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mate em nove
— senhorita Tarrasco, pergunta para a revista inconfidência
— senhorita Tarrasco, pergunta para o xadrez internacional
flashes de câmera.
— quem acha que é o favorito para vencer o torneio dos candidatos, senão você própria?
— senhorita Tarrasco, pergunta para o jornal da nação
jornalistas amontoados uns sobre os outros segurando gravadores, microfones ligados a gravadores e máquinas fotográficas. flashes de câmera.
— no movimento 31 você tinha posição em desvantagem, mas encontrou o movimento de
— acha que o xadrez da nação nova é melhor que o da federação?
os treinadores de Jorge Queres (que não são treinadores coisa nenhuma) estão o puxando para fora do salão pelas mangas do terno e empurrando-o pelas costas largas de trinta flexões todas as manhãs, tardes e noites.
— empate no lance 32 e conseguiu vantagem no movimento 40
— senhorita Tarrasco, pergunta para o reporte zero.
flashes de câmera.
— o que estava vendo no tabuleiro que te indicou movimentos tão precisos?
ele se vira para Alia, em pé sobre o pódio sobre o palanque, mais alta do que todos: uma gigante de pernas longas e braços proporcionalmente curtos que não alcançariam Jorge.
os repórteres se aglomerando em torno dos treinadores de Jorge Queres (que não são treinadores coisa nenhuma) enfiando microfones pelos espaços entre as cabeças e perguntando
— Jorge
chamando-o pelo nome porque ele perdeu de 5,5 a 3,5.
— Jorge, o que está sentindo agora que perdeu?
sem nem dizer para qual jornal ou revista trabalham.
— Jorge, no lance 32 você perdeu uma posição de vantagem para uma de empate.
flashes de alguma câmeras.
— Jorge, o que você achou do jogo da sua oponente?
silêncio. não silêncio de verdade, mas um silêncio mental de todo o resto sumir
os flashes das câmeras sumirem
os microfones sumirem
os treinadores que não são treinadores coisa nenhuma sumirem
e as mãos puxando-o e empurrando-o sumirem
e as luzes ficarem um pouco mais fracas.
Jorge se vira para ela. seus olhos brilhando como estrelas porque refletem os flashes das câmeras. as mãos delas unindo-se no colo de nervoso. nervoso de olhar para ele. os olhos dele não brilham porque não há luz em seus olhos, só uma miniatura refletida dela.
— deixando de lado toda a solidez estratégica de seu jogo, até então, Alia Tarrasco, quarta mais bem ranqueada jogadora de xadrez do mundo (e primeira da nova nação) venceu por dois pontos de vantagem o melhor jogador da federação, Jorge Queres. o jogo foi considerado uma obra-prima, com um ataque impiedoso e eficiente contra as peças do federado.
Alia move seus olhos para o lado, sem mudar a posição do corpo.
Queres vira-se para frente e deixa que seus treinadores
treinadores coisa nenhuma
o levem para fora do salão.
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panini
Eu demorei para entender, mas não foi por mal. No palácio do Império que ergui das pedras que delimitavam o jardim de Dona Vitória, Panini, vestindo seda marciana, encara as cachoeiras de Titã com os olhos tristes. Perguntei-lhe o que queria.
— Quero o rosto de Helena.
Fui buscar.
Bárbaro demorou para entender, mas não foi por mal. Começou quando tínhamos cinco anos, foi terminar quando tínhamos cinquenta. Da casa que margeava o rio de asfalto, por onde escoavam os carros, até o palácio de obsidiana solar, de onde fugiam as borboletas. Quando fugiam, perguntava, uma por uma, se eu queria que ele as buscasse.
Sorrindo meu melhor sorriso, eu dizia que não.
— O que você quer?
— Quero as mãos de Eva.
Foi buscar.
Poderia ter me dito antes, mas não foi por mal. Quando apontou Vênus, porque apontar uma estrela lhe daria verrugas nos dedos, entendi literalmente. Foram cinco anos de academia militar e dez de serviço para conseguir controle de uma pequena armada. Uma pequena revolta. Quando lhe entreguei o planeta… Ah, sim, agora eu percebo…
… Que eu poderia ter dito antes, mas não foi por mal. Quando apontei Vênus, queria alcançar seu brilho, não tê-lo. Mas tinha morrido gente demais. Ele tinha matado gente demais. Perguntou o que eu queria.
— Não deixe nenhum livro de história dizer que essa guerra é culpa minha.
E inventaram desculpas de conflitos comerciais.
Se as coisas não fossem tão fáceis, teria percebido antes. Quando me pediu a imortalidade, me aproximei da resposta. Quando consegui a imortalidade, me afastei. Achei que queria ficar comigo para sempre. Quando lhe entreguei o elixir, chorou.
Se as coisas não fossem tão difíceis, teria contado antes. Bairros, cidades, países, continentes e planetas arrasados toda vez que eu lhe pedia para fazer qualquer coisa impossível que ninguém, só ele, conseguiu fazer. Matar o Leviatã, aprisionar um buraco negro, derrubar Nova Jericó e abrir a Arca das Dez Verdades. Adentrava o palácio, entregava-me o pedido e desmaiava.
Se ela não fosse tão preocupada comigo.
Eu deveria tê-lo deixado morrer… Claro que não.
— O que você quer?
— Eu quero os pés de Cinderela.
O problema é que Panini é… Não sou poeta. Invente, autor, o que Panini é para mim.
Panini é a ferida de infância que o tempo cicatrizou, cuja dor eu não sinto mais, a não ser quando encosto na marca esticada. Panini está sempre lá.
— Não é isso. Executem-no.
Panini é a única coisa que eu tenho.
O problema é que eu choro muito. Se eu não chorasse tanto.
— O que você quer?
— Eu quero o corpo de Hipólita.
Alguns desejos eu tenho que interpretar. Eu geralmente interpreto errado. Em naves espaciais do tamanho dos quartos de infância que eu nunca tive, exércitos obedecem minha vontade genocida. Genocida apaixonado. Quando Lúcifer perguntar se me arrependi, direi que não.
Quando eu interpretar os desejos de Panini corretamente, direi que sim.
Alguns desejos eu tenho que inventar. Coisas que não existem, mas ele acha. Em gigantescos cruzadores espaciais, ele parte de mãos vazias e retorna com tesouros de bolso. Coisas tão lindas que ficam o tempo que querem, vão quando se cansam de mim.
Quando ele se cansar de mim, ele vai ser feliz.
— É isso mesmo que você quer?
Nuvens azuis de um céu branco. Até isso ele fez.
— Sim. Boa viagem.
O problema é que ela não fala. Se dissesse Basta, eu dispensaria todos estes vassalos, voltaria para casa de Dona Vitória, para me despedir de Panini no final da tarde e voltar para minha casa. Eu poderia falar da minha casa, mas não vou.
O problema é que ele não para. Se eu dissesse Basta, caçaria qualquer interpretação de Bastar e me daria. Se eu pedisse que ele parasse, não se moveria mais, morreria por não respirar. Se eu pedisse que ele me falasse da sua casa, diria que sua casa sou eu.
— Por que você nunca me fala da sua casa?
— Por que você nunca me fala o que quer?
Eu acho que se ela falasse, as coisas seriam diferentes. Se ela me mandasse embora, se ela dissesse que não gosta de mim, que me detesta.
Eu acho que se ele desistisse, as coisas seriam diferentes. Se botasse esses tesouros portáteis nos seus bolsos infinitos, tudo exceto eu, se ele fosse embora.
— O que você quer?
— Bárbaro.
— Pois não.
— Alguma vez na minha vida eu fiz qualquer coisa para você gostar tanto de mim?
Eu cresci numa casa vazia, brinquei num quarto vazio. Meus pais trabalhavam demais. Meus sonhos dormiam em camas de casal que eu arrumava antes de ir para a escola.
Eu cresci em vestidos de chá da tarde.
— O que você quer?
— Eu quero o coração de Maria.
Mas eu entendi agora. Desculpa ter demorado tanto. Não foi por mal.
Pela manhã, quando fui ao seu quarto, não estava mais lá. As janelas abertas. A cama de solteiro arrumada.
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todo lágrima
História de uma história: o velho de oitenta e quatro anos contou tudo olhando para a janela, falando com o reflexo translúcido que dava para o mundo lá fora. As cuidadoras só o encontrariam quando fosse tarde demais, então escutou, sentada na cama, o que a voz doce do senhor emagreceu: as pálpebras pesadas Dela. As mãos entrelaçadas no colo. Memória irrecíproca de dizer que a conhecia de quatro ocasiões que Ela não sabia quais eram: Os Indicadores do Apocalipse.
Sozinho, onde a vida encontra a Morte, eu silencio o som da água corrente
Nunca houve a Epidemia da Crona, mas ele disse:
– A primeira [das quatro] iminência[s] do Apocalipse foram meus dezoito anos de idade: espalhou-se pelo Brasil uma doença contagiosa cujo vírus infectava somente rapazes: poupava as crianças e os homens; causava, no organismo, os efeitos atribuídos popularmente à Lepra: pedaços do corpo caíam e nós tínhamos que botá-los de volta no lugar, como se fossemos bonecos de massinha. Extremamente mortal: o coração desgrudava das veias e artérias. Fui contaminado no Carnaval e mandado para um dos centros de tratamento na semana seguinte: construções distantes da cidade cujas enfermeiras eram todas mulheres, mas não poderia ser pior: como não queriam que as garotas morressem (na possibilidade do vírus evoluir feminista), deixaram somente as feias conosco. Não importavam seus corações altruístas: na idade emocional em que eu e meus companheiros de doença estávamos, queríamos as mulheres mais bonitas.
– O lugar onde eu estava: Retiro Hospitalar 32. Ficava numa clareira a dois quilômetros de um riacho de onde coletávamos água; a setenta quilômetros de Belo Horizonte. Desinteressante: não tinham colinas para subir ou florestas para se perder. Só o céu que nos cercava e as nuvens que nos entretinham (imaginárias, porque não saíamos das camas). Ao invés de tentarmos fazer a nuvem inteira ser alguma coisa, nós procurávamos, nos diferentes tons de branco e cinza, uma pintura com alguma cena das nossas vidas: eu e meus vizinhos de leito: Guilherme e Felipe, que eram as únicas pessoas que escutavam minha voz: para evitar que as partes dos nossos corpos caíssem repetidamente, as enfermeiras nos transformavam em múmias enroladas em grossas camadas de esparadrapo. Era difícil falar e difícil ser entendido, mas nós acbamos dando um jeito de conviver na total ausência de diálogo compreensível. Gritávamos tudo: ouviámos nada E coincidíamos nossas imagens numa experiência universal: as nuvens nos remetiam aos mesmos acontecimentos: meus amigos partindo, meus pais envelhecendo, minha casa de infância, perto da grama que eu já vi muitas vezes, que eu vejo agora, que eu não vejo mais.
– A última: uma menina linda, mais bonita que Você, que eu não conhecia ainda. Não conheço ninguém: os nomes “Guilherme” e “Felipe” eram invenções da minha falta do que pensar. Enfermeiras que abriam os curativos preventivos, juntavam as partes do meu corpo e iam embora. De noite, conseguia ouvir as consoantes das suas conversas, que não me levavam a lugar nenhum senão para sonhos intranquilos que eu reconfortava com estrelas (sem sair da cama): imaginava estrelas e constelações fantásticas onde viviam homens bons, guerreiros fantásticos. Índios. Sabe-se lá porque: índios. Habitantes cósmicos descansando no calor ameno de gigantescas bolas de fusão atômica. Na medida que meus olhos se acostumavam com o escuro, eu conseguia ver, nas imperfeições do teto, meu futuro: uma gigantesca linha curva que nem eram curvas, mas retas que não conseguiam serem retas por muito tempo: em breve, a cura de Crona apareceria e eu poderia correr atrás de mulheres bonitas. Como eu tinha dezoito anos de idade e poucos sonhos ambiciosos (fazer faculdade, encontrar emprego, casar, reproduzir, morrer), o otimismo surge na velocidade acelerada da correnteza do riacho, Mas eu continuava doente: o otismismo se dissipa em ventos fortes que seca a correnteza das minhas veias, que também soltavam.
– Ninguém nunca disse isso, mas Felipe dizia: “Imaginar quem eram as duas pessoas do meu lado virou a única coisa que me mantinha vivo, até o momento em que a incapacidade de decifrá-los definiu as expectativas da minha morte: gritar ao meu coração: ‘Pare de bater’, mas eles enfaixavam meu queixo para a mandíbula não abrir/descolar. Comida Porcaria que vinha em líquidos (anos e anos de esquecer o que exatamente era comida sólida e nunca mais reaprender): cuspes de morte por fome voluntária: imaginar suicídios da carne que eu não consigo controlar, porque ele está constantemente se soltando, virou a única coisa que me mantinha vivo, até o momento em que a incapacidade de realizá-los definiu as expectativas da minha sorte: gritar às pessoas do meu lado: ‘Durante os dias de nuvens que se passam, eu penso Quem vocês são?’, mas eles enfaixavam meu queixo para a mandíbula não abrir/descolar” E o silêncio:
(
Tudo dói. O velho e Ela doem, um ao outro, coisas que já doeram muito tempo atrás. Versões diferentes da mesma coisa, porque todo mundo passa por isso: responder interrogações inexistentes, passados e presentes gregos
).
– Nunca me ouviram. Nunca ouvi O que eles diriam? As formas do corpo: Felipe era alto e magro, Guilherme era só magro, mas era comum até os números da balança caírem junto dos braços, pernas, dedos e orelhas. Não colocavam o sobrepeso de volta. Tinham pessoas gordas no Retiro Hospitalar 32: morreram magras = morreram doentes. A Crona afetava especialmente meu nariz, que tinha que ser colocado no lugar todos os dias, mas saía quando os preventivos, novamente, cobriam todo o meu rosto exceto pelos olhos, que eu só conseguia movimentar cento e poucos graus: quando tentava cento e oitenta, o travesseiro duro tapava minha visão.
– E(, no começo!, e)u conseguia movimentar os braços e as pernas. Depois de seis meses, toda tentativa era um desgrude e a espera das enfermeiras para me consertarem. Feias, claro, mas se não fossem as enfermeiras…
– Não lembro o nome de nenhuma delas, mas posso inventar o nome da que cuidou de mim: um monstro bichopaponesco de proporções inumanas, sorriso doce dos lábios de mel de Iracema era a enfermeira que cuidava de mim. Cuida até hoje: essas coisas se estendem numa vastidão cron(o/a)lógica, mas foram outras as doenças que desligaram os órgãos as colmeias de Iracema: alergia a picada de abelhas africanas, que estavam passando pelo seu próprio apocalipse: diferente do meu 1/4 de apocalipse pessoal.
O velho pede um tempo para descansar e os espectadores começam a discutir os significados ocultos das narrativas: como Ela está sozinha, ouve as conversas das pernas da cadeira do contador de histórias memórias.
Perna traseira esquerda diz: “O velho sofreu não de Crona, mas de Solidão. Intransmissível, porque senão ele não estaria realmente sozinho: os dias vão Passam numa velocidade uniforme e sem aspecto que desfragmenta as verdadeiras aparências da realidade. Os vizinhos de leito e as enfermeiras não lhe comunicam, não lhe tocam: não lhe curam. É assim que as coisas eram e a decodificação é, além de impossível, inexata: todas as tentativas de entender as pessoas são, na verdade, tentativas de entender a si mesmo.”
Perna dianteira direita diz: “O jovem beirava a Loucura: um precipício daqueles que a borda é um curto declive que dá para um paredão vertical até o fundo. Permanecer em pé nestes limites é escorregar lentamente, em pequenas inclinações, para a queda: as nuvens são o [único] resgate, veículos de fuga onde podemos jogar ganchos e nos salvarmos: o vento vai nos voar pelo precipício até o outro lado, Mas a Corda de Babel não tem extensão para fincar as nuvens. O movimento de lançá-las faria meu corpo escorregar pelo declive e cair. Na medida que caio, a corda cai também: é isso o que o velho pensa. O precipício é o que o velho cai.”
Perna traseira direita diz: “Adianta de qualquer banalidade estar solitário ou louco? O velho é qualquer definição filosófica pensada ou ainda não do Ser Em Si: contido no próprio corpo e na própria estática corporal: se fechasse os olhos e não os abrisse mais (voluntariamente, não por morte), seria uma consciência consequência flutuando na escuridão, mas lhe deixam os olhos abertos para manter qualquer fantasia de estar ainda no mundo, mas não está: sua cabeça e suas palavras, que agora são memórias, mas já foram presente, são tudo o que existe no mundo, com os personagens secundários servindo somente de in(ter)venção [para condizer com esta realidade falsa que a vista desvelada e a insistência de abrir os olhos exibe].”
Perna dianteira esquerda diz: “Prefiro acreditar que Felipe, Guilherme e Iracema (mesmo que este não seja seu verdadeiro nome) realmente existiram, que as únicas impossibilidades do processo de conhecê-los era a doença. Que o velho seria amigo deles se não fosse a Crona. Sem grandes análises: um pouco de esperança de saber[, mas fingir] que [não] estou errado.”
Deixa as interrupções morrerem no silêncio do quarto. Tudo é o silêncio do quarto: o espírito do velho move o pescoço e a encara: lágrimas nos olhos e canções de outros tempos nas paredes: flores de tempos mais antigos ainda (imemoriais) nos quadros que caíram no chão e ele não botou de volta ao lugar. Volta o pescoço para a posição original, alinhando espírito e carne, porque, na verdade, o velho nunca se moveu: fica olhando Sabe-se lá grama, sabe-se lá nuvem, sabe-se lá Si. Sua alma, que não vai existir por muito mais, olhando Ela.
