Tumgik
murungueira · 6 years
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Odisseia Roqueira em Vila Valqueire
Dia 7 de novembro de 1993 foi um domingo. Neste dia, eu e mais 3 amigos chegamos cedo ao trailler (a versão anos 90 do food truck) chamado Biba's, em Barra do Piraí. Repare que a história é tão antiga que biba ainda nem era gíria usada pra debochar de homossexuais.
Bem, dizia eu que chegamos lá, mas ainda não disse o motivo. Estávamos indo preparar o local para receber o show de uma das bandas mais faladas do underground carioca, a Gangrena Gasosa.
Semanas antes, conversamos com os caras por telefone pra saber o que seria necessário pra tocarem lá. Não tínhamos dinheiro, mas o cara do trailler disse que daria uns sanduíches pra eles e nós fecharíamos o espaço de maneira que pudéssemos cobrar ingresso e o dinheiro arrecadado iria pra pagar a gasosa do Gangrena.
Achamos por bem não mencionar no contato telefônico que éramos moleques de 15 e 16 anos sem experiência alguma em produção de show e que na verdade a gente só queria ver a banda ao vivo. O mesmo expediente foi usado posteriormente com Poindexter, Cabeça e provavelmente outras bandas cariocas das quais não me lembro agora.
Enfim, fechamos o local, os caras chegaram, almoçaram lá em casa uma macarronada que minha mãe fez, rolou o show, a grana dos ingressos foi pro tanque e na conversa pós show, eis que Ronaldo Chorão comenta que uma ou duas semanas depois, tocariam no Garage, com Cabeça e Piu Piu e Sua Banda.
Nessa, meu amigo Lúcio sugeriu que eles deveriam deixar a banda que tínhamos abrir o show deles na mítica casa de shows underground carioca. Chorão topou na hora, sem saber porra nenhuma da nossa banda.
A banda era um embuste total e absoluto.
O baterista sabia uma única batida (punk rock), eu era o guitarrista porque tinha guitarra e pedal de distorção. Todas as músicas que compus eram tocadas em power acordes até o primeiro La da Mi bordão. Ou seja, da quinta casa em diante, nada era tocado. Jamais.
O baixista era destro, mas nasceu com dois braços esquerdos. Por impossibilidade física ou mental, não sabemos, marcava as notas com o dedão da mão esquerda. Os demais dedos jamais tocaram o braço do instrumento.
Já o vocalista era o que valia o ingresso. Uma mistura de G. G. Allin com Jello Biafra e Iggy Pop. Berrava, ficava vermelho, ofendia o público (quando havia algum) e comandava o baile mongocore.
O nome da banda, Engodo We Trust, acabou virando título de música do Gangrena anos depois. O hit da demo tape era uma linda canção chamada Suck My Saco.
Foi esse pacote que o Chorão estava permitindo que invadisse o palco antes deles.
Pra facilitar, disse que nos emprestariam os instrumentos para que não precisássemos levá-los de trem no antigo trajeto Barra do Piraí - Paracambi - Japeri - Central. Disse também para não comentarmos porque ele não avisaria ao Fábio, proprietário do Garage, que iríamos tocar.
Entre o show em Barra do Piraí e a ida ao Rio, geral animadaço. Porra, íamos tocar numa das casas mais respeitadas da cena roqueira nacional.
Acho que meus pais não faziam ideia de onde eu estava indo. Nenhuma mãe dp interior deixaria hoje o filho de 15 anos ir para o Rio de trem, saltar em um local famoso pela prostituição (fica ao lado da Vila Mimoza) com 4 amigos retardados.
Na manhã do grande dia, grana curta, partimos de trem os quatro da banda mais um amigo que nos ajudaria com o som. A preocupação principal não era com graves, microfonias, médios e agudos que sairiam pelas caixas. Ele era o único que sabia afinar os instrumentos. Sem ele, nosso virtuosismo ficaria severamente comprometido.
