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O Melhor...?
Não sei o que eu quero escrever. Já é de madrugada, eu estou aqui, com a antecipação de um ótimo dia pela frente ao amanhecer, mas não consigo dormir. Estou indigesto, com pendências, aflito. Percebi o quão aflito e reprimido eu estava quando me peguei com a lâmina de barbear encostada no braço. Eu não tinha parado com isso? Recuei com o movimento, não cortei minha pele, e as cicatrizes de anos atrás permaneceram intocadas, mas por que? Por que depois desse tempo todo sem o fazer, eu estava pronto pra me rasgar de novo, e deixar meu teclado branco, vermelho de sangue? O que está tão indigesto que atravessou meus mecanismos de segurança e só me fez agir no automático fazer o comportamento copioso de me machucar novamente?
Tudo está certo, não está? Vou voltar com a faculdade, vou me formar esse ano. Até ensaiando um discurso de formatura para minha família eu estava fazendo no banho. Eu deveria estar feliz. Por que eu ia me cortar? Por que não consigo dormir? Eu falei que ia parar de fumar, por que minha mesa tá cheia de cinzas?
O que está tão indigesto?
Eu ando tão frustrado esses dias, tô tentando jogar umas coisinhas pra me distrair, e logo tô dando alt+f4 porque não tirei prazer daquilo, scrollo o feed do youtube procurando uma groselha pra assistir, acho uma bobeira e fecho o vídeo nos primeiros 2 minutos. Por que estou tão frustrado? Por que estou correndo? Do que estou correndo? O que parece ser tão assustador assim?
Sinto que no texto eu estou adiando qualquer resposta porque me fazer essas perguntas me ajuda a pensar na resposta em si, é quase como se essas palavras fossem o epocler que estão me ajudando a processar essa frustração e fazer a digestão, minha solução platônica e paliativa para uma mente atrofiada que não consegue lidar com processos básicos. Mas de qualquer forma, progresso é progresso, e mesmo extremamente tentado, eu não me machuquei hoje e decidi pensar a respeito do que me aflige. Pontos pra mim, eu acho.
Me peguei essas últimas duas semanas tendo delírios de grandeza, são momentos onde eu sou dominado por pensamentos do quão incrível, sensacional, especial e absurdamente poderoso eu sou, me disseram na terapia que isso era bom pra autoestima, eu não sei bem como é, eu acho que nunca tive uma boa autoestima, mas parece um pouco compensatório os meus pensamentos, como se eu tivesse tentando tapar esse buraco da falta com exagero, sabe?
Meu relacionamento terminou, por motivos que eu só posso especular sobre. Quando fui devolver os livros pra minha ex namorada disse que talvez fosse a última vez que nós nos víssemos. Era importante pra mim dizer isso, talvez uma responsabilidade afetiva. Quando a Carmela morreu, eu não sabia que eram as últimas mensagens até serem. Quando dormi na casa da minha ex e trocamos carícias deitados, não sabia que era a última vez que faríamos aquilo. Pra mim dói pensar que eram as últimas, porque eu poderia ter olhado com mais atenção, tentado gravar o último momento na cabeça. Funcionaria bem como um ponto final pra minha resolução não ficar em reticências. Então como era importante pra mim, e a minha única régua moral é a minha própria, eu achei pertinente falar: “Talvez seja a última vez que nós nos vemos. Posso te dar um abraço?”. Sinto muito carinho por aquela pessoa, nem imaginei que a gente fosse terminar, na minha cabeça íamos casar logo, eu estava criando planos pra morarmos juntos. Estava recente, e eu demoro pra digerir as coisas, mas a lucidez bateu: Talvez fosse mesmo a última vez, e eu estava tentando ser realista a respeito daquilo, doeria pra mim no futuro pensar: “aquela vez no metrô lotado 18h da tarde foi a última vez e eu não fiz nada a respeito”. Mas, bem… Fui recebido com um deboche, o que me tirou do chão, sabe? Ela deu de ombros: “Você não precisa ser tão radical”, “Tá, pode ser, esse abraço”. Um abraço xoxo, dado com um braço somente, com aquele desconforto não-dito de “já chega”.
Eu não sei porque terminamos, e eu não sei porque ela me tratou assim. Eu não entendo porque ela me odeia, e não faz o menor sentido nada do que aconteceu. Na minha cabeça eu fui perfeito, eu fui maravilhoso, eu fiz tudo o que eu podia. Eu realmente acredito nisso, eu fiz TUDO que eu podia. TUDO. E nisso os delírios de grandeza talvez tenham um fundo de verdade: Eu fui amoroso, eu fui respeitoso, eu fui divertido, ponta firme. Eu fui tudo que consegui, e tentei, incessantemente, expandir meus horizontes para ser ainda mais, porque sei que meu potencial é infinito.
A frustração talvez conflite com esse meu lado recém descoberto de “autoestima”. Se eu fui perfeito, se eu não errei em nenhum ponto (e mesmo agora, brando e não tomado pela autoestima, deprimido e ansioso eu acredito que fiz tudo certo, talvez não perfeito, mas certo com certeza), eu fico fulo da vida. Se eu fiz tudo certo, por que diabos deu errado?! Eu realmente sou tão verme que mereci aquela dada de ombros e o deboche? Até nos 45 do segundo tempo eu estava pensando nela, e em como ela ia se sentir a longo prazo, eu estava dando de mão beijada a resolução, caso nós nunca mais nos víssemos, estava ali dito, era o ponto final em potencial que as pessoas as vezes precisam pra seguir em frente, e eu tentei oferecer, pensando nela, pensando no futuro, pensando na resolução e em como ela se sentiria, e nas possíveis noites que ela olhasse pro teto e lembrasse de nós como eu certamente farei.
Não sei, estou amargurado, magoado. Eu acho que merecia mais, estou frustrado. Eu investi muito de mim nesse relacionamento, não a ponto de perder um pedaço, mas quando eu me disponho a uma coisa assim, uma convivência como companheiros, eu penso no futuro, eu penso com carinho. Eu queria viver com ela, eu queria estar com ela. Nunca pensei no término, e isso me fez desabar, porque era uma ideia inconcebível, eu não namoro pra pensar em quando aquilo vai acabar, mas como vai progredir e se construir.
Onde eu errei?!
Eu sou feio? Transo mal? O dono de harém esquerdola de aplicativo que tem uma namorada e três esposas era mais interessante do que eu? Você queria ser a quarta? No fundo eu queria que a culpa fosse dela, queria poder xingar ela, dizer que ela é burra, que tem problema X, Y, Z, mas eu não consigo, isso seria fácil demais, e não resolveria nada. Seria pegar um desconforto e atribuir ao outro.
Racionalmente, saber que eu fiz o meu melhor deveria bastar, mas não basta. Meu melhor não bastou, então a conclusão lógica é que eu falhei, que sou mediocre, patético, minúsculo, burro e idiota, feio, soca fofo, baixo, doente mental, pobre, chato, inconveniente. E dói pensar nisso, me trava, me buga. Se eu sou tão incrível, por que as coisas não deram certo? Por que as pessoas vão embora?
“Ah Pedro, idas e vindas são naturais na vida de todas as pessoas”. FODA-SE MEU PARCEIRO, IDAI?! Eu quero ser incrível, eu quero ser visto, eu quero ser apreciado, eu quero confete, eu quero que olhem pra mim e me amem pelo que eu sou, e que FIQUEM. Eu odeio dizer adeus, eu odeio ter que sentir saudade, porque eu nunca sei se estou sozinho nisso, eu não sei se sentem saudade de mim, se pensam em mim, se lembram de mim com carinho, sentir saudade é solitário pra caralho.
Eu odeio essa sensação de que sentir saudade é tão... Solitário. Só eu sei o que se passa, e nunca vou ter acesso ao que o vínculo rompido pensa ou se pensa de qualquer forma em mim.
Todos os laços que tenho ou tive são lembrados com muito carinho, e acho que não tem nada mais apavorante do que pensar que o que foi incrível, intenso, marcante pra mim, tenha sido só ok, xoxo, bobo, minúsculo pro outro.
Eu quero tanto me sentir importante, e eu me sinto em muitas coisas, mas quando vem o abandono só me sobra essa saudade solitária, e sinceramente, que sentimento merda, viu?
Eu fiz o melhor que eu pude, eu sei que fiz…
Então por que o meu melhor nunca é o suficiente…?
Texto por Pedro Scarpa
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Inepto
Inepto.
Quantas vezes eu me deparei com essa palavra? Entre devaneios, fitando o espelho, num julgamento voraz, sedento e objetivamente violento. Olhando pro teto no escuro, existindo a meia luz, odiando cada centímetro do que é ser eu mesmo. Inepto, incapaz, burro, infeliz, imundo, desgraçado, desperdício de oxigênio, burro. São palavras afiadas, com intuito de machucar. São definidoras, julgadoras, furam a carne, o espírito, o amor. São rótulos, etiquetas - marcações de gado. Torram a pele, eternizam e catalogam.
São verdadeiras?
Inepto.
Incapaz.
Incapaz de quê, exatamente? Eu adoraria poder performar dentro da normalidade, mas a normalidade existe? Parei pra pensar esses tempos. O que é essa normalidade? O que, exatamente, significa ser incapaz? Incapaz de quê?! A normalidade pode ser a curva normal de Gauss, aquela que faz o arco. Nas pontas está o anormal, tanto pra trás, quanto pra frente, e a distribuição normal se concentra no centro, no padrão. Qual o objeto desta normalidade? Existe uma normalidade do que é ser um ser humano? Por que todo mundo parece saber algo que eu não sei? Existem muitas perguntas na minha mísera cabecinha maquinante, e não acho que a maioria tenha uma resposta concreta, mas cheguei a conclusão que não, não existe a dita normalidade.
Dentro das especificidades que compõe um indivíduo, fora de um dado estatístico, existem inúmeros problemas, que não podem ou não são contabilizados no que é socialmente aceitável ou não. Existe uma persona social, uma performance por assim dizer, uma faceta imediatista que porcamente caracteriza um ser ante a visão social de normalidade. E estou profundamente convencido que esta dá em sua capacidade de performar. Quem consegue atuar está na curva normal, quem consegue performar dentro da normalidade estereotipada é normal. A funcionalidade de um indivíduo está profundamente atrelada a uma condição de produtividade econômica. As pessoas se apresentam com as funções que exercem, com os hobbies que praticam, com seus gostos e desgostos. É uma vitrine, onde suas qualidades positivas são completamente exageradas e acentuadas para que a performance se sustente. Sou Pedro Scarpa, estudante de psicologia, amo gatos. Sou extremamente criativo e tenho uma capacidade inata de empatia e de administração e manejamento de relações. Sou muito inteligente e consigo facilmente tecer críticas e evocar curiosidades aleatórias sobre fatos históricos, dinâmicas e defasagens do capitalismo na vivência interpessoal. Estou atento às nuances sociais e aos atravessamentos, e isso me proporciona diretrizes objetivas para analisar, comparar e tecer críticas sobre as coisas, embasadas simplesmente em me entregar totalmente a observação do banal. Isso é uma descrição positiva, que me vende muito bem, como um ser humano excepcional. E claro, não é mentira, estou enaltecendo as minhas características positivas e me debruçando sobre isso.
Sou Pedro Scarpa, tenho transtorno de personalidade borderline, tomo 3 remédios em alta dosagem todos os dias para renovar minha sanidade e alimentar meu cérebro doente de neurotransmissores que estão defasados, tenho pavor completo de multidões e pessoas me assustam profundamente. Sou inepto socialmente, me sinto deslocado na grande maioria dos ambientes, e me degladio constantemente com as contradições que não consigo desver depois de testemunhar pela primeira vez, no cotidiano. Não consigo exercer funções básicas como auto cuidado, higiene pessoal, ter foco para exercer tarefas simples, dormir normalmente. Tenho vícios como cafeína e nicotina, das quais não consigo viver sem. Tenho problemas sexuais de libido e de comparação com o estereótipo de masculinidade inatingível que me atravessa. Sou inseguro quanto a minha função nos espaços que ocupo, e por vezes questiono minha significância nas coisas. Vivo com um medo debilitante do amanhã, tanto medo que me sinto consumido e dragado pelos comportamentos copiosos que me distraem do que poderia ser a existência, preso no banal, no conhecido, no vício por vídeo games e em me isolar fisicamente do mundo exterior. Sou gordo e não consigo manter uma rotina sadia nem realizar coisas minúsculas que poderiam ajudar nos meus problemas, sou completamente estúpido para lidar com burocracias, documentos, e a prontidão com compromissos, datas e objetivos concretos de progresso. Sou avoado, me distraio até mesmo das coisas que eu posso sentir ou não, ignoro deliberadamente as coisas que martelam minha atenção em prol da troca barata entre me distrair ou sofrer, o que prolonga um sofrimento e um mal estar crônicos na condição de simplesmente existir. Sou esquisito, gordo, baixo e completamente desviado do estereótipo de beleza masculina que gostaria de me encaixar. Estou há oito anos tentando me formar na universidade e não consigo, moro com uma avó idosa e morro de medo de não conseguir me sustentar quando ela morrer. Protagonizei uma tentativa de suicídio e sinto que burlei alguma coisa dentro do meu bem estar e dei um passo que não deveria ter dado, e que agora não tem como voltar atrás, por que mesmo que eu não tenha intensão nenhuma de me matar agora, testemunhar como estive perto, e como sobrevivi por pura sorte, coloca a ideia no campo das possibilidades sempre, mesmo que intrusivamente.
Essa é uma outra apresentação, que engloba diversos problemas relacionados à minha existência. Dura, sim, mas não menos real. É a fonte do ódio e do desprazer de ser eu, é a gênese da inaptidão que sinto de que não consigo performar dentro da normalidade, é o cerne do meu adoecer e do meu mártir para existir. São todas as características que me tornam…
Inepto.
Inepto? Inepto de certas coisas sim, mas se pensar bem, ser borderline, sofrer, passar por certas introspecções e coisas específicas da minha existência, me dão a capacidade de aconselhamento, carinho, disposição e discernimento para diversos tópicos que são alienígenas para muitas pessoas que estão no espectro da normalidade. Eu construí um vínculo incrível com pessoas, sou extremamente bem resolvido e vivo relações sadias e proveitosas com as pessoas. Tenho plena certeza que acrescento e protagonizo diversas coisas boas na vida das pessoas que me cercam. Eu conquistei cedo, e consistentemente, coisas que gente velha jamais sonhou em ter: Estabilidade relacional, com família, amigos, relacionamento amoroso. Tenho uma inteligência emocional que de tanto martelar nos problemas, me abriram alas pra olhar coisas genuinamente minhas, e me entender num aspecto melhor e maior.
Eu sou inepto?
Talvez num quesito material. Realmente, não tenho um emprego, não tenho estabilidade financeira, não consigo desempenhar coisas extremamente básicas para manter minha existência, me escondo atrás de medos que impedem o meu progresso. Sou inepto sim. Mas não dá pra usar desse rótulo simplista para caracterizar minha existência inteira. Sou completamente apto para gerenciar uma conversa saudável e expor meus sentimentos numa comunicação não-violenta. Sou completamente apto para conversar, ouvir um desabafo e colocar todo o meu ser naquele contato. Sou completamente apto para colher os frutos das relações que construí.
Simplesmente acredito que minha inabilidade está num outro tópico, que eu poderia ser tão normal como qualquer pessoa, mas que estava sendo “normal” num outro aspecto da vida, não menos importante que a praticidade das condições de existência material. Somos mente, espírito, vontades e desejos também. Existe essa voracidade incontrolável do nosso eu sentimental, que no meu caso está muito bem domada e produtiva.
Inepto… Não.
Talvez defasado, com certeza precisando progredir em outras áreas. Mas nunca estático, nunca parado. Sempre tentando ser uma versão melhor de mim mesmo. Nunca parado no tempo, sempre produzindo coisas interessantes no campo vivencial. Eu tenho coisas fantásticas, que são resultado direto da pessoa que eu sou e das capacidades e qualidades que eu tenho, e tenho habilidades e comportamentos copiosos também por conta disso. Tem gente que tem uma carreira de sucesso, ganha rios de dinheiro e são uns trogloditas não empáticos para conversa, socialmente… Ineptos.
Pedro Scarpa, o ser humano, é só um ser humano. Com defeitos, sim. E qualidades. Sempre tem um ponto a ser trabalhado, nunca vai estar bom, mas também nessa lógica da eficácia, é bom lembrar que o ser humano por baixo da máscara de utilidade, está produzindo coisas significativas também. Claro que preciso me formar, claro que preciso melhorar meus hábitos, trabalhar, ter estabilidade material. Mas de forma alguma eu sou completamente inepto… Sou só, ahn… Meio tonto?
Minha grande questão acredito que sempre vá ser conciliar estas facetas de inabilidade + profunda capacidade. Mas eu estou atento pra isso, e não acredito mais que eu seja… Inepto. Essa marcação de gado, queimada e marcada na carne, o rótulo estigmatizante não cabe mais. Atingi progressos e pontos que outras pessoas não atingiram, e estou atrasado em coisas que gente da minha idade consegue performar bem. E isso não deve invalidar minha existência. Não mais…
Arte por: Qinni Texto por Pedro Scarpa.
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Como é amar um Psicopata?
Me fizeram essa pergunta na terapia, e eu deveria discorrer pra tentar respondê-la. Mas posso começar destrinchando a própria pergunta: Como é amar um psicopata? A primeira coisa que vem à tona é o tempo verbal presente: a pergunta em questão quer saber como é ainda amar um psicopata? Eu ainda o amo? É isso que a pergunta implica? Ou foi um erro de comunicação, e deveria ser “como foi amar um psicopata”? E também, o que a gente tá colocando aqui como amor?
Posso falar do amor mais num sentido geral, não romantizado. Freud tem uma frase que eu acho incrível sobre isso, quando perguntam pra ele o que seria um ser humano saudável. “O indivíduo sadio é capaz de duas coisas: Amar e trabalhar”. Trabalhar seria no sentido de colocar na materialidade coisas, externar, fazer. É o movimento da carne, do corpo, não necessariamente um trabalho de 8h num escritório, no sentido mais genérico da palavra, mas trabalho é produzir, criar, se mexer. Amar seria a capacidade de direcionar pulsões afetivas pras coisas, seria um movimento interno. Agora sem citar nenhum pensador famoso, pra mim amar seria a capacidade do ser humano de direcionar seus afetos em algo que ele admira, aprecia, reconhece, valida. Para mim, Pedro Scarpa, o amor é um sentimento intrinsecamente positivo, mas como diria o Padre Marcelo Rossi naquele livro, Agape, existem vários tipos de amor segundo a perspectiva cristã, né? Agape, eros, philia e storge.
Acho meio balela essa conceituação dos quatro amores, existe inatismo no amor? Se existe, por que há mães que espancam bebês e os deixam em sacolas plásticas? Existe um amor sexual como eros? Como as pessoas assexuais entram nisso? Amor incondicional?! Eu sou o que? O iluminado? Impossível, inviável, idealista demais. Pra mim, amor é simples, ele é bom e bonito, sincero e simples. Amar alguém é estar em sintonia, é ter um interesse em comum, é escolher caminhar junto, independente de que posição você ocupa na caminhada (amante, amigo, familiar, cachorro, gato, etc). Amor é o sentimento de que a existência e ações daquela pessoa agregam positivamente na sua vida. Pra mim, amor é uma construção: Você constrói algo com intencionalidade de amar. Amor é uma decisão, a par de uma construção, você decide que quer amar, que vale a pena amar, e juntos vocês constroem algo de vocês, um amor único e particular, que não cabe em nenhuma definição generalista. Não dá pra falar em amor romântico de uma forma geral quando me percebi praticando e sentindo o amor de diferentes formas nos meus relacionamentos, não dá pra falar de amor de amizade quando cada amigo meu me promove dinâmicas e sentimentos diferentes. O que une essas experiências diversas é a disposição de ambas as partes de deixar rolar, e estar abertos à construção de algo único e singular. Amar, essencialmente, é uma escolha.
Em contrapartida eu consigo imaginar o ódio como um oposto disso, é uma aversão a uma dinâmica, estilo de vida, escolhas. Mas não acredito que o ódio seja como o amor, por outro lado, ele é extremamente mais fácil. É um movimento de recusa, de desprezo, uma reação defensiva ante a algo que nos fere metafórica ou fisicamente, a ameaças reais ou irreais. Ódio pode ser generalizado: Odeio o conceito de gente rica, odeio o capitalismo, odeio a burguesia, odeio a destruição climática do planeta. Todos esses são ódios genuínos e generalizados, que não me provocam qualquer dúvida sobre sua veracidade. O ódio é mais simples nesse sentido, porque ele afasta e excluí de nós coisas que não gostamos, mas o amor é mais singular e custoso pois ele faz o movimento de trazer para dentro, de se permitir permear por algo, de escolher deliberadamente que algo adentre você, que se assimile com sua experiência de ser
Quando um objeto de amor causa um movimento súbito com a intencionalidade de te ferir, ele não está num local neutro como o exterior, ele está dentro de você, sem proteções e sem freios. Dilacera a carne e fura as partes moles, é um dano avassalador, e então surge um outro sentimento que não temos uma definição correta, uma palavra específica que expresse o que eu estou exatamente querendo dizer, mas vamos chamar ele de “ódio focado”. É como um sistema imunológico tentando expurgar aquele objeto de amor que está internalizado, e o expulsar o mais longe que der. É visceral, é muito mais violento que o ódio generalizado, pois é como focar a luz do sol com uma lupa. É um movimento de reformulação do mundo interno podando todos os ramos espinhentos que cresceram através da agressão. É um ódio que divide e separa o que é seu e o que é do outro, e o manda pra casa do caralho.
Não acredito que o ódio e o amor são farinha do mesmo saco como “paixões”, mas mais no sentido de que o amor, bobo e sincero é um rebaixador de defesas que potencializa a reação de ódio quando este se torna uma porta pra outra pessoa te espancar internamente. Amor é um potencializador do “ódio focado”.
Agora com minha definição de amor fora do caminho, vamos pensar no psicopata. Aliás, talvez seja um chiste meu, mas o rótulo de “psicopata” veio da minha própria terapeuta ante a absoluta horripilância que meu ex namorado apresentou em diversas ocasiões, e como eu não sou mentiroso, na última sessão eu trouxe provas pra ela que a deixaram de queixo caído com os absurdos que ele fazia. Então daqui em diante, não usarei o nome dele, porque ele não merece ser nomeado, mas sim o chamarei carinhosamente de Psicopata, já que essa é sua definição clínica carinhosamente dada por um profissional (risos).
Claro que eu não sou um santo também, sou um ser humano, estou fadado a ter falhas e defeitos, a cagar no pau eventualmente. Mas pra mim não há indiferença ao machucar outrem, todos os dias eu tento ser uma pessoa melhor pois nunca fui averso a mudanças (pelo menos as que vem de dentro, hábitos a gente discute outra hora, porque aí é outro problema). Digamos que na conceitualização do Freud sobre ser saudável: Amar e trabalhar, eu tiro de letra a parte de amar. Faço isso com consciência e compaixão, permito que os outros me permeiem pois é uma sensação indescritivelmente boa se sentir com vínculos.
