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Uma sabiá que quer pertencer somente a si
Ontem foi aniversário de minha mãe. Todos os anos, nesta data, procuro por fotografias antigas, leio as cartas que ela gentilmente recebeu de parentes, amigos e amores, leio até mesmo a agenda telefônica, e procuro por suas pequenas anotações outrora corriqueiras. É uma forma de manter sua memória viva, e dar um respiro à saudade. E ontem, ao concluir meu ritual, gritou em meu peito o poder dos registros escritos à mão.
Diários, cartas, apressadas anotações, listas de afazeres... a alma, no final das contas, talvez more no papel.
Durante todo aquele dia, mergulhada no passado e em sentimentos ternos e exclusivos - pertencentes apenas a mim, minha mãe e nossas vivências - me vi refletindo sobre uma questão que há anos tornou-se pauta não só para mim, mas para muitas pessoas (nem tão) anônimas ao redor do mundo:
o anseio de se pertencer a si.
Nestes últimos anos minha vida esteve dinâmica demais, atordoada demais. Muitos problemas por resolver, muitas pendências a pôr em dia. As pendências e os problemas, no entanto, eram apenas meus, e diziam respeito apenas a mim: ao saná-los, eram os meus dias que se tornariam melhores. E, de fato, tornaram-se, mas não completamente, não como eu esperava. Existia uma poluição inebriante, um ruído insistente, que de forma gradativa cobriram meu horizonte e aturdiram minha percepção - eu deixei minha vida escorrer para o breu.
A constante atualização do meu cotidiano e intimidade nas grandes redes sociais acabou por me roubar de mim. Se do roubo da vida nasce a morte, uma parte minha percebeu-se morta: não existia mais no presente, tampouco no passado; encontrava-se em lugar nenhum, em tempo nenhum, emoldurada por uma bruma densa e talvez um tanto perversa que limitava seus passos e sua visão.
Percebi que enquanto parte de mim escapava, e eu não mais era inteira, a felicidade tênue do cotidiano perdia sua potência e seu sentido. As memórias eram furtadas de seus significados. E então o que era inestimável se rarefez.
Não foi a primeira vez que esta inquietação percorreu minhas veias: há alguns anos um questionamento parecido me levou a excluir duas grandes redes sociais azuis. Há meados de uma semana, excluí a rosa - ou degradê. É verdade que essas reflexões talvez sejam obviedades recorrentes nas agendas de publicações internet afora. O comportamento moderno da sociedade em que vivo e me relaciono, e da geração à qual pertenço, é discutido ferozmente em todos os locais e não locais. O que eu estava sentindo com a vida não privada, no entanto, tornou-se um guincho genuíno. Note que não me oponho a redes sociais - afinal estou aqui, e tão pouco nego suas relevâncias e praticidades (aproprio-me delas em bom tom). Apesar disso, minha relação com aquelas tais redes não só inflamou sintomas de ansiedade e insônia, como também, de forma crítica, sequestrou para sempre alguns de meus momentos. E na brevidade inédita que é a vida, isso é uma perda irreparável.
Por certo tempo interpretei aquele acervo de fotos cuidadosamente escolhido, com suas subsequentes legendas cuidadosamente pensadas, como a reinvenção dos meus diários. Mas a tentativa de naturalidade e crueza era errante. Como eu poderia, afinal, expressar-me com toda a legitimidade da minha alma sensível e intensa, se aquele registro não era meu? Aliada à minha deslealdade para comigo, eu permitia que minha intimidade (ainda que não tão íntima) fosse invadida por estranhos - alguns mais conhecidos, outros menos. Nunca soube, e talvez nunca venha a saber, a origem da minha necessidade em compartilhar cada aspecto da minha vida em um lugar não lugar ocupado por centenas de pessoas, das quais poucas realmente compartilham a vida ao meu lado. Ao percorrer imagens e legendas de anos anteriores, meu coração bateu vazio. Dispensável.
Ao mesmo tempo, é tão precioso deparar-me, depois de anos, com um de meus diários que sequer lembrava que havia escrito, e encontrar ali uma letra parecida com a minha - ainda que fosse outra. É uma experiência quase mágica, e com certeza muito potente, revisitar memórias perdidas no tempo, relatadas com toda a honestidade e entrega que somente a relação íntima entre papel e pessoa proporciona. Para mais,o significado de uma fotografia informal e privada ecoa por toda e através de uma vida, e é agraciado com o poder de, às vezes, transformar o tambor do peito em uma lágrima quente. Lembrar alguém é doce, criar memórias possíveis de serem lembradas é o açúcar. Entendi o que dizem sobre a vida ser agora, mas a vida também já passou, e mora aninhada nas memórias. Dizem, ainda, que a importância das memórias é guardar a alma...
Tal qual a de minha querida mãe, eternizada no papel.
Talvez seja o ideal de uma existência pertencer a si, e não acredito que o simples ato de apertar um botão virtual que me garantiu a inexistência nas grandes redes sociais expositivas não privativas seja o fim definitivo dessa busca. Mas a liberdade de não compartilhar minha intimidade confere aos meus dias um caráter místico e leve, e proporciona às minhas vivências memórias verdadeiramente valorosas que resistirão para além de meu corpo. Aquela neblina embriagante que impiedosamente me estrangulou e atordoou, enfim, se desfez. E agora me vejo imersa em um cotidiano mais simples, mais meu. Com cheiro de ar puro. Com gosto fresco.
E os outros seguirão. Os outros passarão... eu, passarinho.
Escrito por Epifanias Sazonais
Citação: Mario Quintana
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