– Pode parecer chato e repetitivo ficar chato e repetitivo, meio vegetal, em camas confortáveis, múmico, durante dias chatos e repetitivos, porque, cá entre nós, todos os dias são iguais senão pela mudança inversamente proporcional da duração da manhã e da noite, Mas! A insistência em acreditar que as coisas mudariam, o que parece fácil agora, mas era impossível antes, e a necessidade de fazer valer, coletivamente, um momento tão difícil… Incompleto porque eu não sabia como resolver aquilo, entender isso, falar isto: A Certeza Do Fim, no teto, definiu Seu rosto como uma pintura hiperrealista cuja aproximação eu esperava. A pintura de trincos do cimento se tornaria Sua face e eu teria certeza que tinha acabado. Mas Você nunca veio para mim porque estava muito ocupada com os outros.
Ela não entende: “Eu estou sempre ocupada com todo mundo.”
– Mas, nesse dia… Mas, nessa noite, ocupada demais. Não sei se lembra, mas eu lembro bem: abro os olhos e movo a cabeça, as sombras costumeiras de Felipe e Guilherme desapareceram. Morreram, eu penso, mas as enfermeiras [competentes] não deixariam as camas bagunçadas. Eles fugiram, mas onde estão as partes dos seus corpos, que deveriam ter caído?
“Eu não sei.”, Ela sorri. “Como poderia saber?”
– Nem eu, como eu poderia saber? Então pensei (porque pensar era tudo o que se podia fazer): a doença tinha um prazo de validade até o organismo aprender a vencê-lo e tinha acontecido com Felipe e Guilherme. Estavam lá fazia menos tempo que eu, Então tentei me erguer e consegui, mas a um custo: senti minha coluna e meus órgãos se soltando, caindo dentro de mim mesmo, nos meus pés, que continuaram grudados (graças ao esparadrapo). Movi-me como Múmia Invertebrada. Busquei Guilherme e Felipe, que só tinham um lugar para ir: o riacho. E, assim como Felipe e Guilherme me fizeram acordar, eu fiz acordar Os outros começaram a me seguir, doloridos, enquanto éramos perseguidos por ágeis enfermeiras dorminhocas: caçavam-nos em sonhos de serem mais bonitas. Ao invés de correrem atrás de homens, eram caçadas por eles. Me seguiam, sem pressa, porque só tínhamos um lugar para onde ir.
– Ao riacho! E encontramos Fugitivo 1 usando a perna de muleta, Dois arrastando um braço com a mão direita: na mão do braço esquerdo: as duas orelhas. Em fluxo constante, a água do riacho seguia para baixo pela leve inclinação da planície até desaguar num rio que desaguava no mar. Eu não conheço todas as pessoas no mundo, nem os riachos, nem Felipe ou Guilherme: as projeções que eu inventei se confundiam nas suas posturas (porque estava escuro demais para elas se confundirem nos seus olhos: caíram, mas eles botam de volta no lugar). Vejo, atrás de mim, todas as possibilidades de pessoas que deixaram braços e pernas caírem.
– Olhei para frente: na margem distante, Você, Na margem próxima, os líderes voluntários que sabiam o que estava acontecendo, porque nós: não. Disseram: “Esta é a revelação: o riacho é o Fluxo, abundante em vida, movimento constante que não para nunca. O caminho para a imortalidade e a vitória da destruição. A fonte está a apenas algumas centenas de metros daqui: o começo das coisas. Nós também estamos somente no começo: aqueles que mergulharem nestas águas frias terão suas doenças curadas, prontos para dar continuidade à vida que esta praga interrompeu. Serei o primeiro, e vocês serão os próximos.” Ele foi (Guilherme ou Felipe, não conhecia nenhum dos dois para dizer quem era) e pôs o pé no curso d’água. Aproximamo-nos todos para ver o que aconteceria: Guilherme ou Felipe andou até uma grande pedra no meio do riacho e sentou-se lá: ergueu seu pé para nós e o pé não existia mais, como se tivesse sido apagado com borracha ou removedor de tinta. Submergiu as mãos, depois ergueu-as para nós, e também tinham se apagado. “Venerem.”:
– Mergulhou por completo, desaparecendo na água como dissolução. Os outros seguiram seu caminho: Guilherme Restante ou Felipe Restante, depois um milhar de fulanos que eu não reconhecia porque eu nunca os tinha visto antes: fascinação suficiente para me fazer pensar mais na realidade do número de contaminados por Crona do que no milagre do desvanecimento que eu presenciava: Milagre Comunal: arrancavam os preventivos e pulavam, divertidos, no riacho: desapareciam para não serem vistos nunca mais. Fui contando de um até mil e onze, Eu 1012. Olhei para trás: ao longe, conseguia ouvir que as enfermeiras, acordadas, gritavam. Quem me caçava eram os sentinelas do complexo: homens feios. Acenei e mergulhei os pés. Tirei-os da água e lá eles estavam. Desesperei: mergulhei as mãos: nada, joguei água na minha cabeça: nada. Fiquei pulando como uma criança que não conseguia se divertir nem desaparecer. Tive que aceitar os fatos: a água mística não queria me levar embora, então eu parei de insistir As Vontades Irrecíprocas do Riacho. Na margem distante: Você não estava mais lá.
Pausa: o velho respira bem fundo, expira durante sessenta e seis anos de silêncio.
– Os seguranças chegaram, me viram desdesesperado e me prenderam. Começaram a buscar os outros até notarem que não tinha meio físico no Universo para terem simplesmente desaparecido, então acreditaram na minha história. Rodaram alguns exames médicos de sangue e falar Aaaah, tossir quando colocassem o estetoscópio no meu peito. Sorriram sem felicidade, disseram que eu estava curado, que todos os infectados tinham desaparecido:
“Não existe mais Crona no mundo” Ela diz. “E o vírus desapareceu do seu organismo. Você pode voltar a viver a vida que já esqueceu qual é: estudante saindo do Ensino Médio.”
– Sobraram os homens, as mulheres, as garotas e as crianças pós-Crona: eu era O Último Rapaz do Mundo, mas soava tão mal que ninguém em Hollywood quis fazer um filme com isso. Fui para a faculdade fazer História.
Pássaro que transforma suspiro em tornado: eu esmigalho os pilares do Tempo
Nunca houve Guerra Civil Brasileira, mas ele disse:
– Prática demais, como todas as guerras devem ser. Em vez de complicados motivos políticos amontoados até gotas d’água explodirem os estopins dinamitantes, tínhamos nossa própria Helena de Troia Anticomplexidade: brigamos pelo significado das cores da bandeira nacional. Diferenciações desnecessárias: se você entrava para o lado amarelo, a sensação de união bastava para fazer detestar todos os malditos verdes: o lado pelo qual optei lutar. Ocupado demais matando todo mundo (exceto quem não se devia matar: os camaradas verdes e a geração pós-Crona, proibida de participar da brincadeira), eu aproveitei cinco dos meus vinte e nove a trinta e três anos de idade ajudando bombardeiros a explodirem quatro cidades mineiras: Caxambu, São Lourenço, Poços de Caldas e Uberlândia. Protetores escassos, porque os aviões eram poucos, todas as minhas missões aconteceram acompanhadas de um casal: Júlio e Mônica, sexagenários amigáveis com seus belos aviões: a Roca, de largas asas prateadas; e o Munina, preto para se camuflar na noite, mas só operamos de manhã, Como sempre, apareciam forças oponentes: dezenas de sentinelas que nós acabamos matando porque eles eram amarelos. Contra uniformidade, meu avião era vermelho e preto: daí o apelido de FLAMENGO. Meu avião era o Faisão Flamengo e...
(Ela ri. Rola na cama, acalma-se, ajeita-se e se senta com um sorriso no rosto. O velho está sorrindo também, mas só do lado de dentro.)
… Estas foram suas cinco batalhas:
Jornada em silêncio porque todo mundo já falou demais
História de uma história de uma história: o velho soa como eu:
Houve certa vez que Júlio entrou dentro de uma nuvem e desapareceu, mas acabou voltando para narrar história de uma história de uma história: em meio aos vapores nébulos, o Paraíso.
– Pousei num lago sem pressa e fui esticar as pernas: caminhei por pedras concretas quadradas que me levaram a templos místicos de deuses cujos compostos divinos eram fontes de água gasosa. Para me comunicar com eles, tive que bebê-las, mas em vez de me darem o conhecimento por completo, disseram tudo numa Profecia Picotada que colhi uma por uma, e que não revelo agora porque contá-las em migalhas os obrigaria a coletarem todas e revelá-las para eu mesmo juntá-las seria repetição. Suspendam:
– As fontes eram várias e em cada uma vivia um deus diferente de alguma coisa que já perdeu o significado desde que a guerra começou: deus do amor, deus da força, deus da inteligência e deus da amizade. Todos me criticaram: antes das mensagens, disseram que eu era muito burro, muito bruto, muito chato. Que eu deveria me esforçar mais para conseguir as coisas que queria, senão morreria como Homem, e não como Guerreiro.
– Palavra por palavra, eles disseram: “Esta é a revelação: brota uma flor no teto que faz as pessoas caírem no chão. A flor é o FIM e você deve segui-lo para descobrir a Verdade, que lhe será revelada enquanto flutua como balão de Deus Solar: nem antes e nem depois, porque o depois não existe. Não haverá mais guerra e não haverá mais cansaço: toda a energia do cosmos será preservada e o Universo estará salvo de ti.” Então a água apodreceu no meu organismo e eu vomitei sangue, que transformou-se em luz ofuscante. Eu fechei os olhos. Abri os olhos: Estava voando em direção ao Sol a seguras alturas aeronáuticas.
– Lembro do mapa paradisíaco e as formas das construções: estilo eclético em vias mais próximas da mata úmida, mais próximas da mata seca, depois uma longa volta ateia (em torno do lago), um labirinto sem solução, o teleférico ao Olimpo Inacessível e um pontão.
Perdeu a graça: o velho e a esposa foram dormir: era uma descrição do Parque das Águas de Caxambu, a primeira coisa que as bombas destruíram. Mônica dominou a cama de casal e Júlio ficou com o sofá inexplicado.
– O que eu disse de errado? – Mas ninguém o respondeu.
É por causa de Júlio que eu conto histórias.
Escorregadores para mundos tristes mais felizes do que
As coisas trágicas da vida são mandarem, Mandaram Mônica lançar folhetos terroristas pelos ares da cidade: Olha o passarinho e imagens passadas da destruição iminente das cidades opositoras, Mas não tinha graça: enquanto velho e Júlio estavam tensos pela aproximação das defesas da cidade (que nunca apareceram), Mônica chorava lágrimas mais devastadoras que toda aquela dinamite na barriga do B-52, mas não poderia ser de verdade: se no máximo as lágrimas da sexagenária serviram para devastar a sujeira da parte interna do vidro da cabine, as dezenas de bombas arrasaram toda a tridimensionalidade do lugar, preservando somente as fronteiras estranhas das paredes, dos muros e das ruas de asfalto.
– Querida, tudo bem? – perguntou mesmo sabendo que não estava. Mônica pegou quarenta folhas de papel em branco, canetas pretas e lápis: foi para dentro do seu quarto e se trancou.
Os outros ficaram sentados numa mesa, calados, jogando conversas no lixo como bolas de papel amassado, porque não tinham muita coisa a se dizer. Ela, fora de molduras narrativas, sorri.
– Da próxima vez que a gente fizer uma coisa dessas a gente não leva ela.
– Ou a gente simplesmente não faz mais isso. – O que Mônica fez: sua própria Guernica São-Lourenciana: o desenho se perdeu e a memória do velho descreve assim:
Huesca (17 de setembro de 1963), por Mônica Valéria da Costa
– Depois todos aqueles animais felizes viravam os animais bizonhos de Picasso e a lâmpada do Sol desligava, as coisas adquiriam um aspecto penumbrio: eu pintei o mundo de cinza e depois eu apaguei o cinza até só sobrarem os tons de preto e de branco que são as palavras no papel… Você está copiando isso ou deixando as palavras se escreverem sozinhas?
“Verba volant,,,”
– … Por isso eu atirei flechas nas palavras e elas caíram do céu nas minhas mãos, mas eu não sabia mais o que fazer com elas, então recuperei as flechas e deixei o tempo engolir as vítimas: uma frase. Você sabe qual era a frase?
“Não, como eu poderia saber?”
– Essa mesma. – Ela sorri. – Mônica foi quem me listou e ensinou os sentimentos. É por sua causa que eu choro.
Esforço cansado de nunca parar de doer
Os órfãos não aproveitaram os dramas bélicos: Mônica teve que matar a própria mãe: mulher habilidosa no manche, de sorriso calmo, que conversava, pelo rádio, coisas positivas. Atirava no velho e em Júlio, mas ainda assim conseguia fugir das rajadas da filha caçadora com potenciais assasinos: as primeiras linhas de Anna Karenina.
De literatura russa para filmes de ação: a mãe vai para trás da filha e uma raja de tiros destrói a asa esquerda do Munina. Mônica sobe, gira o avião noventa graus no própio eixo e ejeta. As asas do avião aceleradíssimo não aguentaram a resistência do ar e se soltaram do tronco, indo em direções imprevisíveis e acertando o inimigo: a hélice direita destruída. Caindo de paraquedas, Mônica, com sua pistola, atira dez vezes contra O avião decadente, num ato heroico, choca-se com as bombas bombardeadas, que explodiram numa coluna de fogo e pouparam a cidade-alvo.
Quando alcançaram Mônica, ela estava na estrada de acesso a Poços de Caldas, coberta pelo paraquedas, sentada. Como estava muito cansada, deitou-se.
Barro moldado e amassado pela saliva das bocas cansadas
Os três aviões invasores, X aviões defensores. Tiros de É melhor ir embora senão vamos matar vocês de Podem tentar, mas essa cidade vai ser destruída, de tentar matar uns aos outros. Depois as mesmas repetições de filmes de Primeira[, Porco Rosso] e Segunda Guerra Mundial, mas é mais divertido do que os helicópteros vietnamitas ou aquelas guerras de mais forte contra mais fraco que todo mundo torcia pro Coiote. Na guerra civil brasileira: todo mundo era ruim.
Resolução rápida: o trio vence.
Sinal positivo: a barriga abre, as bombas caem. Têm uma aparência destrutiva que não tinham dentro do B-52. Uberlândia ia virar pó:
Onomatopeia Nº1: Fffffffffffffffffffffffiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuu
e
Onomatopeia Nº2: BoOoOoOoOoOoOoMmMmMm
Não aconteceu: as bombas acertaram o solo, mas a cidade continuou intacta.
– Faisão, desce comigo.
Alcançaram a região do impacto. Era um pedaço de quarteirão: dava para ver restos de telhas e vidro, equipamentos eletrônicos em pedacinhos de placas mães. O resto de uma enorme árvore. Mas como quer que fosse a construção não tinha sobrado nada. Senão os indícios de Humano e de terra, o velho não conseguiu decifrar muito mais do que Isso era uma casa com um jardim.
– É. – disse Júlio. – A árvore era uma mangueira.
Intervalo
– Como seria seu avião?
“Monomotor clássico. Amarelo. Com flores desenhadas na asa superior e vasos no espaço entre as asas: regaria elas com a água que está nas nuvens, se é que isso funcione, e talvez não funcione, mas é o que Eu faria se o mundo fosse, mesmo que não seja, Fantasia.”
– E qual seria o nome?
“Girassol, mas teriam todos os tipos de flores nos vasos. E não teria metralhadoras, Eu derrubaria todos por confusão: movimentos tão rápidos que eles perderiam os controles dos aviões, caindo no chão ou na água salgada: funerais da grama que cresce e das ondas do mar.”
Fim de tudo que se Era para Ecos de tudo que se há de Ser: Destruição número 9.101.112
A essa altura, dos soldados só restavam seis pessoas: três inimigos amarelos e dois aliados verdes. Todas as bombas tinham sido lançadas e todos os bombardeiros tinham sido derrubados: “Vamos nos encontrar para resolver tudo de uma vez”: A cidade de Itabirito porque…
… Tudo que é ruim acaba alguma hora, embora essas coisas ruins tendam a se prolongar: o que aconteceu naquele dia dura até hoje, Acaba hoje, senão Você não estaria aqui: era um dia azul da cor do céu e sem nuvens para onde fugir, porque as nuvens eram do tipo das que não dá para se esconder: as hélices espantam o vapor e você deixa de ser Faisão Flamengo e vira um Revelador de Sol mais do que um Pássaro Furtivo, mas tanto o Revelador de Sol quanto o Pássaro Furtivo já tinham sido abatidos dos céus de batalha: sobraram, além dos três conhecidos, o Comodoro Estrela, o Gavião Maltês e a Lira.
Os dois trios tinham, na sua composição, dois homens e uma mulher que pilotava melhor que esses dois homens: Mônica começou disparos e fugiu de rajadas de maneira tão ábil que os oponentes masculinos ficaram boquiabertos, mas a feminina se pôs a enfrentá-la. Par contra par: o velho foi contra o Verde Jovem, de cinquenta e um anos; e Júlio foi contra o Verde Idoso, de oitenta e dois. As mesmas imagens cinematográficas típicas de filmes de Primeira[, Porco Rosso] e Segunda Guerra Mundial, mas mais divertido: os aviões entraram numa roda de dar tiros que não atiravam ninguém com verde atirando em amarelo que atirava em verde que atirava em amarelo: um circuito fechado que duraria até as balas acabarem…
Mas não acabaram ainda não porque eu tenho que definir exatamente como eram os aviões oponentes: o Comodoro Estrela era um avião cruzeirense de piloto flamenguista: o justo inverso do velho: as asas eram azuis e o corpo era branco, com o Cruzeiro do Sul pintado na asa esquerda.
O Gavião Maltês era uma cópia descarada do falcão. E nem vascaíno era: copiado de filmes noir num preto-branco-cinza sem graça e, desenhado no corpo, o rosto de um monte de atores e atrizes: Humphrey Bogart. Toda vez que eu via o avião, o velho lembrava do pianista Sam tocando As times goes by para Ilsa.
“Play it, Sam.” Ela pedia. E o velho dizia que Não para, depois, murmurar uma canção que viram notas de piano que contagiam Ela, os pés da cadeira, o quarto, os corredores, as cuidadoras, a grama lá fora e as nuvens. Só não contagiam a janela e o reflexo da janela, que também não contagiavam o velho: morreria de imunidades às infecções da vida.