Enfim, o Psicopata tinha uma tendência exclusiva de se render ao gozo imediato, o amor não era uma prioridade em sua vida, mas sim a satisfação do gozo, a busca de prazeres fugazes e da carne. Aliás, nada contra apreciar prazeres da carne tá? Não sou moralista cristão, várias pessoas curtem se empanturrar de comida gostosa, fumar um beck ou transar, e eu estou incluso nisso. Mas eu acredito piamente que haja algo extremamente errado quando as pessoas se tornam um veículo para a obtenção de prazer objetal. É como uma inversão de valores, sabe? Você constrói um vínculo com alguém e é daora de compartilhar o prazer sexual ali. Fica problemático quando o prazer sexual é seu único objetivo e a pessoa se torna o objeto para alcançar isso, saca? Esse era o caso do Psicopata. No nosso relacionamento eu valorizava imensamente a pessoa e queria que ela adentrasse meu mundinho, mas do lado dele, ele valorizava imensamente o meu corpo e os serviços sexuais que eu lhe fornecia, e me ter ali era uma consequência disso. Seu objeto de amor era o gozo, sua forma de o obter era meu corpo, e para isso ele construiu um mecanismo de controle sobre esse gozo a partir da manipulação: Eu era coagido a transar com ele, era forçado através de repressões não ditas, passivo agressividade, love bombing.
Bem, eu demorei pra entender isso porque quando se é um homem, o machismo estrutural tem a regra não-dita de que temos de aceitar toda e qualquer interação sexual em prol da “virilidade”. Casos de abusos infantis de meninos feitos por mulheres adultas geralmente tem comentários maldosos como “queria que fosse eu”, “comigo isso nunca aconteceu”. Eu demorei pra aceitar por diversos fatores, e talvez também de como o Psicopata construiu o teatro em volta disso, mas essencialmente, podemos dizer que eu fui estuprado. Fui forçado a manter relações sexuais sem meu consentimento ou prazer, apenas para evitar toda a carga de punição que viria dele. Me senti sujo e usado, e chorei no banheiro diversas vezes enquanto ele dormia tranquilo, pois me sentia abusado.
Para além de me estuprar, o Psicopata mantinha controle de todos os meus comportamentos perto dele usando do mecanismo de “love bombing”. Basicamente love bombing se resume em um tipo de comportamento narcisista onde a pessoa realiza muitos “feitos de amor” o tempo todo, presente, levar pra comer fora, carta, surpresa, etc. Dessa forma a pessoa que recebe essas coisas fica com uma “dívida afetiva”, quase como um empréstimo não consentido, posteriormente a pessoa que pratica o love bombing o cobra dessas “fichas de amor” pra ter suas demandas atendidas. “Eu te levei pra comer fora, você não vai me comer?!”. Exemplo básico porque o Psicopata usava muito o love bombing pra consistentemente me fazer ceder ao sexo, mesmo não querendo.
Todos os meus comportamentos eram milimetricamente calculados perto dele para não despertar sua ira, visto que ele não hesitava em usar minha ansiedade social contra mim, gritando comigo em público, jogando coisas no chão, e dando chilique pra todo mundo ver e depois saindo andando sem mim, sendo que minhas coisas estavam trancadas no carro dele e eu teria de correr atrás dele pra pelo menos pegar minhas coisas. Essencialmente uma relação de controle absoluto de um para com o outro.
Basicamente não sei definir o que me fez ficar com ele por tanto tempo, mas eu entendo o relacionamento abusivo como uma coisa que entra pela abertura que o amor proporciona, e começa a ocupar espaços que não lhe pertencem, ele diminui você, e de repente você se vê habitando seu corpo, mas tem tanto da outra pessoa que ela forçou pra entrar, que agora você é dependente, você desaprendeu certas coisas porque elas deram espaço pra os comportamentos de lidar com abuso, você se esquece de diversas coisas importantes porque todas as suas faculdades mentais tão direcionadas a andar no campo minado que seu “parceiro” colocou na sua vida.
Eu amei sim o Psicopata, permiti afinal, que ele entrasse na minha vida pela janelinha. Quis construir algo com ele, mas afinal, nossa relação se tornou hierárquica, eu construía em dobro, com as ordens dele as minhas costas, eu me desgastava em dobro pra acatar. Ele adentrou pelas minhas feridas e me consumiu, e se alimentou de mim como um parasita, um verme. E quando eu finalmente criei forças pra chutá-lo pra fora, eu o odiei com cada centímetro do meu corpo, mente e espírito.
Eu o odeio, eu não o amo, meu ódio focado, a lupa resumindo o sol num micro ponto de calor, eu desejo que sua existência acabe, que ele morra afogado em um mar de desespero que ele mesmo construiu, que viva uma vida patética e sem sentido, que sinta na carne a miséria que ele causa aos outros, afinal, antes de mim teve três pessoas, e agora meu ex amigo que me traiu com ele é o próximo a ser drenado, que seja também, otário do caralho, panaca.
Então não, terapeuta, você não vai me pegar com o jogo de palavras, usando o presente “como é amar um psicopata?”. Não o amo, amar eu amo meus amigos, a Giulia, meu gato (principalmente). Pra esse verme eu só tenho desprezo, o movimento de empurrar pra longe, a aversão extrema, e o desejo na carne de NUNCA MAIS passar por algo assim. O que esse maluco me tirou não tem como ser restituído, mas para além disso, eu construo coisas novas (ou pelo menos tento). Mas me frustra que mesmo no ódio ele ocupe tanto espaço na minha vida, mas mais no sentido de que, o espaço que ele ocupou foi tão grande que pra preencher de novo com coisas minhas tá complicado, eu aprendi a encurtar e encolher a importância do que era meu pra acomodar as dele, e agora tá um vazio que eu fico na ânsia de que seja preenchido, como uma marca, um terreno vazio arregaçado por um tornado onde agora botei umas coisinhas simples e que eu gosto, que não precisavam ser tão grandes como aquela casa, mas ainda tem tanto espaço…
Eu o odeio, com todo o meu ser, e eu quero deixar de amar odiá-lo, pois nem este espaço ele merece na minha vida. Sua existência merece a insignificância, seu lugar é no esquecimento, e eu imagino que esse deva ser o verdadeiro terror pra um narcisista: Saber que ele não é nada.
Pois eu reforço, sr Psicopata: Logo você vai ser um nada, uma inconveniência patética e miserável que eu passei, nem o espaço de ser lembrado você vai ter na minha vida, e esse é meu objetivo final para com você. Seu lugar é longe e esquecido, porque pra mim você morreu.
Arte por: Shinichi Sakamoto Texto por Pedro Scarpa
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Renascimento
Olá página em branco, faz mó cota que não olho pra você. Mas sendo sincero, não é uma página em branco porque eu uso modo escuro em todas as coisas (essa foi a melhor invenção dos últimos tempos, e se você discorda não podemos ser amigos). Como eu deveria começar isso? Sinceramente acho que escrever deveria voltar a ser um hábito. Esculachar meu teclado com marteladas que organizam minha bagunça interna sempre me fez bem, então decidi vir pra cá, martelar um pouco e ver aonde eu chego, sem roteiro, no flow, do jeito que eu mais sei fazer as coisas, numa boa.
Pra ser sincero, eu nunca estive tão bem na minha vida, acredita? Se você leu minhas groselhas ao longo do tempo pode destacar o padrão claro de maldade, desgraça e tristeza nos meus textos, é quase como um teste de associação livre do Jung onde abri as comportas do meu inconsciente e deixei jorrar, e como uma pessoa reprimida e mentalmente doente o que jorrou não eram flores. Mas ultimamente eu tenho vivido uma paz que nunca me foi de direito: Venho de uma origem hostil e pouco afetuosa, minha mãe me deu muito problema e trauma quando era criança, vivia em constante medo da rejeição e da fúria implacável dela. Mais adolescente o filtro social de estar longe de um padrão, e cercado daqueles olhares igualmente confusos de outros adolescentes, tentando achar também seu lugar no mundo, eu fui o escanteio, a chacota, o deboche, o esculacho. Minha vivência de adolescente foi constantemente alternando entre minha crescente rejeição social e os conflitos que ter uma mãe viciada em crack pesando 35kg causavam na minha cabeça explodindo com hormônios e caos. Adulto estive a mercê do grande monstro que era a cicatriz da minha infância que se mostrou um tumor que deixou uma marca eterna no meu ser: Uma doença mental, resultante de tanto desamparo e instabilidade, e passei uma cota colhendo a árduas penas meus cacos por aí pra tentar juntar numa forma coesa; algo que fosse tangível, meu, ao mesmo tempo que me acanhava com as relações exteriores, completamente aterrorizado com a rejeição alheia, passivo, manso, estúpido. De tanto tomar “não” na vida para os outros eu virei um eterno “sim”, na esperança de que isso me ocasionasse alguns sims também. Mas balela, tem gente no mundo que vê os outros em fragilidade e só quer tirar ganho próprio. A maioria das pessoas não é altruísta, acontece, camarão que dorme a onda leva, né? Se pá eu que sou trouxa mesmo, mas fazer o que, sou eu, e esse é um dos cacos que eu recolhi que percebi que realmente eram meus: Sou uma pessoa profundamente gentil e caridosa, um legítimo TROUXA, mas faz parte de mim.
Minha vida sempre foi uma bagunça constante, sempre tinha bucha pra resolver, quando não era mãe fumando crack era o bullying, quando não era o bullying era um monte de filho da puta se aproveitando de mim, quando não era os malditos, era o parasita do meu ex-namorado com tendências sociopatas. Mas mano, o pai é liso, o pai é perseverante, e sinceramente, pra todo mundo que tentou me passar a perna? Eu sempre fui incrível, eu sempre fui fora da curva, eu sempre fui admirado, e não importa o quanto pisam em mim, sempre tem gente que me encontra e é profundamente tocada pela minha existência. Eu sou um ser humano especial, e a gentileza, a caridade, o carinho e o meu jeito TROUXA de ser sempre me trouxeram como fruto relações genuínas e coisas boas, e é por isso que eu nunca desisti de ser assim, por mais que vocês vagabundos tenham tentado me fazer acreditar do contrário, como um bom comunista confronto esses achismos que vocês cochicharam na minha orelha com fatos, com a materialidade: Eu tenho, e sempre tive pessoas incríveis comigo. Coisas inesperadamente boas sempre aconteceram comigo, tudo de alguma forma SEMPRE dá certo no final das contas. Essa ratazanisse é passageira, coisa de gente frustrada e sem rumo, mas o pai sempre colheu coisas boas por plantar coisas boas, e a materialidade não mente. Todo mundo que me conhece e conhece a minha vida fica admirado: “Nossa, eu nunca vi tanta gente legal junta, Pedro. Como você consegue? Como tem tanta gente bacana perto de você?”. Eu não sei responder, meu segredo é que eu sempre fui autêntico, eu sempre tentei ser fiel a essa inocência imbecil de criança desamparada, e embora essa ferida aberta atraia moscas e parasitas, quem realmente quer agregar acaba ficando.
O ponto é: Eu nunca experienciei uma paz tão grande, por um período tão longo na minha vida. Ano passado eu tentei me matar, em janeiro, e por meses a fio eu passei traumatizado pela experiência, achando que não dava pra voltar disso. Eu me apavorei com a ideia de que eu tinha feito o último passo, eu tinha abandonado toda e qualquer alternativa pra viver, qualquer coisa que pudesse me manter aqui não era equiparável a minha vontade de me libertar do sofrimento. Por meses eu trouxe o medo que eu sentia pra minha terapeuta, de que eu precisava achar algo grande que me fizesse querer viver de novo: eu tinha sobrevivido por acidente, não estava nos meus planos, mas eu já tinha feito a escolha mental de largar mão de tudo. Como tomar a decisão de viver de novo quando você já renunciou a todas as coisas? Essa questão martelou demais na minha cabeça por um tempo, mas como eu não encontrava respostas eu fui vivendo, de soquinho, de pouquinho, de migalha em migalha. Conversa com alguém ali, conversa aqui, faz uma comidinha, se arrisca a tomar um banho, ir cagar, escovar os dentes – coisas que eram completamente impossíveis e árduas dado o estado de depressão e choque que eu estava pós suicídio. Aos poucos parei de pensar na questão e só continuei vivendo. Mas mano... Essa era a resposta!
Qual a resposta pra querer viver? Pra mim não tinha resposta filosófica, moral, justificável no campo das ideias. Não deveria ter nem uma pergunta pra começo de conversa, quando eu voltei a viver não precisou de pergunta, eu só vivi, e pra mim isso bastou. Esse ano foi o melhor ano da minha vida, porque a decisão de largar mão de tudo e me matar foi uma faca de dois gumes, e o que eu achei que seria um trauma permanente e irreversível que foi largar mão de tudo, na verdade só apagou a lousa pra eu escrever de novo, com o largar mão de tudo eu também larguei mão do que doía tanto, larguei mão dos vagabundos miseráveis que tavam me parasitando, larguei mão de ser trouxão, larguei mão das minhas dores. Eu fui como um recém-nascido aprendendo de novo a andar, aprendendo de novo a amar, aprendendo de novo a ser gente, a poder ter vontade, a poder chorar. Eu tateei como uma criança, mas eu já tinha o repertório de um adulto, e sem as bigornas que me acorrentavam no chão, que eram minhas dores, eu voei.
Eu conheci a Giulia, e tô vivendo o amor mais leve, pacífico e sadio da minha vida. Estar com ela só me ACRESCENTA coisas. Ela não me dá nenhuma preocupação, desgosto, fica de joguinho, palhaçada, é só tranquilidade, PAZ. Com meus amigos, agora com o repertório e o faro pra vagabundo filho da puta, eu trouxe gente pra perto que realmente é ponta firme, pude chorar, rir, me esbaldar com eles, e fui recebido em todos os meus estados de espírito, físicos e existenciais. Fui aceito, novamente com minha ingenuidade de criança, mas agora não uma criança traumatizada que ouve a mãe gritar ou fica marcado com a figura esquelética que pesa 35kg, mas aquela criança curiosa que colecionava revistas da NatGeo e SuperInteressante e gostava de ver documentário de vida marinha, tinha livro de anatomia de dinossauro e era super curiosa e doce. Sem os meus pesos – causados pelos outros – eu pude me encontrar melhor dentro de mim, distinguir que essa ingenuidade boba é um traço genuinamente meu, e abraçar isso com carinho, foi poder conhecer meus valores, minhas limitações, meus problemas e, também, minhas qualidades.
Meu maior ganho nesse tempo foi poder ter um encontro comigo mesmo, sentar com o Pedro criança e fazer carinho na cabeça dele, abraçar ele e dizer que ele é válido e merece existir. Foi fazer as pazes com meus trejeitos e meus gostos, foi deixar claro pro mundo exterior onde eram meus limites, até onde as coisas poderiam ir até me invadir de um jeito que eu não iria gostar – meus limites. Foi poder abraçar minha irmã e tentar ser pra ela uma figura carinhosa, dizer que ela pode contar comigo, que eu amo ela e vou estar sempre aqui pra ela – coisas que eu queria ter ouvido, mas agora eu posso PROPORCIONAR.
Eu queria uma resposta, um motivo pra continuar vivendo, essa era a pergunta, e me causava angústia buscar uma resposta, mas essa resposta NUNCA EXISTIU, nunca existiu porque não deveria nem ter existido uma pergunta. As cracas no casco do Titanic não perguntam por que elas vivem, elas só... Vivem. E eu acho que eu finalmente tive maturidade pra entender isso.
O sentido da vida é... Viver.
E quando acaba, acaba. Acaba o sentido. A vida só tem sentido em si mesma, não é pra ser especulada, é pra ser vivida e pronto.
E eu estou experienciando a paz, a calmaria pós tempestade, a primavera pós inverno. Se você olhar pra qualquer coisa no mundo verá que elas giram em ciclos, as estações do ano, a vida e a morte, infância, vida adulta, velhice e morte. Períodos de decaimento, de decomposição, de baixa, antecedem o renascimento, os vermes que prosperam das carcaças, as plantas e musgos maneiros que crescem do seu corpo decomposto. A vida é feita em ciclos, e por sorte o meu não se fechou e eu pude renascer de novo.
Mas fazer o quê, o pai sempre foi liso, e a sorte me sorriu de novo. Bora que bora que tem chão ainda, vejo vocês em breve.
Ainda temos muito o que viver.
Arte de One Piece porquê eu amo essa cena, fodase.
Por Pedro Scarpa
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Interlúdio - Demasiadamente Humano
Faz um ano que eu tentei me matar. Caralho, aconteceu tanta coisa nesse ano, e pensar que esse comecinho de janeiro, eu não quis encarar 2022, desisti da vida, tentei ir embora – de uma forma sem volta. Ensaboei meu box do banheiro, pendurei uma forca no box e me soltei, com os pés no azulejo ensaboado, pra não ficar de pé. Lembro que quando a corda me apertou o pescoço, e eu tava quase desmaiando, a corda arrebentou, e eu me estatelei no chão. Meu impulso primeiro foi o de tirar aquela coisa do meu pescoço, e respirar fundo, desesperadamente procurando o ar pra me encher os pulmões de novo. Não pensei em nada específico enquanto me enforcava, mas quando me estatelei no chão, de bunda, como uma criança que cai no chuveiro, eu comecei a chorar. Pensar nisso ainda me causa calafrios na espinha. É um assunto que ainda me é difícil de falar na terapia, as consequências disso me causaram uma fobia social imensa, eu tinha pavor de sair de casa, de ver gente, de me relacionar. Faltei na faculdade, me acabei numa bola de neve: Precisava me formar, mas a fobia social, as cicatrizes, o que eu tentei adiar pra resolver não me deixava focar a atenção em qualquer outra coisa que não esse elefante na sala: Por que eu quis morrer? Por que eu larguei mão de tudo? Por que eu desisti? Pensar nessa situação que está fazendo aniversário, para além do trauma e do terror que foi a situação em si, talvez ela tenha sido até simbólica, sabe? Meu primeiro impulso ao me estatelar no chão foi arrancar aquela merda do meu pescoço e respirar fundo, deixar o ar me inundar, foi desesperadamente buscar a vida. Depois veio o choro, podia ser de choque, de terror, ou de arrependimento. Ou só era um choro, um choro que tava entalado, e pediu uma situação extrema pra sair, não sei bem o que era, só sei que eu chorei, como um bebê que saí do ventre. Eu gritei, deitei em posição fetal, e chorei. Desde então eu, Pedro Scarpa, decidi que eu viveria. Tive uma segunda chance, não por intenção própria, mas talvez o acaso me deixou tentar de novo. Pra quem não sabe, tenho me degladiado com minha saúde mental desde os primórdios da minha adolescência: Por anos a fio tenho sofrido com uma depressão desgraçada, uma anedonia terrível que me impede de levantar da cama, de existir propriamente. Mais recentemente me veio uma luz na vida, um novo diagnóstico: Tenho uma doença crônica e incurável, um transtorno de personalidade limítrofe (ou borderline, como é popularmente conhecido).O transtorno de borderline é uma doença hereditária, com prevalência maior em pessoas de cromossomo XX, tinha cerca de 25-30% de chance de eu herdar esse gene. A par da questão genética tem uma questão ambiental que faz com que a condição surja. No meu caso, suspeito que herdei o gene de minha mãe, que também se degladiou um saúde mental a vida toda, e quase se perdeu no meio das drogas, sofrendo muito, mas – ironicamente – ganhou uma nova chance, assim como eu. Não vou romantizar nada, viver com uma doença mental não tem nada de positivo. Não tem uma falsa positividade que eu possa colocar aqui pra vocês, dizer que tenho algum super poder porque sou doente. Claro que viver sempre no limite das minhas emoções, ter chorado demais, sofrido de maneira desumana e ter que tomar remédios pesados pra andar dentro da normalidade me deu uma simpatia e humildade tremendas, uma capacidade de empatia muito acima da média. Mas no geral, isso é mérito MEU, não tem nada que a doença tenha me acrescentado, ela me retira coisas, e é minha força de vontade e imenso esforço que me dá energia pra tirar dessa negatividade toda alguma coisa de positivo. Não tem glamour em ser alguém doente, não tem charme. Vocês podem ter ouvido por aí que pessoas borderline são magnéticas, interessantes (modéstia a parte, somos mesmo), mas isso é só uma tentativa desesperada de encontrar significado, de manter as pessoas por perto, de querer companhia, porque é uma existência extremamente solitária. Minha vida inteira eu me considerei indigno de preocupação, de carinho, de amor, de preocupação. Uma existência ínfima, patética, abaixo da média. E daí que eu me esforcei a VIDA INTEIRA pra ser um ser humano incrível, eu faço coisas sensacionais, eu sou extremamente criativo, eu tenho inúmeros talentos, eu cozinho bem, eu sou inteligente pra caralho, falo bem, sou cativante. Tudo isso foi um esforço imenso de alguém que no cerne sente que sua existência é indigna e imunda.Por isso acho que muita gente recebeu com surpresa a notícia do meu (quase) suicídio no ano passado. Minha imagem social caiu por terra, meu desespero incalculável deixou de ser uma coisa só minha, e virou um pedido de socorro público, eu clamei por vida, assim como quando me estatelei no chão e respirei pela primeira vez no box do banheiro. Eu berrei aos quatro ventos que eu queria viver, e pra VIVER eu precisava de apoio, estava sem condições de fazer algo por mim mesmo. A vida toda eu fiz mais do que eu conseguia, me esforcei para além de onde conseguia, fiz sempre mais do que podia, me doei mais do que tinha pra fornecer, foi uma existência para além dos limites, mas me veio a tona de que, apesar de em 25 anos eu ter vivido fazendo surgirem diamantes das pedras, dessa vez eu precisava que mundo me ajudasse um pouco, precisava de apoios pra me erguer. Eu perdi gente vagabunda que me abandonou nos piores momentos, gente que recebeu o meu melhor e cuspiu na minha cara, e recebi um respaldo péssimo do mundo que me cercava. “Você me deu muitas coisas, mas agora que precisa de mim, eu vou pular fora, vai tomar no cu, seu merda”. Mas apesar do descaso e das cuspidas na minha cara, teve gente que me cercou e me protegeu, do mundo, das pessoas que eram más comigo, e de mim mesmo. Teve gente que INDEPENDENTEMENTE DO QUANTO EU PRECISEI, me afirmou o quanto eu era querido, precioso, e merecia todo aquele carinho. Me afirmou que eu não era um merda, não era um lixo de pessoa, não era um verme imundo, que era um SER HUMANO DIGNO, QUE MERECIA AQUELE AMOR.FAZ UM ANO QUE EU DECIDI VIVERE o que decidir viver me trouxe?! Cara, eu falo pra vocês. Eu redescobri relações que tavam mornas e distantes, reencontrei com meu amigo querido Arthur Barilli, lembrei que Gabriela Porto e Adriano Moreno estavam aqui sempre comigo, SEMPRE, quando eles vieram me socorrer, quando o Neno me trouxe em casa, podre de bêbado e destruído, e me disse (achando que eu não ia lembrar) que me amava. Vieram me ver, cuidar de mim, me visitar embora meu quarto de doente parecesse um chiqueiro. Conheci e me aproximei do meu querido Akira Akiyama, uma das melhores pessoas que já tive o prazer de estar junto. Me apaixonei por uma pessoa extremamente querida, carinhosa, companheira chamada Giulia Flora, que ironicamente é uma florzinha na minha varanda, que me abraçou e cuidou de mim, sempre, que me olhou nos olhos e disse que eu era digno de todo aquele amor, que queria estar comigo nos melhores e nos piores momentos da minha vida. Aos meus amigos Denys Kiraly, Gabriel Teixeira, que me lembraram que rir afasta os males, me inundando de diversão e conversas diárias. Meus amigos border que conheci quando busquei um grupo de apoio, minha família que me deu todo o apoio que eu precisei. Minha avó, que nunca desistiu de mim, me percebeu, me abraçou e disse que faria o que precisasse por mim. Eu gritei por vida, e uma parcela incrivelmente responsiva da minha realidade me respondeu, e me inundou de amor, me inundou de vida. Nesse ano eu fui passear, eu viajei, eu amei, eu chorei, eu quebrei a cara e reprovei na faculdade, eu sofri, eu ri, eu tive fantasias de suicídio de novo, e tive muita vontade de viver. Tô firme na terapia, tenho relações sólidas, tenho uma gatinha carinhosa que deitou no meu colo todas as vezes que me viu chorando. Tenho gente incrível comigo. Eu gritei por vida e eu ganhei vida. As coisas não estão fáceis, nunca estiveram. De novo estou fazendo um esforço absurdo, para além do que eu consigo. Eu me arrastei com unhas de um poço fundo e escuro, eu tô todo fodido, minha vida foi uma merda, minhas relações foram uma merda. Mas meu amigo, o pai tá vivo, e o pai tá fazendo tudo direitinho.Como diria o Belchior, Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro. E eu queria agradecer, imensamente, a todos que estiveram comigo. Eu não teria conseguido nada sem vocês. Foi o melhor (e o mais difícil) ano da minha vida. Foi muito fácil desistir de tudo, e ter que reaprender que tem coisas que valem a pena na vida, foi murro atrás de murro em ponta de faca. É meu primeiro e talvez único pronunciamento de 2023, no aniversário da minha tentativa de suicídio, no aniversário do dia que desisti de tudo, e no ano que passei pra reaprender, como um bebê, coisas fundamentais da vida: Eu existo. Eu estou vivo
Por Pedro Scarpa
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Sobrevivente
Parte de ter uma história de vida conturbada e pouco polida para ser contada num churrascão de domingo na casa dos sogros, são os olhares atônitos que você recebe, quando com tranquilidade termina de dizer que sua mãe usava crack no cômodo do lado enquanto você chorava baixinho, e falar isso com uma tranquilidade que espanta o interlocutor, e dá aquele clima chato na conversa. É como aquele episódio de Bojack Horseman, que a mãe dele morre e a atendente do Taco Bell começa a chorar e pra ele parece que ela está mais triste com a morte da mãe do que ele próprio, sabe? É a mesma sensação que eu tenho ao falar da minha vida. Poderia falar por horas a fio, até soltando algumas risadas e piadas pejorativas sobre minha mãe e suas crises de raiva devastadoras, sobre os imensos abusos psicológicos e traumas, sobre a vez que ela amarrou um saco de lixo atrás do pé de limão de casa e me chamou desesperada falando que o homem do saco estava no quintal, e mandando eu me esconder embaixo da mesa enquanto gritava “aqui não tem criança não, homem do saco!”, me deixando aterrorizado e chorando embaixo da mesa. Eu conto essas coisas rindo, dessensibilizado, enquanto meus ouvintes me olham atônitos, as vezes com um sorriso amarelo, sem saber onde enfiar a cara.