Algumas horas sacodindo no trem e chegamos. Lugar irado, casa enchendo, Cabeça, do Fábio Kalunga faz o primeiro show da sua história ali, depois Piu Piu e sua Banda quebram tudo e, ao final, Chorão nos entrega os instrumentos e a gente entra correndo antes que o Fabio perceba o que está acontecendo. Público também entendendo porra nenhuma, olhando com cara de "que porra é essa?", Lucio declama um poema ofensivo (do Glauco Mattoso, talvez) na introdução de Suck My Saco e, finalmente, a porradaria canta no salão quando a gente toca Papai Noel, dos Garotos Podres.
Conseguimos! Tocamos no Garage e não apanhamos nem nos atiraram nada. Sucesso total!
Gangrena no palco, ideias sendo trocadas, eis que nosso roadie conhece um cara que curtiu o som da banda e, sabendo que dali iríamos pra rodoviária Novo Rio passar a noite sentados numas cadeirinhas pra pegar o primeiro ônibus de volta para Barra do Piraí, nos convidou para dormirmos em sua casa. Convite imediatamente aceito. Note a falta de bom senso dos 5 rebeldes sem causa. Um cara que eles nunca viram antes os convida para dormir na casa dele, que ninguém sabe onde é, e todos topam.
Fim do show do Gangrena, vamos com o cara.
Ponto de ônibus na praça da Bandeira. O cara se senta no chão e todos fazem o mesmo. Passa 1 minuto, ele se levanta. Todos se levantam. Chegou o ônibus, né? Não! Ele faz um giro sobre seu próprio eixo e senta novamente. Todos sentam.
Mais 2 minutos, ele se levanta novamente, seguido por todos. Agora é o ônibus!
Não. Novo giro e senta mais uma vez.
Na quarta repetição, ninguém mais o acompanha. Todo mundo já entendeu que ele vai girar e sentar.
Lá pela décima vez em que levantou, se mete num ônibus. Os cinco barrenses levantam correndo e entram também no ônibus. Enfim, vamos pra... pra onde mesmo? Não sabemos nem o bairro, mas deve ter lugar pra deitar.
No ônibus, ele conseguiu sentar ao lado de uma garota que também estava no show. Começou a conversar com ela. Nós não tivemos a mesma sorte e fomos em pé.
Quando ele se levantou do banco do ônibus conversando com a garota, girou e sentou novamente, começamos a rir ao mesmo tempo em que pensávamos "fodeu, o cara é maluco!" No ponto de ônibus, podia estar levantando por alguma dormência na perna por estar sentado no chão, sei lá. Mas no ônibus, o que justificaria?
Depois de uns 40 minutos e muitas levantadas e giros, ele se despede da garota, puxa a cordinha pedindo a parada do coletivo. Descemos em frente a um bar onde duas mulheres se espancavam, rasgavam a roupa uma da outra, puxavam cabelo e o diabo a quatro. Os 5 barrenses, óbvio, espantadíssimos. O maluco? Passou como se fosse a coisa mais normal e corriqueira e seguiu seu caminho. Corremos para alcançá-lo e andamos uns minutos na madrugada de Vila Valqueire, agora sabíamos o nome do lugar, até chegarmos a um muro alto com portão também alto de madeira, que impossibilitavam ver o que havia do outro lado. Nesse momento, ouvimos a reconfortante frase:
- Esperem aqui que eu vou perguntar ao meu padrasto se vocês podem ficar.
Hein? Como?
Ele prossegue:
- Não, melhor. Entrem. Esperem aqui no quintal enquanto eu falo com ele.
Entramos e ele trancou o portão. Escuridão total ali. Algum cachorro grande latindo pra cacete e nós encostados no muro torcendo pra que ele não nos alcançasse. Ele abre a porta de casa e fala com o padrasto, que provavelmente acordou com o barulho do cachorro.
- Tem uns amigos meus de Barra do Piraí pra passar a noite.
O padrasto teve a reação que qualquer cristão com bom senso teria:
- Barra do Piraí? BARRA DO PIRAÍ É O CARALHO! VÃO FICAR PORRA NENHUMA QUE MINHA CASA NÃO É ALBERGUE!
