam em torno de uma vida menos automática, que não nos roube “o direito ao desatino”, que nos permita uma “reconciliação com nossos defeitos e fraquezas”, que celebre uma vontade contínua de não se acomodar. Um texto curto, mas recheado de reflexões despretensiosas sobre como não se deixar estagnar em nossa humanidade e em nossa vontade de viver. Os textos de Martha, partindo do cotidiano, conduzem-nos a uma reflexão mais do que genuína: são os pequenos acontecimentos do dia a dia (e o que fazemos deles) que ajudam a construir nossa felicidade ou infelicidade. Como ela bem destaca, perceber o valor das coisas comezinhas pode ser o primeiro passo para tornar a vida mais leve.
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Quase uma carta, quase uma crônica: para Eliane Brum e para nossos caros leitores..
Sentada sobre uma cama lotada do que, aos olhos alheios, viriam a ser meras tralhas de ‘uma estudante universitária’, mergulho em tu e na tua escrita, Eliane - talvez chamá-la apenas pelo primeiro nome me dê algum tom de ousadia, mas tudo bem correr este risco. Pego aquele livro teu que, podendo ver, o nomeaste de A vida que ninguém vê. E questiono-me: O que vês? Como consegues retirar a essência de cenários tão inóspitos, tão pobres de careza para os demais? E, rapidamente, respondo-me: tu sentes.
Bom dia, caro leitor virtual, presumo eu que caístes meio que de paraquedas neste post, estou certa? Tratarei de te explicar o que começou e ainda está por desenvolver-se e terminar: Conhecerás aqui um recorte da trajetória de Eliane Brum. Quem ela é? O que faz? Como faz? Qual a história dela? Para chegar a estas respostas, todavia, navegaremos num fluxo de pensamentos que ora se direciona a tu, leitor, ora a própria escritora. São camadas de diálogos. Por isso, não franza a pele de tua testa quando deparar-se com elas.
Pois bem, O que faz Eliane? caso seja um/a acompanhante de nossa pesquisa, suspeito que já conjecture a resposta dessa indagação, caso não, dir-lhes-ei do que se ocupa essa moça à distância de seis palavras e dois pontos: Eliane Brum escreve. É escritora de crônicas, romances, contos, reportagens e colunas. Destes pontos, acredito, antecipam-se outras funções das quais também dedica seu tempo: jornalismo e, uma não tão proeminente - porém, nem por isso de qualidade menor -, documentarista. Eliane integra como diretora ou contribuidora as seguintes produções documentárias: Uma história Severina (2005), Laerte-se (2017) e EU+1(2017) - à exceção de Laerte-se, que está disponível na plataforma de streaming ‘Netflix’, os demais documentários encontram-se acessíveis no ‘Youtube’.
Como fazes? li há uns dias, num blog que se chama ‘A casa de vidro’, uma matéria sobre tua escrita, e olha.. achei que o autor do texto, um moço por nome de Eduardo Carli de Moraes, foi muito feliz ao chamá-la de jornalirística. És uma jornalista exímia, isso é fato dado, não é à toa que tens colhido ‘as pitangas’ do teu empenho, do posicionamento político e social diante das mazelas a que o Brasil tem se ancorado. Mas, ao contrário de diversos jornalistas, também excelentes e militantes, tu consegues escrever sobre um limiar que separa o mundo das notícias cruas e puramente descartáveis & a teia de lirismo que se tece, como fragrância misturada ao ar, a textos com essas e outras temáticas. As crônicas são um belo exemplo de sua dualidade na escrita e potencial de dar a qualquer gênero um toque de ‘Eliane’. Não é nova a notícia da maleabilidade ser comum à crônica, na tua escrita, porém, ela ganha contornos lirísticos muito peculiares. Confesso-te que, por vezes, lembro-me de Cecília e Clarice quando estou a apreciar teus textos. Deve ser algo no modo de conduzir as palavras..
O que Eliane vê? histórias de vida. Meu caros, Eliane Brum é uma escavadora de contos reais, de personagens sem glamour, e, aparentemente, sem grande valor para nós que passamos, diariamente, despercebidos por eles. Seja numa notícia sobre um ‘Zé’ ou uma ‘Maria’ que vende latinhas para sobreviver, numa reportagem que exalte a criminalidade nas favelas, ou na rua, pedindo uma moeda para inteirar o almoço, vemos-os, no entanto, não os notamos. O trabalho de Eliane Brum, volta-se prioritariamente para essas minorias; ela põe holofotes e erige da escuridão diversas histórias reais que nunca foram contadas ou percebidas pelas grandes massas. Não só na escrita, mas nas ações externas a ela, como em projetos voltados para população da Amazônia e das periferias de São Paulo, enxergamos a preocupação da escritora com esses grupos desprivilegiados do olhar do outro e das abastanças capitalistas.