Fico pensando onde eu perdi a sensibilidade ante a essas coisas, aos eventos altamente marcantes da minha constituição como ser humano, daí lembro de uma coisa que ouvi por diversas vezes, de terapeutas, amigos próximos, conhecidos, familiares de interesses amorosos, grupos de ajuda e estranhos da internet dos quais me abri mais do que devia:
Me disseram que eu era um sobrevivente.
Um sobrevivente, acredita? Para um pouco pra pensar, nossa evolução como ser humano, no quê biológico, parou tem uns dez mil anos, ainda temos o gene do ciso pra quebrar castanhas duras, o corpo de caçadores coletores. Mas por incrível que pareça, a gente conseguiu colocar algo pra fora em forma de cultura, e evoluir algo num coletivo que ultrapassou nossa biologia que não conseguiu a acompanhar. Sobrevivente pra mim evoca aquelas imagens do Discovery Channel, do Bear Grills comendo larvas numa floresta insalubre enquanto tem que dormir coberto de formigas num lugar de merda, úmido. Ou no Tom Hanks arrancando o dente inflamado com um par de patins de neve no filme do Náufrago, enquanto fala com uma bola de vôlei chamada Winston. Mas se pararmos pra pensar nesse corpo que está travado na biologia de comer castanhas e pintar hominho de palito em caverna, nossos impulsos biológicos tiveram que assumir outras caras nessa coisa altamente evoluída e esquisita que chamamos de contexto social. O que é um sobrevivente numa cidade? Numa cultura neoliberal? Num contexto geopolítico insalubre, em crise? Numa cultura permeada por racismo estrutural e colonialismo? (ok ok, talvez a gente tenha ido muito longe no macro, bora voltar a lupa pro indivíduo).
O sobrevivente social que eu sou não é muito diferente do Tom Hanks na ilha deserta, na verdade. Seres humanos são regidos pelos mesmos princípios biológicos simples, que se complexificam numa cultura (num organismo coletivo) que se dá fora de nós. A fome, instinto básico de manutenção de queima calórica, pode adquirir o valor social da companhia de um almoço de domingo, que se torna um ritual dentro desse macro organismo da cultura, o sexo, impulso de manutenção da espécie e perpetuação de genes pode adquirir um valor social de elaboração traumática por meio de fetiches violentos, etc. O macaquinho em nós geralmente vem com vontades simples e direcionadas, que ao entrar em contato com o mundo exterior se complexificam e pegam nuances do organismo social. Logo, ser um sobrevivente social e um sobrevivente do paleolítico comendo carne de mamute, são, em essência, o mesmo princípio biológico e comportamental.
Uma coisa muito interessante que nós temos como cultura, é o fator de abstração para suportar situações estressoras. Você pode aguentar um trabalho medíocre, com um chefe te aporrinhando todo dia, porque consegue projetar a recompensa no futuro de um salário na conta, você tem essa capacidade de abstrair um dia de merda porque “tem que ser feito”. Essa abstração se torna um mecanismo de suportar estressores. Já parou pra pensar por que as vezes seu cérebro “desliga” no transporte público? Imagina ficar 100% atento e funcional enquanto é esmagado por todos os lados com a sovaqueira dos outros, no horário de pico, igual uma sardinha? Seria terrível. A gente dissocia, entra no automático, porque assim fica mais fácil passar por aquilo.
Voltando a mim, o que significa então ser um sobrevivente? Significa que durante uma vida regada com imensuráveis estressores, eu desenvolvi um repertório que servia simplesmente para minha sobrevivência imediata, como a dissociada no trem pra aguentar a volta pra casa, mas talvez numa escala maior e mais constituinte. Imagina que o Tom Hanks na ilha deserta teve que abstrair a sua situação de MERDA ao ponto de personificar uma bola de vôlei pra conversar pra que simplesmente ele pudesse sobreviver naquele dado momento? Se ele não tivesse a capacidade de abstrair, de “ligar o fone de ouvido no metrô” ele teria morrido. Essa é a essência de sobreviver, é a conservação de energia para realizar tarefas árduas. É poupar energia, como o urso que come para hibernar, é evitar o conflito, como o camaleão que se camufla na folhagem. Sobreviver é fazer o possível para que você se mantenha vivo.
Se um estressor externo vai consumir toda a sua sanidade e te quebrar por dentro, você sobrevive, você abstraí, você ri da sua mãe que dava pro traficante no quarto do lado enquanto você ouvia tudo, você vive no automático, conservando energia para o próximo evento catastrófico, como o leão que dorme 22 horas por dia pra, uma vez por semana, dar um pinote e pegar um cervo na savana.
Ser um sobrevivente urbano é viver no automático, evitando estressores para que você tenha energia para quando a catástrofe – inevitavelmente – aconteça.
Acho que minha constituição tão desastrosa me quebrou num ponto tão íntimo e profundo que estive por 25 anos ligado no modo de sobrevivência, conservando energia para lidar com estressores como uma mãe pesando 35kg por causa de crack, vendendo o botijão de gás de casa pra comprar pedra enquanto você está há 2 dias sem comer. É esperar o estressor do ex namorado de merda, mimadinho que te usa emocionalmente igual um parasita pra depois te pintar de louco pros outros. É conservar energia pra ver suas relações e investimentos afetivos caindo aos pedaços porque ninguém te aguenta mais.
O repertório de sobrevivente é esperar a catástrofe inevitável, é o borderline que aguarda pacientemente o momento que as coisas vão descambar, e conserva energias para lidar com o turbilhão que são as quedas que a vida nos dá, fazendo estatelar de boca na guia da calçada.
Mas o repertório de sobrevivente não me serve de nada agora. Fazem 25 anos que a única coisa que eu faço é sobreviver, é estar constantemente com medo, ansioso pro próximo cataclisma, é conservar energia para a crise que inevitavelmente se aproxima, é viver amordaçado, espancado por esse medo aterrador do futuro, andando em ovos em tudo que eu me disponho a fazer, amuado, arisco, receoso.
Essa merda de vida de sobrevivente não tem nenhum glamour, não tem uma equipe de filmagem maneira igual o Bear Grills, não tem lanchinho off câmera, nem dinheiro no bolso como cachê de gravação. É aterradora, assustadora, excruciante, horrível. Ser um sobrevivente é uma merda. É uma resposta do macaquinho dentro de mim que anseia em estar vivo, mas como eu disse anteriormente, nossos impulsos de macaquinho de dez mil anos são mediados por esse organismo externo complexo e interessantíssimo chamado sociedade. Sobreviver não basta por aqui. O ser pensante, racional e sentimental precisa de algo a mais que nutrientes armazenados para uma catástrofe iminente, de um estado de alerta.
Sobreviver não basta, nós precisamos viver.
E aonde eu, Pedro Scarpa, maluco de carteirinha, sobrevivente graduado na escola de catástrofes, doente mental assumido e esmurrador profissional de ponta de faca, posso, EM SÃ CONSCIÊNCIA, do dia pra noite, criar um novo repertório que inclua esse luxo cultural chamado “viver”?
Estou num ponto da minha vida que não consigo mais ignorar, viver com a energia baixa, no automático. O repertório de sobrevivente não me cabe mais. Eu desesperadamente queria ser acolhido, abraçado. Queria ser cuidado como eu mereci minha vida toda. Quero faltar na aula, quero ser fraco e frágil, poder estar mal.
Eu sei que essa merda toda da minha vida só vai se resolver se eu me mexer, sempre foi assim, e provavelmente sempre vai ser, mas por uma vez, EU NÃO QUERO ME MEXER. Eu quero ser fraco e burro, e merecer colo, e não fazer minhas coisas, e esperar socorro. Quero ser salvo da minha loucura, ser cuidado e amado, ganhar uma comida, um carinho, uma palavra de conforto, que marquem o médico pra mim, me levem pra passear.
Eu só queria não ter que sobreviver um pouco, mas não rola, minha vida só vai se resolver se eu me mexer.
Isso me é imensamente assustador. Eu sinto medo, todos os dias da minha vida, minha existência é construída em cima do medo, mas se ser um sobrevivente me ensinou alguma coisa é que poucas coisas me pegam de calça curta, e eu nunca fui averso a mudanças.
A vida pode ser difícil, mas nois é ruim.
E vamo continuar tentando.
Por Pedro Scarpa
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Girassóis e Triângulos
Hoje está uma noite escura e fria. Me pego tremendo, mas não só de frio. Me sinto gelado, mas não só de pele, está frio por dentro também. Me pego imerso em melancolia, no escuro, com meu quinquagésimo cigarro aceso e tragado com voracidade.
Me pego imerso em pensamentos, em memórias, em melancolia.
Hoje eu lembrei de você.
Lembrei do teu sorriso, lembrei da sua risada, lembrei do teu abraço gostoso, do seu olhar caridoso, e aquela postura icônica que só você tinha, uma presença marcante, calorosa, imponente.
Faz dois anos e meio que você morreu. Mas tem tanta coisa que eu fiquei por dizer, sabe? Tem tanta coisa entalada na minha garganta, tanta coisa que eu queria compartilhar, que eu queria que você soubesse...
Eu lembrei de você, porque eu estou saindo com uma pessoa bem legal, e estávamos conversando. De repente, sem mais nem menos, meu pensamento foi a ti, Carmela. Quis falar de você, uma pessoa tão importante pra mim, pra outra pessoa que está se tornando importante. Quis contar como você era, quis contar de como eu te amava, amo, e amarei. Quis que sua memória fosse passada, como alguém que me foi muito importante.
Mas tem tanta coisa que eu fiquei de te dizer, meu deus...
Eu lembro de você toda semana, eu lembro de você toda vez que ouço alt-j, músicas que costumávamos cantar juntos. Eu lembro de você toda vez que piso na Frei Caneca e lembro que andamos ali de mãos dadas, rindo como dois bobos. E isso me dá tanta melancolia, sabe? Eu vi outro dia uma tabelinha do Divertidamente complexificando as emoções. Melancolia era a tristeza + alegria, e eu lembro de ter achado isso genial. É uma tristeza eufórica, com carinho, com ânsia, com vontade. É uma tristeza feliz, e ironicamente isso não é antagônico (novamente, eu adoraria conversar sobre isso com você, meu deus do céu).
Eu adoraria poder sentar no seu túmulo com duas cervejas e te contar como tá a minha vida, mas acho que seus pais te cremaram, né? É uma fantasia boba, quase hollywoodiana, mas você gostava de cinema. E no fim, a gente imita de forma arquetípica a arte, né? Tudo que eu mais queria nesse momento era não ter que escrever essas palavras como uma carta sem destinatário, queria você aqui comigo.
Me desculpa, eu sempre fui um covarde. E talvez agora não valha de nada falar isso, já que você não está aqui pra ouvir as minhas palavras, mas, eu sempre fui apaixonado por você. No sentido romântico da coisa mesmo. Acho que você sabia, no fim das contas, e talvez até tenha me correspondido, mas eu fui muito bunda mole pra dizer isso pra você, e agora é tarde demais... Eu imagino como poderíamos ter sido, sabe? Eu queria que você pudesse ter ouvido isso de mim, mas deus do céu, você brilhava tanto. Eu tive medo. Tive medo de não ser bom o bastante pra você. Tive medo de que esse amontoado de bagunça que eu sou incomodasse com minha presença, mas não sei se seria o caso. Só posso viver na especulação, né?
Eu tenho medo, sabe? Eu vivo o seu luto toda semana, eu lembro de você praticamente todos os dias, e mesmo depois desses quase 3 anos, o sentimento não dói menos, e nem sei se vai doer menos algum dia...
Eu saí com várias pessoas e me relacionei com um tanto de outras nesse meio tempo, e para todas elas eu deixei uma coisa clara: Eu nunca me apaixonei, então não poderiam esperar isso de mim, mas isso certamente é uma meia verdade. Eu estive apaixonado por você por todos esses anos que nos conhecemos, do sentimento mais bobo de sentir borboletas no estômago ao estar com você, o mais infantil possível. Eu nunca senti isso por mais ninguém. Claro que construí relações legais, estáveis, e não acredito que essa paixão seja necessária para construir afetividade. Mas ao mesmo tempo me surgem aqueles questionamentos bestas, sabe? Sempre aquele “e se?”. E se você fosse a “mulher da minha vida”? E se você fosse a pessoa “certa”? Nem sei se eu acredito nisso na real, mas, novamente, eu só posso viver na especulação e na fantasia agora, né? Imaginando para sempre um “e se”, já que você não está mais aqui.
Você foi embora cedo demais.
Tinha tantas coisas que eu queria te falar. Você me prometeu que íamos numa exposição do Van Gogh. Nós tínhamos músicas para ouvir juntos e cantar! Sabia que o My Chemical Romance lançou um single novo?! Você iria amar, com certeza. Podíamos ir num karaokê cantar pop punk e beber corote podrão e morrer de rir. Podíamos andar na liberdade para comer besteira oriental, tomar bubble tea, passear de mãos dadas. Podíamos estar nos formando juntos, prontos para atender numa mesma clínica, trocar figurinha dos nossos casos clínicos. Podíamos ter sido namorados, casados, podíamos ter morado juntos, sei lá, era um futuro incerto e idealizado. Podíamos ter feito tantas coisas. Eu toparia qualquer coisa, sinceramente, eu só queria que você tivesse aqui, e que não tivesse que ser um “podíamos” hipotético.
Deus do céu, eu sinto tanto a sua falta, na carne, na mente, na alma.
Eu espero que você esteja bem, se existir qualquer coisa pós, ou se você for poeira cósmica nesse exato momento. Eu só espero que você possa fazer parte da noite estrelada que o Van Gogh pintou. Eu espero que você possa estar em todos os girassóis bonitos, em todo pop punk dos anos 2000, em todo filme cult, em todo debate caloroso...
Eu te amo muito, Carmela, amei e amarei, sempre.
Pelo menos isso eu consegui te falar a tempo...
Por Pedro Scarpa
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O Que eu Faço...?
“O que você pode fazer com o que fizeram contigo?”
Essa foi a pergunta que minha terapeuta me fez. Deus do céu, eu te pago pra isso?! Você deveria me dizer o que fazer, não...? Essa é uma pergunta que daria uma vivência inteira, e talvez mais algumas. Seria o centro de alguma religião pentecostal ou culto de cura bizarra que surgisse. Seria uma pergunta respondida pelos aliens que supostamente levantaram as pirâmides, ou até pelo ET Bilu. Ele era o cara do “apenas busquem conhecimento”, não?
Por que eu, a pessoa completamente quebrada e em frangalhos, tenho que vir desse amontoado de desgraçada que compõe minha vida e minhas dores e ainda responder algo desse calibre?
Eu sei, eu sei... Esse é o seu trabalho, terapeuta, levantar perguntas que me movam de certa forma, mas... Pelo menos as vezes você poderia me ajudar a responder elas, né? Talvez me poupar do silêncio lacaniano dessa vez? Me dar um tiquinho de ajuda? Talvez tenhamos chegado num conteúdo massivo, algo gigantesco, que mudaria minha vida.
O que eu posso fazer com o que fizeram comigo...
Bem, primeiro de tudo, o que fizeram comigo? Discuti algumas vezes nos meus textos anteriores sobre vários atravessamentos que eu tenho, sobre como as ações e escolhas de outros seres humanos desprezíveis repercutem na minha existência, através de sistema econômico, cultural e numa esfera mais pessoalizada: Relacional. Isso vai desde o capitalismo, até a cultura patriarcal, a filosofia positivista ocidental, o modelo de ciência vigente, estigmas sobre doenças mentais, e na esfera mais interna, o afunilamento disso tudo no que compõe a experiência chamada Pedro Scarpa. Realmente, no curso de psicologia a gente expande a experiência humana até seus limites mais constituintes em hominídeos tacando cocô e aprendendo a simbolização, até as revoluções industriais e seus impactos no crescimento populacional e reformulação das culturas, enfim, nós expandimos ao máximo pra depois afunilar e chegar novamente ao indivíduo. Agora tendo conhecimento de todos esses atravessamentos imensuráveis e geracionais, históricos, sociais, relacionais, políticos, econômicos, biológicos, geográficos, ad infinitum, como a gente encara a experiência humana, o indivíduo?
Com essa expansão toda, a capacidade de responder as coisas mais simples se torna uma tarefa árdua. Não cabe-nos mais as explicações determinísticas e certeiras de uma religião ou máxima filosófica “o homem nasce bom ou mal?”. Não cabe mais o biologismo darwiniano da evolução das espécies que explica seus comportamentos ontogenéticos e filogenéticos. Talvez a maldição, ou a benção, desse conhecimento, é que podemos mergulhar num ínfimo reflexo, uma fagulha de comportamento de um indivíduo, e poder desmiuçar e expandir ela até o macro, entender o que a atravessa, levantar possibilidades do que pode as ter causado, e nos debruçar sobre essa única experiência um infinito número de vezes, sempre indo para uma nova ótica e um novo entendimento.
O que eu posso fazer com o que me fizeram?
Bem, o que me fizeram? De um ponto de vista ontológico e determinista, me fizeram. Eu nasci, começa aí, né? Nada disso teria rolado sem a cópula entre um indivíduo portador de cromossomos XX e outro indivíduo de XY dividindo seu material genético. Disso já dá pra puxar um conceito mais afunilado, que certamente pula algumas etapas, mas é importante: A família nuclear, também foi discutida em outros textos meus, e seus primeiros atravessamentos na constituição de um sujeito. Pessoalmente a minha era fria, pouco afetiva e atravessada pelo estigma das doenças mentais, tendo meu avô como pilar central de união e desequilíbrio, e minha mãe massacrada pelo capitalismo e o conservadorismo, presa em sua doença hereditária (também é um atravessamento para este que vos fala, a hereditariedade e carga genética do transtorno de personalidade).
Num sentido mais micro, relacional, o que me fizeram é mais delicado, e consequentemente subjetivo, porque ao mesmo tempo é um encontro entre os meus atravessamentos e vida particular com outros atravessamentos e vidas igualmente particulares, que tiveram suas próprias repercussões, e quando se chocam, geram toda uma nova esfera de eventos. Juntam os meus atravessamentos com os das outras pessoas, numa nova relação, que parece um resumo do resumo do que aconteceu outrora e das coisas que estão a nossa volta.
Como outrora eu expliquei, o conjunto de atravessamentos que eu tenho na minha vida culminaram no que é conhecido na medicina como “transtorno de personalidade”, que é uma forma de individualizar e atribuir a mim o defeito e a incapacidade do meio de me validar como uma pessoa, e me atribuir a alcunha de “doente”. Especificamente agora, estive atravessado por um relacionamento amoroso, com uma pessoa de índole... Ahn, duvidosa, eu diria?