O cachorro, para endossar o texto do dono, aumentou o volume e a frequência dos latidos. Pânico total. O baixista me pede pra apoiar o pé dele com as mãos pra que ele conseguisse alcançar o topo do muro pra sairmos dali, pois, segundo ele, o padrasto nos mataria a todos e enterraria ali mesmo no quintal. E o imbecil aqui deu o apoio a ele, mas com dois braços esquerdos é muito difícil pular um muro e ele não obteve sucesso.
O enteado rebateu o bom senso do padrasto com sei lá que argumento e voltou pra nos contar a má notícia que já havíamos ouvido.
- Tem problema não. Abre o portão pra gente poder sair. Rápido!
Abriu, saímos. Ficamos ali dentro por uns 5 minutos intermináveis. A sombria madrugada de Vila Valqueire pareceu acolhedora em comparação com o quintal com Cérbero de guarda.
E agora?
5 analfabetos geográficos em termos de Rio de Janeiro, com pouco dinheiro, de madrugada, numa época sem celulares. O que fazer?
Quando tudo parece perdido, aí que Deus faz a diferença. Jesus Cristo que o diga.
Nosso novo amigo giratório saiu conosco em solidariedade e tem a brilhante ideia:
- Aquela menina que conheci no ônibus é gente boa e me explicou mais ou menos onde ela mora. Se a gente for lá, aposto que ela deixa vocês ficarem.
4 de nós bateriam nele se soubéssemos como sair dali depois. 1 de nós achou boa a ideia. Ignoramos e seguimos andando. A hipótese mais provável era conseguir um ônibus pra perto da rodoviária ou da Central do Brasil.
Eis que nos deparamos com um taxista lavando seu carro às 3:00h da madrugada.
Porra, vamos dar uma ideia nele.
- Irmão, tem como levar a gente na Novo Rio?
-Ih, não. Já parei. Tô lavando o carro pra guardar.
- Pô, amigo, quebra essa. A gente não é daqui e não tem onde ficar.
O taxista, piedoso e de bom coração, pensou e lançou um preço tipo bandeira 18.
Reunimos o dinheiro, descontando o custo do ônibus pra Barra do Piraí e devolvemos:
- Ó, temos tanto. Rola?
O total devia ser o equivalente a uma bandeira 5. Pra ir pra um local que estávamos pertinho, se não tivéssemos seguido o homem-redemoinho.
- Ok, levo vocês.
Nisso, o amigo que pensou que seria uma boa ideia achar a casa da tal menina e pedir abrigo sugeriu voltar a essa ideia. Se não que achássemos, usaríamos o táxi.
Teve que ser dissuadido da ideia com algumas ameaças à sua integridade física.
Sentados no táxi, nos sentindo como na cena final de Pague Para Entrar, Reze Para Sair, ainda tivemos que ouvir do taxista:
- De onde vocês são não tem maluco, não?Esse cara que trouxe vocês a gente percebe que é maluco antes de virar a esquina.
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murungueira · 7 years
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A Mensagem que Ninguém Quer Receber
O telefone vibra no bolso. Uma única vibração. Eu, antes mesmo de pegá-lo, já intuo o que seja. Ao mesmo tempo, torço para que seja outra coisa. Aquela esperança vã e ao mesmo tempo necessária. Já havia sido alertado sobre a condição ruim, mas esperava que ela tivesse mais tempo, uma sobrevida maior. Aquele desejo egoísta de não querer ficar sozinho, sabe? Todo mundo conhece essa sensação. Enfio, enfim, a mão fria no fim do bolso e pego o telefone. Olho, já quase chorando, a tela e está lá estampada a mensagem que ninguém quer receber jamais: Bateria Extremamente Fraca.
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murungueira · 7 years
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Não digam que não avisei!