Qual a tua história, Eliane? Tu nascestes em uma cidade chamada Ijuí, no Rio Grande do Sul, em 1966. És gaúcha. Passastes por muitas casas, entre elas: Jornal Zero Hora e Revista Época, e agora estás no El país e no jornal britânico The Guardian. Publicastes seis livros, entre crônicas, contos, romances e reportagens. Esses são os poucos fragmentos que tenho da tua história, e os recolhi lá no Desacontecimentos. Pretendo mergulhar nos mares das tuas crônicas, e conhecer mais dessa contadora de histórias reais que escreve, dentre tantas coisas, sobre vidas.
Caros, por hoje, é só! até breve.
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#AgoraÉQueSãoElas: qual a força das ideias sobre os mundos?
Certo dia, ela viu-se dominada pela incessante vontade de colher histórias: as espraiadas pelos arredores e as escondidas entre os vários lados dos mundos – em mares profundos e/ou em águas rasas.
Ela?! Mas... Quem é ela?
É habitante – floração - das vidas.
A nossa navegação, agora, des-cronológica - o ponteiro nem sempre segue o passo a passo regular – aporta em solos de plantio constante: a areia, o asfalto, a avenida, a calçada, a tela do computador, a superfície do tablet, a imagem do celular. Mundo virtual (enquadrado) versus o dito mundo real: espaços que se entrecruzam e se conectam.
Em 2015, despontou, às margens virtuais, a #AgoraÉQueSãoElas, movida pelas ondas de hashtags lançadas a partir de 2014. Esse fluxo ganhou vida, em águas brasileiras, através do compartilhamento da #MeuPrimeiroAssédio que possibilitou às mulheres, conduzidas corajosamente pela sororidade, ressoarem as suas vivências como mulheres assediadas, feridas e, muitas vezes, amordaçadas. Tarefa não tão fácil para quem durante anos, decerto, manteve histórias, nesse viés, enterradas.
#AgoraÉQueSãoElas, nadando contra corrente, deságua como eco reivindicador de mais espaços de falas para mulheres dentro de âmbitos - como o midiático - majoritariamente, comandado por homens; protesta contra medidas políticas, a exemplo da PL 5069 - desencadeadora da #MulheresContraCunha -, que visam extinguir os direitos de escolhas já conquistados por décadas de lutas femininas e feministas; labuta para que as vozes das mulheres sejam ouvidas e, assim, a nossa liberdade natural torne-se palpável.
#AgoraÉQueSãoElas nasceu de uma ideia de Manoela Miklos. Foi ela a responsável por dar o grito de largada, nas redes, desse manifesto, com a invasão da coluna pertencente ao Gregório Duvivier na Folha de S. Paulo. O movimento que, inicialmente, tomava corpo nas ruas (em combate a Eduardo Cunha e os defensores da PL 5069), passou, também, a adquirir forma nos espaços virtuais: esferas entrelaçadas. As vozes das mulheres, ecoadas nas vias públicas, encarnam-se - corpo a corpo sonoro - na voz de Miklos em seu texto de abertura (...) “na semana passada, ouviu-se um brado raro de se ouvir. Agudo. Doce, mas furioso. Era a voz de milhares de mulheres juntas. Na semana passada, a voz do coletivo foi feminina. Um brado raro. O meu. O nosso. E foi o som mais bonito que eu já escutei.” Com essa hashtag, as mulheres, rompendo paradigmas, ocuparam os espaços dos jornais e blogs coordenados por vozes masculinas. E como onde há ideia, há vida, germinou-se, dessa energia, um ininterrupto canto coletivo: o blog #AgoraÉQueSãoElas - blog aninhado a Folha de S. Paulo - fundado por Manoela Miklos, Antônia Pellegrino, Alessandra Orofino e Ana Carolina Evangelista.
#AgoraÉQueSãoElas: mulheres negras, brancas, lésbicas, heterossexuais, famosas, des-famosas, escritoras profissionais e/ou reconhecidas, des-escritoras vitais e/ou desconhecidas, cabelos cacheados-lisos-curtos-longos, gordas, magras, trans...- Representatividade, diversidade. Todas, em uníssono, integrantes do blog. Mulheres.