O Lira era o avião mais bonito do mundo, foi feito por uma daquelas deusas da Guerra de Troia. Voava como se fosse o pássaro mais surreal do mundo: um que tocasse harpa enquanto escorrega em qualquer partícula suspensa no ar celeste.
“As balas acabaram?”
– Não: Você apareceu antes num pequeno avião cheio de flores chamado Girassol. Os amarelos celebraram a vitória, mas perceberam que sua cor era mais vibrante ao tom pálido das bandeiras, então era mais provável que Você fosse pirata: guerreira nula independente sem nação. Eles Te odiavam. E se lançaram como kamikazes em Você Despatriada. Começou, então, a se desviar dos aviões que apareciam, como a jogadora de futebol superprofissional: um feitiço bem simples de inverter a gravidade e fazer o céu virar chão e o chão virar céu.
Os seis aviões começaram a cair para cima e Ela, que nunca encostou num manche de avião na vida, pergunta “O que aconteceu?”
Do mesmo jeito que um avião não consegue alcançar o espaço, os aviões agora não conseguiam encostar no chão. Pela fraqueza dos motores, começaram a amaldiçoar o Girassol, tentando tacar-lhe coisas, embora essas coisas acabassem caindo também para cima. Você Desgraçada seria a irresolução do conflito: todos perderem significava ninguém ganhar.
Num ato desesperado, o piloto do Gavião Maltês ejetou somente para subir junto com seu avião cheio de atores e atrizes de filmes noir. “Eu puxei o rádio e chamei meus aliados.”
– Roca e Munina, respondam.
Não responderam.
– Roca e Munina, respondam.
Não responderam. Procurou os dois no céu e não conseguia ver nada dentro das cabines. Estava sozinho e teria que pensar em soluções sozinho. O avião caía muito rápido e logo ele estaria longe demais do planeta para ter qualquer salvação.
Verificou se estava de paraquedas e percebeu que estava fazendo uma força muito grande para simplesmente botar a mão nas costas. Olhou mais de perto: era como se seu uniforme, e não ele, estivessem sendo puxados por essa gravidade invertida.
– Roca e Munina, respondam.
Puxou o canivete e começou a rasgar seu uniforme: braços, pernas, tronco e costas.
– Roca e Munina, respondam.
Tiras de uniforme: começou a puxá-las para ficar de cueca, regata branca, dog tags e o paraquedas, mais o capacete de piloto, que ele soltou para vê-lo cair no teto.
– Roca e Munina, respondam.
Não responderam. Esperou mais um pouco. Deu dois tapinhas de despedida no painel delirante do Faisão Flamengo.
Apertou o botão de ejetar e deixou-se cair livremente por alguns segundos, em direção ao solo, para olhar para o avião de largas asas prateadas e para o avião preto que caíam rumo ao céu. Puxou a trava do paraquedas. A velocidade da queda reduziu: sua visão de gravidade invertida foi bloqueada pela enorme forma laranja que lhe descia carinhosamente pelos ares. O vento fresco no seu rosto porque a noite se aproximava trazendo o frio: tons celestes crepusculares que há alguns segundos atrás eram de plena manhã. O encontro do céu com a terra era de um tom rosa e o azul restante era pálido, sem tons vibrantes. Da mesma forma, entre a resplandecência das cores e a escuridão da noite, o mundo tinha um aspecto acinzentado que puxava o velho para si.
Ao longe, o Girassol ia embora, tranquilo. “Eu apontei meu dedo como se fosse uma arma e disparei, mas não aconteceu nada.”
Pousou no cume de um morro, o paraquedas caiu por cima dele: em vez de escurecer as coisas, como faria a tampa de um caixão, o mundo ficou laranja.
Tirou a venda e viu aqueles pontinhos coloridos desaparecendo, indo para sabe-se lá onde, porque Infinito parecia uma resposta vaga demais.
Olhou a grama espetada (anormal) do morro. Puxou um tanto e o segurou bem forte, até sentir as próprias unhas cortando a pele da palma. Respirou fundo. Abriu a mão.
Esse tanto esverdeado subiu, vagarosamente, em direção ao céu.
Filho da Terra Seca, senhor dos desertos, eu vago por impérios de ampulhetas
A Amazônia [Desmatada] ainda existe, mas o velho disse:
– Causa e efeito, finalmente, porque até então tudo parecia desconexão de juventude para adultidade: tacamos tantas bombas uns nas cabeças dos outros e erramos tanto as cabeças dos outros que, na maioria das vezes, só acertamos o chão: Roma salgou Cartago, mas conosco foi como se Cartago tivesse salgado a si mesma: era tão difícil de plantar comida que deixamos de reorganizar o governo vencedor da guerra civil para procurarmos as refeições do futuro, que eram as migalhas do passado. Enquanto alguns tentavam encontrar soluções para o solo sem vida, eu caminhava entre os lugares não bombardeados em busca de alimento: depois de todos os sertões brasileiros, sobrava somente a Floresta Amazônica, poupada do conflito porque os índios que viviam lá odiavam a gente por tudo que fizemos com eles. Achei estranho que, depois de uma semana caminhando pelo Império do Mato-Virgem, eu não encontrei um Suya sequer para me afugentar de volta aos restos de cidade Belo Horizonte, onde eu vivia: os Suya são os descendentes da tribo perdida de Macunaíma, por Mário de Andrade.
– Lá, também não encontrei comida para comer: animal ou vegetal. Vegetal tinha, claro, mas casca e folha de árvores não são alimentos.
Tantas casas e Folhas infinitas de árvores que ninguém conseguiria contar. Variavam de tamanho e de forma, de tipos biológicos que eu não sei descrever porque nunca aprendi porque passava muito tempo dormindo na escola, sonhando com florestas tropicais.
– Não tinham frutas nem animas para comer frutas nem animais para comer os animais que comem frutas. E assim por diante: em esperança cega, continuamos andando até o coração selvagem por sete dias até perceber que tanto os centros quanto as periferias estavam privados de alimento humano. As barrigas vazias roncavam tão alto que eu conseguia ouvi-las enquanto pisava nas saúvas imaginárias: minhas esperanças gastronômicas foram reduzidas aos insetos perversos mordedores de oito dedões do pé.
– Oito porque You’ll never walk alone, mesmo que eu venha andando sozinho pelos últimos dezoito anos: éramos um esquadrão de quatro homens: eu (49 anos de idade, marcas de velhice e os pés cansados, pensamentos traumatizados), adulto, rapaz e criança, mais adjetivos que iam te impedir de imaginá-los do seu jeito. Só digo isso: eram pessoas desabituadas à Desgraça, cujos corpos não sabem lidar com a fome: minha história começa com os três desistindo de continuarem andando pela floresta da geladeira e das dispensas vazias, como se o mundo fosse um supermercado esgotado, porque era mais ou menos isso que ele era naquela época: seus nomes eram, respectivamente, Bernardo, Ricardo e Ubaldo. Lembro o homem caindo no chão e escondendo suas lágrimas; do rapaz e menino inocentes dizendo que é melhor morrer do que viver morrendo. Geração sábia. Sabiá.
Diz ao pássaro imaginário que pousa na janela, depois se torna real: o peito branco, a barriga laranja, a cabeça e as costas marrons. O bico pontudo.
– Ouça, intrometido, porque parece meio óbvio dizer que eles morreriam agora, porque em todos os outros episódios as pessoas descritas morreram: Felipe e Guilherme de milagre, Iracema de alergia; Júlio e Mônica de arrebatamento. Bernardo, Ricardo e Ubiraldo morreram também, de fome, ou pelo menos eu acho que foi fome. Me explico, explico-me: encostaram-se nos troncos das árvores altas e sentaram-se no chão macio da Amazônia. Fecharam os olhos com sorrisos nos rostos dizendo que este seria The Big Sleep, de Raymond Chandler, mas sem o hardboiled: fechariam os olhos, sonhariam sem medo e morreriam, mas eu me recusei: a deixar isso acontecer.
“Algumas coisas são inevitáveis.” Ela repete.
– Mas nunca inevitáveis o suficiente: se eu corresse mais rápido ou tivesse recusado a missão de levá-los até a mata. Todos os “Se”s possíveis que eu posso inventar, mas não inventei. Conjugações verbais me condenam aos fardos piores: enquanto eles dormiam, eu tentava acordá-los encontrando comida, mas não: Encontrei um vasto labirinto de árvores construído pelos Dédalos Naturais e a sensação de ser perseguido pela Culpa Minotáurica: Bernardo tinha trinta anos de idade e um filho, Ricardo tinha vinte anos de idade e um futuro, Ubaldo tinha dez anos de idade e um sonho impossível de ser piloto de avião.
Entre as mágoas de saber que pai, potencial e sonho alado morreram; e as idades arredondadas de dez, vinte e trinta, Ela fica num misto poético de Comédia e Tragédia imprevisto nos manuais poéticos fictícios e reais de Aristóteles, teórico literário.
– Apoiados naqueles troncos, suas testas me exibiam, como bolas de cristal (ou pura telepatia) as imagens do bebê [desnutrido] de cinco meses de Bernardo, das estátuas erguidas em honra do legado humanista de Ricardo e do longo voo decadente dos aviões de papel de Ubaldo. Que criança faminta sonha com aviões de papel? O sonho de Ubaldo era das maiores belezas: os mesmos modelos aeroplanadores feitos com cem folhas de papel A4 que ele comprou na papelaria com o dinheiro que a mãe lhe deu para comprar pão. Subia uma longa colina, botava as folhas no chão e fazia um avião por folha, a mesma moda de Buldogue Flecha. Lançava-o reto e ele ia descendo a colina para pousar fora dela, numa lata de lixo para papel reciclável da rua. Sem pressa, em vez de lançá-lo e começar o outro, garantia que seu arremesso perfeito terminava no alvo escolhido, observando a descida com calma e cuidado. Quando errava, descia a colina toda, jogava a folha no lixo e subia tudo para continuar suas montagens. Como era sonho, não errava.
O sabiá vai embora para sonhos de garotos vivo, em vez de sonhos de garotos mortos. Eu arranco as folhas deste memorial e faço, com elas, aviões impressos e imperfeitos que voam alguns metros e deslizam pousos forçados no chão.
– Então eu corri pela mata para salvar a criança da morte e do trauma de ver outros dois dos seus companheiros de expedição morrerem. Qualquer coisa bastava, mas eu não encontrava nem mesmo os vermes asquerosos que ficavam em cascas de árvores ou dentro da terra. Subi sequoias, que nem amazônicas eram, e lá em cima não encontrei nada. Pulei dos topos e, toda vez, deixei-me cair para inventar desculpas que a queda me impossibilitou de salvá-los, mas em meia queda eu percebia covardia e fazia piruetas acrobáticas (que eu nem consigo descrever) para cair seguro em cima de uma da flora rasteira.
– Balanços, gangorras ou apenas Gramados de Formigueiros Vazios. Eu conhecia aquela floresta com a palma da minha mão porque fui eu quem estabeleceu os contornos dos castelos que eu atacava e defendia nas brincadeiras mais infantis possíveis. Como criança de imaginação fértil, eu corria atrás de coisas que não existiam: máquinas do tempo, porque uma hora ou outra, acabaria chegando em algum lugar.
O velho silencia-se botando encostando o indicador ereto na boca, olhando para o reflexo da janela. Ajeita sua postura e bota as mãos nas coxas. Depois mais nada.
“O que foi?”
– Preciso esperar a noite para te contar o resto.
“Desculpa, mas não temos tanto tempo. Se for uma necessidade, você não vai poder terminar de contar uma história. Não quero contrariá-lo, mas eu gostaria muito de ouvir o resto.”
– Bem, então imagine a noite. Primeiro a noite dentro da floresta, que era pura escuridão, mas na medida que eu ia caminhando, as coisas pareciam esclarecer, afrente, na forma de uma clareira. Alcancei-a e, pela primeira vez em horas, não tive que me preocupar com aquele labirinto de pilastras confusas. Agora.
– Imagine a noite aberta: o horizonte é uma espessa camada escura de árvores e eu vejo o céu como se fosse teto: estrelas enormes de Van Gogh que pareciam Sóis Próximos em vez de Sóis Distantes: além de espetáculo celeste noturno, um terrestre: o chão se agita como num pequeno terremoto e uma manada de monstros folclóricos, liderados por um velocista com cabelos de fogo e os pés virados para trás: Kurupira corre para fora da floresta. A uma centena de passos de mim, criam uma roda gigantesca e correm em círculos que vai se transformando numa acensão espiral até os céus: Boitatá, Mula sem cabeça, Charia e Cuca, [qualquer outro não-listado], sobem, velozes, em direção à Lua: povoam a mancha do dragão de São Jorge e a colorem de tons verdes escamosos e olhos vermelhos. Se fosse noite, conseguiria ver essa ilustração magnífica, mas tem pressa: o céu azul com nuvens e uma estrela só: as estrelas, tenho que falar das estrelas: essa é a história de como as estrelas desapareceram do céu e não voltaram nunca mais: eu...
– …Vi os índios Suya arremessando cipós nas estrelas e os escalando: caindo dentro dos astros como se eles fossem buracos. Ocuparam todas, com exceção da Beta Centauro, onde vive Ci, Mãe do Mato; e as estrelas da Ursa Maior, onde descansa, cheio de preguiça, Macunaíma Espaçoso. Antes dos “Tem mais não”, muita coisa: crianças, mulheres, homens e idosos foram da Terra para o céu da noite em movimentos cautelosos, mas precisos, de ginastas profissionais. Tomaram novas casas: as estrelas que Felipe e Guilherme se tornaram, quando morreram, foram ocupadas por dois meninos brincalhões que riram, em metros verticais, mais do que eu já ri em toda minha vida. As estrelas que Júlio e Mônica se tornaram, quando morreram, foram ocupadas por um índio sábio de longos cabelos negros e uma índia lindíssima de cabelos curtos. A estrela que seria minha, a Beta Câncer, foi ocupada por uma menina de bochechas magras e grandes olhos castanhos. Enquanto todos tomavam seus regadores, ela acenou para mim em despedida. Disse coisas que as distâncias de dezenas de Anos-luz não me permitiu entender.
– Regadores Retomados: como se fossem jardineiros do céu, cada índio tinha um na mão. Eram prateados e, refletindo a luz da Lua, pareciam irmãos das estrelas, mas não eram: tinham água dentro, em vez de hidrogênio e hélio. Inclinados, derramaram uma chuva sem nuvens (gelada) que me fez sentir frio, depois medo, depois nada. Insensível, minhas lágrimas, que não seriam mais usadas, escorreram dos meus olhos e caíram no barro, mas tudo era barro: A água dos regadores tinha propriedades místicas que decompuseram as árvores em lama. Muita lama: lama que me envolveu e me arrastou por quilômetros até eu não saber mais onde estava: e foi aos poucos solidificando assim que os regadores se esvaziaram. Os índios fecharam as escotilhas cósmicas como Você fecharia a porta da sua casa: a luz que vinha lá de fora (ou lá de dentro) apagou-se, e o céu ficou mais escuro, porque agora a única fonte de luz era a Lua Solitária. Foi graças a Você que pude ver isso tudo.
“Graças a mim?”
– Correto: estava com a cara enfiada nessa extensão de barro, perdendo as esperanças e morrendo asfixiado, quando Você apareceu e virou meu corpo de lado. Deu dois tapas no meu rosto e, quando abri os olhos, suspirou decepcionada. Caminhando pela lama concreta, em vez de movediça, disse “Adeus” pela terceira vez e desapareceu do meu campo de visão. Gritei por ajuda, mas Você parecia saber os resultados eminentes dos acontecimentos: em vez de, finalmente, ter a chance de morrer, eu fechei meus olhos e me preparei para meu último sono, pedindo sonhos utópicos que terminariam de repente com minhas funções vitais desistindo: interpretei que Voltaria mais tarde. Não aconteceu: quando fechei os olhos e pedi desculpas para Bernardo, Ricardo, Ubaldo (e desculpei a mim mesmo porque não tinha como eu achar comida e levá-la até eles). So it goes, mesmo que nem eu nem Nada estivéssemos indo para lugar nenhum. Dormi.
– Sonhei.
– Estava numa oca indígena. Não sei se os Suya viviam em ocas, mas eu não sei muita coisa sobre os índios. Depois que eles foram embora, não via mais motivo em pesquisar onde eu estava: uma construção cônica sem móveis ou clichês de fogueira e rede. Tinham várias caixas de papelão lacradas com durex e identificações em azul: pratos, livros, filmes, coleção de Hot Wheels. Não era exatamente isso com o que eu queria sonhar, então tentei sair da oca, mas do lado de fora era tudo escuridão. Entrei de novo e, ao contrário da solidão de antes, agora tinha, sentado numa das caixas, um índio de cabelos flamejantes e pés virados para trás: Kurupira.
– Pensei que tinha subido aos céus.
– Subi, mas depois voltei. Não podia deixar minhas coisas para trás, elas tem um valor sentimental muito grande pra mim. Eu cresci aqui, nessa oca, antes de virar o que eu sou. Meus poderes são daqueles tipos dados para super heróis. Eu fiz uma coisa boa e ganhei uma recompensa por isso: a capacidade de mudar de forma e de enganar as pessoas. Força e velocidade descomunal para proteger a Amazônia dos caçadores e madeireiros.
– É uma sucessão recíproca de fracassos. Kurupira passou a mão pelos cabelos flamejantes e eles apagaram para ficarem ruivos, alaranjados. Escarrou nas mãos e as esfregou, pelo corpo, o catarro que empalideceu sua pele parda em tons caucasianos. Piscou e seus olhos ficaram azuis, depois tapou o nariz e fez força: como naqueles bonecos de massinha Play Doh, começou a crescer uma fina barba alaranjada nas bochecas e no queixo. A única coisa que preservou do rosto e da cabeça foram os dentes brancos. A lança desenrolou-se num tecido: uma cortina que ele ergueu entre eu e ele, deixando-a cair em seguida, estava coberto por um caro terno italiano branco. Tirou um chapéu de dentro do bolso do paletó e o botou na cabeça. Suspirou, triste, e cruzou as pernas botando seu tornozelo na coxa. Olhou para mim com ares vagos, depois para a parede da oca. Pegou seu pé e o girou cento e oitenta graus, como se fosse um parafuso. Da calça, puxou uma meia. E assim que pisquei essa meia virou um sapato de couro. Foi assim com o outro pé também.