"Senhoras e senhores da turma de 2003: Filtro solar! Nunca deixem de usar o filtro solar Se eu pudesse dar só uma dica sobre o futuro seria esta: Usem o filtro solar!" Com essas frases, Pedro Bial abre o cd intitulado Filtro Solar, com mensagens no melhor estilo auto-ajuda. Um conceito estranho, se considerarmos que em qualquer produção de auto-ajuda é o autor que pretende (teoricamente) ajudar a outros. Logo, não é auto-ajuda. Mas, isso realmente não vem ao caso aqui. Citei essa abertura porque ela me veio à cabeça outro dia num momento de irritação. Se em vez do Bial em 2003, fosse eu hoje, em 2017, dar apenas uma dica para o futuro e bem-estar das pessoas, seria esse: "Senhoras e senhores: nem pensem em responder àquela mensagem pretensamente engraçada ou bem intencionada de um conhecido ou parente apenas por educação, para que o remetente não fique "no vácuo". Confie em mim, você vai se arrepender pra sempre. Ele vai entender um simples "hehe" ou qualquer emoji simpático como um "por favor, continue enviando pra mim qualquer coisa que você receber" e você se arrependerá toda vez que seu celular travar pela quantidade de arquivos inúteis e sem graça enviados através do aplicativo, lembrará do meu conselho toda vez que a bateria do seu telefone (e sua, por consequência) descarregar por receber 20 mensagens, vídeos e fotos da mesma pessoa diariamente. E você saberá que percebeu tarde demais que não deveria mesmo ter sido simpático naquela primeira mensagem."
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murungueira · 9 years
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A Transubstanciação
Fenômeno triste, porém curiosíssimo, ocorre milhares, senão milhões, de vezes, diariamente em quase todas as lanchonetes desse Brasil varonil. Todos já o presenciamos mas ainda carecemos de um estudo profundo, que o descreva e explique. Qual de vocês já não olhou babando para um salgado magnífico e virtuoso na prateleira de uma lanchonete, indicou o mesmo para o atendente, que prontamente o pegou e te entregou de bandeja? Todo esse processo ocorreu diante dos seus olhos e, apesar disso, ao chegar às suas mãos, já não é mais o voluptuoso quitute que você apontara 5 segundos antes. O salgado que nos chega à mão é um pálido arremedo daquele que nos seduziu do outro lado do cálido vidro. Não se sabe ao certo como, mas no caminho entre a prateleira da estufa e nossa mão, algo ocorre. Na impossibilidade de acusarmos o balconista de ter trocado o salgado, já que este o fez, repito, bem na nossa cara, comemos esse salgado que nos é entregue e que só de olhar sabemos que é ruim. E ruminamos como, diabos, isso aconteceu. Como não acredito no milagre da transubstanciação, desconfio que todo atendente faz um intensivo de prestidigitação para enganar-nos feito um David Blane do balcão. O concreto, além da massa, é que NUNCA é o mesmo salgado. Hoje, confesso que por pouco não meti o dedo na cara do atendente e gritei que queria o salgado que apontei, ricamente recheado e fofinho, não aquele que me foi entregue, pura massa seca. Os atendentes saberiam que eu desconfio da troca, porém os outros clientes, ainda ignorantes da manobra ou ainda com vergonha de admitir que são enganados há anos, poderiam me agredir. Mas, decisão tomada, dedicarei o resto dos meus dias (encurtados pelos salgados massentos) a desmascarar essa máfia de avental, rede no cabelo e boné.
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murungueira · 11 years
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Onde vamos parar?
Quando estou viajando de trem no meu habitual trajeto Central - Campo Grande - Central, tenho frequentemente a sensação de estar num universo paralelo, tamanho o número de bizarrices diárias. Toda sorte de produtos à venda, pessoas de todos os tipos, com humores e comportamentos os mais diversos. Mas o que eu vi hoje bateu todos os recordes de bizarrice. Imaginem vocês que um casal que viajava próximo a mim levantou-se para descer quando as portas se abriram na estação Deodoro. Quando já estavam fora do trem, um rapaz que viajava ao meu lado gritou pelos dois, levantou-se em um salto, rapidamente foi até o banco onde o casal havia sentado, pegou uma carteira que haviam deixado para trás, foi até a porta que já ia se fechando, entregou ao casal, que demorou um pouco a entender a sorte que dera. Entao, voltou e sentou-se novamente ao meu lado. Tive vontade de me levantar e trocar de lugar. Contive-me, mas acho que a cara de asco não consegui disfarçar. Ora, não sabe esse rapaz que vivemos no Rio de Janeiro, onde só a malandragem existe e que a regra é levar vantagem em tudo? Não vejo a hora de chegar em casa e tomar um banho. Vai que isso é contagioso...
