cartabertapara
cartas para ninguém...
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depósito de mágoas
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cartabertapara · 3 years ago
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carta 01 | sou eu, cicatrizes (03h42)
Oi, sou alguém em algum lugar. Uma mulher, uma mulher preta. Nesta página vou escrever sobre coisas que gostaria de dizer a alguém, mas não posso. Será um espaço de desabafo e depósito. Que eu consiga aqui, deixar tudo para trás. Soltar o que há de mais inflamado no meu peito.
sou eu, suas cicatrizes
Sou uma mulher preta. Sempre fui pobre, passei por momentos difíceis que me fizeram, por vezes, pedra. Sou o tipo de pessoa que amedronta por face, mas quando começa a falar, se transforma em uma mulher doce e sincera.
Por muitos anos sofri pela minha aparência. Pasmem, sou a famosa "parda". Mesmo com uma certa vantagem nesse mundo racista, o meu cabelo, meu corpo, nunca deixaram de ser alvo de piadas. Lembro de ser chamada de vassoura quando criança, por ser magra e ter o cabelo bem armado. Lembro de como me olhavam na escola, lembro de como me chamavam, eu lembro. Isso fica, impregna. Como eu nunca consegui me debruçar nos prazeres da juventude, por ser uma adolescente com muitas cicatrizes, resolvi focar em outra coisa que não fosse beijar na boca ou transar.
Minha família é nordestina, mas vivemos em São Paulo. Eu nasci na Bahia, interior. Meus pais não tiveram muitas oportunidades em relação aos estudos, então meu pai sempre foi extremamente rígido com minhas notas e as notas das minhas irmãs (sim, tenho duas). Então entendi que o meu foco seria estudar. Eu nunca fui gênia, sempre fui destaque, mas o parâmetro da sociedade é alto e, a comparação que posso fazer é: entre as pessoas do meu nicho, eu sempre fui considerada nerd. No ENEM as coisas mudam, mas essa não é a questão, rs.
Na adolescência, eu vivia com o peso de não ser aceita, ao mesmo tempo era cobrada pelo meu pai. Sim, eu apanhava feio se tirasse um 8. As pessoas falam muito "se não tivesse apanhado, não seria inteligente assim", mas ninguém sabe o quanto isso me detonou fisicamente e psicologicamente. Eu sofria muito nas provas, eu vomitava. Lembro da vez que fiquei nervosa e não me sai bem e a aluna loira barbie - mais amada e aclamada por todos da escola - gritou "ela estuda e tira essa nota mais ou menos, eu não estudo e tiro mais". Em seguida a professora disse "isso é o que acontece quando você presta atenção de verdade e não apenas decora a matéria". Lembro como meu rosto esquentava de vergonha, de medo. Foi aí que eu aprendi como dói a garganta quando se segura um choro. Construi uma barreira entre mim e o mundo. Uma defesa que afastou muitas pessoas da minha vida.
Com 13 dei meu primeiro beijo, foi muito cedo para alguém que não era bem vista, certo? Sim, mas também foi o pior primeiro beijo. Foi forçado, com um menino que eu nem sei o nome, em um lugar qualquer do mundo, na frente de várias pessoas. Era uma prova! Sim, queria provar que não era só a nerd, que eu sabia da vida. Depois disso eu chorei por dias, por não poder contar uma história legal sobre meu primeiro beijo.
Cresci, fiquei mais velha, os 18 estavam chegando e nunca tive alguém para chamar de amor. Porque a barreira, a muralha que eu havia construído entre mim e o mundo, havia ficado maior. Hoje, mais velha, entendo que cada um possui um tempo e que não existe hora certa para nada, mas a cobrança das pessoas era insuportável. "Nossa, nunca namorou? Nunca ficou sério com alguém? Nossa, deve ser virgem". Sim, eu era. Mas como o beijo, tratei de arrumar isso e, mais uma vez, tudo foi em vão. Com um menino que nunca mais vi, que sei apenas o primeiro nome e, dessa vez, para piorar, ele era mais branco que uma folha de papel A4. Eu vivia o mundo das cobranças. Depois disso não fiquei mais com ninguém, me tornei a própria muralha. Foi aí que comecei a escutar com frequência "tenho medo dessa menina", "você é muito bruta", etc.
Continua…
É só o começo. A pessoa que me motivou a escrever as cartas vai aparecer…
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