– Kurupira era um mágico: Enfiou as mãos bem fundo no bolso e tirou lá de dentro um pedaço de carne quente e suculenta. Disse que É um pedaço da minha perna. Peguei o pedaço e comi, minha fome desapareceu e tudo deixou de parecer um sonho, porque não era. Ele disse:
– “Esta é a revelação: as cicatrizes da parede são incuráveis e vão cair uma por uma, levando o teto junto. Quando tudo for uma planície de concreto, perceberás a futilidade do material e se focará no espírito, mas também não terás recompensa: todas as pessoas que importavam foram embora, por vontade própria.” Kurupira/Homem Ruivo não me perguntou ou respondeu mais nada, porque eu mesmo não fiz mais perguntas ou dei respostas. Cumprimentamo-nos e eu acordei feliz, mas logo fiquei triste: em vez de leito de barro, eu me deitava na grama fresca de um vasto campo. Achei que era o Paraíso, mas as visões minhas não correspondiam às descrições de Júlio: eu estava talvez no Limbo, talvez no Inferno, então decidi andar por aquela vastidão solitária até descobrir o que era, nenhum nem outro: depois de dias, cheguei a Belo Horizonte, e fui recebido por uma comitiva de esposa de Bernardo, mãe de Ricardo e irmã de Ubaldo.
– Perguntei o que aconteceu enquanto eu estava fora? E me disseram que-
“Nada senão que os homens com família, futuro e sonhos morreram de fome, sobrando somente os solitários sem perspectiva ou ambição: você”
– Disse-lhes que a Amazônia tinha desaparecido, substituída por uma pampa nivelada, mas não deram importância: lamentavam a partida dos homens interessantes, porque só sobraram minhas rapsódias desatentas. Choraram tanto por Bernardo, Ricardo e Ubaldo que as lágrimas acabaram e tive que emprestar as minhas.
“Mas suas lágrimas não tinham ido embora?”
– Sim. Por causa disso, ninguém nunca mais chorou.
Prometeu do Fogo-fátuo, incendeio o Próprio Coração
As mulheres caminhavam pelos corredores do asilo, mas ele disse:
– Sem comida animal ou vegetal, tentamos sobeviver de grama, mas não deu certo: a opção que sobrou foi o canibalismo mais civilizado possível. Os altruístas alimentavam os egoístas em pares, casais femininos de um número ímpar de mulheres, foi assim que eu conheci… – O velho ergue os olhos para um pouco acima das nuvens. – Pandora. O nome dela era Pandora, mas as descrições não que cabem por que já não lembro: senão que tinha cinquenta anos, era bonita, inteligente e da alma mais poluída possível: devorou meus dedos, minha mão, meus braços e meu ombro no dia em que nos conhecemos. Pedi para que se contivesse, porque sua voracidade acabaria a matando, mas respondeu que Não tem problema, quando não sobrar mais nada comestível, vou procurar outra. Acabou, sabe-se lá por que, contendo suas vontades: dava-lhe, todos os dias, um pequeno pedaço de mim, que lhe sustentava por vinte e quatro horas. Foi assim durante os dezessete anos, até as egoístas devorarem as altruístas.
“E você?”
– Sim, eu, porque Pandora era econômica e se satisfazia com pouco, ou porque talvez meu gosto fosse tão desagradável que ela evitasse. As egoístas vieram até mim, para devorar as partes que faltavam, mas muito pouco: a carne da perna e os resto eram os ossos do qual ela chupava o tutano. Mais velha, ficou saudável e bonita, digna de poemas que eu escreveria, se as mãos do meu esqueleto não se desfizessem tão facilmente. Era como ter Crona, de novo, mas uma Crona feliz, (ao menos nas minhas memórias): fome de Pandora me impediu de ficar sozinho, como eu estou agora, dezoito anos depois do que aconteceu: vendo que restava muita pouca comida para muitas pessoas, decidiram entrar em guerra, mas eram todas egoístas, então todos os lados que aderiam eram pessoais: guerra total e quem sobrar fica com o banquete, mas ninguém queria ficar sozinho. Antes furiosas, preparando-se para a batalha extensa de fronts infinitos, ficaram tristes pela impossibilidade de resolver um problema tão simples quanto a fome canibal.
– Pandora não me abandonou um segundo só. Imaginei que por afeto, mas percebo que era por egoísmo também: queria preservar a comida que tinha economizado durante quase duas décadas. Eu, que agora era só o esqueleto (porque Pandora me comeu até o rosto e as orelhas e o nariz, lambeu o sangue que me manchava) olhava sem olhos para a imagem de Amazonas Canibais de uma civilização perdida com beicinhos no rosto e lágrimas de crocodilo nos olhos: para tentarem adquirir simpatia, pingavam gotas de água no canto das órbitas oculares e esperavam que o milagre do choro convencesse as outras a alimentarem-nas, mas não funcionava: embora as altruístas se dispusessem a arrancar pedaços do corpo pela felicidade das companheiras, as egoístas não davam nem unhas ou fios de cabelo, que viraram iguarias na antropofagia do fim dos tempos. Foi, posso dizer, dessa maneira que acabou o mundo: com as mulheres desistindo de viver.
– Foi Pandora, com seus olhos claros ou escuros, que já nem lembro, quem fez a proposta: se aqui é o mundo da mudança e das coisas que acabam, precisamos da Eternidade. Por que não vamos todas para o Céu? Mas eu disse, com minha boca que só abria e fechava, sem língua, porque Pandora a devorou, que o Céu estava ocupado pelos índios Suya. Desgraçados, disse uma. Então para o Inferno, disse outra. A maioria riu, a outra ficou séria, depois todas ficaram sérias e disseram que não era má ideia, perguntando para mim se eu sabia dos atuais ocupantes do lugar. Os demônios, talvez, respondi, e perguntaram Quantos? Não sei ao certo, mas uns sete, pelo menos. Então não é nada demais. Naquela época, dezoito anos atrás, tudo era mais simples.
Mas a verdade é que tudo parece mais simples olhando para o passado. Passado recente: viajar até o asilo, perguntar onde ficava o quarto 1012, subir as escadas, andar pelos corredores, bater na porta e entrar no quarto. Se sentar na cama parecia tão complicado que a gravidade a fez deitar na cama, botar a cabeça no travesseiro e fechar os olhos. Sorrir de tão agradável que a ideia do sono parecia, mas não: tinha que escutar o velho, depois levá-lo embora. Tudo isso parecia mais difícil agora, sendo que era fácil antes. Elas foram procurar as entradas do Inferno.
– Entraram em cavernas e gritaram para dentro de vulcões, mas não encontraram nada senão poeira, jazidas de pedras preciosas, lagos de água colorida e tóxica. Fiquei junto de Pandora, que continuava me devorando e me protegendo dos dentes cobiçosos. O pathos acumulado de anos sozinho, fazendo amigos para perdê-los, me fez sentir as falsidades do amor recíproco de Pandora porque a verdade é que eu amava Pandora. Enquanto ela arrancava pedaços do meu corpo, os espetava para cozinhá-los num fogão improvisado com a fogueira do nosso esconderijo, conversávamos sobre os livros que líamos, os filmes que assistíamos, as músicas que escutávamos e nossas experiências de vida. Senti a amargura do ciúme quando ela me contou que, mais nova, tinha se apaixonado por um dos homens levados pela lama: tinha cabelos loiros, olhos azuis, peitoral forte e braços firmes, sentimentos que eram ditos de um jeito tão sincero que ela se apaixonou por ele.
Silêncio de novo e das últimas vezes. Não faz mal: assim que ele se for, para lugares que Ela não pode saber quais são, as tábuas de madeira do assoalho e as molas do colchão vão se calar do jeito que se calam quando não tem os pés do velho para pisá-los ou corpo Dela para movê-lo de um lado para o outro, antes quando ela estava sentada e agora que ela estava deitada. Depois, quando estiver em pé, vai sobrar somente as janelas, que vão se agitar quando o vento soprá-las frio. A noite se aproxima na velocidade lenta das palavras calados do velho, mas ressurgem junto dos movimentos das nuvens, que pararam, também, por alguns segundos:
– Você já se apaixonou?
“Claro que não. Que pergunta idiota.”
– Eu me apaixonei algum bocado de vezes antes da Crona, duas vezes durante a guerra, nenhuma vez durante a fome e uma vez depois. Antes das mulheres encontrarem a entrada para o Inferno, eu estava apaixonado pela mulher mais egoísta de todas. Não tinha apenas comido meu cérebro, como se fosse um sorvete, mas também meu coração, como se fosse bala de gelatina. Você já comeu bala de gelatina?
“Sim. Eu gosto dos ursinhos vermelhos.”
– Eu gosto das dentaduras. Eu comprava um pacote para mim nos meus aniversários e ficava comendo sozinho. Você entende, não me entende? O que é passar um aniversário sozinho.
“Eu não faço aniversário.”
– Mas e se fizesse, Você me entenderia?
“Não. Eu sempre tenho companhia. A sua agora, a de outros seres do outro lado do universo. Eu nunca vou conhecer a solidão porque eu estou sempre trabalhando, andando de um lado para o outro e ouvindo histórias que ficam mais pesadas na medida que vocês as contam. Sua história é a mais pesada de todas porque pesa um mundo inteiro, em vez de fragmentos: me contam histórias que pesam uma pessoa, uma cassa, uma cidade, um país.”
– É o poder da verdade…
Mesmo que fosse tudo mentira, mas ele disse:
– … Que me fez gostar de Pandora, ela era sempre honesta: perguntei se gostava de mim, disse que Não, se Ficaria comigo se as mulheres encontrassem as portas do inferno? Disse que Não. Se tinha qualquer coisa que eu pudesse fazer para ela ficar comigo. Disse que Não e devou a batata da minha perna, então só me sobrava pé, calcanhar de Aquiles que seria disputado por Briseidas e Cassandras se não fosse a maldita da Pandora, que me tinha para si. Pela sensação áspera, jogou-o fora para as bactérias não-comestíveis devorarem-no. Foi para meus pés, arrancando a pele como se fosse uma embalagem contra a sujeira. Sustentei a sensação de ser esqueleto por alguns dias de silêncio, porque a mágoa de não ser desejado e a ausência de lágrimas me botaram em irresolução: só voltaria a fazer as coisas quando Pandora fosse embora. E acabou indo.
– Como era a pessoa que Você amava?
“Eu já- … Tinha longos cabelos vermelhos e olhos azuis. A pele era água corrente como se suas glândulas sudoríparas fossem fontes de água doce em que me banhei para hidratar esta pele seca. A felicidade. Foram os dias que me contiveram os passos até eles acumularem-se por obrigação. Parti, em silêncio, quando ela dormia: beijei seus cabelos verdes e na sua pele, com a ponta da foice, escrevi meu Nome, que não te revelo porque você não é tão especial. A água das suas cachoeiras, que eu bebi para me encher e transbordar, continua aqui, fluindo nas minhas veias e aderida ao meu corpo como DNA. Somos.”
– A minha era das coisas mais simples: olhos e cabelos castanhos, pele branca. O rosto nem dos mais bonitos, mas continuam o mais bonito na minha cabeça. De todas as lindas Amazonas Canibais, as mulheres mais egoístas de todas, Pandora é a que fica na minha cabeça: o som do seu mastigar constante, mesmo quando não me devorava, permanece ecoando, para sempre, na minha cabeça, e as palavras que saíam da boca dela sobre seu Adônis.
– De todas as pessoas que já viveram no mundo, quem fez Pandora gostar de alguém além de si mesma foi um homem mais bonito, mais forte e mais carinhoso que eu. Se eu pudesse falar dos meus sentimentos do jeito que falo agora-
“Não teria mudado nada, porque não é desse jeito que as coisas funcionam.”
Mais silêncio. É a penúltima vez que o silêncio vai acontecer antes de-
– As mulheres encontraram as portas do Inferno numa forma estranha e singular. Singular de 1 porque em vez de portas era uma só: tampa de escotilha com maçaneta de roda dos filmes de submarino. Porta do Inferno com clichê dantesco: em latim, inscrito em baixo relevo, no metal, Abandonai toda esperança vós que aqui entrais. Revirei os olhos inexistents, mas o resto achou magnífico. Em círculo, vocês se abraçaram de vitória. O sofrimento tinha acabado, mas não para mim. Puro osso, segurei Pandora pelo pulso e pedi que não fosse. Sorriu e perguntou Como, agora que não tinha mais carne, eu poderia satisfazê-la? No que meu triste sorriso esquelético não soube responder.
– Giraram a maçaneta até um estalo. Puxaram a tampa da escotilha e sabe-se lá o que viram, mas com certeza viram alguma coisa, porque gritaram. Não de medo, mas de aviso hostil: Ei, vocês, podem sair que nós vamos morar aí agora. E quem reclamar vai se ver comigo. E medo humano em horda de demônios foi o suficiente para uma voz divina responder Aspetta un po’. Cinque minuti doppo, carregados de malas, sete monstros enormes e um anjo saírem da tampa apertada como se fosse fácil: o camelo pela fenda da agulha. Lúcifer lançou-lhes as chaves do Inferno e elas foram entrando, uma por uma, sem olhar para trás.
– Você, impressionada pela beleza do antigo Rei das Profundezas, foi a última a entrar. Quando a tampa fechou, um demônio cego de vinte pernas, quarenta braços e órgãos expostos na pele vermelha (chamava-se Mamon), tomou a tampa em suas mãos enormes e a entortou sem dificuldades, jogando-a para longe em seguida. Foi quando um outro, de asas de mosca e cara de leão, braços atrofiados e pernas de elefante (chamava-se Belfegor) perguntou para mim Dov’è la birra? e respondi que, dada a falta de cevada, não tinha mais cerveja. E todos reclamaram, xingando Mamon por ter destruído o portal para o Inferno, onde parece que ainda tinha bastante cerveja estocada nos congeladores, agora das mulheres.
– Perché non sei entrato? Perguntou Lúficer, e respondi que Não sou egoísta, minha presença não era bem vinda. Aceitou e perguntou se sentia algo por alguma daquelas mulheres, o que eu respondi que Sim, por Pandora, a mais bonita de todas, mas também a mais egoísta, que me consumiu, mas não me deixou consumi-la. Perché? E eu, gastando meu italiano, respondi, esquelético: Boh, no lo só.
– Lúcifer e os outros sete demônios riram.
– Aproximou-se um demônio com cabeça de bode e corpo de homem, mas sem pele, como se tivesse sido esfolado. Nos braços, carregava dois braceletes dourados com inscrições latinas de Solve e Coagula. Suas pernas de sátiro tinham a mesma extensão de um pênis-cauda que arrastava no chão. Os chifres eram grossos galhos esculpidos em formas pontiagudas. Seu nome era Bafomé. Disse, no que eu não entendi em italiano e tive que pedi-lo para traduzir ao português: “Esta é a revelação: o coração pulsa sangue negro e azul, mas nunca vermelho. Bombeia mentiras pelas artérias e os músculos transformam em verdade, que corre pelas veias. Se a flecha perfurar somente os ventrículos, e nunca os átrios, a Terra se inundará de Felicidade Afogada, mas se for o contrário, os terremotos te engolirão numa queda tártara de um milhão de sofrimentos, porque o tempo não se contará mais até a ferida cicatrizar. Esta ferida existe para sempre: está nas juntas do corpo, nos laços do seu código genético, sobre e dentro da pele, mas sobretudo nos capilares. Os capilares são o segredo, o labirinto que vai levá-lo à certeza.” Enfiou as mãos no chão e cuspiu litros de saliva que transformaram a terra em barro. Ergueu o barro sobre minha cabeça e deixou que caísse até preencher meu corpo de ossos. Veio Azazel (o corpo humano, a pele preta de buraco negro, mas com feridas abertas das quais saía sangue), que deu dois fortes tapas no barro, que transformou-se em poeira, senão por uma camada grossa na forma de um corpo humano: velho, de sessenta e seis anos de idade. Cobria-me de cima a baixo, sem orifícios ou olhos. Foi Asmodeus (um gigantesco mastodonte poliédrico cuja cabeça era um icosaedro de vinte olhos, o corpo um octaedro e as pernas retas insectoides gigantescas: tinha nove metros de altura), que me tomou, cortou fendas no meu corpo e arrancou um dos seus dez pares de olhos para que eu pudesse enxergar de novo. Pôs-me no chão, como criatura recém-nascida, e sorriu.
– Andiamo da qualche altra parte. Vuoi venire? E disse que Não, porque aquele mundo, aquele universo, não tinha mais nenhum outro lugar para onde se ir.
– Capisco. Subiram no gigantesco Leviatã (que, ao contrário dos outros, era das exatas descrições de gigantesco monstro marinho) e o demônio bateu suas barbatanas para nadar no céu até o infinito, além das estrelas, onde viviam os índios Suya.
Silêncio pela última vez.
– Eu vaguei durante dezoito anos sozinho, vivi em cavernas e aproveitei os escombros da humanidade para passar o tempo. Meu corpo de barro não tinha fome ou cansaço, embora envelhecesse, por causa do Sol ressecante, e tive que conter meus movimentos ao começo do dia e ao final de tarde: o resto passava contemplando a passagem do Sol e a metamorfose do mundo; a chuva diminui a serra, o vento soprou as nuvens e a grama cresceu, mas eu não mudei nada porque não tinha mais nada e mais ninguém para me mudar.
Suspira de cansaço.
“E a Pandora? Ela não tinha nenhum jarro com a esperança, não?”
– Quem é Pandora?
Ela sorri. Levanta da cama, pega a foice e anda até o velho. Aproxima-se, ajoelha-se e olha para ele, irrecíproco. Espera que diga melhores últimas palavras que Quem, É e Pandora, mas parece satisfeito com isso: tem um pequeno sorriso no rosto. Ela segura-lhe mão, apertando, carinhosa, os nós cegos dos dedos enrugados. O brilho fraco dos olhos desaparece. A cabeça, lentamente, vai caindo até o queixo tocar o peito.