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murungueira · 11 years
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Cara Ciumento
Sexta-feira, 24 de janeiro de 2014, 7:50h da madrugada. Estou num vagão frigorífico da empresa Supervia, em direção ao trabalho. Pra quem não costuma usar o serviço de trens urbanos da capital fluminense, esclareço. A Supervia tem 2 tipos de trens: um que te cozinha e outro que te congela. Normalmente, eles usam o congelante no inverno e o forno elétrico no verão, mas hoje parece que alguém se confundiu e veio a Antártida em forma de trem.
Pois bem, dizia eu que estava num desses vagões frigoríficos, espantado de ainda não ter passado por mim nenhum urso polar ou um enxame, cardume, manada, cáfila, bando ou seja lá qual for o coletivo de pinguins. O fato é que espantosamente não havia lá pinguins nem focas para me fazer companhia e ao mesmo tempo me entreter. Entediado porque esqueci o livro da vez no consultório e o Jornal dos Sports, que habitualmente é distribuído na Central do Brasil, hoje não apareceu. Pra me distrair apenas o celular com uma conexão de internet precária.
O trem parou por alguns minutos para aguardar a liberação da pista e o meu vagão parecia aquela clássica cena do filme Titanic pós naufrágio. Um silêncio ensurdecedor, como diria Nelson Rodrigues. Devido ao congelamento iminente, as poucas pessoas que dividiam comigo o Atlântico Norte sobre trilhos estavam caladas, curvadas sobre seus próprios corpos, tentando em vão manter algum calor no corpo até que um navio viesse nos salvar ou, pelo menos, até a próxima estação, quando as portas se abririam e permitiriam que um pouco do calor excessivo do verão carioca nos desse uma sobrevida até a próxima estação. Exceção apenas para uma usuária de crack à minha frente, trajando minissaia e top, que se coçava e se mexia freneticamente. Cheguei a pensar em pedir o isqueiro que ela provavelmente tinha para acender seu cachimbo para eu fazer uma fogueira no canto do trem. Na falta do DiCaprio, o Leonardo a ser congelado seria eu.
Era esse o quadro quando, de repente, vem lá do outro lado do vagão um assovio sublime, sobrenatural, do tipo que só os idosos conseguem. Alguém assoviava Jealous Guy, do Lennon. Uma das minhas preferidas do garoto de Liverpool. E esse alguém assoviava com uma afinação e ritmo tão perfeitos que pareciam editados. Os pelos do braço arrepiados, provavelmente pelo frio, ganharam outro significado e automaticamente o humor fúnebre do vagão se transformou. De imediato passei a murmurar a letra da música acompanhando a melodia do assovio, a senhora ao meu lado começou a bater de leve a ponta dos dedos na coxa, marcando o ritmo e cantarolando um lalalá, da mesma forma como minha avó costumava fazer sempre (tenho pra mim que ela nunca soube a letra de música alguma. Só o lalalá a interessava.). Em outro ponto gelado do trem, um senhor batia a aliança num suporte metálico, tentando acompanhar o ritmo, mesmo com alguma dificuldade. Não deu pra conter o sorriso ao constatar mais uma vez do que a música é capaz. Até o frio pareceu menor.
Pista liberada, trem em movimento. Estação Marechal Hermes. Desceu apenas um passageiro. Levou com ele o assovio e deixou conosco o frio e o tédio.
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murungueira · 11 years
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Bangu? Chegamos!
Uma coroa senta ao meu lado no trem ali pela estação Engenho de Dentro ou alguma estação vizinha, e me pede para avisá-la quando chegar em Bangu porque ela nunca havia andado de trem. Logo em seguida, aluga meu ouvido e emenda um falatório tão chato e interminável que na estação seguinte avisei que já era Bangu e a ajudei a descer. Voltei então à minha leitura de O Evangelho segundo Jesus Cristo, do Saramago. Não acreditar no inferno tem suas vantagens.