Bem, contextualizando um pouco os atravessamentos dessa pessoa em questão: É uma pessoa de origem endinheirada, na elite paulistana, com acesso a todos os bens de consumo e qualidade de vida que uma criança pode querer. Desde cedo dotado do direito de escolha: Onde quer estudar, o que quer comer, para onde quer ir, o que gosta, o que desgosta. Desejos materiais completamente saciados: Carro com tanque cheio, faculdade caríssima paga, cursos profissionalizantes, mesada gorda no bolso, cartão dos pais com crédito ilimitado, apartamento para receber visitas. Ah Pedro, mas geralmente quem tem saciação no material tem defeito na vida afetiva, não é? Geralmente sim leitor, mas esta pessoa em questão, tinha o melhor dos dois mundos. Pais amorosos, tios divertidos, ponta firme. Precisa mandar um currículo? A tia manda, a tia escreve, a tia vem levar pelo bracinho. Não gostou da faculdade caríssima que o pai pagou? Não tem problema, o pai paga um curso foda, toma seu tempo querido, pode crescer no seu tempo. Você está gordo? Quer ir no endócrino no hospital mais caro de São Paulo ver o que está acontecendo? Toma aqui a anuidade de uma academia 24h pra você aproveitar, fica à vontade querido.
Essa pessoa em questão, tem pais estáveis, absolutamente apaixonados um pelo outro, nunca enfrentou nenhuma dificuldade financeira, e tem todas as suas necessidades econômicas, afetivas e utilitaristas atendidas. Nunca teve falta de nada. Estes são seus atravessamentos.
Um sábio amigo uma vez me disse a seguinte frase “Rico não tem problema, eles tem que criar as próprias picuinhas pra poder sentir o gostinho do conflito, coisa que nós, pobres, sentimos todos os dias”. Embora soe vulgar, debruce-se um pouco sobre a sabedoria desta frase.
Vai lá, te dou um tempinho.
Pronto? Profunda né? Tem um resumo de séculos de desigualdade econômica e glamourização da vida burguesa, que só a síntese de um proletário esculachado e vulgar poderia produzir, é uma frase LINDA. E verdade seja dita: Rico não tem problema, rico CRIA os problemas. E este é o caso desta pessoa cujos atravessamentos se chocaram com os meus.
Basicamente ninguém pode culpar essa pessoa pelos conteúdos que a atravessaram, seus pais foram perfeitos, proveram do bom e do melhor, nunca deixaram faltar nada no quesito afetivo, nada no quesito financeiro, são estáveis, deram condições inimagináveis para que essa pessoa possa ser o que quiser.
Posso resumir o que essa pessoa sente em uma simples frase, num dos nossos primeiros encontros quando a levei pra comer hot dog porqueira na rua: “Nossa, eu adoro vir nesses lugares e comer coisa de pobre”. Peço que se atentem a problemática desta frase, se ela já não ficou evidentemente chocante no momento que você a leu: Basicamente a frase se traduz como “Eu gosto de me sentir pobre, porque não preciso fazer isso todos os dias”. Os estilos de vida se diferenciam como um entretenimento, um turismo de classes. Como naquela cena chocante do Parasite onde o casal rico está transando no sofá da sala e eles gostam de fingir que são pobres como um “fetiche” durante o sexo? Lembram? Bem, eu me relacionei com uma pessoa que achava um turismo interessante viver como pobre esporadicamente, comer a salada da minha case porque aqui temperamos com vinagre de álcool, não com vinagre balsâmico. Sair para o dogão da esquina, porque geralmente ele vai num restaurante 5 estrelas com os pais.
Estamos falando de um sujeito que no termo popular da palavra seria chamado de “mimado”. Mas o que mimado significa? Bem, como ilustrei pra vocês, os atravessamentos deste sujeito são de nunca terem se deparado com a dificuldade, com a falta. Estamos em um cenário onde as vontades do sujeito sempre foram aplacadas prontamente e com maestria, pelas maravilhosas figuras paternas (sem ironia envolvida, eles são maravilhosos mesmo).
Nesse sentido, como em Parasite onde a dificuldade dos pobres se torna um fetiche para a classe dominante, as “dificuldades” começaram a ser almejadas por este indivíduo, cuja vida tinha sido jogada no modo “easy” por duas décadas. Suas referências de conflitos eram os presentes em mídia consumidas por crianças de sua classe social: Séries adolescentes americanas. Logo, o indivíduo em questão começa a replicar em suas relações as picuinhas típicas de uma série adolescente americana, da Disney Channel. Coisas caricatas, que uma representação infantil apreendeu como conflitos plausíveis, para que tenha-se aquele prazer mental na resolução dos mesmos, pois os episódios sempre acabam bem depois da tensão do conflito ser resolvida.
Para que fugisse da monotonia de sua vida, este indivíduo começa a criar seus próprios problemas para que, como num episódio de Disney Channel, a resolução chegue e o episódio termine com as pessoas se abraçando. Mas são problemas ilusórios, pequenos, fictícios. “Minha mãe não pode comprar filet mignon essa semana, foda a economia”. “Minha mãe me chamou de gordo e marcou uma consulta do endócrino do Albert Einstein pra mim, odeio ela”, “Adoro comer essa salada da sua casa temperada com vinagre de álcool, na minha casa é só com vinagre balsâmico, queria mais como a sua”, essa lista de absurdos pode ser expendida ad infinitum (tenho um repertório imenso destas reclamações armazenadas).
Chegamos ao ponto crucial: O grande conflito de interesses proveniente destes atravessamentos, onde o macro se choca com o micro. O que eu, Pedro, poderia ter de conflito com uma pessoa de tal origem? Se você respondeu tudo, você acertou, mas estamos falando de uma gota d’água, algo inaceitável. Bem, essa pessoa em questão, acredita ser detentora de um conhecimento irrefutável, de uma moralidade inabalável. Claro, ela nunca foi contrariada em infância, nunca teve sua vontade negada. Claro que ela se acha poderosa, ela cresceu sendo poderosa, talvez ela seja, naquele contexto de casa, mas não o tempo todo. Na sua vontade inabalável e inquestionável, ela se apoderou de uma teoria e a distorceu (a teoria é a não-monogamia) cujo cerne é a responsabilidade afetiva e os acordos. Essa pessoa em questão, distorcendo todo o cerne da teoria que disse acreditar e ser um arauto, se colocou numa possível delicada e impassível.
No fim, quando confrontado com um livro sobre o assunto, e um conhecimento adquirido pelo proletário que vos fala, não houve argumento que não uma repetição forçosa de seu discurso incoerente. Um poser da própria teoria na terminologia vulgar.
Mas enfim, esse sujeito teve como grande marco da vida dele, o mais difícil, o mais custoso e penoso, pasme... Ouvir um “não” da minha parte.
Claro que pra você, leitor, não deve soar tão chocante quando dei-te uma versão mastigada dos atravessamentos deste homem. Eles contam uma história de satisfação de gozo e necessidades, reforçadas por toda uma existência, claro que essa pessoa em questão está acostumada a ser um reizinho, ter sua vontade como soberana e suas questões colocadas no maior pedestal de prioridades da vida alheia (pais, mães, tias), claro que tudo isso se traduz em um “eu” sádico e norteado pelo próprio gozo, autocentrado e mesquinho. Mas o conflito acontece com o mundo, visto que ao sair desse núcleo que o provém de tudo, as pessoas com seus atravessamentos particulares não têm essa mesma concepção, e nem deveriam. A falta faz parte da vida, o mundo nos dá mais “nãos” do que “sims”. E acontece, sabe?
Eu tive de enfrentar a ira da criança no mercado, que não recebe o cereal, e a pior coisa de sua existência se dá naquele momento, a negação de um agrado. Mas não era um agrado, eram meus sentimentos. E como a criança surtada que se apresentou na minha frente, como naqueles vídeos de facebook das crianças marretando televisão, quebrando coisas em mercado e batendo nas mães, eu tive de lidar com a ira do bebezão de 25 anos, disposto a quebrar tudo que estivesse ao seu alcance para ter suas demandas atendidas.
Claro que você, leitor, depois de ter toda essa visão macro afunilada numa perspectiva micro, como causadora de um evento, deve estar achando muito óbvio, mas me dê os devidos créditos aos anos de estudo dentro da psicologia e a capacidade analítica que ser um membro atuante dessa história me concede. Eu tenho propriedade sobre o que falo porque eu vivi isso, para além do que eu entenda sobre teoria do desenvolvimento e tenha estudado o Freud narigudo na faculdade, eu vivi isso, eu estive com um dos alvos da fúria da criança não satisfeita, do bebê sádico que se apresentou o seio mal aos 25 anos de idade. Aos choros em soluço tipicamente infantis em meio a negação. Todo esse conflito de classes, ideologias e vivências se tornou aparente quando o garoto chorão e mimado desatou a quebrar minhas coisas porque recebeu um “não” é este foi o evento mais traumático de sua existência.
O que eu faço com o que fizeram comigo?
Bem, acabei de apanhar para o menino rico da creche, e ao ver a iminência da bronca que ele tomaria, chorou mais alto que eu, e quando a professora chegou, ela o pegou, meu agressor, no colo, pois ele chorava mais alto. Além de machucado fisicamente, tive de me machucar emocionalmente, vendo todo o apoio do mundo indo a criança que sabe chorar mais alto. Mas a verdade não dita está aqui.
É mais fácil se alinhar na eloquência de quem é incapaz de sentir culpa. É mais fácil simpatizar com o charme de quem parece saber sobre tudo que fala. Também é fácil parecer saber tanto sobre o que você fala quando sua vida te reforça que sua vontade está acima da dos outros, né? É simples antagonizar o cara esquivo e amuado que recebeu o surto da criança rica. É mais fácil se afastar de alguém que sempre anda em ovos pra não incomodar os outros. “Se ele anda em ovos, significa que pode deslizar a qualquer momento”. Bem, talvez ter tanta certeza de si fale mais sobre a fragilidade das suas crenças do que ter medo de pisar na bola com os outros.
O que eu faço com o que fizeram comigo?
Sinceramente eu não sei. Depois do tornado do garoto mimado passar pela minha vida, derrubando caixas de cereal e quebrando potes, relacionamentos e dinâmicas, completamente cego pela sua interpretação errônea de uma teoria, com essa crença irreal de que sua vontade é maior do que todas as outras do mundo, uma amálgama da fase sádico anal Freudiana, eu não sei o que pensar. Como este indivíduo é incapaz de sentir qualquer tipo de culpa, as consequências de suas ações agora estão para este idiota que vos fala. Para além das minhas próprias questões, para além das minhas próprias tristezas, ainda tenho a carga que este ser se recusou a carregar, as consequências das ações desumanas desta criatura, que bagunçou tudo e não se abaixou pra pegar um nada que derrubou. Novamente o conflito de classes entra em cena, é sempre o pobre limpando a merda do rico, nessa experimentação perversa do que era sentir o gosto do conflito, que pra ele era algo lúdico e divertido, resolvido como uma série adolescente, eu estou aqui, recolhendo os restos do cenário, limpando a bagunça dele.
“Rico não tem problema, eles têm que criar as próprias picuinhas pra poder sentir o gostinho do conflito, coisa que nós, pobres, sentimos todos os dias”.
Analisar, desmiuçar, entender o que aconteceu me é perfeitamente fazível. Onde minhas ações entram nisso? O que eu posso fazer contra essa situação, atravessada em tantos níveis, por tantas nuances? O que eu, Pedro Scarpa, posso fazer além de limpar o cenário desse merda que quis brincar de ter conflito, num cenário fictício que pra mim era real? Ele pode sentar nos bastidores, tomar um coquetel e rir pensando que foi uma performance maravilhosa, mas a sujeira é real, o soco que ele deu nesse dublê mal pago e terceirizado doeu pra caralho, pra mim isso existiu, o peso, a dor, as consequências desse egocentrismo, dessa exploração da falta, desse desejo de comer hot-dog pra se sentir pobre, as consequências dessa merda toda são minhas. O que eu faço com isso, merda? O QUE EU FAÇO COM ISSO???
ME REPONDE PORRA, COMO EU RESOLVO ISSO? Tá aí, tá desmiuçado, tá mastigado. Só me diz como resolver, esse passo eu não consigo chegar sozinho. Eu só consigo varrer esse set de filmagens, palco dessa analogia e da experimentação de um garoto chorão e mimado.
Marx, Piaget, Freud, terapeuta? Alguém tem alguma luz? Eu realmente não sei responder a sua pergunta, e talvez seja minha vez de perguntar:
O que eu faço com o que fizeram comigo?
Por Pedro Scarpa.
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Sombra
Nunca cheguei a entender quais eram as suas motivações, para onde você almejava ir, o que queria fazer ou onde queria estar. Por anos a fio tentei descobrir o que te agradava, como eu poderia agregar na sua vida, positivamente, como poderia estar próximo e sentir você ali comigo. Por anos a fio tentei te chamar de amigo, mas foi unilateral. Você não queria estar numa horizontalidade comigo, e eu sinceramente não entendo o porquê.
Te conheci em uma época difícil, era cursinho, eu não sabia que curso queria fazer na faculdade, você também não. Talvez isso que tenha nos aproximado, essa incerteza quanto aos próximos passos. As risadas que disfarçavam essa confusão que a vida adulta nos causava. De onde vinham tantas responsabilidades? Para onde a gente tinha que ir? Como se lidava com todas essas demandas que surgiam?
Anos foram passando, e eu te apresentei a minha vida, as pessoas que eu tinha para mim como família, e no fundo, bem lá no fundo, eu queria que você entendesse que amizade não era só sobre rir de memes de dragon ball ou repetir áudios engraçados de whatsapp, jogar jogos online juntos. Amigos são mais que isso, amigos são pessoas que você pode contar, amigos são pessoas que você pode se apoiar em momentos difíceis, que vão estar ali por você.
E sinceramente, eu tentei estar ali por você. Eu tentei ser alguém que você poderia contar, que poderia se apoiar, que não estava ali só pra rir contigo, embora rir fosse legal também – pelo menos nisso a gente se entendia.
Não sei de onde essa rivalidade surgiu. Não sei o que a alimentou. Você sempre me viu como um rival, como se a vida fosse um anime shonen e você tivesse que escolher alguém pra te antagonizar, mas eu nunca quis esse papel. Seus tratamentos agridoces, sua distância das minhas tentativas de ser afetuoso, sua postura isentona e distante, tudo isso me desgastou pra caralho nas nossas interações.
Eu tentei te amar, mas você se provou desprezível.
Por seis anos minha mão esteve estendida esperando que você a segurasse, mas só vieram toques de high five ou cuspidas. Por seis anos eu tentei ser seu amigo, e você só correu, me pintando com essa visão infantilizada e irrealista da vida de que você precisava de um rival, como se você fosse algum protagonista de anime genérico. Não, seu merda, eu nunca quis ser seu rival, eu não vou ser o Sasuke da sua fantasia de Naruto, o Vegeta do seu carinho por Dragon Ball.
Em algum momento desses anos você decidiu, por algum motivo, que eu era melhor do que você, talvez fosse o talento na culinária? Sucesso amoroso? Vocabulário acadêmico? Os rpgs e minha capacidade narrativa? Eu não sei o porquê, mas você sentiu inveja, não sentiu? Ao invés de admirar como um amigo faria, ao invés de estar ali do meu lado, e podermos compartilhar coisas um com o outro, você decidiu que você queria ter o que era meu, não me apreciar.
Por algum motivo você decidiu viver na minha sombra, como o Gollum vociferando com o anel. Querendo o que era meu, tentando fazer como eu fazia. Meu jeito de mestrar rpg, meu talento pra juntar as pessoas pra um evento que eu organizei, meu magnetismo pra juntar as pessoas (afinal, eu que juntei esse grupo de amigos, inclusive você), talvez até minha capacidade de cozinhar. Você invejou isso, e dava pra ver nos seus olhos, que não tinham prazer de ver um amigo fazendo algo bem, tinham cobiça, sujeira, vileza.
Talvez você tenha se perdido no personagem, talvez a inutilidade tenha-te subido a cabeça. Talvez de tanto deixar embalagens abertas no armário pras baratas sambarem na sua comida você tenha quebrado em algum ponto. Eu não sou alguém invejável, eu sou um cara normal, mesmo assim você decidiu viver na minha sombra, não é?
Nunca decidi te antagonizar, cara. Nunca comprei esse papel que você me oferecia, você podia ter coisas que eram suas, e eu bateria palma pra você, assim como bato palma pro Neno e sua capacidade de ser prático e categórico, ponta firme, assim como aprecio a Gabi e sua sensibilidade assertiva e capacidade de empatia. Você poderia ter algo seu, mas decidiu que o meu era melhor, por alguma razão que só sua vivência poderia explicar.
Isso nunca foi uma amizade. Você nunca quis ser meu amigo.
Foi você, seu merda, que decidiu vestir essa carapuça de inútil e se alinhar na minha sombra. Foi você que decidiu que o meu era melhor, e que você queria, e foi você o desgraçado que numa tentativa de retaliação por motivo nenhum decidiu me apunhalar pelas costas. O que você queria de mim?
Você conseguiu cara, você tem o meu resto, você come as minhas migalhas, mas isso é a sua sina. Você acha que se livrou de mim, mas quando se aninhar no colo deste merda que está ai com você, ele sussurrará no seu ouvido o quanto eu era bom. Quando você procurar paz, ele te lembrará o quanto eu era inteligente. Quando você relaxar pra assistir algo, você vai ouvir que compartilhávamos aquilo.
Você escolheu ser minha sombra, e agora viverá sobre o fantasma da minha presença, te lembrando o quão melhor eu sou que você. E essa foi uma certeza que você criou, sozinho, e agora norteará sua vivência afetiva. Você me verá nos olhos dele, lembrará todos os dias que come os restos que eu deixei no prato, nessa vã expectativa de ser a mim. Perdido nesse seu personagem inútil e sem sal, vestindo uma roupa que não te cabe.
Quando pensar nas pessoas que foram embora, lembrará das fragilidades desses laços, que eu te trouxe. Quando olhar para o seu namorado, lembrará que eu estive ali, e que ele clama para que eu volte, assim como clamava pela Marília. Quando olhar para a cara torcida das pessoas a sua volta, e da miséria afetiva que você construiu, saberá que foi uma cova que você cavou, com as próprias unhas.
Você escolheu ser minha sombra, seu verme. Então não se espante quando meu fantasma voltar pra te lembrar...
Que eu existo.
Por Pedro Scarpa.
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Entre Crianças Lobo e Buracos
Eu sei o que está acontecendo de errado, e é tão ridículo que chega a parecer uma piada de mal gosto, a nível mostrar um meme de humor negro num jantar de família e ao invés de receber gargalhadas receber olhares preocupados com seu bem-estar. É como uma piada de The Office, quando o Michael Scott deixa o escritório inteiro com cara de bunda.
A piada são vocês, seus malditos, e é uma piada de muito mal gosto.
Começamos pela minha condição, exaustivamente explicada, agora em termos mais resumidos: Sofro de transtorno de personalidade limítrofe, ou borderline como na música do Green Day. Em termos mais leigos, imagine que quando estamos construindo um eu, ali na idade de 3-4 anos esse eu, essa “personalidade” que é construída em relação e referência ao mundo, se forma com uma lacuna. Invalidada, incapaz de se enxergar refletida no meio, constantemente capada da vontade própria, dos gostos, do “eu”. Ser não é uma opção. Esse “eu” está esburacado, amputado e um membro metafórico.
Agora visualiza comigo, você já deve ter ouvido histórias de crianças que se perderam na mata e anos depois são encontradas andando de quatro e rosnando, como lobos, porque foram criadas por lobos na floresta, ou macacos, ou alces, sei lá, cada vez é um bicho diferente. A questão é que essas crianças, embora com os genes humanos e os cromossomos aparentemente corretos, ao serem socializadas em tenra idade aos lobos, passam a ter a referência destes para construir o seu “eu”. Andam de quatro, rosnam, comem a comida crua, são – essencialmente – lobos.
Agora voltamos pra casa suburbana da grande São Paulo com a mesma ideia de idade constituinte: Temos um guri constantemente capado de possibilidades, forçado a se retrair, aprendendo e constituindo esse “eu” que tem de ser contido, acuado, capado. Esse “eu” se forma com uma lacuna, um buraco, incompleto. Essa é exatamente minha condição, sou um ser com personalidade amputada, deficiente de uma condição metafórica, que ao mesmo tempo é real.
O grande chiste da vida de um neurodivergente com a minha condição é o de lidar com essa deficiência, com essa lacuna no “eu”. Surgem escapismos, surgem paliativos. Já passei por vários: Na adolescência achei que ser namorador ia tapar esse buraco, eu poderia enfiar uma pessoa ali e me sentiria melhor, ela me preencheria – não deu certo. Ao descobrir a masturbação, achei que aquela descarga súbita de dopamina ia dar algum significado a minha existência tão conflituosa – também não deu certo. Agora na vida adulta aprendi que tem várias coisas que não preenchem, mas o comportamento vicioso, compulsivo de tentar tapar isso é mais forte que minha racionalidade, tenho várias torneirinhas de dopamina que constantemente estão sendo esgotadas: Meu vape, que eu fumo como o trem do Thomas e Seus Amigos, a masturbação, que já nem me provoca muita coisa (obrigado antidepressivo, eu acho), minhas compras compulsivas de bugigangas na shopee, etc.
A grande questão é que não há forma de lidar com essa lacuna que existe em mim, eu sou esburacado, e eu vou ser sempre esburacado, acontece. Mas isso traz à tona um problema que nunca passou pela minha cabecinha conturbada e caótica: O quão permeável isso me torna.
“Como assim permeável, Pedro?”, chega mais, deixa eu explicar: Eu me sinto diluído, diluído nas relações, quase como um líquido. Eu não consigo enxergar uma forma sólida na minha pessoa, eu não consigo saber o que eu sou, o que eu penso, o que eu quero (lembre que meu “eu” está defeituoso), então como uma amalgama, um camaleão, eu me adapto ao ambiente em que estou, me adapto as necessidades dos outros, me modelo pra caber no formato que precisam de mim.
Vocês devem imaginar o absoluto deleite que deve ser se relacionar comigo né? Eu tenho várias facetas, várias personalidades. Precisa de cuidado? Tá na mão chefia, Jung me entregou o arquétipo da Mãe de bandeja aqui pra você. Precisa se divertir? 2p, vou chamar o palhação que mora em mim. Precisa de alguém ponta firme pra te ouvir e te aconselhar? Deixa eu chamar o Velho Sábio, um momentinho.
Eu sou mutável, disforme, um líquido que só tem forma no recipiente que o colocam, e isso é foda, porque como eu não sei o que eu sou, e talvez nunca saiba (ring ding ding ding, de novo a personalidade deficiente) eu acabo assumindo que eu sou o que me atribuem, e aí que está toda a questão do que eu tô tentando dizer.