Duas lágrimas contidas escorrem dos olhos pelo rosto dele e pingam na camisa branca.
Silêncio para sempre.
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ano passado em balistul
Há um desconforto no coração de Númara; um corte masculino no cabelo e vestes cerimoniais no corpo. Os vinte cúmulos que pediu aos Intérpretes se esgotam ao piscar lento dos olhos, mas ela estende a duração do tempo com qualquer feitiço prodígio que lhe dá mais tempo para, num dia nublado, imaginar o futuro próximo e distante.
Foi no segundo século do Milênio Profetizado: “Uma ostra engolirá a poeira do chão e gestará uma pérola maravilhosa, mais iluminada que os califas: seu nome será do Universo e a palma ganhará, ao completar o Primeiro Ciclo, a marca que inscreve a vida.” Depois, mais quatrocentos parágrafos sobre as demandas educacionais da Escolhida e dos feitos que estava destinada a fazer. Sorriu quando o códice descreveu ela deixando o tomo cair de tão pesado que era: seus músculos de doze anos de idade não conseguiam carregá-lo, então veio Simba. A Profecia o chamava de Terrestre.
– Sucedo um marinheiro famoso que colecionou as Riquezas Infinitas de Abdá. Quando fui ressuscitado, o Vizir de Ocirej me deu-lhe o nome. Como sou velocista: Terrestre.
– Meu nome é Númara. Significa “a que envolve”.
Foram para o Monastério de Boaderi-Sa durante a elevação sazonal das marés. Badu estava em jejum espiritual e não puderam se despedir, mas ela acenou para a cidade do mesmo jeito. A comitiva de soldados atrás da carruagem entendeu como um gesto patriótico, e Simba, do topo de um alazão negro, consolou-a com palavras mentais.
Prodígio que era, já tinha aprendido o feitiço para ouvi-las.
– Você leu os outros Séculos, Simba?
– Não li nem o nosso, Expoente. – E Númara sorria.
– O quinto profetiza que todos os meus esforços terão sido em vão. Caroka ascende um governo próspero que apaga o brilho de Abdá, resultado da desconfiança do califa com as profecias que apontavam a decadência intelectual da geração. A capital é invadida em 3620 e Caroka governa, perfeita, até ser derrubada por um líder milagroso nascido no quarto milênio, cuja Luz é tão forte que cegou Tirésias.
– Está muito longe de acontecer.
Númara expira.
– A questão não é essa.
Badu manda, ao longo de nove anos, duzentas e quarenta e duas cartas falando da vida na Escola da Benção. Narra os entusiasmos de aprender poções, feitiços, truques e magias de autossustentação que ela já domina e usa para suspender fome, respiração, sono e fadiga. Meditando duzentos metros acima da torre do sino, tenta conectar as poucas páginas do Sistema para descobrir como suspender a sensação térmica negativa que tira sua concentração e reverte as possíveis descobertas para pensamentos em Simba.
– Sua morte está na profecia, sabia disso?
– Não. O que acontece comigo?
– Eu me recuso a atacar Cartago e você deserta; une-se à Milícia. Atacam a cidade, são torturados e mortos por Príamo. Eu revido, em vingança. Eneias foge pelo Mar Femírio e funda a aldeia que virará Caroka.
– E como você morre?
– Aos cem anos, durante o parto do meu filho com a Sombra, que eu ainda não conheci.
– Essas profecias tiram a graça de tudo, não é mesmo?
Númara inspira e quase engasga de tanto oxigênio desnecessário.
– Tem algumas coisas que faltam.
Os Linápios começam a disputar as fronteiras do leste e é enviada para destruí-los, mas planeja conversar com o Pontífice primeiro. Sabe que os encontros serão negados, que derrubará uma taça de cristal enquanto joga xadrez com Simba e que enfrentará os duzentos mil homens da Linápia numa batalha de duzentos e sete cúmulos. Sabe que vai bater o mindinho do pé na quina do armário de seus aposentos provisórios.
– O Badu nunca aparece nas profecias.
– O das cartas? Estranho, né? Delfos devia estar com preguiça de escrever sobre ele.
– É.
Sobe as escadas até o quarto de Númara para se despedir. Cada passo ecoa pelas paredes e alcança os ouvidos da Expoente antes mesmo que esboços de conversa tenham sido imaginados por qualquer um dos dois. Quando alcança a porta e gira a maçaneta, já sabem exatamente sobre o que vão conversar.
– Vai chover amanhã de tarde, preciso ir agora.
– Já pensou o que faz uma pessoa ser relevante na sua vida, Simba?
Simba fica alguns segundos em silêncio, olhando para a escuridão além da janela.
– O vento está forte, parece aquela vez em Balistul.
– Quando eu voltei para Abdá, não procurei Badu e ele não me procurou. Eu ajudava ele com as tarefas e ele me fazia companhia. Ajudava a carregar os olhares pesados dos Intérpretes.
– Essas coisas são complicadas.
– Mas ele nunca aparece.
Anda entre homens mortos do campo de batalha a caminho do Pontífice magicamente paralisado. Nos soldados, não existem feridas, somente traços de feitiço assassino. Um exército inteiro, desnecessário, atrás dela. Simba sentado no chão.
O vento soprando os trajes militares dela.
– Expoente, pode me fazer um favor?
Foi quando ela tinha quinze anos, cabelo até os ombros, unhas pintadas de amarelo.
– Diga.
– Pode me mostrar a Marca?
Númara olha para ele, faz que Sim com a cabeça e retira a luva de couro. Estende a palma e estica os dedos: embora a periferia embranqueça, o meio preserva um Ankh deformado de sangue. Nos olhos do velocista, um brilho novo, apontado para ela.
– Isso faz tudo valer a pena.
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capítulo 110
1.
O vento nos levaria. Deitei-me no barco como tinha planejado fazer desde agosto. Eva estava na ponta, a mão direita firme no chapéu, a mão esquerda firme na borda do barco, para não cair. Tinha lhe pedido que amarrasse o pulso ou o tornozelo a uma corda para caso precisasse puxá-la, já que não tínhamos bote salva-vidas. Próximos das outras embarcações, sentia-a me seguro de que, mesmo que eu não conseguisse salvá-la, alguém viria socorrê-la no meu lugar. Paulo, em sua Carruagem D’Água, distanciava-se de nós numa velocidade surpreendente.
Era solstício de primavera, um dia quente e cheio de peixes, que os pescadores ignoraram para chegar em Brazil o mais rápido possível. O Sol no meu rosto, que protegi com protetor solar e o chapéu que meu pai tinha emprestado porque Franzir o cenho o tempo todo vai te deixar com rugas na testa. Meus braços e pernas, desprotegidos, ficariam bronzeados, senão queimados, e eu torci para as advertências de câncer de pele e melanoma da minha mãe não se concretizarem. Com os olhos fechados, tentei dormir um sono que eu não sentia, que nem mesmo o balanço suave das ondas conseguia causar. Pensava somente em Eva e na possibilidade dela cair no mar; o que me fazia pensar também em pular naquelas águas geladas e buscá-la, mesmo diante da certeza que não teria força para nos repor no barco. Certeza maior ainda era que ela não cairia.
Pensei que ela falaria alguma coisa comigo, mas não falou. Sorri de tranquilidade. Tinha feito meu barco, levado a garota que eu gostava comigo e perdido a aposta.
Bocejei de tédio, quem me dera de sono.
2.
O vento nos levaria. Cortez tinha ido dormir depois de tanto esforço: foram dois meses incansáveis, um mês e vinte e dias, mas não ajudei em nada. Foi quem pediu doações da madeireira, comprou as ferramentas com o salário de entregador de jornal, saiu correndo depois da aula até a oficina, que era uma garagem inutilizada de uma casa abandonada. Quantas vezes não lhe contaram histórias de Medeia Ex-Moradora? Quantas vezes ele não me confundia com residente fantasmagórica, gritando de susto e rindo depois? Eu era um peso extra naquele barco, então dizia, para garantir minha carona, ser um amuleto ambulante, uma pessoa de sorte.
Mas Paulo tinha ganhado, sem dúvidas. Ainda que qualquer tragédia pudesse acontecer, eu torcia (e suponho que Cortez também) para que ele chegasse são e salvo em Brazil para só depois as coisas darem errado e ele ter que voltar conosco, anulando a aposta em troca de nossas boas ações. Como se não somente o vento, mas as ondas e os peixes e talvez uma baleia ou deusa o ajudassem, a Carruagem D’água seguia na frente de todas as outras embarcações como um sucesso definitivo, sem competição que se igualasse à sua velocidade natural. Se não fosse o vento, talvez um dos barcos motorizados conseguisse ultrapassá-lo, mas o ditado era O vento quer que você chegue, e não qualquer propaganda da loja do Seu Narra sobre Os motores fazem você chegar. Sem qualquer fumaça branca, cinza ou preta escapando da embarcação de madeira e da vela de tecido, Paulo tinha cumprido duas promessas: construir um barco a partir de um modelo que ele mesmo tivesse criado e vencer a corrida até Brazil por larga vantagem.
Dia quente refrescado pela água fria que se aderia em mim por proximidade, salgando minha pele e deixando-a grudenta, tentei me ater à viagem mais do que ao objetivo, para não me sentir perdedora, já que vencedora eu não seria. Cortez estava deitado num canto do barco que parecia ser feito especialmente para isso, e desejei ter espaço para me enfiar lá e fingir que era porque queria dormir também, não porque gostava dele; mas não tinha. Continuei sentada na ponta do Ociano, que eu não tinha nem elaborado e nem construído, mas pintado com a tinta azul que lhe batizou. Ironicamente, escrevi seu nome em tinta branca, seguido da explicação que sabia, como melhor aluna da classe, escrever Oceano, e que meus corretores que deveriam usar mais o próprio cérebro. Cortez, que se irritava muito pouco comigo, só sorriu.
Era a primeira vez que eu iria a Brazil. Estava feliz que fosse com ele.
3.
O vento me levaria. Eu tinha conseguido. Na frente de todos, porque tinha trabalhado mais do que qualquer um deles na construção do Carruagem. Senti, pela primeira vez na minha vida, que queria que fosse a primeira de muitas, a satisfação de cumprir um objetivo e alcançá-lo mais perfeitamente do que todos os outros. Meu nome é Paulo, eu tenho quinze anos de idade e meu sonho é ser engenheiro naval. Mesmo que longe de todos, e que ninguém pudesse me ouvir, disse isso bem baixo, somente para meus próprios ouvidos, e talvez para os peixes que de vez em quando eu via cruzarem meu caminho. Solidão, mas não daquela que eu sentia antes. O fato de tudo aquilo ser culpa indireta de Cortez, e o fato de Cortez estar sempre diretamente associado a Eva os inseriam dentro do meu coração, os trancavam lá dentro e não deixava que eles saíssem. Eu sempre quis fazer um barco, mas se tinha feito, era por culpa deles. Ainda assim, não agradeci ninguém: tinha feito aquilo com meus esforços, e eles seriam reconhecidos pelos outros, não por mim. Que felicidade. Numa vastidão aquática: a ilha, a costa da cidade, pequenos pontos soltando fumaça branca, cinza ou preta, eu estava sorrindo sozinho.
Chegaria em Brazil antes de todos, mas não pisaria lá. Contornaria a ilha, depois voltaria para casa. Passaria por todos, desejaria que se entupissem de Fruta da Graça e me tornaria, novamente, um ponto estranho. Não daria a satisfação de ninguém comer duas ou três Graças e depois ir embora na minha frente. Ficaria sozinho, na cidade, enquanto eles aproveitavam aquela utopia anual. Teria outras chances, com barcos mais lentos, de ir para lá. Não era a primeira nem a última emersão, nem a última imersão, nem a última vez que eu faria um barco. Meu nome é Paulo, eu tenho quinze anos e eu fiz um barco em um mês e vinte dias usando madeira que a madeireira me deu. Se isso não era suficiente para impressionar as Faculdades Imperiais, eu não sabia o que era.
Dia quente, eu imaginei, sentado na Carruagem, deslizando veloz, em dar a volta com um sorriso no rosto, e ir na direção deles. Todos ficariam com os rostos surpresos e interrogativos, mas eu me manteria composto. Agarrado à vela, acenaria para todos que não estou afim de Fruta da Graça e que tenho que terminar meus deveres de casa antes do Feriado da Emersão acabar. Minha imagem feliz, com o braço se movendo amplamente, ficaria marcada nas suas retinas como uma mancha, e pensariam em mim pelo resto daquele dia comunitário onde eu seria a única pessoa sozinha. Desta forma, eu ficaria no coração de todos eles, trancado e impedido de sair.
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esquema silveira-dias
O F-40 do espaço. Comprou num ferro-velho, trocou o motor e conseguiu licença para operá-lo junto dos outros caças em forma de bola. Eram as naves do Astronauta, da Turma da Mônica, só que pretas. O Esquema Silveira-Dias fez ele ter uma parceira.
– Márcio. – Abriu os olhos. Os destroços da batalha do outro lado do vidro. Naves de resgate salvando quem podiam, recolhendo os corpos.
– O que foi? – Ela olhava pela janela como se estivesse num ônibus.
– Você se dá bem com seus pais?
– Os dois já morreram. Meu pai morreu numa briga quando eu tinha doze e minha mãe de eutanásia. Não me dava bem com ela. Meu pai fumava, só lembro isso.
O F-40 no espaço. A Guerra do Vácuo. Ele olhava para frente, ela olhava para todas as outras direções. Davam certo. Venceram duas batalhas entre Saturno e Júpiter. Tomaram a base em Europa e ficaram esperando a grama crescer.
– Palas. – As molas da cama de cima. – Te acordei?
– Não. – Botou a mão no corpo: estava suada. Dava para espremer o suor da regata branca. Jogou a camisa, de cima do beliche, no chão. – O que foi?
– Qual o nome do seu melhor amigo?
– Jonas. Depois que saí da Defesa Nacional, me mandaram para Bela Vista. Ele era meu subordinado. Um gênio de cálculo. Os piratas saquearam lá, mataram ele e eu fiquei no hospital por um ano. Passei no exame e fui para a Ofensa da Liberdade, mas é porque achei que ia ficar sozinha.
O F-40 do espaço. Conseguiram fama, o que deixou os Astrobolas irritados. O caça aéreo reformado era bem mais icônico que aquelas esferas de metal preto. Bolas de gude pretas atirando lasers umas nas outras. Um avião para deixar as coisas menos redondas.
– Márcio. – A língua para fora enquanto ele cortava as unhas. Flutuando na gravidade zero, distanciando-se aos poucos das mãos e dos pés dele.
– Vou pegar elas depois, pode deixar.
– Não, não. É bom pegar mesmo, mas é outra coisa. Você era casado?
– Noivado. Ela era professora, me incentivou a fazer a faculdade. Quando estava começando o TCC fizeram o requerimento militar. Ela disse que era para eu recusar, não recusei.
– Por que não recusou?
– Estava com preguiça de fazer o TCC. – Fez as mãos em concha e recolheu todas as unhas de uma vez só. Jogou no lixo.
O F-40 no espaço. Navegando entre naves destruídas. Os propulsores, expelindo uma fumaça roxa de zíons resfriados, criam um rastro pelos destroços metálicos, que espelham a luz do Sol.
– Palas. – Márcio pergunta de boca cheia. – Quanto seu pai ganhava como ministro de defesa?
– Quatrocentos mil pragmas. Hoje dá uns setecentos. Eu tinha motorista e tudo. Só não era toda patricinha porque fazia Academia Militar. Onde você estudou?
– No Talita Brandão a vida inteira.
– O da Gangue de Tétis? Se você fez faculdade, então é mentira que eles não tem turma de quarto ano porque todo mundo larga.
– Que nada, larguei no ginásio. Falsifiquei meus diplomas para entrar em Astronáutica. Sei nada de História da Terra.
O F-40 do espaço. Venceram as batalhas entre Júpiter e Marte, o que significa que só faltava as entre Marte e Terra e as batalhas na Terra. Nas estações do Cinturão de Asteroides, os soldados se perdiam nos túneis subterrâneos das gigantescas pedras espaciais.
– Márcio. – Os motores da nave aquecendo, Márcio recitando mantras de guerra. Terminou.
– O que foi?
– Dois colegas meus disseram que te conhecem. De onde você conhece analista?
– Da preparatória. Tentei ser técnico que nem você. Seis reprovações.
– Seis! Pra ser técnico? Pra que ser técnico? É a coisa mais chata do mundo.
– Que nada. Uma vez conheci um técnico que conseguia fazer cálculos de rota hiperespacial de cabeça. Sem computadores nem nada. Imagina que foda conseguir fazer isso.
O F-40 no espaço. O corpo de um soldado da Terra fica preso na asa. O pulmão explode e os líquidos do corpo começam a evaporar. Sem som, os dois veem, de canto de olho, dez segundos de movimentos bruscos e desesperados de algo que nem parece mais um ser humano.
– Palas, você acha que entrou no Exército pelos outros ou por você?
– Eu entrei pelo meu pai.
– Eu sei, mas você acha que está fazendo pela causa ou por você?
– Não sei. Não acho que o Império da Terra seja bonzinho, mas não me importo muito.
– É. Nem eu.
– Você se inscreveu no Exército por quê?
– Porque queria ir para o espaço. Gosto daqui. Ninguém perto de mim.
O F-40 do espaço. Rápido. Deixa um rastro roxo de zíons resfriados que as outras naves não deixam. Muito mais bonito.
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arnold schwarzenegger
– Um pouco antes d’eu nascer, meu pai atacou a carruagem duma editora e roubou os livros. A maioria eram as aventuras do Rei Conan, que meu pai leu e decidiu transformar em mim.
– Eu nasci para ser camareira. Estou sempre almoçada e tenho muito tempo livre. Yano cuida para que nenhum homem tente me fazer mal.
– É por isso que eu sou tão forte: o Rei Conan era um bárbaro invencível.