“Um espaço para mulheres em movimento” - lema desse nosso manancial virtual - lá elas tecem vidas, sabores-dissabores, experiências cotidianas, políticas, culturas, lutas, tempos, histórias, resistências, denúncias, feminismos sob olhares, escutas, falas, cheiros e toques diversos. Juntas gestando, em suas próprias palavras, um novo normal. E qual seria esse novo normal? O básico: direitos iguais para mulheres e homens.
O desafio, para nós, enquanto navegantes dessas águas-escritas de mulheres brasileiras, é desbravar, entre o perene e o efêmero, entre os variados tons de vozes, as crônicas que, talvez sem perceberem, essas mulheres compõem a cada dia, a cada nova publicação, a cada conversa. Alma-corpo dessas pessoas, as crônicas dão forma, desregulam, desconstroem, repensam, matizam…
Vozes como as de Marielle Franco, Manuela d’Ávila, Pitty, Fernanda Torres, Leandra Leal soaram, nesse blog, entre o desnovelar de dias que se seguiram desde 27 de janeiro de 2016 (data de postagem do primeiro texto do blog, redigido pelas fundadoras) até os dias atuais. E, aqui, somam-se ao nosso arsenal cronístico de estudo (nossas vozes) e as vozes das autoras que, texto a texto, durante a história da nossa Literatura, geraram vidas, marcas e crônicas. Vozes, essas, sobrepostas em um mar de humanidade. Vozes, por vezes, silenciadas vindo à tona. Vozes de mulheres em firme marcha sobre as ruas de todo o país, dos mundos. Vozes que recuperam histórias de nossas antepassadas. Vozes que retomam nossas histórias. Vozes de ideias e ações. Das vidas para as redes e das redes para as vidas: vozes. Vozes vivas.
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“Aliás, tenho a impressão de que a grande sorte do ser humano, na sua passagem pela vida, é saber que tudo é transitório. A começar pela própria vida, a sua própria existência. (...) E a gente acaba, na vida, no mesmo ponto em que começou. Como a cobra que morde o rabo.” A imagem mitológica do ouroboros, a cobra que come o próprio rabo, ilustra o pensamento de Rachel de Queiroz em crônica datada de 1999. Percebendo a vida como uma sucessão interminável de ciclos e aprendizados infinitos, a imagem do ouroboros nos recorda, como ela afirma, que tanto a criança quanto o velho caem nos mesmos tropeços, e “a gente acaba, na vida, no mesmo ponto em que começou.” Embora o tom do texto exale alguma melancolia, a ciclicidade que marcou a vida de Rachel, sempre partindo e voltando à escrita, tornou-a um dos principais nomes da literatura brasileira. Trata-se de um exercício literário em perpétuo movimento e do qual a autora não escapava, ciclicamente retornando a ele, em suas mais variadas facetas. Iniciando, de fato, sua carreira aos 19 anos com a estreia estrondosa do romance O quinze, Rachel de Queiroz foi reconhecida como uma romancista de grande vulto, embora, muitas vezes, tenha se definido como uma jornalista. Reduzir toda sua vasta produção a sua grandiosa estreia com O quinze, que atraiu olhares de autores como Graciliano Ramos e comparações com A bagaceira, de José Américo de Almeida, seria, entretanto, reduzir sua excepcionalidade. De fato, Rachel foi muito mais que uma romancista, tendo produzido também peças de teatros, livros infantis e crônicas. A partir de 1939, por exemplo, após o lançamento de seu romance As Três Marias, a autora passou em torno de três décadas voltada para a escrita de crônicas. Em 1944 Rachel se tornaria cronista exclusiva da revista O Cruzeiro, com a qual contribuiu até a década de 70. Posteriormente reunidas em coletâneas, como A Donzela e a Moura Torta e O caçador de tatu, as crônicas de Rachel de Queiroz são repletas de uma vivacidade e simplicidade textual característica da escritora, que também retorna nelas aos temas memorialísticos e regionalistas presente em seus romances, abrindo-se, além disso, a temas universais e variados. Através da crônica, Rachel registra seus afetos e indagações, criando uma ampla galeria de personagens cotidianos, mas com uma vivência densa e profunda. Mergulhar em suas crônicas é permitir-se também adentrar em um espaço em que a autoridade e poder vem de uma mulher independente que conquistou seu espaço no meio literário. Navegar na memória da autora é entrar no espaço de uma menina prodígio que iniciou a carreira aos 19 anos e, surpreendida pelos ciclos inacabáveis da própria existência, passou a ser considerada a primeira-dama das letras. Um fenômeno literário que, felizmente, jamais se extinguiu.