Me atribuem uma posição de servidão, de imundo lixoso quando nem eu quero habitar essa posição. Pedro só existe como uma função, como um objeto. O Pedro é útil. Pedro cozinha, Pedro lava, Pedro organiza o rolê, Pedro me ouve quando brigo com meus pais, Pedro vai no mercado comigo, Pedro cuida da administração do rolê, Pedro fica na grelha (funções ad infinitum). A questão é que nas minhas relações eu sou ÚTIL, eu sou eficaz, eu sou ponta firme. Me é atribuído uma função, como uma pá ou uma enxada, ou indo pra minha analogia favorita: Um copinho de café de plástico de recepção (sim eu gosto de metáforas longas e desnecessariamente elaboradas).
“Mas Pedro, como assim um objeto?”, vem com o pai que ele explica. Como eu não tenho forma definida por esse “eu” defeituoso, como o camaleão que eu sou, sem desejos próprios e confuso com coisas que para os outros que não tem borderline parecem ser muito claras, eu tento agradar o outro até descobrir o que eu sinto a respeito daquilo. Geralmente não me importo de estar habitando esse lugar, gosto de cuidar, gosto de servir. Eu escolhi ser terapeuta por causa disso, sou empático, é fácil pra mim fazer um chameguinho emocional nos outros, acessar os sentimentos e simpatizar, e modéstia a parte, meus conselhos são tiro e queda. O problema é que como os outros já tem esse “eu” bem definido, acho que não entra na cabecinha miúda deles que eu preciso literalmente TATEAR nas relações pra conhecer o que eu gosto, é difícil para eles ver a amalgama aqui de repente descobrindo que gosta ou desgosta de algo específico.
A grande questão é que é conveniente ter um servo ao seu lado, estar nessa posição de servidão, é ter o Dedé do seu Didi Mocó ali do lado, ter o Mutley do seu Dick Vigarista, sempre ali com você. Sou sempre o amigo do protagonista que toma na jabiraca, igual o Samwell que teve que carregar o Frodo pela montanha da perdição. E é conveniente para os vários Frodos, Dick Vigaristas ou Didis por aí que eu esteja nessa posição de capacho, de servidão. Tem culpa minha por acostumar as pessoas com isso na minha ânsia de aprovação e afeto? Talvez, mas isso não vem ao caso (passem pano e batam palma pra mim por gentileza, se quiser me criticar, critica aí na sua casa).
E o que me atribuem é uma imagem, assim como os lobos atribuem o “lobinho” a criança que se perde na mata. Me atribuem a imagem de um capacho, de um objeto, de (agora sim a metáfora linda) um copinho plástico de café de recepção. “Como assim Pedro?”, bem caro leitor, eu tenho uma função, eu sou útil, assim como o copinho é útil enquanto ele segura sua bebidinha quente enquanto você aguarda chamarem seu nome enquanto folheia uma revista Caras de 2007. De repente te chamam “Ô Fulano, o doutor tá te chamando”, e seu copinho meio mordido, segurando os restos do seu café, que você não quis levantar pra jogar fora antes porque a lixeira era no caminho do corredor, lhe perdeu a serventia, então você despretensiosamente o joga no lixo a caminho do consultório.
Que metáfora linda né?! Ao mesmo tempo banal, mas carregada de um sofrimento e um sentimento que só um neurodivergente maluco e compulsivo conseguiria pensar (batam palma, por gentileza). A questão é que nas relações eu sou esse copinho, eu tenho a função de segurar seu cafezinho quente enquanto você liga pros seus próprios negócios, enquanto vê uma propaganda dos óculos da Ana Hickman que saíram de linha tem uns 10 anos já, na sua revista Caras velha. Eu estou ali pra servir, pra ser útil, e eu sou um objeto.
Mas as relações humanas são mais complexas que copinhos de plástico e anúncios da Ana Hickman, então essa condição de objeto me é ATRIBUÍDA nas relações, me veem assim, e como o copinho não pode reagir (mas eu posso) eu assumo esse papel. Lembre-se que meu “eu” tem uma lacuna, e essa lacuna tenta ser preenchida por qualquer coisa, logo quando me enxergam de determinada forma, eu tendo a acreditar que aquele sou eu, afinal, se minha autoimagem tá tão quebrada, de fora vocês devem conseguir me ver melhor.
Aí que mora a perversidade da coisa, aí que o caldo engrossa. Assim como as crianças lobo que são validadas como lobo do lado de fora, o ser humano só é algo em relação ao outro. Isso fica provado ao se estudar estes casos de crianças ferais. Lacan já dizia que nós somos o falado, e isso é simplesmente GENIAL. O meu “falado”, o meu “eu”, minha referência externa foi capada no ato da constituição, lacunada. O que era pra ser atribuído como meu, os incentivos, o carinho “parabéns bebê Pedro, você consegue andar, eu te amo!”, ou “parabéns bebê Pedro, fez cocô sozinho!”, ou qualquer coisa que validasse o meu “eu” em formação, me foi capada, e eu me constituí com defeito de fábrica. Mas como não tem devolução de seres humanos (Jeff Bezos, isso não foi uma ideia, por favor), eu tive que viver com defeito. Agora adulto, quando realmente conseguem olhar pra mim em uma relação, e me atribuem algo, como um macaquinho dançante eu tento agarrar aquela imagem que tem de mim e fazer aquilo ser meu.
Só somos algo com referência externa, só aprendemos a ser seres humanos com outros seres humanos, com bicho somos bichos, com lobos somos lobos, e com copinhos plásticos somos... Bem, ninguém foi criado por copinhos plásticos, então não sei. Mas a grande questão é que me atribuem essa imagem de capacho, de objeto, de lixo. Claro que um objeto não se torna lixo até que não tenha mais serventia. Você joga o prestobarba cego no lixo, joga o copinho mordido fora, passa uma água no tubo de shampoo pra tirar o restinho e depois joga fora. O que todos esses objetos têm em comum é que são descartados quando perdem sua funcionalidade e o seu propósito. “Mas Pedro, minha tia faz vasinho de flor com vidro de shampoo!”, ótima questão leitor, totalmente não fui eu que enfiei ela na sua boca, mas vamos lá: O valor intrínseco de algo é atribuído unicamente pela pessoa que está em relação a esse algo. Então uma pessoa pode olhar para o shampoo e falar “Beleza, acabou, vou jogar fora”, enquanto outra pode olhar o mesmo shampoo e pensar “formato bonito, vou colocar uma suculenta nesse frasco”. O valor de algo é extremamente subjetivo e atribuído pelo interlocutor da relação, por isso somos o falado, só temos o valor que nos é atribuído.
Nesse sentido, as relações humanas são mais complexas que vasos em frasco de shampoo, mas a ideia geral continua valendo: Você só tem o valor que o mundo te valida como. Então ao ser validado externamente como lobo, você é lobo, ao ser validado como copinho de plástico descartável, você é copinho de plástico. Ao ser validado como um ser humano completo, com sentimentos, desejos, tristezas, prazeres, gostos e desgostos, você é, adivinha? Um ser humano!
E a perversidade da coisa mora aí, porque eu recentemente estou me sentindo melhor, e cara, eu sempre achei que eu me odiasse, que eu fosse um lixo imundo indigno de qualquer coisa, que minha constância universal era ter meu cu completamente arrombado pelas circunstâncias da vida. Mas me percebi no meio disso tudo. Mano, eu sou um cara legal, eu tento o meu melhor todos os dias, eu me esforço muito pra ser agradável, animado, divertido, companheiro. Eu faria qualquer coisa por você, leitor. Me fala onde e o que você precisa e eu vou estar lá. Eu posso cagar no pau, como qualquer ser humano, mas eu tô sempre tentando, sou humilde pra me reparar, corro atrás das coisas. E esse é o ponto, sabe, eu reconheço isso. Eu gosto de mim, eu sei que sou esforçado, que eu mando bem.
O lixo que eu odeio não sou eu, o lixo que eu odeio é este que atribuíram a mim. A culpa é toda de vocês, que me trataram assim, que me viram e me validaram assim. Sou descartado nas relações quando perco a serventia, sempre foi assim. Vocês que não entendem a neurodivergencia não conseguem conceber um cara que descobre tateando as cegas o que ele gosta ou desgosta, porque chega na relação como uma tela em branco. Vocês não fazem o mínimo esforço de tratar os outros com dignidade. Se vocês soubessem disso que eu tô tentando exaustivamente explicar, que o outro só pode ser um ser humano se VOCÊ O TRATAR COMO UM SER HUMANO, vocês não seriam uns merdas o tempo todo.
Eu não me odeio, eu odeio isso que vocês tentam me fazer engolir como eu. Eu odeio vocês que me descartam como se eu fosse esse copinho de café velho, eu odeio vocês que objetificam pessoas e relações, eu odeio vocês ,filhos da puta desgraçados, que não sabem ser empáticos, que não se esforçam pra ser pessoas melhores. E vocês deveriam sentir vergonha, de um fodido da cabeça, neurodivergente e maluco tenha que explicar uma coisa tão básica pra vocês, então eu vou falar como se tivesse numa sala do primário, uma ideia muito básica e que parece que vocês não entendem:
SE VOCÊ TRATAR O AMIGUINHO COM RESPEITO E HUMANIDADE ELE VAI FICAR BEM E FELIZ, NÃO PODE BELISCAR NEM APAGAR BITUCA DE CIGARRO NELE
Pronto. Era isso. Essa cacetada de texto pra dizer que eu finalmente entendi o que eu odeio, e não sou eu, são vocês. Mais especificamente o que vocês fazem, mais especificamente como agem, o que atribuem aos outros. Eu odeio essa falta de tato com os outros, odeio que estejam tão engessados no jeito de ser que se conformaram em fazer merda. Eu odeio essa dureza emocional que gente “normal” acha, bem, normal...
Talvez vocês que sejam os malucos, não eu.
Não sei vocês, mas eu tô fechadão com Pedro Scarpa, e se você discorda, discorde aí na sua casa, pode pá? Amo vocês, precisando dá um salve, vou estar sempre aqui, mas lembrem de tratar os amiguinhos com respeito e humanidade, assim você evita de quebrar ele a um ponto que ele pense em se destruir todo santo dia e considere a existência dele indigna. Somos humanos, e merecemos ser tratados como o tal, então façam o mínimo, por gentileza.
Abração, fiquem bem.
Por Pedro Scarpa
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Agradecimentos Finais
Bem, minha primeira e mais importante questão para começar a escrever as linhas que se seguem, por incrível que pareça, era que nome eu daria. “Notas” parecia algo muito vago, por que sempre que eu escrevo as coisas ficam quilométricas, é como uma vomitada digital, então me conhecendo já descartei esse de cara, todos os outros como “Adeus e obrigado humanos” parecia muito meme (se você não conhece o meme do rinoceronte branco dá uma googlada rapidão). Acabou que como o universitário que sou, em pleno TCC decidi chamar ele de Agradecimentos Finais. Nome bonito, não é a toa que temos uma associação de normas e técnicas, pois engloba todo aquele esforço descomunal de realizar uma pesquisa e você tem que pensar a quem você foi grato. Fui grato ao orientador vagabundo que não respondia meus e-mails? Fui grato aos colegas de turma que não olharam no meu rosto durante a graduação? Fui grato a família que durante todos esses anos buzinou na minha orelha que meu curso era uma bosta e não dava dinheiro? (claro, todos esses são cenários hipotéticos e não relacionados a mim especificamente). Os agradecimentos finais são um momento onde todo aquele ódio e perrengues presentes na pesquisa tem que ser atenuados e você tem que espremer algo de bom de todo aquele esforço. Pode ser genuíno? Claro. Pode ser uma forma de atenuar uma coisa essencialmente ruim e tentar se convencer de que ela valeu o esforço? Pode ser também. Qual desses é o meu caso? Não seria um texto se eu respondesse no meu primeiro parágrafo, então te convido a ler.
Bem, começando pelo princípio, sou um ser de dois braços e duas pernas, baseado em carbono e residente da terra, planeta que orbita uma estrela chama Sol no sistema solar, no extremo de um dos braços da galáxia espiral Via Láctea, localizada no aglomerado de Oregon no universo observável. Agora voltando pro universo micro, sou um ser de carne regado a mediocridade. Tenho 24 anos de idade, 1,67 de altura e atualmente tô pesando 93kg (bem alto, eu sei, culpe a pandemia). Nasci na pacata cidade de Mauá, na grande São Paulo. Conhecida popularmente como cidade dormitório, pois quem a habita geralmente trabalha na cidade de São Paulo mas não pode morar perto do serviço por conta da maravilhosa especulação imobiliária que ronda a capital. Nasci em uma família típica descendente de imigrantes italianos (metade de São Paulo é descendente de italiano né? Por isso falamos “bom djia”. O “J” vem de “bon giorno”), como todos os humanos (até o momento) nasci da cópula entre um ser de cromossomo XX e outro de XY, e para muitos desafortunados por aí, por um mero acidente, afinal, nasci em novembro, conte regressivamente o tempo de gestação de 9 meses e temos fevereiro, época de um dos maiores festivais nacionais: O Carnaval!
Sou resultado da cópula entre uma mulher dessa família descendente de italianos e de um homem de Pernambuco (peço desculpas por não conseguir ter uma árvore genealógica de origens paternas), que resultou no ser que voz fala, nascido no dia 17 de novembro de 1997 precisamente as 15h15.
Há uma história curiosa sobre o meu parto, da qual eu só posso confiar na referência extremamente verossímil da senhora detentora dos cromossomos XX, de que eu não nasceria por parto normal, de que ela supostamente não entraria em trabalho de parto, e teria de ser forçosamente retirado de seu ventre através de um estilete e de mãos enluvadas. Então no fatídico dia 17 de novembro, um dia marcado num calendário médico para um procedimento cirúrgico, eu fui tomado de assalto do ventre que me acolhia. Dizem que ao sair eu não chorei, apenas entreabri a boca numa expressão que poderia significar “que porra que eu tô fazendo aqui?”, ou simplesmente era meus músculos que não respondiam e minha boca só caiu, quem sabe. A questão é que eu só comecei a abrir meu berreiro quando a mão enluvada me virou de cabeça pra baixo e me deu um tapão na bunda. E eu que achava ruim acordar com um despertador, acordei pra vida com um tapa.
A partir daí o conteúdo é filler. Dizem que a gente só retém memórias a partir dos 3 ou 4 anos de idade, portanto só tenho fotos pra me basear. É costume nas famílias brasileiras de tirar fotos de baixa qualidade de bebês nus, geralmente jogados num lençol estendido na cama ou num tanque de água no quintal, no meu caso fui o felizardo de ter ambas. A senhora dos cromossomos XX, no auge dos seus 21 aninhos tinha uma expressão na foto como quem tá numa entrevista de emprego e o entrevistador peida e você é obrigado a continuar sorrindo enquanto o fedor entra no seu nariz. Foi a melhor analogia que consegui achar para essa expressão sem anexá-la de fato nesse documento, mas use a imaginação, bocó.
Minha primeira lembrança é meio controversa, mas me remete a uma vez quando eu tinha 3 anos e estava sentado no tapete vermelho dos meus avós brincando com uma bolinha de cor vinho, que eu tive por muitos anos. Brincar é uma palavra bem relativa, pois no caso eu segurava e olhava pra a bolinha, intrigado do porque ela era toda na cor vinho mas tinha um pontinho preto (que muito posteriormente descobri ser por onde as bombas de ar as enchem, mas minha cabecinha maquinante trabalhava pra decifrar o terrível mistério). Lembro de ver uma silhueta através da porta da sala, que era naquele vidro borrado, e senti um medo, um terror indescritível, lembro de congelar e deixar a bolinha cair quicando no chão (que devido a minha altura era o mesmo que colocar ela no chão e empurrar). A porta abria com tintilhares de chave e o barulho das rodinhas emperradas (era uma porta de correr) deslizando. Na meia luz, com uma cara terrível de acabada, parecendo um fantasma estava minha mãe. Lembro dela falando algo, soava ríspido, com meus avós que assistiam TV na sala, me pegar pelo pulso e me retirar do macio tapete vermelho. Não tive tempo de pegar minha bolinha, e ela me arrastava para casa.
Não sei quanto dessa memória está afetada pelas palavras que me ocorrem enquanto digito furiosamente, ou maculadas pelos tempos de degradação e reestruturação, mas vamos partir do princípio que ela é legítima e foi dessa forma que eu a vivenciei. Olhando pra trás, lembro do terror que sentia da figura de cromossomos XX, e posteriormente pude entender o que era aquela sensação de medo que me sondava, pois PASME, ela aconteceu algumas outras vezes: Eu era um veículo de uso. “Como assim Pedro?”, eu te explico caro leitor. Meus avós me adoravam, e ainda adoram, fui o primeiro netinho, quem não ia pirar nisso? Nasci de um acidente da filha instável e rebelde com uma idade tenra? Sim. Era menos bonitinho por isso? Sei lá. Mas a questão é que por sensação de dever ou apego, ou por simplesmente gostarem de mim (isso eu só posso teorizar sobre, desculpe) eu passava a maior parte do dia com eles enquanto minha mãe trabalhava, e quando ela chegava, fula da vida, ela tirava esse reforçador positivo das mãos de meus avós. “Vocês cuidaram dele, agora deixa eu levar o MEU filho embora”. Nesse sentido, com essa estratégia intermitente de reforçamento positivo (Skinner estaria orgulhoso, organismo de cromossomos XX!) meus avós atendiam demandas de dinheiro e de controle exigidas pela entidade conhecida como minha mãe.
Leitor, você deve estar se perguntando: Cadê seu pai nessa história? Bem, a primeira história que eu ouvi sobre dizia que ele havia ido embora e (insira aqui todos os adjetivos, pronomes e xingamentos que você possa imaginar por um intervalo de no mínimo 40 minutos, e não, não estou exagerando no tempo, talvez até sendo brando). Portanto, cresci acreditando que meu pai ausente havia me abandonado, de forma que eu deveria ser eternamente grato a entidade dos cromossomos XX por cuidar de mim, e logo internalizei a ideia de que meu genitor de cromossomos XY era um (insira aqui uns 15 minutos de xingamentos com silabas trocadas ditas por uma voz infantil).
Puxa vida, me toquei agora que faz duas páginas que tô falando dos meus 3 anos de idade. Foda-se, eu vou pular algumas coisas e resumir outras.
Genitora de cromossomos XX gritava muito, humilhava e tratava mal. O medo da figura da porta embaçada sempre foi perene em mim, e talvez por isso que eu tenha essa como minha primeira memória. Eu estou pra encontrar (ou não) uma pessoa que possa falar de forma ininterrupta e de tantas maneiras diferentes sobre o quanto ela odeia algo/alguém/um comportamento/uma série/uma banda (lista ad infinitum). Logicamente, como a criança esquisita e acuada que sempre fui, eu me policiei pra não despertar a ira da genitora de cromossomos XX, e dessa forma evitar as supracitadas humilhações e a sensação de que eu não poderia conter a enxurrada de xingamentos e falação que viriam de sua insatisfação, ou podemos chamar pelo nome popular: Menino comportado.
Claro que eu cagava no pau as vezes né, ninguém é de ferro, mesmo as crianças mais inibidas. Lembro de uma vez icônica que a entidade de cromossomos XX estava me dando comida na boca, um macarrão com molho vermelho. Estava muito quente e queimava a língua. Minha ideia infantil era deixar o macarrão assentar um pouco na boca com saliva para que fosse possível engolir. A entidade de cromossomos XX estava impaciente, ela falava sobre alguma desavença sua no trabalho, e as garfadas vinham sem muita atenção, as medidas que caberiam na boca de uma criança e sobretudo a temperatura do conteúdo. A situação descambou na minha estratégia da saliva, pois quase que instantaneamente outra garfada impaciente tocava meus lábios. Temeroso de despertar a ira da entidade de cromossomos XX e seu garfo de plástico, relutante eu abria a boca para mais uma rodada de macarrão quente que se misturaria ao meio mastigado que estava na boca e não tinha sido engolido. Bem, não preciso me aprofundar mais nos detalhes, acho que deu pra pegar bem a ideia, de que a situação virou uma bola de neve muito rápido, e aquele bolo de comida entalou na minha garganta. Contra todas as minhas vontades de desencadear a fúria da entidade de cromossomos XX eu, com lágrimas nos olhos do calor e do enjoou, não me contive e vomitei no prato e na entidade. O que se seguiu a partir disso foi uma experiência que ficou marcada no meu cerne até os dias de hoje. Deixei de sentir o enjoo, a boca queimada e ardente, e a sensação de mal estar absoluto que a bile subindo a garganta causou. Eu só lembro do olhar que a figura de cromossomos XX me deu, frio, incrédulo, raivoso. Ela segurou o olhar sem dizer nada por segundos que pareceram uma eternidade, e culpado e tendendo a não despertar mais ainda a fúria dessa figura tão aterradora eu fiz o que me pareceu mais lógico no auge daquela tenra idade: A figura quer que eu coma a comida, ela vai ficar desapontada se eu não comer, eu ainda posso consertar esse deslize meu e evitar sua ira, eu sou um menino comportado. Então com os dedos em pinça eu comecei a pegar os pedaços de macarrão triturados do prato, meio vomitados, colocar na boca e mastigar. Eu era um bom menino.
A figura me assistiu, impassível, até eu mastigar três pedaços de macarrão vomitado, até que no terceiro, por fim, ela me pegou pelo pulso e me arrastou pelo chuveiro. Cabe dizer que ao bom menino que vos fala, que esta também é a lembrança do meu primeiro banho sozinho. Bem, se você contar a intromissão a cada minuto da figura de cromossomos XX no banheiro, pra ressaltar pela centésima vez o quanto eu tinha acabado com o dia dela, talvez não tenha sido tão sozinho assim, mas pelo menos eu me lavei direitinho, e era o que um bom menino faria. Era minha culpa estragar o dia da figura de cromossomos XX, e o mínimo que eu podia fazer era me limpar, sozinho.
Eu queria dizer com toda essa breve introdução que Freud, meu amigo, você estava certo!
Mentira, não era isso que eu queria dizer. Mas sim de que minha genitora de cromossomos XX sempre fora a representação daquela figura na porta de vidro embaçada: Uma figura que deixava a criança curiosa com o idiota do pontinho preto na bolinha vinho em completo terror ante a ameaça de desapontá-la ou provocar sua inevitável ira.
Parece história de psicopata né? Você deve estar esperando pra ouvir onde eu guardei os corpos, ou se tenho minha mãe embalsamada num porão onde ainda vou lhe prestar homenagens esporádicas com o sangue das vítimas, mas sinto em te desapontar, eu anunciei que esta era uma história de mediocridade, então talvez o ponto alto seja esse, sinto muito.
Dessa forma, podemos quebrar todas essas metáforas e palavras que vem e que vão em conceitos mais palpáveis: A questão é que eu aprendi a viver de forma inibida com a constante expectativa de um evento aversivo inevitável, que por reforçamento foi assumido como culpa minha. Dessa forma, aos olhos dos estranhos eu era uma criança extremamente boazinha e comportada.