– Mas eu acho que ele não ia conseguir te impedir.
– Então eu cresci de um jeito bem sozinho numa fazenda bem distante onde tinha que fazer todo tipo de exercício para exercitar todo tipo de músculo. Meu pai passava horas no espelho os descobrindo: que partes do corpo as abdominais, as flexões e os agachamentos desenvolviam. O que faltava.
– Então você queria ser ator?
– Como eu não ia pra cidade, achava que era assim com todas as crianças. Era a Geração Iluminada, da fartura da Estrela, e meu pai achava que aquele parrudos inteligentes eram os Conans Naturais.
– Temos algumas peças de teatro aqui na biblioteca. Meu pai gosta de ler histórias e ele anota as histórias que os viajantes nos contam. Talvez ele goste da sua.
– Quero um quarto até o ouro acabar.
– Meu pai reconheceu sua marca do Exército.
– Então me dá dois dias para descansar e eu vou embora.
– Talvez tenha sido uma das carruagens que meu avô pediu. Você nasceu aqui perto? Meu avô que deu essa mania pro meu pai. E a mania, antes, era do meu bisavô. É que pouca gente permanece na cidade. Só a gente fica porque nós vivemos desse trânsito.
– Tivemos que ir na cidade comprar remédios para minha mãe. Foi quando eu vi.
– A vida é meio chata, às vezes. Os livros nos divertem.
– Eu tenho talento para a barbaridade.
– Posso entrar?
– Me disseram que ator bom é mentiroso, mas eu não sei mentir. Meu pai era muito honesto comigo: Eu te amo, Estou desapontado, Quero que você seja uma pessoa boa, e ele nunca escondeu lágrimas. Era fresco.
– Por que você está no Exército se era para ser um bárbaro? O Rei Conan já foi soldado?
– Nunca tinha visto uma coisa tão bonita na minha vida. Eu nunca tinha vido coisas bonitas na minha vida, coisas humanas bonitas.
– Todos os pais… Ah, mentira, meu pai é feito de pedra.
– Queria interpretar As neves de Sabé, a peça que vi naquele dia: Não se deixe enganar pela neblina que esconde a montanha, porque a neblina- Perdão. Porque a montanha continua lá!
– Não se deixe enganar pela neblina que esconde a montanha, porque a montanha continua lá!
– Eu lutei durante quatro dias sem parar, dormi em meio aos mortos, recolhi seu ouro e vim para cá. Vou deixar meus músculos murcharem e virar ator.
– Seria legal se fizessemos peças aqui na hospedagem de vez em quando. Existe algum tipo de peça que se possa fazer com uma pessoa só?
– É nesta hora que a gente descobre que o escudeiro era o príncipe.
– E é agora que você descobre que a camareira era, na verdade, a comandante Angítona, especializada em matar homens de dois metros de altura!
– Sim, chama monólogo, mas não é tão divertido.
– Meus pais nunca me forçaram a nada. Minha irmã mais velha fugiu com um hóspede e eles ficaram tristes, mas eles não ficaram mais protetores por causa disso. Talvez eu devesse…
– O quê?
– Haha. Pelo menos finge que acredita.
– Nas aventuras do Rei Conan, ele adentra uma caverna para enfrentar um feiticeiro que as crianças localizaram. Não tem feiticeiro nenhum. Quando ele volta, as crianças perguntam se ele matou o feiticeiro e riem dele. Conan fica bravo, mas eu e meu pai achávamos engraçado.
– Talvez eu devesse ter fugido também. Ser camareira em outros lugares.
– Meu pai não me deixava falar palavrão, mesmo que o Rei Conan falasse.
– Só não sei para onde iria. Ser camareira em outros lugares.
Nanoc levanta da cadeira, ergue a mão direita como segurasse uma caveira e, para o fundo dos olhos desta caveira, declama as falas que, segundo o desertor desempregado, futuro ator, decorou de cór, que é latim para coração.
– Glória, inimigo vencido, que eu ainda lembro de ti mais vividamente, no campo de batalha, com escudo divino e espada demoníaca, do que o rosto da minha amada. O ódio que me corre pelas veias formou mais o caráter férreo do meu íntimo que qualquer escola ou lição; e os esforços aplicados na tentativa de superá-lo me cresceram mais que todas as fertilidades da vida. Fui expandido pelo dever autoimposto de vencê-lo. As decepções das derrotas e o sabor das vitórias. Por causa de ti, Inimigo, sou quem sou.
E Dasdâmia, com sorrisos no rosto, bate palmas.
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avante
Não sabia os dias, não sabia as horas. Era sempre a mesma coisa: sentado no ponto de ônibus, meio bêbado, a carteira vazia e a identidade na mão, os olhos na foto três por quatro do próprio rosto, um nome que era dele, mas que não parecia dele. Meio sonolento, bocejava alto para que todo o vazio da rua soubesse o quanto ele estava cansado. O mostrador eletrônico dizendo que faltavam quinze minutos para o ônibus passar, o frio da madrugada.
A rua era um universo à parte. Entre as calçadas, o asfalto, os carros. Sobre as calçadas, ele, os postes de luz e as árvores grossas cujas raízes destruíam a calçada lentamente: trincos finos que pareciam o mapa hidrográfico de um planeta cinza. Mundo distante. Quanto mais ele andava, mais parecia que ele estava se distanciando de onde vinha e para onde ia. A rua era um universo à parte e o universo está em constante expansão.
– Cê já tem idade pra beber?
Tinha um rapaz de dezenove anos sentado na calçada. João pensou em chamar a polícia, mas o rapaz sequer se movimentava, de maneira que ele parecia mais o rascunho de uma estátua de um grande artista que tinha sido descartada para que a rua aproveitasse dela. Serviria de espantalho dos ladrões de carros que levavam, pelo asfalto da rua, os carros dos outros. O rapaz de dezenove anos se levantou e foi embora junto com os ladrões de carros que levavam, pelo asfalto da rua, os carros dos outros. Os ladrões andavam mais devagar e mais cautelosos que ele, despreocupado, os olhos meio abertos, meio fechados, olhando para frente, somente.
Para o universitário, o charme do rapaz era esse. Sentado no banco da janela próximo da porta traseira, a mochila no colo, o celular na mão e os fones no ouvido. O rapaz ficava sentado no degrau da porta traseira, a coluna curva que, de vez em quando, se endireitava para se encurvar de novo. Mexia nos cabelos, bagunçava os cabelos, arrumava os cabelos para bagunçá-los de novo. O universitário sorria e perguntava bem alto, para todos no ônibus ouvirem (porque todos no ônibus eram ele, o universitário e o motorista), por que ele se sentava no degrau das escadas do ônibus em vez de se sentar nos lugares disponíveis.
A rua tinha um nome, mas ele tinha esquecido o nome da rua, o homem perguntou se ele tinha bebido e ele disse que sim e apontou a direção dos bares e qual era o custo-benefício de cada bar e o homem perguntou se ele tinha idade para beber e ele disse que sim e ia mostrar a carteira de identidade, mas o homem não acreditou e seguiu em frente dizendo para ele não beber porque podia dar problema para ele e para os pais dele se eles descobrissem isso. O carro virou a esquina que não devia virar e foi para onde não queria ir, que era todos os lugares exceto o lugar para onde ele queria ir: um lugar onde ninguém virava na esquina errada.
Ela tinha cabelos castanhos, olhos castanhos, vinte dedos nas mãos e nos pés, seios médios, bunda média, um metro e setenta. Servia cerveja para ele e perguntava se estava tudo bem, ele dizia que sim, perguntava o que ele fazia da vida e ele falava que vivia indo de um ponto de ônibus para um bar para ser atendido por uma garçonete bonitinha. Um dia ela perguntou se ele tinha namorada e ele disse que não e aí ela perguntou se ele queria sair com ela e ele inventou uma desculpa que já tinha uma namorada, mas ela sabia que era mentira e isso deixou ela muito triste, até ele pedir mil desculpas e ela chamar ele para sair com ela de novo. O nome dela era algo muito bonito que vivia na cabeça dele, mas ele tinha muitas outras coisas na cabeça dele e aquele momento no bar era o momento em que ele não deixava nada ficar na cabeça dele.
A cabeça dele era, mais ou menos, aquela rua.
– Já percebeu que o motorista sempre sabe em que ponto a gente vai descer?
Aquela rua tinha alguns momentos importantes da vida dele: ele sentado na rua, ele andando pela rua, as pessoas achando que ele era um ladrão de carros com olhos vazios, ele dando direções que não conhecia e as pessoas lhe dando conselhos que ele não pedia. Tudo isso era importante, mas ele evitava dizer isso em voz alta porque queria parecer uma pessoa descolada para o universitário, para a garçonete, para o barman velho e para o motorista, que ia ficar velho um dia.
Ela fazia faculdade de manhã e trabalhava de noite. Descansava nos finais de semana, saía no sábado com suas amigas, mas queria sair no sábado com o rapaz bonitinho que passava no bar, virava todas e ia embora. Ele se perguntava por que ela queria sair com um imbecil completo como o rapaz bonitinho que passava no bar, virava todas e ia embora, mas ele tinha tanto que recusar seus convites que esquecia de se responder por que ela queria sair com imbecil completo como o rapaz bonitinho que passava no bar, virava todas e ia embora. Sabia que ela era filha de mãe solteira e que o pai tinha uma história de redenção evangélica cujos detalhes ele desconhecia.
– Vinte e um com cara de dezessete, haha. Valeu, mano. Té mais.
O motorista era um homem com cabelos ficando grisalhos, dirigia com o braço firme e ele ficava se imaginando como motorista de ônibus enquanto o universitário explicava como seu curso de Psicologia era difícil e porque ele tinha se arrependido de ter feito Psicologia em vez de ficar um ano fazendo nada e pensando sobre a própria vida. O nome do motorista era Adão e Adão passava o dia inteiro sentado girando um volante que girava o eixo das rodas. Trocava marchas, abria portas e recolhia o dinheiro das passagens porque o ônibus não tinha mais cobrador. Ficava calado, os olhos na rua e nos retrovisores, seu maior medo era atropelar alguém. O som das engrenagens era tudo o que ele ouvia e o universitário dizia muitas coisas úteis que seu estado tonto e a sabedoria calada de Adão transformavam em inutilidades orais. Seus cabelos ficavam grisalhos, seus dedos enrugavam e muita coisa estranha acontecia ao seu corpo porque Adão ficava sentado o dia inteiro vendo aquilo tudo passar por ele sem necessariamente passar por tudo aquilo.
A rua ficou tão comum que ele conhecia os moradores dos prédios melhor que as aranhas do seu quarto. Tinha um casal que vivia brigando, uma família feliz que dava enjoo e um comediante sem graça que treinava suas piadas com a janela aberta. Não sabia seus nomes, mas ele reconhecia os palavrões do casal, as declarações de afeto enjoativas da família feliz e as piadas do comediante. Contava elas para as aranhas do seu quarto, mas elas não riam porque mesmo que ele as conhecesse de nome, eram apenas aracnídeos noturnos que ele evitava quando podia e contatava somente em casos extremos, como quando tinham mosquitos no seu quarto ou piadas sem graça na sua boca.
Era um velho de oitenta anos que fazia uns drinques para ele quando ele tinha se cansado de cerveja. O velho ria das coisas que ele falava a sério e filosofava sobre as piadas do comediante sem graça. Seu nome era Tião, ele era de uma cidade chamada Pavão e ele tinha se tornado barman há um tempão. As netas dele gostavam daqueles poeminhas, mas ele era um rapaz de dezenove anos que levava seu estado de embriaguez e incompreensão muito a sério, seu cérebro deixava de ouvir as palavras e aquela musiquinha de ão, ão, ão virava o trompete dos adultos do especial de Natal de Charlie Brown. Adriana Calcanhotto, tocando ao fundo, virava Miles Davis.
– Foi mai aí. Eu tô um pouco bêbado, não queria te encostar, é só que… Com licença, eu tenho que ir embora porque se não vou perder meu ônibus. O motorista vai ficar muito confuso se eu perder meu ônibus. Me desculpa.
O universitário contava histórias que duravam um minuto e comentários sobre suas histórias que duravam quase vinte e nove minutos. O rapaz de dezenove anos contaria histórias que duravam um minuto, se estivesse sóbrio, mas estava bêbado, então demorava muito mais.
Uma vez encontrou uma estátua na rua que parecia muito com ele e do lado da estátua tinha um escultor chorando dizendo que ele era um fracasso e que ele só sabia gastar dinheiro e perder o tempo das pessoas que viviam com ele. Ia embora deixando a estátua lá e ele e a estátua se pareciam muito, de verdade. Tentou chamar ela para beberem juntos, mas ela ficou parada olhando somente para frente, não para frente, somente, como ele. Fazia muita diferença, mas não faz mais.
– Um Não pra um encontro comigo e uma Skol. Já trago.
Ele andava, andava, andava. Não sabia o quanto tinha andando porque seu cérebro parou de pensar em metros ou centímetros e começou a pensar em horas e segundos, mas ele não tinha um relógio no pulso e nem um celular no bolso, só uma cabeça que contava um, dois, três, quatro, cinco e depois pensava em como estava desperdiçando seu tempo. Ele chegava no ponto de alguma forma e chegava no bar de alguma forma, mas não sabia quanto tempo tinha passado, então ele planejava de contar na próxima vez que pisasse na rua, mas toda vez que ele pisava na rua ele pensava em como estava desperdiçando seu tempo.
– Até semana que vem.
Quanto tempo da sua vida ele tinha passado naquela rua?
O motorista chamava Messias, ele tinha cabelos escuros e uma postura ereta de quem não ficava o dia inteiro sentado. A porta abriu, ele entrou, depois desceu do ônibus, mas aquele era o ônibus dele mesmo e demorou para ele entender, mas uma hora ele entendeu, porque Adão estava ficando velho e não dá para ser motorista de ônibus para sempre porque nada é para sempre, nem mesmo aquele desejo de ter Adão dirigindo aquele ônibus, e não Messias.
Surgiram aos poucos, e não do nada. Era um prédio velho e as pessoas que tinham nascido lá não queriam morrer lá. Foram uma de cada vez e logo o edifício foi tomado por pessoas que não tinham tempo para brigar, para declararem afetos enjoativos e para fazerem piadas. Tentou contar a piada mais desgraçada de todas as piadas sem graça e disseram que iam chamar a polícia. Ele não se importou, mas os ladrões de carro mandaram ele sair vazado ou iam roubar as piadas dele.
Ela disse que largaria o cara para ficar com ele, mas ele sabia que era mentira.
O cachorro veio até ele e ele fez carinho no cachorro e o cachorro abanou o rabo, mas nem mesmo o cachorro queria ficar com ele durante mais do que trinta segundos, então o cachorro virou-se e saiu andando pela rua, e ele ficou com um pouco de raiva e torceu para que aquele cachorro nunca encontrasse uma saída, mas o cachorro era mais esperto que ele e não ficou preso a ir e voltar pela rua do jeito que ele ficou, permaneceu e estava. Os postes continuavam amarelos e as calçadas continuavam parecendo mapas hidrográficos de um planeta cinza. Mundo distante como ele se sentia distante do ponto de ônibus, do bar e do resto.
– Antes eles perguntavam e eu dizia que ia em festas, mas acho que já faz tanto que eu saio que eles já devem ter percebido que não existe como um moleque que não estuda nem trabalha ter vida social para encontrar uma festa toda semana. Fora que eu só gasto dinheiro com gasolina e com bebida, então minhas despesas nem são tantas assim. Ele andava meio tonto pela rua, não trombava ninguém porque não tinha ninguém em quem trombar. A rua era um universo à parte e, pelo menos para ele, que não sabia diferenciar o universo do vácuo do universo, o universo não tinha som.
– Um brinde ao Tião.
E não tinha mais motivo para falar da rua porque a rua agora era só silêncio.
Não sabia os dias, não sabia as horas. Era sempre a mesma coisa: sentado no ponto de ônibus, meio bêbado, a carteira vazia e a identidade na mão, os olhos na foto três por quatro do próprio rosto, um nome que era dele, mas que não parecia dele. Meio sonolento, bocejava alto para que todo o vazio da rua soubesse o quanto ele estava cansado. O mostrador eletrônico dizendo que faltavam quinze minutos para o ônibus passar, o frio da madrugada.
– Terceira à direita, eu acho… Desculpa, eu não sou muito bom com direções.
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oito pombos, duas cabras
Uma reescrita lo-fi de “O velho na ponte”, conto de Ernest Hemingway escrito em 1938
Sujo como a própria sujeira, sentado na ponte, era o único contraste triste ao desespero da evacuação: tínhamos que esvaziar vilarejos espanhóis antes que os bombardeiros chegassem e matassem os corpos daquelas almas mortas daquelas cidades que, se não estavam destruídas, seriam destruídas em breve. Estavam salvos, naquele domingo de Páscoa, por um escudo de nuvens que nos protegia dos aviões, mas tiravam os raios solares de esperança das vistas. Sobrava somente o vento frio e úmido, com gosto de chuva, empurrando os camponeses para Barcelona, destino final daquela caravana de carroças do povo e caminhões do Exército Republicano. Alguns iam a pé.
– Eu tomava conta dos animais.
Eu descobria onde os inimigos estavam, se estavam se aproximando, o quanto tinham avançado. Sobre a ponte, ao lado do velho, eu encarava o horizonte: um rio escorrendo sobre pedras, entre duas margens de arbustos. O céu nublado.
– Fiquei com eles até o fim. Eu fui o último que saiu de San Carlos.
– Que animais eram?
Esperei ele responder. Assim como as carroças atravessando a ponte, assim como as mulas cansadas, assim como aquele céu estático de nuvens pesadas (tão pesadas que eu sentia que as carregava), o velho se deslocava física e mentalmente numa velocidade lerda.
– Que tipo de animais eles eram?
– Duas cabras e um gato. E quatro casais de pombos. Oito pombos.
– Não te deixaram levar as cabras?
– Foi por causa da artilharia. O capitão me mandou sair dali, por causa da artilharia.