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murungueira · 11 years
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Bangu 78°C
13:30h. Trem de Bangu para Campo Grande. Sem ar condicionado. 78ºC. Mas eu sou daqueles que percebe o copo meio cheio, quando outros poderiam notá-lo meio vazio. Tem uma coroa loira sem 2 pré-molares e uma pálpebra meio caída me secando tanto que, pelo menos, não vou chegar suado.
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murungueira · 11 years
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Há Esperança?
Às vezes, você está indo almoçar, caminhando desanimado e pensativo, remoendo questões como a espionagem internacional que gerou o imbróglio entre Brasil e EUA e toda a questão do aquecimento global (sim, sempre vou almoçar pensando nessas questões) e, não mais do que de repente, você percebe que no rádio do estacionamento ao lado do seu trabalho, onde invariavelmente sertanejos universitários invadem os ouvidos de todos que por ali transitam, um belo dia ( e esse dia é hoje), desse mesmo rádio sai o riff de guitarra inconfundível de Walk, do Pantera. Imediatamente concluo que, das duas, uma: ou o tempo fecha imediatamente e começa a chover fogo e enxofre e até o final do dia está tudo acabado ou ainda resta um fio de esperança à humanidade. #oremos
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murungueira · 11 years
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Rindo de quê?
Coisa curiosa acontece na Central do Brasil diariamente e, mais do que isso, dezenas de vezes por dia: o brasileiro fudido, que depende da SuperVia para se locomover na cidade maravilhosa do trânsito cada vez mais caótico, dentre os quais me incluo, e que chega de trem à estação terminal Central do Brasil, tem uma diversão de moleque travesso. Mas o marcante pra mim é que não são moleques travessos que se divertem. São trabalhadores de todas as idades que riem alto (altíssimo, eu diria) de outros trabalhadores brasileiros que deram o azar de depender também do trem, porém, com o agravante de terem que fazer a viagem no sentido de maior fluxo. Então, ocorre o seguinte: os passageiros do trem que chega bem vazio (onde, por sorte, invariavelmente me incluo) descem do trem pelo lado determinado para o desembarque e param do lado de fora aguardando para ver as portas do lado de embarque se abrirem e divertem-se observando outros brasileiros (e brasileiras, diriam Sarney e Dilma) fudidos, que trabalharam durante todo o dia, se acotovelarem para tentar fazer a viagem de volta pra casa sentados. Dia sim, outro também, no instante em que as portas se abrem e a multidão estoura como uma boiada, alguns caem no chão nesse empurra-empurra e tratam de levantar logo antes de serem pisoteados. Uma cena realmente vergonhosa para um país que se pretende grande. E o que faz o fudido brasileiro (ontem, entre esses, um cara de muletas, com uma das pernas completamente imobilizada) que acabou de sair do trem? Caga-se de rir, aponta para os que se dão mal, grita como num rodeio e segue seu destino com um baita sorriso no rosto. Dá-me sempre a vontade (mas me falta a coragem) de perguntar: tá rindo de quê, ô fudido?
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murungueira · 12 years
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Kit Maleta
Trem para Campo Grande, 7h da matina, entra no vagão um vendedor com o seguinte texto: - Amigos, hoje eu tenho aqui o kit maleta. Aqui você tem tudo: lápis de cera, aquarela, canetinha, lápis de cor, giz pastel... - Tá quanto o pastel?, pergunta um débil mental de algum lugar do vagão. - Eu disse GIZ PASTEL, amigo!, tenta desfazer o engano o vendedor. - Tem de quê?, pergunta outro. E foi o suficiente para o cara guardar o kit maleta na bolsa e esperar o trem parar na próxima estação.
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murungueira · 12 years
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Cultura
Acossado pelos intelectuais do facebook, que o mandaram ler um livro ao invés de assistir ao BBB 13, obedeceu: desligou a televisão e foi ler "O Diário de Um Mago", que uma ex-namorada tinha deixado em seu apartamento.
Ao final do primeiro capítulo, levantou-se, foi até a geladeira e pegou uma cerveja. Foi até a lixeira, onde jogou a tampinha de sua long neck e o livro. De volta à sala, derramou-se no sofá, ligou o foda-se e a TV e, vendo Anamara de fio dental tomando sol, lembrou-se do motivo pelo qual passara algum tempo com a ex. E não era literatura.