Lembro de um caso bem explícito sobre essa criança comportada que eu era, quando estava na rua com minha genitora e ela fumava um cigarro e me fazia andar saltitante com minhas curtas pernas tentando acompanhar seus passos apressados, segurado pelo pulso. Ao longe ela avistou uma amiga da rua, e como naqueles memes do facebook, ela parou pra conversar. Lembro de estar cansado, eu tinha ganhado um tênis que pisca quando você anda, que impressionantemente tinha boa parte da verba do design destinada as luzes que piscam e poucas ao solado, e meus pés doíam. Ao parar para conversar com essa amiga meu pulso marcado foi solto, e a conversa começou. “Como vai menina?!” pra lá, “Jura que o Marcos fez isso?!” pra cá, e os minutos foram se transformando em casas decimais. Lembro de puxar suavemente minha mãe pela camisa e murmurar “mãe, podemos ir pra casa?”. Não recebi respostas, mas a mão estática que segurava o cigarro ajustou seu ângulo para trás, e a ponta tocou meu braço. Não sei se foi intencional, posso estar sendo extremamente tendencioso, mas a coincidência é bem esquisita, não acha? No momento de perguntar se podíamos ir embora, a entidade de cromossomos XX que normalmente viraria e num tom ríspido falaria “Não me enche o saco, faz muito tempo que não vejo a (insira um nome feminino aleatório)“ em silêncio simplesmente ajeitou a posição do cigarro, e, discretamente me queimou com sua ponta. Claro que eu entendi o recado: O tênis de luzinha que machucava o pé tinha sido uma decisão minha, assim como as consequências das dores no pé, e eu era um estorvo. Como um bom menino eu me silenciei e esperei a conversa terminar, com o braço ardendo.
Queria fazer um pequeno adendo, que apesar de todas essas situações supracitadas, eu não necessariamente odeio a minha genitora. Já odiei, por vários anos, mas hoje a reconheço como uma pessoa difícil, com problemas, e sem experiência, tanto de vida quanto com crianças. O Pedro de 21 anos com um bebê no colo o jogaria pela janela, e o Pedro de agora também. Com a escolha consciente eu não quero passar minha linhagem para frente, para que seja tirada de assalto de um ventre do qual não queria sair, como no curioso caso de meu nascimento, para viver uma vida que não pediu, e ter de ser grata a ela, por narcisismo meu numa fantasia de eternidade. Prefiro encerrar minha história medíocre como o último de meu nome, e está tudo bem com isso.
Quando comecei a frequentar a escolinha eu sempre fui a atração da turma. Era super animado, divertido e engraçado, o palhação da turma. Lembro de um dia que a professora Edna (um amor de pessoa), na primeira série, que adorava (e odiava) meu jeito agitado de ser, me emprestou seu avental e me pediu para ir até a sala dos “grandões” (quarta série) explicar como tinha sido o passeio da escola. E admito, por mais necessitado por atenção que eu fosse, até isso era intimidador demais, e eu fiquei roxo de vergonha e não fui.
Lembro de ter diversos talentos que eram legais pra minha idade: Era uma criança curiosa, adorava assistir o Discovery Channel alternado com meus desenhos do Cartoon Network, gostava muito das aulas de ciências, e era fanático por Hot Wheels e por desenho. Eu gostava de desenhar carros, e meu melhor presente até hoje foi uma caixa de lápis Faber Castell aquarelável de 48 cores (saudades inclusive). Meu sonho era ser um mecânico que tunava carros, e eu desenhava meus projetos idealísticos e cheios de caneta gel glitter nas folhas dos cadernos e nas sulfites soltas que achava pela casa.
Lembro que ante a esse fanatismo por desenho eu fui intimado pela entidade de cromossomos XX a usar menos folha, porque “dinheiro não dava em árvore”, e tive de começar a desenvolver técnicas pra gastar menos papel pra desenhar, dessa forma eu usava frente e verso das folhas, consequentemente com menos caneta gel, senão furava a folha.
Nesses anos primevos de primeira a quarta série eu fui muito bem em todas as matérias, tinha uma relação boa com minhas professoras e com minha escola, participava das festas juninas e ganhava vários prémios legais na pescaria. Dançava aquela música do cowboy do “quem gosta de rodeio bate forte com a mão” e tudo mais, era um barato.
Bem, talvez não fosse um barato, sei lá, mas meus olhos cansados de adulto olham com saudosismo pra simplicidade desses tempos, pras cartinhas de yugi-oh e de Pokémon, pras beyblades do camelô, e pros pirulitos dip-link que eu comprava na doceria perto da escola, no gelinho sabor “azul” e nos chicletes com tatuagem. Era legal, apesar das diversas cáries que eu peguei.
Na quinta série fui pra uma escola maior, onde tinha uma professora para cada matéria e eu ficava com 45 outras crianças na sala de aula com carteiras numeradas. Não tinha mais desenhar na lousa ou falar alto com o amiguinho do outro lado da sala, o que foi uma perda grande. E aparentemente havia competidores na idealização de ser as pessoas irreverentes da turma, os descolados, que era meu posto quase incontestável na primeira escola.
Nesse sentido, comecei a buscar outras formas de me destacar. Uma vez levei minha coleção completa de figurinhas de pokemon num fichário, cada uma colocada e organizada por ordem de evolução nos seus respectivos plastiquinhos. Tinha muito orgulho dela. Mostrei para os meus amiguinhos de sala. Quando voltei pós intervalo tinham roubado meu fichário, e eu não falei nada pra ninguém. Quando cheguei em casa e contei, minha genitora diz: “bem-feito, não deveria ter levado”. E novamente, a culpa era minha, e como um bom menino eu me convenci de que Pokémon não era tão legal assim.
Minha vivência escolar não foi tão impactante assim, não tenho grandes histórias como pular muro da escola ou colocar suco tang na caixa d’água. Foi medíocre, regular. Me acostumei a ser invisível, e incrivelmente as figurinhas do Pokémon me ensinaram que eu deveria ficar em silêncio sobre minhas preferências. Lembro que quando decidi isso, um menino me dava reguadas constantemente, e eu nunca o revidei, até que um dia o empurrei na parede quando não aguentava mais, e coincidentemente a professora me viu. Novamente, minha culpa, eu não deveria ter reagido, culpa minha, prometo que vou ser um bom menino.
Talvez meu maior holofote e humilhação tenha sido um concurso que teve na escola de Miss e Mister, onde a sala elegia duas pessoas, um menino e uma menina para desfilarem na frente da escola toda, para que os professores jurados decidissem quem ganharia. Bem, no meu caso, incrivelmente eu me candidatei e fui escolhido, talvez para passar vergonha, eu não sei ao certo. Eu era uma criança gorda, e isso era uma coisa importante quando se tem 12 anos de idade. Portanto parti para o desfile, peguei minha melhor camiseta que no caso era emprestada do meu tio André, que era a melhor representação de figura masculina que eu tinha e de fato produzi uma linda faixa escrito Mister 5ªH numa tira de tecido TNT. Parti para o desfile, subi ao palco com minha coleguinha, andamos de mãos dadas, e quando olhei pra baixo, esperando ver aquela validação, vi meus coleguinhas de sala gargalhando e apontando pra mim. Realmente, fui escolhido por ser gordo. Culpa minha, se expor nunca dá certo, prometo ser um bom menino no futuro.
Cansado de ser o menosprezado, e como diria algum pensador aí, sei lá quem, “o sonho do oprimido é se tornar o opressor”, então já cheguei na 7ª série naquele pique. Zoar? Chamar de gay? Xingar o pai, a mãe? Era minha praia. Eu era um bully, mas de palavras e humilhação. Atazanei tanto um menino que um dia ele levantou e me socou no rosto. Tinha um outro garoto que o zoava também, e ele estava sentado comigo, mas a agressão foi pra mim, acho que tive boas referência de como diminuir alguém, sei lá. Não revidei, eu estava errado, revidar é ruim. Eu devia ser um bom menino e não estava sendo, falha minha.
Cheguei no ensino médio e a minha genitora tinha sido internada por dependência química. Eu desejava receber a notícia da morte dela todos os dias, esperando que isso me aliviasse do fardo que eu carregava, mas isso nunca chegou, e eu sou grato aos delírios hormonais que passaram e me trouxeram culpa por pensar nisso. Lá estava eu, e garotas eram meu novo foco (spoiler pra frente, depois eu descubro que gosto de garotos também), quem sabe um relacionamento me ajudaria a me destacar, ser querido? Tava na cara que eu não era uma figura pública, depois de ir pra uma escola grande percebi que eu não tinha o carisma pra ser o queridinho da turma, e quando fui pras garotas percebi que eu não tinha o carisma pra ser um namorador. Pelo menos eu tinha, sei lá, League of Legends? Não que seja uma boa coisa, longe de mim, mas pelo menos dava pra passar um tempo com gente, e era legitimamente bom.
Minha primeira namorada foi uma menina da escola, que só virou minha namorada quando saiu da escola, no caso. Ficamos num vai e vem muito tempo, e realmente, eu não era muito desejável, não acho que seja culpa dela. Se aparência não era meu forte, nem o carisma, talvez meu coração? Sei lá, sensibilidade? Também não sei o que ela viu em mim. Talvez tenha sido pena? Enfim, ela foi a primeira garota que legitimamente foi gentil comigo naquela escola, e para alguém desesperado por validação como eu estava, isso era maior e melhor que qualquer outra coisa. Eu estava sedento, apaixonado, perdidinho de amor. Trocávamos mensagem, conversávamos noites, e era bem legal. Quando ela se mudou pro interior começamos a web namorar, mas nos víamos esporadicamente. Claro, na frequência que dois adolescentes sem dinheiro conseguiam, que é mais ou menos 3 meses. Durou 2 anos nosso namoro. Terminamos pois ela já não preenchia esse meu vazio, a atenção já não me era suficiente, comecei a cobrá-la de muitas coisas que ela não tinha o dever de me dar, afinal, ela não podia suprir tudo que eu precisava, e não podia ser o centro do meu mundo, né? Falha minha. Relacionamentos também não eram minha praia. Eu não era um bom garoto, sempre cagava no pau. A culpa é minha, vou tentar melhorar.
Nesse período descobri algo que me deixava animado, como os desenhos de outrora: Escrever. Descobri no mundo da escrita uma liberdade de expressão de coisas que eu nem imaginava que existiam comigo, descobri que poderia escrever sobre universos que só existiam na minha cabeça, e viajar numa imaginação que eu só via ilustrada em desenhos infantis, mas nunca tinha sentido de fato. Era sentar no computador com uma xícara de café quentinha e vomitar um textão maneiro com uma imagem de fantasia daora pra acompanhar. Juro que eram mais poéticos que isso, mas bem menos pessoais. Não se pode ter tudo na vida né? Escrever, ao mesmo tempo que era incrível, se abriu para uma coisa que eu não esperava encontrar. Sabe aquele vulto na porta embaçada? Não necessariamente a pessoa minha mãe, mas aquele terror ante a uma figura humana sem forma, um julgamento, um conceito que vinha com aquela imagem: Aquilo pra mim representava toda essa cobrança, todo esse imperativo de se reprimir, de ser um bom menino, de me calar, de guardar. E bicho, coisa guardada uma hora sai.
Eu passei gradativamente a escrever menos fantasias incríveis com torres voadoras e cada vez mais mergulhar nessa repressão e nesses sentimentos intocados, os textos ficaram intensos, pessoais demais, e a única coisa que me ligava com a fantasia eram as metáforas, onde pra falar de mim eu usava um eu lírico de um lobo negro de olhos amarelos andando por uma floresta soturna. Eu me rasguei nesses textos, esvaziei como um balão furado, soltando fagulhas daquilo que estava bem guardadinho dentro de mim. Gritei por texto, espanquei o teclado em fúria enquanto escrevia, digitava absorto, imerso, maníaco. E assim se seguiu até os dias de hoje. Não consigo escrever sobre mais nada que não sobre mim. Talvez seja mais fácil que falar, que se destacar, que se fazer ouvir. Aqui tá escrito, aqui você segue meu ritmo, pela norma da língua portuguesa para quando eu mando você parar com uma vírgula, viu, tipo agora. Dessa forma eu posso me expressar da maneira mais genuína possível, numa linguagem neutra e que todos que leem devem o fazer da mesma forma. Aqui eu posso tagarelar sobre escrever um texto dentro de um texto, e tá tudo bem.
A questão é que eu nunca soube lidar com esse recém-descoberto “sentimento”. Nunca soube lidar com essa sombra, como colocaria sabiamente o Jung, que espreitava no meu cerne. O que era essa constante busca por aprovação? O que era esse vazio? O que eram esses sentimentos de êxtase seguidos de uma baixa extrema? O que era esse júbilo e esse inferno, as torres voadoras com frutos mágicos e o lobo soturno que fazia metáforas existencialistas numa clareira a meia luz?!
Fui, consequentemente, jantado por esses sentimentos. Surgiram hábitos disfuncionais, como beber e eventualmente fumar, matar aula, vadiar, me masturbar compulsivamente. Eu sempre fui a piada da minha família, era filho da ovelha negra, então imagino que as expectativas sobre mim nunca foram as mais altas. Saí da escola e entrei num cursinho, desesperançoso com o futuro, sem perspectivas de carreira. Não sabia o que eu queria fazer, e o que me movia pra frente era um único desejo “eu quero levar uma vida tranquila”. Vida tranquila pra mim significava ter dinheiro, então achei que eu queria ser médico.
Naquela época eu ainda acreditava numa falácia que eu tinha contado pra mim mesmo: “eu vivi uma vida difícil, com uma mãe viciada em drogas e agressiva e violenta pra aprender a cuidar dos outros. Eu vivi minha vida para ficar forte e resistente, e quem cruzar meu caminho não precisar viver algo parecido”. Não preciso nem dizer quantas falhas tem nessa frase né? Só de escrever já me parece absurdo. O que eu sou? Um messias? O expurgador do pecado da humanidade? Se toca Pedro adolescente, a vida não é assim não meu chapa.
No cursinho eu me percebi sem muita vontade de estudar, puta negócio chato do cacete. Eu curtia vadiar, tomar café barato na cantina e bater papo com as pessoas realmente legais que tinha no cursinho. O clima era mais adulto, você podia sair da aula quando queria, não precisava pedir pra ir dar uma mijada, e a galera era mais cabeça, então era legal, eu curtia muito o ambiente. Mas reconhecendo minhas limitações e entrando em contato com pessoas que queriam cursar medicina e estavam perdendo os cabelos no 5º ano de cursinho pra passar, eu desisti na hora. O que eu ia fazer da vida? Sinceramente, meu desejo era fazer igual aquele filme com a trilha sonora do Eddie Vadder, como era mesmo? Natureza Selvagem? O cara queima o dinheiro dele, sai andando no Alaska pra buscar o significado da verdadeira liberdade e acaba morrendo envenenado num ônibus no meio de uma geada. Parecia perfeito, curtir e morrer jovem sem ter o nome sujo na praça.
Mas como falta coragem nesse que vos fala, eu abaixei os padrões em questão de notas e pensei em cursar psicologia. Um adolescente fodido da cabeça, problemático, que nunca tinha feito terapia e tinha ideias absurdas de dobrar colher com a mente (a ultima parte é só um chiste) indo pra um curso idealizado e não conhecido, qual era a chance de dar bom?
Eu digo: Alta. Deu bom mano, eu vou me formar ano que vem. Achou que vinha outra merda? Hoje não meu parceiro, tem algumas coisas boas na minha vida também, e a faculdade foi uma feliz surpresa pra mim. Me apaixonei pela psicologia, ela é incrível, linda, maravilhosa e cheirosa (pelo menos na imagem mental que tenho dela). Mesmo sendo um vagabundo no cursinho eu passei pelo prouni na melhor faculdade de psicologia do país, a PUC-SP, puta lugar FODA, acredite, e esse é um dos poucos ganhos da minha existência do qual realmente tenho orgulho de dizer que fui eu que fiz e foi mérito meu.
Faculdade, vida nova, estudando em Perdizes com a elite financeira de São Paulo. O que podia dar errado? Literalmente tudo. Acabou as partes felizes do texto, sinto muito. Passar na faculdade foi bom, ficar nela foi uma merda. Não digo pelo curso, eu legitimamente AMO a psicologia, acertei em cheio na escolha (as cegas e se propriedade, totalmente impulsiva) da graduação, mas na prática a teoria é outra: Faculdade de elite, meus colegas de classe todos alunos do São alguma-coisa, escolas fodas de São Paulo, que custam uma fortuna, muito crânios, iam pra europa nas férias, falavam de rolê internacional como se fosse ir no shopping. Eu, habitante da grande São Paulo, não necessariamente pobre mas longe de ser rico, sem nenhum contato com desigualdade social porque né, a maioria dos habitantes daqui tá na mesma, e meus círculos de convivência eram bem homogêneos nesse sentido. Fui aprender o que era “pão e circo” no cursinho, e fui correndo contar pros meus amiguinhos de curso como se fosse a coisa mais interessante do mundo. Recebi olhares do tipo “a gente aprende isso na 4ª série cara”. Desprezo. Culpa minha, já aprendi que não posso tentar me destacar. Cadê o bom menino?
Entrei em parafuso, seja pela graduação que tava puxada, por sentir que eu não pertencia a aquele ambiente de elite e não merecia estar ali, pelo desgaste das longas 2h30 que eu gastava até a universidade para ter um curso integral, pegando horário de pico insalubre, etc. Me peguei completamente surtado no final do primeiro ano de graduação, excruciantemente massacrado por aquele vazio dos textos, supracitado. Eu legitimamente queria fugir e sumir igual o filme do cara que morre no ônibus, e eu num acesso de impulsividade tranquei a faculdade.
Agora que a merda é jogada no ventilador meu parceiro, segura as pontas que vamos mergulhar.
Tranquei a faculdade com a ideia de que eu iria experimentar coisas, cozinhar, fazer cursos, blá blá blá, mas o que aconteceu de verdade no ano que fiquei fora da graduação foi o seguinte: Fiquei BASICAMENTE deitado na minha cama, olhando pro teto, moribundo e completamente consumido por esse vazio e a deriva no meu próprio desespero. Busquei terapia nesse meio tempo, mas não bati o santo com a terapeuta, e saí de novo, um horror. Foi um ano que passou como uma eternidade, olhando pro teto, com as costas doendo de tanto ficar deitado, comendo pouco ou quase nada, e simplesmente existindo.
Numa epifania, exatamente na qual eu tranquei a faculdade, eu reabri minha matrícula, plau, tava inscrito de novo. Eu tava sofrendo mais parado em casa do que na PUC, então bora pra PUC de novo, mas dessa vez decidi que ia ser diferente, que ia tentar ser low profile, que ia ficar na miúda. Várias experiências da minha vida me mostraram que ser visto é sinônimo de agressões externas e humilhação, então minha maior estratégia seria voltar e ficar na encolha, não ser visto por ninguém, entrar mudo e sair calado.
Ironicamente essa foi a estratégia que mais deu certo, porque logo na primeira semana já estava conversando com várias pessoas na sala, que me acharam tímido e vieram trocar ideia comigo, que maravilha! Deu certo pra cacete, caladinho, bancando o tímido que na verdade era só alguém com pavor crônico da rejeição alheia eu consegui conversar com pessoas!
Pô, agora parece estar rumando para um final feliz né? Não, não está. Vou me resumir bem resumidinho, e vai parecer uma piada comparado com a quantidade massiva de texto até o presente momento, mas segue aqui:
Conheci uma menina que conseguia ser mais da elite que muitas pessoas da PUC, o pai era dono de uma pedreira foda, ela morava na região mais nobre da Paulista, o pai tinha sido prefeito de uma cidade do litoral (não vou citar nomes pra evitar exposição), endinheirada até o talo. Ficamos muito amigos, demos vários rolês juntos, e longa história curta, ela me odeia e me ameaçou de morte e usou toda a influência dela pra me queimar na faculdade.
Uau, isso ficou muito resumido devido a quantidade absurda de detalhes e firulas que eu escrevi até agora né? Ainda mais pra um negócio tão importante, mas sinceramente, tudo que você precisa saber está contido no parágrafo anterior. Pessoa rica e influente, baixíssima tolerância ao estresse, problemas amorosos externos que tive participação, ódio, influencia usada para me queimar por todo o campus da PUC a ponto das pessoas torcerem o nariz ao me olhar e eu estar fadado pra sempre a fazer trabalho de grupo sozinho, etc.
Nesse momento, eu nunca tinha tido um ataque de pânico na minha vida. Se um trouxão da internet ameaça te matar você pensa “preocupante, mas foda-se”, agora uma pessoa rica, influente, com pedreira, ex prefeito e o escambau, não te ameaça na sua cara, mas os amigos dessa pessoa (que também te odeiam) ficam preocupados e vem te contar que ela quer contratar alguém pra te matar, aí parceiro, aí é terror na certa. O que uma pessoa dessa faz com um fodido como eu? Sabe meu endereço, tem dinheiro e motivação. Dois palitos pra dois jagunços me pegarem e me desovarem ali na Serra da Cantareira pra eu nunca mais ser achado.
Nesse momento eu comecei a ter um terror de frequentar a universidade. O local que já era aversivo por si só, pronto para me lembrar de quanto eu era pobre e fodido e não merecia estar ali agora tinha protagonistas ativamente fazendo com que eu não me sentisse querido naquele lugar. Todos do campus me odiavam, me olhavam torto e me maltratavam, e o lugar que era metaforicamente hostil se tornou hostil de fato, e eu comecei a ter ataques de pânico ao pisar pra dentro da faculdade. Eu suava frio, coração palpitava. Tinha dias que eu sentava no primeiro banheiro que tinha próximo a entrada e começava a chorar, e ficava o expediente todo chorando.
Não deu outra, eu corri pra um psiquiatra, disse tudo que tava rolando comigo e ele me receitou antidepressivo e um Rivotril sublingual pra quando eu tivesse um ataque de pânico. Pedi uma receita, fui na secretaria da faculdade e tranquei o curso uma segunda vez, 6 meses depois de ter retornado, pronto pra uma nova vida. Quer moleza mastiga água né?
Fiquei 6 meses em casa de novo, completamente paralisado de terror e cada vez mais consumido por aquele vazio que me sondava desde a adolescência. Quisera eu dizer que fiz algum progresso, mas eu estaria mentindo. Surtei num dia e joguei meus remédios na privada e dei descarga, abandonei a terapeuta, e mais do que nunca nesse momento estava sendo atormentado pelo fantasma da morte, me chamando, com uma voz bem sedutora.