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Falar de Clarice Lispector caracteriza-se como uma empreitada sempre desafiadora. Falar de Clarice é percorrer caminhos já trilhados (afinal nos debruçamos sobre uma das autoras brasileiras de maior prestígio em nossas letras), mas é também lançar-se a novos e desafiadores percursos. Se a face da romancista consagrada por obras como A hora da estrela nos faz admirar a mulher-escritora Clarice, desmascarar as faces encobertas em suas crônicas faz com que nos encantemos por ela de outras maneiras. Ao trazer Clarice, como uma das cronistas contempladas pelo nosso PIBIC, rendemos uma homenagem àquela que foi um divisor de águas na literatura de autoria feminina no Brasil. Ao perscrutarmos outros nuances de sua obra queremos saudar uma das pioneiras na escrita de crônicas no país, alguém que fez do jornal um terreno fértil e duradouro para a produção de textos literários. Falar de Clarice cronista é olhar para um autora que, mesmo sem levantar explicitamente bandeiras sobre o feminismo ou sobre a condição da mulher na sociedade, manteve tal temática presente em seu horizonte, legando-nos textos ora de teor irônico, ora reflexivo, ora crítico acerca do feminino em suas mais variadas faces cotidianas. Mulheres vítimas de um olhar inquisidor (dos outros e delas mesmas) e do qual tentavam afastar-se. Voltar-se às crônicas de Clarice, é se deparar com um gênero fluido, com textos regidos pela marcha imperiosa da LIBERDADE, afinal, como ela mesma indagava, em texto datado de 1968, não havia uma definição clara sobre a constituição do próprio gênero: “crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito?” Fazendo de sua crônica uma mescla desses e de outros conceitos, Clarice transformava seu ofício de cronista e de mulher em uma atividade da mais absoluta entrega e experimentação. Dedicando-se a temas dos mais variados, permitindo-se escrever conforme o momento solicitava, é possível ver que a autora transformou a crônica em um gênero degenerado. E, então, fascinamo-nos ainda mais. A recente edição, lançada em 2018, de seus textos cronísticos (Todas as crônicas), apresenta mais de cem textos inéditos, o que apenas reforça a importância de constantes atualizações, novas leituras e novos olhares lançados a Clarice e sua literatura. Encarnando o espírito de uma esfinge, nossa autora nos chama a decifrá-la. Ainda que tenhamos o mínimo de sucesso, já fomos devorados, engolidos e tragados por sua absoluta presença e onipotência em nossas vidas.
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Cecília Meireles: navegações iniciais
(Ilustração de Fernando Correia Dias para o livro “Diário de bordo”)
Em um dos poemas que compõem o livro Mar absoluto (1942), é possível ler os seguintes versos de Cecília Meireles: “E até sem barco navega ∕ quem para o mar foi fadada ∕ Deus te proteja, Cecília, ∕ que tudo é mar – e mais nada.” Fadada a um constante navegar, a primeira de nossas autoras aqui apresentadas, e que compõem o rol de cronistas com as quais trabalharemos nesse projeto, era, sem dúvida, uma inquieta navegadora. Consciente de que o constante trânsito (do fazer literário e da própria vida) era seu impulso mais autêntico, a poeta afirmava: “Eu sou muito mais que eu mesma... Não me basta, para guardar-me, não sirvo mais para conter-me...” Tal frase resume em alguma medida a ideia inicial que move o projeto de pesquisa aqui apresentado: evidenciar ao menos uma, das várias “Cecílias” que, incontida em uma só, tornou-se uma figura múltipla e de atuação variada.
Se a evocação primeira de seu nome nos remete à poesia, que a consagrou como uma das mais importantes referências da moderna Literatura Brasileira do século XX, uma posterior avaliação nos apresentará uma personagem também devotada à ilustração, ao jornalismo, à educação, ao folclore. Embora atualmente já consagrada nas letras brasileiras, observa-se que ainda há muito mais a se descobrir sobre a autora, num contínuo processo de renovação de sua obra que, com a publicação de escritos e pesquisas apresenta-se constantemente “outra”, diferente.