Os capitães sempre nos mandam alguma coisa. Eu tinha que descobrir se os inimigos estavam se aproximando. Ouvir o rangido apocalíptico dos aviões. Metralhadoras e bombas para matar camponeses espanhóis, soldados republicanos, cabras, gatos e pombos. Oito pombos.
– Você não tem família?
– Não. Só os animais, mas eles não são família. Vai ficar tudo bem com o gato. Um gato sabe se cuidar. Eu não sei me cuidar, só sei o que vai acontecer com os outros.
– Você gosta dos fascistas?
– Eu tenho setenta e seis anos. – respondeu, como se velhos de setenta e seis anos não pudessem gostar de fascistas. – Eu andei doze quilômetros. – Continuou, como se fosse biologicamente impossível um velho de setenta e seis anos andar doze quilômetros. – Não tenho forças para continuar.
– Mais um pouco e você consegue alguém para te levar até Tortosa.
– Mais um pouco e eu vou. Para onde é que esses caminhões estão indo?
Como se importasse para onde é que esses caminhões estão indo.
– Obrigado, rapaz.
Olhou nos meus olhos, mas eu só consegui olhar para seus óculos com aros de metal. Não tinha qualquer coisa além daquelas lentes com qual eu ou aquele velho precisássemos nos preocupar. A preocupação dele era outra. Voltei a olhar para o horizonte de ameaças.
– O problema não é o gato, são as cabras.
– Vai ficar tudo bem com elas.
– Acha mesmo?
O horizonte de ameaças me fez demorar a responder. O velho se levantou.
– Obrigado. Já descansei bastante. Posso descansar depois.
Deu dois passos e caiu de joelhos aos meus pés. Queria poder ajudá-lo, mas eu ainda não tinha conseguido distinguir que os sons dos aviões não eram os sons dos aviões, mas o som das minhas memórias dos sons dos aviões em Jarama.
– O problema são as cabras.
Nuvens tão pesadas que eu sentia que as carregava.
– Eu só tomava conta dos animais…
Quem me dera poder fazer alguma coisa àquela altura. Jogar as nuvens contra os aviões, contra os aviões das minhas memórias de Jarama. Vingar as pernas cansadas de um velho de setenta anos de idade que tinha andando doze quilômetros; e duas cabras. Não podia fazer nada. Eram as nuvens que nos protegiam dos aviões e eram as pernas cansadas do velho que tinham-no salvado. Sobre as cabras, a única coisa que eu podia fazer era lembrar, e deixá-lo lembrar, que gatos são capazes de cuidarem de si mesmos.
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saliva, não sangue
Cuspiu sangue, respirou fundo e gargalhou. Era Lua cheia, mas a densa camada de árvores sobre nós impedia que a luz nos alcançasse. Imersos no escuro (e o escuro fedia à merda dos índios vermelhos, à merda dos cristãos brancos e às cinzas da fogueira queimada), eu e Lobo das Graças, bandeirante sujo, feio e burro, conversávamos para que Dona Morte soubesse em que lugar da mata estávamos escondidos.
"Ei, Brás, duvida quanto que eu escapo daqui com vida?"
"Não tenho nada para apostar, Lobo. Acho que vou ter que te pagar no Inferno."
"Então não vai me pagar nunca, rapaz."
Eu tinha uma flecha perto do coração, sentia o sangue escorrendo pelo abdômen peludo e empapando minhas calças. Eram as únicas calças boas que tinham me sobrado durante as viagens pelo mato. Eu era mateiro: ia e voltava, desbrava os caminhos da selva e localizava os melhores pontos para estabelecermos acampamento. Sabia como evitar indíos e também sabia como matar índios, mas esse conhecimento não servia para tirar a flecha do meu peito, estancar o sangue e, assim, curar todas as outras feridas espalhadas pelo meu corpo: meus dedos mínimo e anelar esquerdo estavam quebrados, minha virilha tinha um corte indo até a perna cujo comprimento era maior do que meu pênis ereto, faltavam dois dos poucos dentes que tinha e tinha certeza que estava cego do olho direito, porque sentia o suor e o sangue escorrendo e ardendo meu olho esquerdo, mas não acontecia o mesmo com o outro. O ouvido zumbia de uma pancada de pedra e esse era o único som que escutava além dos cuspes, suspiros e gritos de Lobo. Rindo de nervoso e xingando todos os índios, ele retomou nosso diálogo moribundo:
"Daqui pra fora da mata, de fora da mata pra vila, da vila pra casa e da casa pro resto da minha vida. Depois, quando eu já não tiver mais o que fazer, sem mais mulher para foder e índio pra matar, eu vou pro céu."
"Não tem como ir pro céu e ser bandeirante, Lobo."
"Por que não?"
"Tu fez caristia?"
"Eucaristia é coisa de padre."
"Então, na caristia a gente aprende os Dez Mandamentos de Deus. Ele escreveu os mandamentos em placas de pedra que Moisés ou Salomão ou sem lá quem teve que ler para os hebreus. Um deles era não matarás. A gente matou, então a gente vai pro-"
"Matamos índios."
"Sim, mas matamos. Então a gente vai pro Inferno."
"Olha eu indo para o Inferno. Vou na missa todo ano, pago o dízimo. Se desse pra mover qualquer uma das minhas mãos eu mesmo arrancava a cruz do meu colar e lhe atirava no rosto, se eu soubesse onde tá seu rosto. Eu sou servo fiel e digno de Deus, estou matando almas não batizadas e que só conheceram os pecados. São todos pagãos, eles acham que a onça é o bicho mais forte da natureza." Riu alto. De todos os bandeirantes e mateiros da expedição, Lobo era o mais louco de todos. Ria quando o insultávamos e quando estava perto da morte. Em lutas com índios fugitivos, com um mateiro que tentou lhe roubar a garrafa de gim que escondia no baú e com índios das aldeias que destruíamos e saqueávamos, toda vez que via sangue saindo da própria pele, dava um riso alegre e depois assassinava o inimigo. Era um companheiro de batalha incômodo e um companheiro de morte pior ainda. Seria apenas pior se estivesse morrendo com um índio, mas já estavam todos mortos.
"E esses índios vão para o Inferno?"
"Claro que vão. Não aprendeu isso na sua eucaristia?"
"Sim, mas até as crianças e as mulheres? Eu não lembro de nunca ter visto uma índia matar um homem e nem uma criança. Na verdade, já um vi um garotinho atirando flechas, mas ele não acertou ninguém. Até eles vão pro Inferno?"
"Claro que sim. Eles são maus por natureza. Índios são a maior desgraça de todas, são piores que os negros. Mentira, os negros são os piores de todos. Mentira, os negros são burros, mas os piores são os árabes, porque eles acreditam em Deus, sabia?"
"Não era Alá?"
"Alá significa deus em árabe, sua mula. Eles acreditam em Deus, mas foi um profeta que escreveu o livro inteiro, então ele está cheio de maluquices. Os judeus, pelo menos, tem os mesmos livros que o Antigo Testamento, mas o livro deles é completamente diferente."
"Qual a diferença?"
"Não sei, nunca li. Eu lá tenho cara de quem lê Alcorão."
"Já leu a Bíblia?"
"Também não."
Lobo era o mais burro de todos os bandeirantes que eu já tinha conhecido. Muito dos bandeirantes nem falavam português, falavam línguas que sequer eram escritas, mas Lobo era letrado e viajado, ainda assim era burro. Tinha passado os primeiros anos da mocidade viajando entre a América e a África, dizia que era um príncipe aventureiro, mas era um órfão recolhido por um navio de mercenários ingleses. O capitão de navio, ou qualquer outra pessoa a bordo, deveria ser muito inteligente, porque encheu a cabeça de Lobo de conhecimento inútil. Sabia que Alá era Deus em árabe, sabia que, se no Brasil era verão, na Inglaterra era inverno e quando o Brasil fora descoberto. Todas essas informações, porém, só serviram para que fossem emboscados e mortos.
"Lobo, você acha mesmo que vai pro Paraíso depois do que fez?"
"Eles não são gente, Brás."
"Sim, tudo bem, mas e o que você fez? Você estuprou quantas índias? Matou quantas crianças? Nós esfolamos um dos prisioneiros para assustar os outros. Não tem como a gente ir para o Paraíso por isso."
"Deus entende, rapaz. Deus entende."
"Mas então porque são mandamentos se tem exceções?"
"Você faz perguntas demais, Brás. Deus é perfeito e você é imperfeito. Sabia que eles matavam bruxas na Espanha? E não eram as pessoas que matavam, eram os padres. E os padres organizaram uns exércitos gigantescos de soldados para irem para Jerusalém e eles mataram todos os infiéis. Os desgraçados dos judeus e dos árabes, e aí eles pegaram Jerusalém de volta. E eles estupraram e mataram e esfolaram para fazer isso."
"Isso é coisa da sua cabeça. Onde padre ia matar gente? Isso é impossível."
"Você é burro, Brás, eu viajei o mundo todo. Eu fui numa imensidão de lugares. Eu fui no Caribe, fui nas treze colônias americanas da Inglaterra, fui em Macau. Sabia que tem um país chamado Nihon e que ninguém pode entrar lá?"
"Morre em silêncio, Lobo."
"Você duvida de mim, rapaz, mas quando chegar ao Inferno e não me encontrar lá, pergunte ao Coisa Ruim onde eu estou e ele dirá que eu estou na mais perfeita paz dos céus, sendo cuidado por anjos e apreciando os prazeres do pós-vida."
"Não tem como ir para o Céu com tudo que a gente fez. Na verdade, não tem como nós sermos católicos com tudo que fizemos. Jesus era contra violência, ele não agiu com violência em nenhum momento da vida dele e deixou que os romanos pegassem ele e pendurassem ele na Cruz e ele nunca reclamou. Não tem como a gente, que entra na mata e mata centenas de pessoas, ser que nem Cristo."
"Claro que não somos como Cristo. Cristo é perfeito. Cristo é-"
"Você me entendeu."
"Minha boca tá seca." O desgraçado riu. "Acho que vou beber meu próprio sangue."
Riu. Era sempre assim: ele ria. Estressávamos e ele ria. Acho que era por isso que ele achava que ia para o Céu, enquanto todos nós tínhamos medo de ir para o Inferno. Não sentia o sangue e nem o suor no meu olho direito, mas tinha medo que tivesse desobedecido alguma ordem de Deus e que agora fosse condenado pela eternidade pelos erros que cometi. Como Lobo entraria no Céu e eu não? Lobo era pior do que eu: Lobo esfolava, matava, estuprava, enforcava, decapitava, desmembrava e estuprava de novo, a vida dele era isso e ele não se arrependia, mas agora ele estava deitado no chão ou encostado em algum tronco daquela mata esperando a morte, sem poder mover as mãos e sem poder escapar daquela, mesmo que dissesse que fosse.
"Você acha mesmo que vai sair dessa?"
"Deus vai me proteger."
"Mas então porque ele não te protegeu de todas essas feridas?"
"Você não tem fé, Brás, é por isso que você vai pro Inferno junto com os negros, os índios e os árabes. O Inferno tá muito mais cheio que o Céu, já pensou nisso? Você vai virar um demônio e lutar contra Deus no Apocalipse."
"Eu não vou fazer isso."
"Vai sim, você vai pro Inferno porque você não acredita Nele."
"Se for assim cê também vai pro Inferno. Duvido que cê não sabia que não podia matar pessoas e estuprar pessoas. Cê já roubou de branco também, branco batizado. Tem um mandamento que é não furtarás e cê roubou uma faca do Peixoto Avarenga."
"Peixoto Avarenga tá morto porque bebia água podre."
"E agora ele tá no Céu."
"Peixoto tá no Inferno, ele era que nem você. Ficava rezando pra que todos os índios fossem aceitos no Reino dos Céus. Ele e você são todos uns hereges que acham que esse povo tem que ser salvo. Índio só é bom quando está morto ou morrendo."
"Como é que cê vai escapar dessa, Lobo?"
"Deus vai me ajudar."
Fiquei em silêncio, mas fiquei tempo demais. Quando chamei pelo nome dele de novo, não respondeu. Fiquei focado em ficar acordado, tinha medo de não ouvir a Dona Morte chegando se dormisse. Toda vez que estava perto de dormir, fechava a mão e pressionava os dedos, sentindo a dor dos ossos quebrados. Decidi que ia aguentar tudo isso até de manhã, ia ver o que tinha acontecido e depois morrer. Não tinha como eu escapar dali e dali eu ia direto para o Inferno, fiquei a noite toda aceitando isso e enquanto o vento soprava as copas das árvores lá em cima, eu aceitava o que já tinha aceitado há muito tempo.
De vez em quando eu falava sozinho, torcendo por uma resposta. Os corpos ao meu redor fediam e estavam todos cagados ou com feridas abertas exalando mal cheiro. Pressionava os dedos e mantinha meus olhos abertos, era quase impossível.
Quando consegui ver um tom de azul no céu, entre as folhas das árvores, Lobo deu uma risada muito forte, tão forte que espantou todos os pássaros. Sua forma era um homem gordo, barbudo, com a cabeça levantada apontando para o céu sem nuvens.
O dia chegou rápido, de maneira que consegui discernir os formatos dos corpos, que pareciam todos iguais quando estavam mortos. Tinha muito sangue, sangue o suficiente para deixar a terra e a grama avermelhadas. A fogueira cheia de cinzas e as tendas todas destruídas. Nossos arcabuzes todos largados pelo chão, alguns facões largados e os índios prisioneiros acorrentados e mortos. Eu, pelo menos, morreria sem algemas.
"Lobo, já percebeu que todo mundo fica igual quando morre?"
Ele não respondeu.
"Acho que era melhor a gente ter se preocupado com isso do que com ir pro céu. Desculpa ter feito você desperdiçar sua última conversa com uma coisa tão idiota quanto o Céu e o Inferno. Desculpa, de verdade."
Ele não respondeu.
Cuspi no chão. Saliva, não sangue. O sangue estava todo nas minhas roupas. Respirei bem fundo, mas não consegui rir. Estava muito estressado, tentando descobrir que era o herói naquela história toda de índio assassino e bandeirante bonzinho.
Morri sem chegar a uma conclusão.
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quem me dera ela chorasse
Ele era o garoto sentado no fundo da sala, das salas. Sempre sozinho. O babaca convencido que não precisava de amigos. Boas notas, mesmas rotas, já estava no segundo mês do bacharelado e ainda não tinha feito nenhum amigo. Perguntador frequente, as turmas noturnas do curso só conheciam sua voz pelas dúvidas nas aulas das matérias literárias. Não parecia muito interessado em linguística: caderno fechado, celular ligado jogando Resta Um. Tocava o sinal, levantava-se e ia embora pelos corredores do prédio de Letras.
Ela era a garota sentada no meio da sala, das salas. A boca se movimentando porque conversava com alguém, os dedos se movimentando porque conversava com alguém. Coisas da vida: namorado apaixonado, fim de semana ocupado (japonês, dança e compromissos familiares), notas como a gravidade: precisavam de esforço para subir. Roupas leves, pés ligeiros, All Star arrebentado que ela usava todos os dias. Grupos de meninas, amigos homossexuais. O professor careca mandava ela parar de cochichar durante a aula. Parava, mas não demorava.
Tinha um ônibus no canto do caminho, no canto do caminho tinha um ônibus. O caminho era longo e o ônibus também. Madrugada desocupada: uma velha, um trabalhador de braços gigantes, uma diarista baixinha, magrinha, e um criminoso em seu horário de descanso. Ele escutava o mundo sem fones de ouvido e ela escutava J-Pop cantando a letra junto, com exceção do rap. Ele olhava para ela, ela olhava para a janela. Ele olhava para frente, ela olhava para a janela. A velha olhava para lugar nenhum, o trabalhador olhava para o chão, a diarista olhava para o teto e o criminoso tinha os olhos fechados porque não tinha ponto onde descer. Sem discriminações: o motorista olhava para rua, mas tinha seus pensamentos na filha grávida.
– Aonde a gente tá indo?
– Lembra aquele túnel que a gente achou ano passado?
– Na lanchonete.
– Sim.
– O que tem?
– Então, eu tava fazendo vários nadas outro dia e eu pensei em ir lá. Aí eu fui sozinho e o túnel é cheio de bifurcações as bifurcações levam pra um monte de lugares. Aí eu pensei em te mostrar lá e ver onde a gente chega.
– Hum, ok. Não vai me assassinar, não, né?
– Agora que você descobriu meus planos, não – sorriu – Tá tudo bem mesmo com você?
– Sim, tá sim. Juro. E você? Tá bem mesmo?
– Tô indo. Tô meio bagunçado, mas tô indo.
– Então tá bom.
Abriu a boca, mas não falou nada, ficou encarando o banco da frente.
– E as notas?
– Nossa, tô morta de estudar. E o japonês tá impossível, também. Zen zen wakarimasen. Eu combinei de estudar com as minhas amigas, só que elas combinaram justamente na hora que eu danço. Ah, e tem a hora que eu danço também, que não tá batendo com nada. Aí eu não posso falar sobre isso com meus pais senão eles vão querer que eu pare de dançar, e se eu falar que não vou parar de dançar, eles vão querer me tirar do japonês, e se eu faltar qualquer compromisso da família pra estudar eles vão falar que eu não respeito minha família e blá blá blá – parou, suspirou, olhou para o mundo fora da janela – Que saco.
– É – pausa breve – É, sei lá. Você vai dar um jeito.
Eles se encontravam numa lanchonete para estudar. Ela sentada do lado dele com a cabeça no seu ombro, ele com a mão sobre um livro de Matemática fechado. Terem passado de ano foi um milagre. Ele tinha o estágio com o pai garantido e ela só quer dançar, dançar, dançar. Vagabundo profundo e sua namorada esforçada, ele pensava muito nas coisas e ela sorria demais. Dias passados que não voltam. Ele passava as madrugadas lendo e ela passava os finais de semana dançando. Nas coincidências da vida não se encontravam mais.