2019, vida nova, retornar para a faculdade. Não vou cometer o mesmo erro, dessa vez não vou falar com literalmente ninguém. Vou pegar uma matéria em cada turma pra não ter que ver as mesmas pessoas mais que uma vez na semana, serei um fantasma. Plau, a menina que me ameaçou de morte como monitora de turma. Puta que pariu, eu nunca vou ter paz na vida, eu tenho certeza disso. Lutando contra todos os fantasmas e medos que me assombravam, eu deixei a história a par pra pessoas de confiança, caso algo me acontecesse eles saberiam o que rolou e possivelmente eu seria vingado num tribunal (claro que sim, um zé ninguém contra uma pessoa extremamente poderosa, no máximo ia ter uma multa e você ia estar picotadinho na Cantareira ou passando no Datena, seu imbecil). Ano correu até que bem, comecei academia no meio do ano, voltei pra terapia, tudo tava na moral, até com namorado novo eu estava, amigos pra ver todo fim de semana, viagens esporádicas. Foi um ano bom, legitimamente.
2020, pandemia, trancado em casa sem tomar sol, recaída terrível no vazio que me sondava. Medo, pavor, gente morrendo a torto e a direito, negligência, Bolsonaro genocida na presidência. Não tinha como ficar radiante também, convenhamos. Mas no meu caso, o isolamento me massacrou de uma forma que eu não achei ser possível. Era uma lenda que eu tinha contado pra mim mesmo, de que eu era low profile, que era reservado, que não precisava das pessoas. Cara, interagir com gente dói, mas eu não sou nada sem outras pessoas. Fechado comigo mesmo só a perdição me aguarda. Eu só existo no outro, pra mim eu sou o pior ser que existe, e conviver só comigo, fechado por 2 anos me foi terrível.
Piora vai, piora vem, estamos aqui, momento atual.
Queria fazer um pequeno adendo, eu prometi que esse texto não teria final feliz, e eu fui meio verdadeiro nesse sentido. Na verdade esse texto tem dois finais, dependo das minhas atitudes que se seguirão posterior a ele. Há dois momentos que você pode acabar lendo esse texto: Ou você está chorando (ou comemorando) porque eu deixei de existir, ou você deu algumas risadinhas no meio porque eu ainda estou por aqui e tive coragem de te encaminhar tudo isso.
Queria dizer que esse texto pode funcionar tanto como um testamento quanto como uma carta de recomeço, eu não sei dizer ainda, o futuro é muito incerto.
______________ Caro Leitor,
Queria dizer que se esse for um testamento, seu título, “agradecimentos finais” é irônico. Não agradeço bosta nenhuma. Tirando alguns gatos pingados que foram excepcionalmente incríveis na minha vida e fizeram tudo isso valer a pena, até certo ponto. Se esse for um testamento, quero que saibam que vocês não têm culpa de nada. Pensem no Pedro que não queria sair do útero e foi obrigado a existir, arrancado com bisturi e tomando palmada, finalmente tomando uma decisão por conta própria sobre essa existência compulsória.
Por longos anos fui um sujeito que raramente experimentou a estabilidade, tendo como constância na vida um sofrimento indescritível. Não me entendam mal, tem gente que supera isso, eu sei que é possível, eu sei que é viável, mas se eu não tiver mais por aqui quando você estiver lendo, saiba que eu só me cansei, cansei de me debater, de me sacudir, de nadar contra a corrente. Só fui descansar, e é isso.
Aos que deliberadamente se esforçaram pra tornar minha vida pior ou excessivamente mais difícil que o normal. Aos que cagaram na minha cabeça, me maltrataram e fizeram eu sentir que tudo que acontecia era culpa minha: Eu não me matei, VOCÊS me mataram. Não individualizem esse momento, não me culpabilizem, nós vivemos num mundo material, vocês contribuíram pra isso, seus lixos. Vivam com isso, chorem por isso, eu não me importo, porque se você leu isso no contexto certo, eu não tô aqui pra me importar.
Digo e repito:
Foram vocês que me mataram.
Pedro Scarpa
____________________
Agora pra atenuar o clima, se você leu até aqui e eu ainda existo e te encaminhei isso, não foi algo que encontraram no meu computador antes de um suposto velório, parabéns, eu ainda existo, yay! Não posso dizer que a vida é boa, mas se isso chegou até você através das minhas próprias mãos, eu tomei coragem pra tentar encarar, mais uma vez, esse vazio que me sonda, no maior espírito brasileiro de sofredor convicto. Não posso dizer que a vida é boa, não posso dizer que eu tenho esperanças, não posso afirmar nada do tipo, mas como os drogadictos dizem: “um dia de cada vez”.
Eu estou disposto a continuar tentando. Não prometo nada a longo prazo pois o futuro é cheio de incertezas, mas se ainda estou por aqui significa que por hoje, eu venci, e só isso é um momento pra celebração.
Agradeço por todo o carinho e amparo, a minha terapeuta e ao meu psiquiatra, e aos meus amigos e familiares, se eu estou aqui é com a ajuda de vocês, e se esse for o final correto do texto, agradecimentos finais, como num trabalho acadêmico, é para vocês.
Obrigado por tudo, inclusive por ler minhas baboseiras por tanto tempo.
Genuinamente amo vocês,
Pedro Scarpa
Por Pedro Scarpa
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Esperança?
Eu não aguento mais.
Simplesmente não dá, eu estou a ponto de arrancar meus cabelos pelas raízes, e vomitar a bile que sobe a minha garganta todos os dias, urrar enquanto soco minha testa na parede até desmaiar. Eu me sinto completamente maluco nesse momento, mas não no termo usual da palavra... Faz meses que trancafiado em casa eu passo todos os meus dias acompanhando a realidade colapsar em volta de mim em medo, desesperança... Desespero.
De todas as formas possíveis eu fui bombardeado nesse momento, como um Judas de pano durante uma malhação, e a realidade sendo os foliões afoitos descendo pauladas na minha cabeça de pano. Estou completamente surrado, e mais do que tudo agora eu entendo qual sensação me causa tanto desprazer, tanto ódio, a bile que sobe, o sangue que pulsa nas orelhas tamborilantes e a pele que enrubesce.
Desde que a puberdade me ocorreu, quando eu ainda era um moleque catarrento eu sinto uma coisa inexplicável no meu peito. Alguns diriam que eu sou ultra detalhista, vendo cada pequena imperfeição no mundo, mas não é o caso – na maior parte do tempo sou um bobo alegre, um turista na minha própria vida, rindo e achando tudo um barato –, mas esse sentimento de que tinha uma coisa terrivelmente errada sempre me esmagou, e nas noites mais escuras quando eu deitava minha cabeça no travesseiro eu me dava conta que ainda estava ali, a par das risadas do dia, da comida gostosa ou dos carinhos de relações saudáveis que eu construí. Sempre estava ali, sempre tinha algo errado.
E antes que você, meu caro leitor, pense que novamente vou explicar a minha depressão, o imensurável vazio que sinto, a ausência de sentido inerente na realidade ou qualquer coisa dessa natureza, já te garanto que vou passar por outro ponto nessas débeis linhas, de onde as palavras no momento me parecem muito embaralhadas pra traduzir tudo aquilo que nesses meses de confinamento se construiu na minha cabeça, mas juro que vou tentar chegar a algum ponto...
Continuando: Esse vazio sempre me acompanhou e me causou desespero, desconforto e angústia. Era triste, era claramente ruim, mas era desesperador pois eu não sabia nomeá-lo. Até num determinado momento, entrei na universidade, e chegou meu grande choque com a realidade e com o mundo exterior: Eu enfrentei situações de desigualdade social, de desespero ante a ambientes alagados de onde eu tinha que andar com a cintura imersa em água pra chegar em casa em dias chuvosos, das longas 3h no metrô, num horário de pico pra poder estudar, esmagado como uma sardinha por gente igualmente incomodada, dos mendigos que me imploravam um trocado, e da mãe que carregava dois moleques no colo vendendo bolo de pote. Uma típica história que seria vendida como uma maldita história de superação, mas NÃO. PORRA, NÃO É UMA MERDA DE UMA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO, CARALHO, É UMA MERDA VIVER ISSO, É UM NOJO, É DESUMANO, É REPUGNANTE.
E junto a essas vivências me veio o estudo acadêmico do bem-estar do ser humano na faculdade de psicologia, um curso incrível que tangencia todas as áreas das ciências humanas e tenta desmistificar fontes de adoecimento psicossomáticos na vida urbana. Eu passei por pedagogia, sociologia, antropologia, biologia, planejamento territorial, geopolítica, educação, política, genética, neurologia e neuroanatomia, a porra toda. Eu aprendi de diversas fontes distintas pra construir um conhecimento pra chamar de meu, um repertório que me permitia de certa forma, compreender a realidade que me cerca, e consequentemente poder ajudar quem venha a mim buscando atendimento.
Acontece que esse repertório não só me fez compreender a realidade que me cerca em certa medida, mas compreender esse vazio que sempre me atormentou, e ficou insustentável durante a graduação. Atualmente estou medicado com antidepressivos, que aplacam a maioria das somatizações que tenho desse vazio, e regularmente frequento a terapia, que me ajuda a sintetizar todos esses conteúdos que me ocorrem, mas tem algo que nem a sertralina e nem a terapeuta podem tirar de mim, e é esse vazio.
Esse vazio na verdade é um conjunto de coisas, que unem o ator que vos fala e o palco em que atua. São coisas minhas, claro, e essas coisas minhas podem estar sendo manejadas pela terapia e pelos medicamentos que estabilizam meus neurotransmissores e não me deixam ejacular direito, claro, mas o palco... O palco é onde o bicho pega. Embora de certa forma eu possa delimitar meu figurino (até um certo ponto), controlar meus movimentos (dentro dos padrões da peça) e escolher se vou olhar para o palco e fingir que todos estão nus pra situação ficar mais aceitável e fazível, na verdade eu não comando a peça, e não comando o palco.
Claro, peça, ator, palco, essa porra toda é uma analogia pra Eu, Pedro Scarpa e pro Mundo e quem o habita, interior e exterior. Claro que eu, ator, posso fazer micro ações que impactam levemente o palco e afetam consequentemente o mundo, claro que dentro das minhas restrições de papel exercido e script eu posso dar uma improvisada quando eu esqueço minha fala, claro que eu posso, como já citado, tornar a experiência de exposição desnecessária da peça mais aceitável imaginando o publico nu, e me divertir com a cena.
Todas essas pequenas subversões na minha atuação são as ferramentas que estive exercitando com o passar desses anos, com a ajuda de múltiplos apoios: Um grupo de atores (ou relações próximas) a quem posso ter confiança de improvisar juntos, um pedacinho do palco que me agrade mais onde as tábuas não estejam tão soltas e me deixe mais seguro, uma fala do script que eu mais gosto, a oratória. Todas as ferramentas da terapia, dos remédios, das relações sociais e afetivas. Tudo que eu aprendi na faculdade que é importante pra levar uma vida sadia.
Mas ainda o vazio ainda está ali, está no palco, na peça, no diretor e na plateia. Nos outros atores, no holofote, na cidade onde essa bosta dessa analogia estiver hospedada. O problema não está nos meus pequenos atos de subversão, que aliás são minhas ferramentas poderosas que fazem eu me sentir realmente bem. Não. O problema está em tudo que não sou eu.
O problema está no mundo, o problema está nesse merda desgraçado desse presidente genocida, arrombado filho da puta. O problema está na distribuição econômica, está na miséria do mendigo que não comove ninguém que comanda a peça, mas sim eu que sou ator. A merda do problema está em gente rica doente, maluca, capitalistas abusadores, racismo estrutural. O problema são todos esses energúmenos que acham que são elite e votaram no verme do presidente.
O problema são todas as coisas que vários filhos da puta fazem. Eles cagam no palco, eles quebram a decoração e depois reclamam que tá quebrado, eles tacam bosta na plateia e esperam aplausos. E meu deus do céu, eu não consigo lidar com isso, seus desgraçados.
Eu estou tentando o meu melhor, todos os dias. Eu estou tentando fazer minha parte, eu estou tentando ser gentil, eu estou dedicando todo e qualquer centímetro do meu ser porque eu tenho PAVOR de ser um arrombado. Eu tenho pavor de machucar as pessoas como as pessoas me machucam. Eu tenho pavor de ser um acomodado do caralho, eu tenho pavor de vocês todos. Vocês são uns monstros, uns animais, uns malditos. Eu odeio vocês.
Eu odeio todos vocês, seus bostas que votaram no presidente, que desejam que gente como eu morra pela orientação sexual, cor da pele ou se tem buceta ou pica. Eu sinto nojo de você que empurra seu deus único em cima dos outros e queima terreiros de macumba, que deseja que a Palestina seja bombardeada, que apoia o imperialismo dos Estados Unidos, e o caralho a quatro.
Eu odeio você, bolsominion imundo, mal caráter, desleal, filho da puta. Eu odeio você, olavete, você que usa filtro pró cloroquina na foto de perfil, você que apoia um monstro que está matando milhares de pessoas no país, e que ri da morte do seu vizinho.
E é nesse momento que meus ideais entram em conflito. Peço perdão aos pensadores que me deram tanta luz e esperança nesse momento, peço perdão a quem conseguiu investigar os mistérios da psique humana sem perder um olhar esperançoso, porque eu já perdi toda a que eu tinha. Peço perdão a meus professores e colegas, tão otimistas e entusiastas na construção de um futuro diferente e melhor.
Acima de tudo, peço perdão, pois com tanto ensinamento humanitário, eu parei de ver humanidade nessas pessoas. Mesmo tendo conhecimento de todos os fatores sociais e interpessoais que podem atravessar essas pessoas, eu não enxergo mais humanidade. Eu só vejo monstros, bichos. Em cada bolsominion eu vejo um saco de merda seca, não uma pessoa, e isso me desespera. Em cada negacionista eu vejo um alvo que deveria ser fuzilado.
No meu âmago eu sei que já perdi todas as minhas esperanças na humanidade, todas as esperanças em dias melhores. Eu só queria que todos esses lixos fossem varridos da face da terra, para que as coisas pudessem se reconstruir com gente melhor, e se isso tivesse que me tirar também, por alimentar esse ódio, que seja.
Por mais que me doa e me cause imensa divergência intelectual e culpa, eu odeio vocês todos que fazem do mundo um lugar pior, e eu preciso externar isso.
Esse vazio que me atormentou na minha vida toda, o que mais me dói é que ele não foi culpa minha. O sistema econômico não é culpa minha, as leis trabalhistas não são minha culpa, a onda de ódio instaurada através desse presidente genocida também não é minha, quiçá o próprio capital, a pobreza e a miséria. O que me dói e viver num mundo onde a pilha de merda feita por outros seres humanos desprezíveis ainda fede no meu nariz. O que me dói é viver num mundo horroroso, e ter a certeza de que eu não ajudei a fazer essa putaria toda. E de alguma forma eu me sinto liberto pra ter pequenos lapsos de prazer com minhas ferramentas, liberto de saber que não é minha culpa, mas eu tenho certeza... Esse buraco vai continuar em mim até o último dos meus dias...
Eu já perdi toda a esperança em dias melhores...
Por Pedro Scarpa.
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Mosaico
Eu nunca entendi muito bem como isso funciona, sabe? Eu nunca entendi que tipo de magia bizarra, efeito de cura milagrosa ou autocompreensão zen que existe em redigir torpes palavras quando a angústia me bate no peito. Realmente não sei que tipo de refúgio milagroso - e consideravelmente inconstante - eu construí quando dialogo com a figura sábia que desambiguei de mim. Faz muitos meses que estou engolfado nesse caos, sem nenhuma luz de compreensão ou momento reflexivo. Faz meses que danço conforme a música que decidem tocar, como aqueles movimentos desastrados e vergonhosos, forçosamente descontraídos quando estamos num evento familiar e decidem por música. Me sinto como aquele garoto bobo e espinhento do ensino médio, que não tinha relações sólidas e sentia vontade de chorar, como aquele infeliz garoto que encontrou abrigo nas coisas banais, e se maravilhou com a magia que palavras unidas pudessem harmonizar sentimentos. Aquele garoto que viu que pontos e vírgulas, e uma leitura atenta fazem música na cabeça, que vê as palavras e a intensidade se formando mesmo quando não há um caps lock ativo. E por quê? Por quê eu tinha que me refugiar em algo tão difícil?! Por quê minha dor não pode ser racionalizada e analisada? Por que não consigo simplesmente... Pensar...? Eu preciso mesmo de um ritual tão grande, tão trabalhado, com a harmonia correta, o sentimento correto, e essa inspiração que vem de um vazio desconhecido? Por quê é tão difícil? Por quê é tão custoso?
Eu... Sinto tanto medo. Eu me sinto tão desamparado. Sinto tanta dor, aguda, que de tão reprimida, nem cutuca mais. É como se estivesse num estado letárgico, onde por reprimir tanto, o sentimento de tristeza parou de existir. O que sinto é sim uma imensa angústia de não estar completo, de me sentir em pedaços, completamente fragmentado. O que sinto é um sopro... Uma espécie de sopro, que constantemente exala um ar frio, como um duto de ar de prédio: Parece sempre que ele está preparado pra jorrar vento e te fazer ficar como uma atriz hollywoodiana que segura a saia, mas só há aquele ar fresco e decepcionante, saindo. Sinto um grande vazio, um som de estática, um chuvisco de TV e um zumbido de rádio dessintonizado. Uma despessoalização comigo mesmo. Uma morbidade, um desapego que passou dos limites. Sinto que as coisas já nem estão mais socadas no fundo do meu cu, mas que simplesmente... Sumiram. De minha tristeza sobra um eco distante, um descontentamento latente, um sentimento de repressão imenso que mascara e à traduz de formas imprescindivelmente erradas. Sinto todo tipo de coisa extrema e desproporcional, mas nunca mais testemunhei o que era aquela melancolia fria e reflexiva, conclusiva e findadora. Nunca mais testemunhei o que eram aquelas noites onde o café esfumaçante me deixava em claro e eu me condicionava e expelir meus sentimentos mais profundos e dar-lhes um sentido. Quantas decisões importantes vieram desse sentimento? Com certeza infindáveis. Quantos marcos foram pontuados por um teclado frenético e uma digitação intrépida e voraz que tremia a mesa? Mas com certeza o saudosismo de uma época que já não existe, não colabora com meu atual vazio. Com certeza esse sofrimento velado mascarado de alcoolismo, boêmia, intensidade, originalidade... Com certeza isso é expressão da minha melancolia, do meu vazio, da minha tristeza que outrora era incalculavelmente grande, e hoje parece incalculável só pelo fato de não ser mais tangível... Tornou-se uma variável tão mínima, um coisa tão distante e despersonalizada. Um eco de uma lembrança fugaz, que me angustia imensamente por não lembrar como era o sentir. Escrevo essas palavras, e tento organizar uma expressão do que sinto, a fim de resgatar algo que me pertence, e que ninguém - por mais que eu queira - pode fazer por mim. Faço um marco para o ano que passou, e esse que está iniciando, e ante a essa angústia e esse medo incalculável que sinto nesse momento, refém desse sentimento de luta ou fuga, onde a pressão sanguínea sobe, as pupilas dilatam, e sua barriga gela, eu me disponho não a correr, mas a enfrentar e olhar o que acontece aos olhos críticos e precisos da parte despersonalizada que criei pra julgar minhas ações. Meu tribunal pessoal, onde atrás dessas palavras, os olhos que as fitam ponderam imensamente sobre os sentidos múltiplos do que é dito. E isso é curioso, sabe? Há uma fragmentação tão grande do que seria tido como "eu", que é como uma divisão até política sobre as coisas. Eu presto contas a esse tribunal quando sou negligente, e considerando minhas ações, sou juíz, réu, júri, corte e carrasco. Mas uma função inerente a todas essas fragmentações é a de carcereiros: É a função de prender, da coerção, de vetar.
Mas um sentimento de revolta nasce com a punição: A negligência. E com justificativas bem convincentes, o instituto da negligência apresenta suas propostas: "Poxa, eu me machuquei muito ontem a noite. Eu mereço dormir o dia inteiro". "Me estressei bastante na aula ontem... Não pega nada ficar em casa hoje, certo?". E com suas propostas aparentemente boas, há então um descompromisso para com todas as pessoas - inclusive comigo mesmo -, onde o descaso é tamanho que sequer escovo meus dentes, ou levanto após horas e mais horas ponderando. Aparentemente sou um grande palco despersonalizado entre a punição e a indulgência, onde me polarizo para não ter que lidar efetivamente com minhas questões existenciais e traumas. Aparentemente como um corpo fechado, que simula um bem estar, reproduzo comportamentos e atitudes, que até eu mesmo acredito que são reais, a fim de afastar essas coisas que nunca vão embora. E é fácil convencer as pessoas quando até mesmo a gente acredita: O melhor mentiroso é o mentiroso ingênuo que acredita no que fala. Acreditar que eu estou bem, forçar esses comportamentos... Exige muito de mim. Me dá fadiga emocional, fadiga corporal. Eu... Canso. E só quero então sair correndo, ou simplesmente ficar quieto no meu canto, e correr pra dentro de mim, me fechando atrás de muitas portas de trancas duplas. Me sinto como um presidiário atrás daquela grosso vidro de acrílico que ele fica quando recebe visita: Do outro lado está a realidade. E ligando a gente há aquele telefone de fio duplo que permite essa comunicação. É como se o telefone tivesse gravações minhas, e que outros "eu" que controlam a sala de controle liberam as gravações, sempre no mesmo tom, sempre as mesmas falas tranqüilizadoras e serenas, sempre uma positividade construída e estabilizada através de uma crença cega, um desejo imenso de ser aquilo. E eventualmente essas gravações, feitas sim em momentos genuínos, acabam sobrepondo minha voz quando quero gritar e espernear, e o vidro grosso segura meus golpes, minhas cadeiradas, e ninguém consegue ouvir os lamentos enquanto como aquela cacofonia alegre conforta o mundo e me impede - novamente - de clamar por socorro. Eu não sei que conclusão eu quero ter com isso: Se quero clamar por socorro, em um tom fatalista, chorar e dizer que não consigo sozinho... Mas não é isso. Não é isso que me aflige. Não é sobre clamar por ajuda como se ninguém estivesse aqui. Eu sei que estão me oferecendo ajuda. Sei que o mundo se importa. Não, não... É sobre se permitir. Sobre olhar pra esse vidro grosso que me separa da realidade, e saber que este também sou eu. É olhar pros carcereiros cruéis na sala de controle, e saber que TAMBÉM SOU EU. É olhar pras cadeiras estropiadas que eu uso pra bater no vidro, e saber que TAMBÉM SOU EU. Ver os rachados no vidro, as mãos machucadas de tanto socar, e ter certeza: Sou eu. A prisão sou eu. E principalmente: O MUNDO LÁ FORA TAMBÉM SOU EU. É egoísta e nojento clamar por ajuda quando saboto toda a ajuda que se dispõe a me dar. É imundo cuspir na mão de quem está aqui por mim e depois chorar dizendo que preciso de ajuda!!! EU NÃO ME PERMITO. EU NÃO ESTOU CONSEGUINDO ROMPER ISSO. EU NÃO ESTOU CONSEGUINDO ME SENTIR PESSOALIZADO, ME SENTIR INTEIRO, ME SENTIR UNO COMIGO MESMO. ESTOU INACESSÍVEL, PRESO DENTRO DA MINHA PRÓPRIA LOUCURA E SISTEMÁTICA BIZARRAS ONDE AS SIRENES TOCAM EM AUTO DEFESA. Sou esse amontoado de falhas e pedaços, como um mosaico disforme e caótico. Dadaísta e incompreensível, mas que eventualmente luta e esbraveja pra extrair um significado. Sou um mosaico, lutando pra me sentir também, bonito. Um mosaico... Colorido e vivaz. Em uma igreja puída e acabada, que jaz belo pelos escombros. Que se torna perfeito em sua imperfeição. E eu ainda estou vivo.