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murungueira · 12 years
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Conectado
Acordou cedo com o despertador do celular, aproveitou e conferiu o facebook, postou "bom dia", entrou no twitter, onde postou "vou tomar banho", não tomou banho, escovou os dentes com o celular na mão esquerda, saiu de casa para o trabalho, entrou no elevador onde já estavam 3 vizinhos, não disse bom dia a nenhum, verificou no elevador se alguém havia curtido o seu "bom dia" virtual. Como não havia, buscou uma frase de Clarice Lispector, retorno garantido e imediato, e postou enquanto atravessava a rua. Nem viu quando foi pego em cheio pelo ônibus da linha Leblon - Rodoviária. Ficou espalhado no chão enquanto os passageiros do ônibus faziam videos para postarem no youtube.
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murungueira · 12 years
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O Acaso Não Existe
Sacudia no trem diário e ordinário na volta do trabalho, que aturava apenas em função do necessário ordenado de subsistência. Se o cachorro do ex-marido não a tivesse abandonado com um filho pequeno, já teria chutado o balde no emprego na C&A, onde, mais do que o salário, odiava a obrigação da maquiagem carregada e do cabelo apocalíptico. Como hábito adquirido há pouco, aproveitava a viagem para enriquecer sua alma lendo livros sobre espiritismo. O dessa semana era O Evangelho Segundo O Espiritismo, recomendado por espíritas vivos e mortos desde o século XlX. Determinada a terminar o livro ainda nessa viagem, seguia concentrada quando um vendedor de picolé derrubou seu livro ao esbarrar com o isopor. Como num filme da Sessão da Tarde, levou a mão ao livro ao mesmo tempo em que o rapaz do assento lateral. As mãos se tocaram. Ela, constrangida, deixou que o rapaz o resgatasse do chão. Ele o pegou, passou os olhos pela capa e esticou o braço em sua direção a fim de devolvê-lo. Olhando fixamente em seus olhos enquanto ela ruborizava, disse “o acaso não existe!”. A frase provocou o efeito desejado. Ela concordou com um arremedo de sorriso e imediatamente esqueceu do trabalho, do trem, do filho. Restou apenas a certeza absoluta que aquele gentil e bem vestido rapaz estava ali por um motivo. Finalmente, o universo conspirava a favor! Na estação seguinte, seu vizinho de cadeira desceu e ela, já sem conseguir se concentrar no livro, torceu para que o apanhador de livros escorregasse para o seu lado, o que aconteceu imediatamente. Pronto! Era mesmo o destino. O susto e a vergonha iniciais já tinham passado e ela lhe deu um sorriso, que foi prontamente devolvido acrescido de um estender de mão e uma apresentação oficial. Ela encantou-se imediatamente. Parecia que ele lia sua mente. Dizia tudo que ela sempre quis ouvir, tantas coisas em comum, gostos, pensamentos, afinidades as mais diversas… até a estação onde desceriam era a mesma. Aceitou o convite para um caldo de cana sem pensar duas vezes e o primeiro beijo aconteceu bem em frente aos pastéis de queijo. Se ele a pedisse em casamento naquele momento, ela já tinha até escolhido as madrinhas. Ao invés disso, ele disse que seu carro  estava próximo e ofereceu uma carona, que ela sabia, poderia virar uma esticadinha. Refletiu por meio segundo, lembrou-se do filho e ligou para uma vizinha, que seria, sem dúvida uma das madrinhas do futuro casamento. Contou que se atrasaria um pouco e perguntou se ela poderia ficar um pouco mais com o garoto. Diante da resposta positiva, agradeceu à comadre em voz alta e a Deus em pensamento e foi ser feliz. Atravessaram a rua em meio à chuva e viraram a segunda à direita. Entraram no carro encharcados. - Que bom que o banco tá forrado com plástico, senão eu ia molhar todo seu carro.  A compreensão veio antes da dor. Uma navalhada precisa de lado a lado em seu pescoço, a sensação do sangue jorrando, o entendimento que iria morrer e, só então, a dor, ao notar o leve sorriso nos lábios do ser amado. E o nada.
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