Diante disso, voltamo-nos aqui para a prosa da escritora, composta por crônicas, publicadas em jornais ao longo de mais de trinta anos, artigos, entrevistas, conferências. Prevista em mais de 20 volumes, a edição de tais textos iniciou-se em 1998, e ao menos no tocante às crônicas, proporcionou o acesso organizado a escritos até então desconhecidos do grande público. Infelizmente, com a morte do organizador (o professor Leodegário de Azevedo Filho) dessa vasta obra em prosa, o ciclo de publicação também foi interrompido, legando-nos, dos mais de 20 volumes previstos, apenas 8 livros de crônicas, divididas, tematicamente, entre crônicas de educação, crônicas de viagem e crônicas em geral.
Retomando novamente sua obra poética, lê-se em Vaga Música, livro publicado por Cecília Meireles em 1942, o poema “O Rei do Mar”, do qual transcrevemos, aqui, os versos da primeira estrofe:
Muitas velas. Muitos remos. Âncora é outro falar… Tempo que navegaremos não se pode calcular. Vimos as Plêiades. Vemos agora a Estrela Polar. Muitas velas. Muitos remos. Curta vida. Longo mar.
“Curta vida. Longo mar”. O verso sucinto, resume de forma simples a aventura fugaz a que nos lançamos diariamente ao enfrentar um mar que precisa ser navegado, ultrapassado, vencido. Nessa metáfora da própria existência, a ideia de “navegar”, que percorre todo o nosso projeto, adquire contornos importantíssimos. Afinal, o que se pretenderá aqui, a cada postagem, apresentação e análise dos textos cecilianos, bem como de todas as nossas autoras, será justamente navegar e expandir esse longo mar, atravessando o oceano que ainda separa-nos da produção cronística feminina do passado e do presente.
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Navegantes das crônicas de autoria feminina
Este blog, fruto do projeto do PIBIC, “Navegando entre jornais, blogs e mulheres”, desenvolvido na Universidade Federal de Alagoas, desponta da nossa vontade de reavivar a voz de cronistas mulheres pouco conhecidas ou reconhecidas pela escrita desse gênero . Surge do nosso desejo de conhecer e investigar as crônicas escritas por mulheres em nossos dias atuais. Eclode da ânsia de apresentar as crônicas de escritoras já consagradas pela literatura brasileira e que são, muitas vezes, deixadas de lado em detrimento dos romances e contos. Emerge da escolha por dar visibilidade ao gênero crônica que apesar de ter sido, em certas situações, marginalizado, vive e reluz em livros, blogs, jornais e, especialmente, no cotidiano de todos nós. Aflora da necessidade de espaços acadêmicos, sociais e reflexivos que afirmem e atestem: as mulheres escrevem desde séculos atrás e permanecem escrevendo, seja em livros seja em espaços virtuais. Nasce com o intuito de compartilhar com vocês, leitores, nossas descobertas acerca da produção cronística das mulheres brasileiras, desde o surgimento da crônica no Brasil até a atualidade. Brota como um lugar de escuta das vozes de vocês que acompanharão, a partir de hoje, as nossas postagens.
Somos três discentes que aceitaram o convite à navegação, à bordo não de qualquer embarcação, mas, sim, de uma nau, grandiosa, adequada para o desafio honroso que temos pela frente. Iremos marear, junto à nossa orientadora, sobre-entre-sob as águas-escritas que compõem o arsenal cronístico das nossas autoras brasileiras que, por meio de seus filtros sensíveis-literários, inalaram e inalam fragmentos mínimos - por vezes invisíveis ao olho seco, mas eternizadas na sensibilidade da crônica. Veremos exemplos de mulheres que deitadas na cama, com o computador no colo, sentadas em frente a um notebook ou andando pela cidade de táxi, conseguiram captar o cotidiano, exalando uma projeção talhada do nosso efêmero que devido ao trato cuidadoso das mãos de escritoras como Clarice Lispector, Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Eliane Brum, Martha Medeiros e das mulheres que publicam no blog feminista “Agora é que são elas” (Folha de S. Paulo), passaram a habitar o perene.
Nossa embarcação permeia entre as ondas do tempo e aporta em pontos específicos desse trajeto para desvendar os tesouros que encontramos em superfície ou nas profundezas dessas águas-escritas. O convite dessa viagem, entretanto, se estende também a você que se deparou com este texto e decidiu lê-lo; a você que o recebeu como indicação de leitura de alguém próximo; a alguém que está sempre em busca de novas descobertas; aqueles que consideram instigante a ideia dessa excursão e, por fim, aqueles que pelos acasos da vida digital tombaram com nosso blog, mesmo sem, precisamente, apresentarem afeição pelo tema. Vamos navegar sobre-entre-sob as águas-crônicas femininas?
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