Por Pedro Scarpa.
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O Lobo e o Gato
Nas minhas andanças por essa mata fechada e escura, volta e meia eu me deparo com ilustres figuras que sabe-se lá o porquê aceitam a árdua tarefa de andar ao meu lado. Pegam o fardo pesadíssimo que é partilhar de minha penosa existência, e de minha deplorável e autodepreciativa caminhada.
Negligente como sou, autodestrutivo, mesquinho e odioso. Sanguinário, ardiloso… Sangrando e pingando o tempo todo, sempre com esse maldito sorriso no rosto, sempre com essa falsa positividade e essa necessidade extrema de fugir de qualquer reflexo que eu possa ver nos espelhos de água pela floresta fechada. Fugindo de qualquer reflexo de minha cara acabada e de minhas olheiras enormes, fugindo de qualquer indício da depreciação e da miséria que me sujeito. Fugindo de qualquer sentimento que possa me tirar dessa maquiação toda, qualquer reflexo que possa desbotar essa máscara que me disponho a vestir ante a minha decrepitude que não tenho coragem de encarar.
E mesmo assim, fantásticas e ilustres figuras aparentemente enxergam algo em mim que os faz querer ficar e talvez caminhar um pouco comigo…
Primeiro tinha uma corsa. Dei-lhe um bote um dia e ela quis ficar. Andava sobre uma rédea curta e era esquiva como só ela. Dava-me coices o tempo todo, e queria correr, mas no seu encalço eu ia, conforme ela saltitava e parava, esperando eu alcançá-la, de forma que no seu joguinho, ela me tinha nas mãos, sempre esquiva, e sempre me pondo no movimento de perseguí-la.
Depois encontrei um beija-flor. Com esse pássaro esfarrapado eu decidi não cometer o mesmo erro de idealizar como fiz com a corsa. Eu via a corsa como a própria lua, a minha razão de viver, minha maior paixão, e todas essas pataquadas de besteirol adolescente. Com o beija-flor eu decidi enxergar ele só pelo que ele era: Simples, mirrado, gentil e bonito. Sem idealizações. Mas eu levei isso muito a sério: Ocorreu uma idealização inesperada, uma exacerbação de todas as qualidades, e para todos os mirabolantes e desgraçados defeitos do beija-flor, ao invés de entender o que eu sentia a respeito deles, eu simplesmente os maqueei através de uma máscara de “ah, ela é assim mesmo”, “ah, isso tem uma justificativa, porque se aconteceu A na infância dela, é normal que ela reproduza hoje B na vida, de forma que obture aquela relação frustrada”. O grande problema do beija-flor foi ignorar o imenso mal que ela me fazia. Foi passar por cima de todo e qualquer sentimento ruim porque ela ameaçava voar, e eu queria que ela ficasse mais um pouco. A miserável não tinha esforço nenhum pra estar ao meu lado, agia como se a minha presença fosse completamente descartável, e como se eu que tivesse que ceder sempre, mesmo quando estava certo, em prol daqueles caprichos infantis e estúpidos.
O beija-flor as vezes tinha o peso de um mamute em minhas costas: Afinal, eu deixei ela subir, e nunca pedi pra descer. Abriguei-lhe do frio da noite, recolhi ela sobre o teto de minha toca, apresentei-a a minha matilha e trouxe ela para meus dias cotidianos, o que me proporcionou vários momentos bons. Mas quando suas asas feridas se curaram, ela simplesmente alçou voo para outro ninho, dormiu com outro predador (o da pior espécie, o predador que se faz de vítima), e depois voltou com a cara deslavada pra voar acima de mim contando vantagem, e cagando na minha cabeça com a sua ingratidão. Eu deveria ter comido aquele beija-flor sujo antes dele me tirar tanta coisa…
Atualmente limpei o cocô de pássaro da cabeça e me recuperei do rombo que aquele beija-flor ingrato deixou em minha vida, juntei todos os cacos dos inúmeros bebedouros que eu deixei apostos pra ele, joguei fora sapatos e quinquilharias, usei com gosto seus cosméticos e sabonetes, risco as folhas em branco com seu material de escrita. Fiz o possível pra tampar esse rombo absurdo que esse pássaro desgraçado deixou em meu peito, essa amargura de nunca ter expressado, de ter aguentado suas bicadas incessantes contra minha cabeça, de ter aguentado ele pedacinho por pedacinho comendo as partes moles do meu corpo e depois querendo se aconchegar e me roubar calor. Parasitado por um pássaro.
Enquanto o beija-flor alçava voou, nessa floresta torpe e escura eu avistei um animal que simplesmente não encaixava com a atmosfera selvagem e bucólica: Um gato doméstico.
Ele me encarava com aqueles olhos inexpressivos de felino e de uma forma despretensiosa e delicada, caminhou, com o cabo dançando, e com aquele desinteresse sedutor em seus passos. Com seu charme ela suscitou minha curiosidade: O que esse animal faz por aqui? E por que não tem medo?
O gato não se intimidou com o ser decrépito e machucado que eu sou, e provou ser um gato vadio, um gato de rua, que carrega também muitas feridas e marcas do tempo e de maus tratos. Carrega no peito um coração grande o suficiente pra sentir por dois, e na cabeça a astúcia de um animal que se filiou ao mais esquisito e cruel dos animais: O homem. Logo, a gata tinha um trunfo que nenhum outro animal daquela floresta tinha: Ela adaptou-se e condicionou seu comportamento pra ser dócil e doméstica, e assim aprendeu e evoluiu com o bicho homem.
Esquiva e inconstante, mas ainda assim charmosa e sedutora, a felina escondeu-se na grama alta, e com grande curiosidade e apreensão eu me enfiei pra procurar ela. Ela mancava e tinha espinhos de roseira enfiados por todo o corpo, e isso me provocou dúvidas. Então veio o choque: Deliberadamente ela, de forma dolorosa, se embrenhava entre os galhos espinhentos de uma roseira, em busca de um acolhimento que aquelas folhas não poderiam dar-lhe, e em sua carência imensa, aceitava ser furada e machucada para que tivesse onde repousar.
Observar essa passividade e essa relação violenta entre a roseira e o gato me deu calafrios.
Lembrei de minha relação com os outros animais, de como a corsa me ludibriava e me atraia pra armadilhas, de como o beija-flor comia de pouco em pouco os meus pedaços moles, e aquilo me revirou o estômago. O gato naquela cena de cortar o coração, como um gato vadio que deita em qualquer canto, mesmo furado ronronava e buscava conforto em meio a uma superfície que nunca a deixaria dormir tranquila.
Naquele momento tomei uma decisão: Faria pelo gato o que ninguém fez pelo lobo. Tiraria ela dessa situação.
Embrenhei-me na roseira e ela de súbito começou a me atacar, me arranhar e tentar me estrangular. Quanto mais perto eu chegava do gato, mais a roseira me machucava, mas mesmo banhado de sangue e suor, eu me motivava pra continuar, e aquele gato miava, mas simplesmente não levantava do seu leito “confortável”, como se tivesse medo de deixar a roseira e vir comigo. Mas rasgando os galhos com os dentes, e proferindo algumas palavras tranquilizadoras, o gato saiu pela brecha que eu abri, e deixamos a roseira pra apodrecer sozinha, atrás no caminho.
Desde então esse gato doméstico machucado tem andado comigo, o lobo fodido e estropiado que manca das quatro patas. Diferente do beija-flor, o gato não tem anseios de subir em mim, diferente da corsa, ele não fica correndo e se esquivando a fim de me atrair. O gato tem seu jeito peculiar de lidar com as coisas: Ele ronrona, roça o rosto nas coisas, chama atenção, mia incessantemente, chora e pede petiscos e carinho nas orelhas. Mas algo sobre os gatos domésticos sempre remete ao seu estado mais primordial e rústico: Por isso eles precisam de arranhadores, ervas de gato, caixas e coisas pra escalar. É algo que simplesmente nunca os deixa. E nesse gato que encontrei, isso se manifesta em súbitas arranhadas e mordidas, que vem de formas inesperadas, geralmente durante os carinhos ou os petiscos, e sempre arrancam sangue. O gato machuca de formas inesperadas, naqueles sentimento súbito de nostalgia de sua natureza como animal, totalmente justificável, mas não menos doloroso - pelo menos isso o beija-flor me ensinou.
Decidi andar ao lado do gato, que abastado de regalias humanas comprou-me roupinhas de cachorro e me paga refeições caras. Seu conhecimento do mundo dos homens se faz totalmente útil, enquanto por minha vez eu tento ensiná-la o que é estar novamente sobre regimento de instintos bem afiados.
Espero não ansiar devorar e consumir. Espero sinceramente que o gato, embora negativo e machucado como eu, fique pra tomar um chá, ou que simplesmente não me abandone como os outros que não aguentam minha presença… Espero não saturar, ou não querer matá-lo.
Vários animais passaram e provavelmente muitos outros ainda passarão, mas a caminhada só para quando ela acaba...
Por Pedro Scarpa.
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Devorador
Meus olhos estão doloridos e desfocados... Talvez estoure mais algumas veias nele, e eles fiquem ainda mais feios e manchados, marcando eternamente em minha retina essa flagelação que eu me disponho todos os dias. A visão está turva, e o olho direito desfoca com mais frequência que eu gostaria. Minha postura provocaria calafrios em qualquer fisioterapeuta, parecendo que quero fazer um cosplay de tartaruga ninja, e não efetivamente ser uma pessoa.
Estou abusando da minha boa vontade, e de coisas do mundo que podem me adiar ou apaziguar essa dor que eu me evito sentir. Estou me sentindo ébrio, consideravelmente alcoolizado. Bêbado e instável. Com aquela sinceridade que só alguém que bebeu duas garrafas de vinho barato conseguiria ter. Com os olhos chorosos que eu já não sei se são de sono ou de tristeza... Com a boca seca e a bexiga cheia de água pra excretar. Com músicas tristes tocando, e com aquele sentimento excruciante de que talvez o mundo existisse melhor sem mim.
Meu remédio acabou hoje. Isso implica que vai demorar cerca de 4 dias até o novo remédio estar pronto. E isso também me deixa agoniado. Disseram pra não misturar o remédio com a bebida, mas eu fiz isso não uma, mas várias vezes, e pareceu muito okay fazer isso, já que só me senti ligeiramente mais sensível, e nenhum efeito colateral do tipo, plantar bananeira no almoço de família. Mas hoje, especialmente quando eu JÁ estava me sentindo um merda, beber não pareceu uma boa ideia. Considerando essa sensibilidade excessiva com esse sentimentalismo e associado com a perca de limites proporcionadas pelo álcool, eu acabei me entregando a tristeza que estava tímida e escondida dentro do meu coração.
Sinto como se eu fosse um lobo desgraçado que rega as roseiras e as plantas bonitas de um bosque porque elas crescem e atraem presas. Então eu me escondo no meio daquelas flores bonitas e espero até a vítima estar cativada pela beleza do meu jardim... Corro, salto e dou um bote. Subjugo e domino. Tenho pra mim, mordo o pescoço e seguro firme na garganta... Você é meu agora.
Como o lobo desgraçado que eu sou, eu não mato a presa, mas a coloco em posição de inferioridade. Eu a acuso, e monto nela. A estupro, procrio com ela. Mordo seu pescoço, seguro em suas inseguranças, bato-na com seus medos e problemas, e digo numa postura muito realista sobre suas limitações. Pareço um messias vestido de branco e com boas intenções, mas aparentemente tudo o que eu quero é que a presa se disponha, que me dê tudo que possa.
Eu faço a presa correr, e eu brinco, sorrateiro, atrás dela. Faço tudo parecer um jogo. Se a presa quer foder, nós fodemos. Se a presa quer cantar, cantamos. Se ela quer dançar, dançamos. Se quer que eu pegue uma bolinha, eu corro e pego. E eu gosto disso. Mas inevitavelmente eu vou exigir mais da presa. E ela vai travar e não saber muito bem como proceder. “Poxa, mas ele fez tudo que eu queria... Eu poderia ceder meu pescoço um pouquinho pra ele morder...”. E com esse sentimento de gratidão culpada eu ganho tudo que quero. Eu tenho tudo que quero. Eu CONSIGO tudo que quero.
Sendo um manipulador desgraçado eu galgo o meu caminho de importância na vida das presas, e banco o passivo indefeso até que elas se exponham e achem que devem ser predadas mesmo. Eu faço a presa sentir que é sua obrigação ser predada, e que não pode pestanejar quanto a isso. Eu subjugo de forma sutil, quase imperceptível, onde esse sentimento de autopiedade, culpa e dívida se reverte nas minhas vontades. Onde a presa faz o que eu quero, quando eu quero, e da forma que eu quero. Eu exerço poder sobre as pessoas através da virtude de me importar com elas.
Associado a isso vem aqueles sentimentos infelizes. Onde as pessoas se sentem inferiores a mim, porque reconhecem que estão sendo alvo de alguém insosso e desprezível. Onde veem que se meteram em uma enrascada, e olhar o jardim bonito talvez não valesse tanto a pena se soubessem que tinha um lobo faminto espreitando no capim alto.
Eu sou uma pessoa imunda, que sempre faz tudo pra conseguir o que quer. Mas a questão é que eu não sei o que eu quero. Então faço me darem tudo. Como um predador que consome até o tutano dos ossos, eu como tudo. Não saber o que eu quero me faz querer sempre mais. E querer sempre mais implica em exigir e devorar. E fazer a presa se entregar.
Eu me sinto essencialmente mal com isso. Como um porco nojento e imundo. Que manipula e exerce controle de forma sutil. Como um predador passivo-agressivo, que constrói um chamariz bonito de grandes roseiras e flores para atrair as pessoas, mas que na verdade essas coisas bonitas são só adereços pra esconder a verdade de que eu sou uma criatura voraz. Um lixo, que consome tudo.
Nunca nada está bom o suficiente.
Eu tenho fome...
Por Pedro Scarpa.
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Levantar Voo
Um dos pré-requisitos pra você querer ficar era que eu nunca fosse te prender. Como um beija-flor livre você poderia voar, ir e voltar entre as roseiras, e se aconchegar no meu peito quando quisesse dormir, e quisesse fugir do inverno gelado que açoitava aqueles bosques.
Eu te prometi regar as roseiras e te levar pra vê-las, e nunca tirar uma rosa sequer do seu lugar porque algo que era bonito não deveria ser arrancado de suas raízes só por sê-lo. Te prometi uma xícara de chocolate quente quando as coisas ficassem ruins. Te prometi um ninho quente no meio do chão, que sempre foi aonde eu tive que dormir por ser fadado a ter pernas, e não asas como você.
Sempre admirei a sua capacidade de voar, beija-flor da asa ligeira. Mas quando você escolheu passar alguns anos ao meu lado você pousou. Pousou na minha cabeça de lobo, e bagunçou meus pelos, bicou minha orelha e comeu os carrapatos das minhas costas. Uma hora ou outra bicava mais forte, puxava algum pelo, fazia algum barulho alto demais e eu me irritava.
Quando eu me fitava no lago, via você sentada ali, e sentia raiva. Você se acomodou, e suas asas são batiam mais, asas estas que eu admirava – e invejava – porque eu não as tinha. Você podia voar tão fácil! Podia bater as asinhas e tocar os céus, enquanto se eu quisesse estar perto dos céus, tinha que sentir cada metro sobre as patas e subir as montanhas com uma árdua escalada. E eu senti raiva de você por preferir estar pousada mesmo tendo asas.
Eu não sou um labrador, não sou um husky siberiano, manso. Eu abano o rabo sim, eu sou bobo, eu faço truques e corro atrás de bolinha... Mas eu não sou só isso. Eu sou predador, e você presa, beija-flor. Eu senti vontade de te rasgar a garganta e te devorar. E por várias vezes eu tentei te morder quando os instintos sobrepujavam o cão sorridente.
Eu falei que ia regar as roseiras pra você vir quando quisesse, mas eu esqueci de um detalhe importante: Por que eu regava aquelas rosas? A princípio, era pra mim. Sempre gostei de vê-las bonitas. Mas depois que você chegou, eu passei a regá-las pra você, e por isso eu não tinha mais tanto prazer em ver meu próprio campo florido.
Não me entenda mal. Foi ótimo ter você.
E você tem razão: Nós dois somos o Yang. Nós dois somos negativos. Nós nos repelimos.
Eu sou o lobo soturno e que sempre machuca as coisas. Você o pássaro que nunca vai conseguir parar num único ninho.
Me dói ver você indo embora, não porquê eu tenha apego por você, porque eu acredite em amor romantizado ou estereotipado. Não vou correr atrás de você. Mas é como se eu quisesse latir, uivar, rosnar, porque assim você pode sair voando, e voar é... Uma capacidade só sua. Você não deveria descer as copas escuras onde eu moro se você pode tocar os céus.
Nunca foi fácil pra mim dizer adeus...
Eu ainda vou regar as roseiras.
Por Pedro Scarpa.
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Cheio de Coisas Vazias
O bloco anêmico me encara novamente naquele tom dúbio de questionamento. Um grande questionamento para o qual não há resposta. Um questionamento do qual ninguém saberia efetivamente responder. Um questionamento do qual não é feito uma pergunta, não se suscita uma resposta, não há elaboração e nem conclusões. Sem roteiro e sem seguimento. Os pensamentos não têm um fluxo adequado. Está tudo tão... Caótico.
Me sinto cheio, abarrotado até a boca. Como uma fonte em uma praça cujo uma das saídas de água entupiu e está encharcando as lajotas da rua. Me sinto como uma merda de um hidrante vedado hermeticamente e sem poder vazar, uma merda de um caminhão pipa que acabou a gasolina e está parado na estrada. Aliás, essa analogia do combustível é perfeitamente cabível: Imagine que para que as coisas andem seja necessário que haja um mecanismo, um motor, onde todos os seus componentes funcionem de acordo para que a máquina rode. Se faz necessário também que tenha rodas, para que a energia do motor se converta em cinética e gere movimento, mas só isso não faz o veículo andar. É necessário também um movimento externo que faça então uma estrada para que seja possível as rodas girarem e ter movimento.
Por todos esses anos carregando essa dor, esse desprazer extremo, essa maldita dor incurável e esse vazio absoluto eu acabei por construir esse veículo. De sucatas e como um homem das cavernas, batendo pedra em pedra como um gorila, como aqueles jogos saturados de sobrevivência onde você coleta recursos como gravetos e pedriscos e constrói coisas que são refinadas a partir de recursos naturais brutos. Disso saiu o veículo. Depois eu pavimentei a merda da estrada até o final – e acredite, o final eu enxergo todos os dias –, o que é estranho, porque o final seria necessariamente a morte, mas eu não tenho medo da morte, e isso gera uma afinidade com ela. Bem, talvez eu tenha medo de morrer, mas não da morte em si, por mais paradoxal que isso seja, como diria o espírito da floresta “a morte só é ruim quando a parte de morrer passa”. Pois bem, eu asfaltei essa maldita estrada até o final, me preparando para paradas como aqueles restaurantes apetitosos na beira de rodovias com seus frangos assados gostosos – essas paradas eu fiz questão de construir também.
Agora imagine que está tudo pronto, e que eu andei com meus pés pelados em cima de pedriscos afiados e carreguei pedras nos ombros e bebi o veneno das cobras, esmurrei paredões de concreto e bati minha cabeça contra portas de madeira – o que é real e o que é onírico fica ao seu cargo descobrir – e construí essa merda toda, e toda vez que eu tentava seguir por essa merda de estrada faltava algo pra lapidar, algo pra construir, pavimentar, rebitar, parafusar, checar, chovia, dava terremoto e o caralho a quatro. E agora, finalmente agora que essa porra devia andar eu estou aqui de novo empacado me sentindo um lixo inútil imundo do caralho.
EU SINTO TANTA RAIVA, EU SINTO TANTO DESPRAZER, A VIDA NÃO É DAR MURRO EM PONTA DE FACA, ENTÃO POR QUE A FACA TÁ ENFIADA NOS MEUS OLHOS?!
Eu sinto vontade de quebrar todo o meu esforço, de linchar o veículo e quebrar ele todinho a pedradas, sinto vontade de me rasgar inteiro, de gritar até vomitar sangue, de esmurrar minha própria cara, de me jogar no chão até minhas costelas quebrarem. Minha cabeça está tão cheia, tão cheia... Tão cheia. Cheia. TÃO CHEIA!
Cheia de nada. Cheia de coisas vazias.
Imagine que essa estrada e essa merda de metáfora idiota está toda construída, que essa porra toda tá toda pronta pra zarpar, e foda-se que zarpar é pra barco. Imagine que tudo isso tá prontinho pra girar e seguir. E de repente isso tudo se encontra sem combustível.
Sem. Combustível.
Imagine que você está todo estrupiado e sangrando por conta da merda de vida que leva, e finalmente descobre como ajeitar tudo, e isso seria pavimentar a estrada. Coloca metas e sonhos, como o Frango Assado gostoso que tem na beira da estrada, coloca limites e paradas estratégicas como os pedágios. Constrói do zero uma porra de um carro enquanto bate pedras como um macaco pra descobrir como fazer uma coisa extremamente complicada, e de repente percebe que tudo está pronto mas falta combustível.
Não dá pra fabricar petróleo. Não dá pra cavar com a unha até o lençol freático atrás de suquinho de dinossauro. Falta a porra da energia pra fazer isso tudo rodar.
Pensa no que é acordar de manhã e não ter energia nem pra coçar a merda do seu saco, não ter energia pra levantar o dedo indicador pra desligar o despertador, não ter energia pra falar bom dia para as pessoas e muito menos levantar da cama. Pensa no que é não ter essa gasolina que te move, que te impulsiona. Ser uma âncora de você mesmo, que precisa ficar vomitando merda de palavras numa merda de teclado num bloco de notas branco que fica me questionando sobre as coisas e nunca me dá resposta nenhuma.
Me falta energia, vontade. Eu vejo a minha vida muitas vezes como um fardo maldito que nem eu aguento carregar. Eu insulto as pessoas, eu sou rude, grosseiro, manipulador. Eu sou um ser humano nojento, mas isso é reflexo do jeito imundo que eu me trato.
Estou empacado, exausto, sem energia. Com tudo pronto, mas sem energia. Com as coisas arquitetadas, mas sem energia. Com a vida pela frente, mas sem energia.
Eu estou cheio, de coisas vazias.
Por Pedro Scarpa.
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