O túnel ficava na porta entre o banheiro masculino e o banheiro feminino. Pediram uma Coca-Cola, um suco de uva em lata, deixaram as latas em cima do balcão. Ele abriu a porta de metal, ela entrou. Dava para uma floresta em algum lugar do mundo onde, quando era noite na cidade, era dia. A porta ficava lá, mesmo que não tivesse nada atrás dela. No metal, um papel branco meio amassado pendurado por fita crepe. Palavras escritas numa língua que eles não conheciam, mas que ele tinha descoberto que era sânscrito porque o professor de Linguística Comparada dele era estudioso de sânscrito. Eles foram.
Andando pela grama, esbarraram na entrada. Ele tirou a lanterna do bolso e entrou, ela segurou na sua camisa e foi junto. Parados, dava para ouvir as palpitações cardíacas dele, quando andavam, ouviam cada articulação fazer seu movimento. Desceram, escorregando. Ele não deixava ela cair, ela o impedia de cair quando sabia que não ia cair junto, o All Star não ajudava, então ele caiu várias vezes e ela caiu nenhuma vez. O caminho bifurcava, ele deixava ela escolher. Não conversaram muito: ela cantando J-Pop, ele garantindo que ela não ia cair.
– A gente vai parar nuns lugares aleatórios?
– Não.
– Aonde a gente vai parar?
Demorou um pouco para responder.
– No seu amor por mim.
– Ah – calou-se por alguns segundos – Então esse túnel é isso.
– Se não quiser, eu te acompanho até a saída e te deixo em casa, mas é só porque eu acho que você ia saber melhor quais são as bifurcações. Eu tentei vir aqui sozinho, mas eu só achei meu amor por você. Não importa qual caminho eu escolha.
– E como era?
– O caminho? Ah, igual esse.
– Não. Seu amor por mim.
Silêncio.
– Se eu te falar eu vou acabar te assustando. Agora que a gente não tá mais que nem ano passado, eu não quero fazer parecer… – ela olhava para ele, ele olhou para frente, suspirou – Era bem grande, bloqueava o caminho e aí eu tinha que voltar. Teve uma hora que bloqueou o caminho de volta também e eu tive que ficar aqui dentro por uma semana. Aí eu comia alguns pedaços do meu amor por você. Já que era tanto ia sobrar, né? – pausa breve – Tinha gosto de beterraba.
– Você gosta de beterraba?
– Sim. Você gosta?
– Não lembro mais do gosto, faz tempo que eu não como.
– Saquei.
Bifurcações e mais bifurcações. Bocas caladas. Não há nada a dizer. Os caminhos são iguais. Ele conta mentalmente quantas vezes ela teve que escolher entre esquerda ou direita, cima ou baixo. O silêncio do mundo, o barulho da sua cabeça. Um dia vou descer aquele túnel do restaurante até chegar em algum lugar. A forma gigante, o movimento errante, aparição constante. Aquilo só pode ser uma coisa. Onde está o amor dela? Eles ficavam na lanchonete a tarde inteira depois da aula, ela deitada no ombro dele, ouvindo música, um sorriso disfarçado no canto da boca.
Bifurcações e mais bifurcações. Ela canta, de vez em quando, alguns trechos em japonês que ele não entende. Verifica se, por algum milagre, tem sinal de internet no túnel, sem sucesso. Cabeça nas provas que vai ter que fazer, cabeça nas provas que já fez. Enquanto escolhe esquerda ou direita, cima ou baixo, faz alguns movimentos de dança, ele atento se ela vai cair ou não. Para de dançar e escolhe, volta a cantar as músicas de J-Pop, exceto o rap. A voz dela ecoa pelos túneis como se fosse música ambiente.
Bifurcação final: número três milhões, quatro mil duzentas e sete. Uma câmara vazia. Ela fica atrás dele porque não quer ver seu rosto, ele fica parado com uma mão no bolso e outra segurando a lanterna. Entra na câmara, esfrega o dedo no chão. O dedo está limpo. Faz que sim com a cabeça, tosse e ergue-se. Olha para ela. Poker Face de quinta categoria que não serve nem para foto de carteira de identidade. Passa por ela e segue pelo caminho de volta.
– Desculpa.
– Não é culpa sua.
Silêncio.
– Se eu terminasse você ia ficar sozinho.
Silêncio. Ele olha para ela, olha para o chão, faz que não com a cabeça e volta a subir. Ela escorrega, movimento rápido: segura-a pelo braço e impede que ela caia. Ela não cai.
– É, você tá certa.
Eles prosseguem. Silêncio.
– A gente pode continuar namorando, eu não me importo.
– Não ia significar nada.
– Não tem ninguém que eu goste no momento. Talvez eu volte a-
– Me promete uma coisa.
– O quê?
– Nunca vá num encontro com aquela jaqueta que eu te dei de aniversário.
Pausa breve, passo leve.
– Ok.
– E nunca mais vai naquela lanchonete com ninguém. Parente, amigo. Ninguém.
– Ok.
– Valeu.
Ele fecha a porta de metal, pensa em quebrar a maçaneta para que ninguém nunca mais entre lá, mas lembra que tem dezoito anos e não oito. Ela já está na saída. Paga a Coca e o suco. Ficam esperando o ônibus. Ela não olha para ele. Ele não é telepata para ler seus pensamentos, mas acha que ela está calculando quantos pontos precisa para passar de semestre quando, na verdade, está calculando quantas lágrimas escorrerão de seus olhos. Tenta supervalorizar o resultado, mas não consegue encher uma mão. Mãos nos bolsos, lanterna pendurada no pulso. Só consegue pensar no que ela pensa; se ela pensa em usar aquela jaqueta de novo.
Ela entra no ônibus, passa pela catraca e escolhe o lugar. Assento da janela, ninguém no ônibus, ele senta no banco da frente. Moleque que se acha repelente. Levanta-se e senta do lado dele, ele fica do lado dela porque tem dezoito anos e não oito. Ela olha para o mundo do lado de fora. Já está quase amanhecendo e ela está com muito sono. Os olhos pesados. Chama-se de Burra, burra, burra porque agora ele vai ficar sozinho e é culpa da burrice dela. Ele olha para frente, olha para baixo, olha para o lado, faz que sim com a cabeça, olha para baixo, olha para frente.
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sai da frente
O cara disse:
– Eu gostava da de cabelo comprido, mas essa é a história da Menina de Cabelo Curto.
A verdade é que essa é a história dele e que mesmo se ele não tivesse encontrado garotas de cabelo comprido, de cabelo curto ele teria ido parar onde acabou parando, que era o lugar onde eu encontrei ele, que é onde ele me contou essa história.
– Aconteceu numa balada. Nunca tinha ido numa balada antes e eu acho que fui porque ela ia, porque ela me pediu para ir, porque era a única chance que eu tinha de não fazer nada e deixar as coisas como estão, mas um pouco piores.
A verdade é que ele foi porque os amigos dele iam também, então a chance das coisas continuarem do jeito que estavam, mas um pouco piores, era certeza. Certeza que ela não gostava dele do mesmo jeito que ele gostava dela, que ela já tinha gente no WhatsApp dela para conversar quando ele estava online e ela também, que ela não ia sentir falta de declarações de amor.
Mas ele disse:
– Eu teria chance se tivesse tentado um pouco mais cedo.
A verdade é que não. Mas ele disse.
– Não ter tentado me prendeu a um mundo de fracasso romântico, porque eu não conseguia me livrar dos pensamentos sobre ela, mesmo quando outra menina aparecia e confessava sentimentos por mim. Que eu não correspondia porque estava apaixonado pela Menina de Cabelo Comprido.
A verdade é que ele achou a língua da Menina de Cabelo Curto muito beijável, já que a saliva escorria como água numa pedra calcária e desaguava no espaço bem apertado entre a língua e o lábio inferior.
– Ela nunca se apresentou, por isso eu não sei o nome dela.
A verdade é que ele não lembra do nome dela, que ele não lembra do nome de ninguém, nem do próprio, já que o nome dele não precisa ser lembrado.
– Ela chegou atrasada, a Menina do Cabelo Comprido estava preocupada que ela não chegasse a tempo (porque a balada vetava a entrada depois da meia-noite), mas não queria esperar sozinha lá fora. Eu disse que ia esperar com ela, então ela pediu para eu esperar sozinho. Eu aceitei. A Menina de Cabelo Curto chegou. Eu fiquei na fila com ela (porque ela tinha que ir para o final da fila). Nós conversamos sobre a faculdade. Ela fazia Pedagogia, eu fazia Nutrição. Não tinha muito assunto, então a gente não conversou.
A verdade é que ela estava conversando no celular, que ele só sabia o curso dela porque ela estudava com a Menina do Cabelo Comprido, que ela não se importava em não conversar com ele. A verdade é que ele era chato. Mesmo se tivessem assunto, não conversariam.
– Eu estava pensando na noite, se eu conseguiria conversar com a Menina de Cabelo Comprido numa balada, se ela ia querer conversar comigo, se eu ia aguentar ver ela beijando outra pessoa. Se ela ia aguentar me ver beijando a Menina de Cabelo Curto.
A verdade é que a Menina de Cabelo Curto era lésbica, que ela tinha acabado de brigar com a namorada, terminar com a namorada, que ela queria pegar todas as meninas que ele não ia pegar, que ela queria esquecer que estava namorando há cinco horas, dezesseis minutos e quarenta e seis segundos. Quarenta e sete meninas. A verdade é que ele não sabia disso até saber, mas disse coisas como se não importasse
– Mesmo que ela fosse bonita, eu não ia dar em cima dela. Eu sou um romântico solitário de uma menina só. Ela ser lésbica não muda nada.
A verdade é que ele ficou mais ou menos triste, tirou as imagens eróticas da língua dela da sua cabeça e voltou a olhar para frente, tratar ela como se ela fosse muito, muito chata.
– Nós entramos depois de uma pequena eternidade dela sendo grossa com a namorada dela. Ex-namorada dela. Dizer que Nunca mais vai tomar no cu piranha escrota. Dizer Adeus. A Menina do Cabelo Comprido estava dançando, não esperando por mim, mas não doeu.
A verdade é que foi uma eternidade para a Menina de Cabelo Curto também, mas ela não reclamou porque ela não era chata. Porque ela sabia que não ia demorar uma eternidade, mas durou.
– Dançamos, eu dancei. Eu danço bem. De um lado pro outro, pra cima, pra baixo. Ela dançou. Não sei exatamente quem porque minha memória não me deixa lembrar qualquer coisa que doa, porque ela dançar doía muito.
A verdade é que doía mesmo. Que ela não sabia que doía, por isso dançava tanto. Ela dança muito bem. Pra baixo, pra cima, de um lado pro outro. Tudo ao contrário, foi ele que disse.
Mas ele disse.
– Eu sentia uma certa sintonia entre nós dois. Duas coisas agindo mutuamente contrárias é sintonia?
A verdade é que sim, mas ele não sabe disso. A verdade é que eu não vou dizer, porque talvez ele se sinta bem com isso.
– Eu não bebo, meus amigos bebem, elas bebem. Elas bebem muito, mas eu sou o único que fica bêbado. Bêbado de luz. Luzes. Tinham lâmpadas sobre a minha cabeça, de muitas cores.
A verdade é que ele não ficava bêbado e os amigos dele ficavam bêbados, mas eles continuavam dançando e ele continuava olhando para as luzes, parado, no seu observatório corpóreo de Cinturão de Órion. Lâmpadas fluorescentes de muitas cores? Isso é tudo verdade.
– Azul e vermelho, roxo. Três cores. Muitas. Eu não conseguia entender mais nada do que aquelas cores, porque todo o resto ficou complicado demais para mim.
A verdade é que ele também entendia o movimento das luzes, quando elas se apagavam e acendiam, quando elas faziam ele pensar na vida dele. A vida dele, ele não entendia.
– Tocou Valerie, da Amy Winehouse. Eu cantei Valerie, da Amy Winehouse, bem alto. Tocou Lilly Allen, mas eu não sabia a letra. As outras coisas que tocaram eu não sabia a letra, conhecia o artista, gostava da música. Eu dancei do mesmo jeito porque eu danço muito bem. Eu pulei, aí eu fiquei cansado, aí eu parei de dançar.
A verdade é que ele já tinha parado de dançar há muito tempo, que ele mexia os joelhos quando os amigos dele dançavam, que ele ficava olhando para as lâmpadas mudando de cor. Cores. A verdade é que ele não pensou em menina, cabelo e comprimento, que ele só queria estar num lugar onde tudo fosse luz exceto ele, que ele pudesse dançar sozinho. Ele (não) dançava acompanhado.
– As luzes, então, significavam qualquer chance de me ver longe daquelas pessoas, mas não exatamente daquelas pessoas, porque eu gostava muito delas, mas da situação, que eu não gostava nem um pouco.
A verdade é que ele fez Nutrição, não Psicologia, e que eu nunca botei o pé numa faculdade, que nenhum de nós sabe o que ele queria, porque se ele soubesse, se ele conseguisse descobrir, ele não estaria aqui, comigo.
– De novo as luzes. Em algum momento, eu só olhava pro céu.
A verdade é que era um teto, mas ele chamava de céu, ele acreditava que era um céu, que eu acredito também, que eu vejo um céu baixo e mal pintado, um céu de lâmpadas fluorescentes que acendem luz vermelha, luz azul e luz roxa.
Mas ele disse:
– Eu fui ao banheiro e a luz era verde, luz verde sempre verde, cheiro verde de urina, amores que nunca aconteceram verdes. Eu não consegui ver psicologia das cores no verde, mas é porque eu não faço Psicologia, mas a Menina de Cabelo Curto também não. O verde, então, significa o que eu quiser.
A verdade é que a Amiga 45 fazia Psicologia, mas ela ia dizer que verde significa juventude, orgulho, perseverança de correr atrás de uma menina que não gosta de você.
– Eu não ia me confessar pra ela, ia ser doloroso demais se eu parasse de ser amigo dela, eu ia me torturar até o sentimento desaparecer, mas não desaparecia, mas não doía mais.
A verdade é que não doía mesmo, mas doía saber que não ia doer tanto se ele parasse de ser amigo dela, se ele sumisse, se ele parasse de ir a lugares que ele nem estava mais porque não estava dançando, só mexendo os joelhos enquanto olhava para lâmpadas fluorescentes de muitas cores, três cores.
– Vermelho, azul e roxo. Não deve dar pra fazer novas cores com essas cores, mas a verdade é que bastava para eu me sentir parte de algo do qual eu não fazia parte, parte de algo que não fazia parte de nada, já que era só uma coisa da minha cabeça.
A verdade é que era isso mesmo, que ele já devia ter ido embora antes de chegar, antes de ficar, antes de olhar para aquelas lâmpadas, antes de perceber que era hora de ir embora, antes dela sumir. Sumiu, porque ele disse.
– A Menina de Cabelo Curto sumiu e eu fui buscar ela. Descobrir onde ela estava porque meus amigos e a Menina de Cabelo Comprido estavam ocupados demais, bêbados demais, para perceber que ela tinha sumido, que podia acontecer alguma coisa com ela se ela sumisse, que alguém Eu precisava encontrar ela.
A verdade é que ele sonhava com missões de Cavaleiro de Prata e com a Menina de Cabelo Curto ser bissexual para beijar ele como Princesa Perdida Prometida. Uma menina para tirar a Menina de Cabelo Comprido da cabeça dele, que ele dizia que não ia sair nunca, mas já tinha botado o pé para fora.
– Então eu fui. Fui me espremendo entre pessoas apertadas, raios de luz. Me espremendo entre o espaço que separava os raios vermelhos dos azuis. Metralhado por raios roxos como lanças, como flechas, como nada, porque a verdade é que eu estava transformando uma travessia pela multidão numa missão de Cavaleiro de Prata. Pessoas como muros intransponíveis de Tróia, Jericó e Constantinopla. Raios de luz como flechas.
A verdade é que ele não conseguia passar, que ele ficou espremido entre pessoas espremidas, que ele só queria achar a Menina de Cabelo Curto e ver que ela estava bem e pouco se importando com o resto, com ele, para ficar triste e voltar para onde estava para ficar triste pela Menina de Cabelo Comprido, que também estava pouco se importando com o resto, com ele.
– É engraçado porque durante meus devaneios de Quixote eu ouvi as pessoas conversando gritos umas com as outras e elas falavam que era a melhor noite da vida delas, que elas adoravam a música que estava tocando, que elas estavam felizes por não andarem com uma pessoa chata que estragava a festa com seu mau humor.
A verdade é que ele inventou o último grito conversado, que as pessoas lá eram mais ou menos chatas também. Que se ele tivesse uma Namorada de Cabelo Comprido talvez ele estivesse muito feliz, mas ele não tinha. Ainda não tem.
– Num determinado momento eu fiquei parado deixando as pessoas dançarem ao meu redor. Entre os espaços dos movimentos bruscos delas eu tive uma visão panorâmica trezentos e sessenta graus de toda a balada, mas eu não consegui ver a Menina de Cabelo Curto, mas vi a Menina de Cabelo Comprido. Ela estava dançando com um cara, um cara que ela conhecia, que talvez ela tivesse combinado de se encontrar, que talvez ela gostasse de verdade, mas eu acho que não gostava porque os olhos dela não brilhavam como os meus brilham. Não brilham mais.
A verdade é que nunca brilharam, que ela conhecia o cara e que ela estava flertando com ele porque ele flertava com ela porque ela flertava com ele. Doeu? Não, mas ele ficou zonzo de não ser flertado, flechado por raios de luz roxa, então não percebeu que viu a Menina de Cabelo Curto. Não percebeu até hoje porque eu não vou contar.
– Aí começou a tocar Follow Rivers e eu mexi os joelhos e cantei a música, que eu não gosto muito, mas que eu me lembro de gostar.
A verdade é que eu gosto de Follow Rivers, então nós dois cantamos a música com nossas vozes feias, que ele se sentiu bem cantando Follow Rivers e que eu me senti bem também, mas já passou.
Aí ele disse coisas sobre coisas (músicas) que aparecem dos confins da memória, que você ainda lembra, que você lembra bem demais para coisas (músicas) que não estão na sua vida há tanto tempo. Que talvez a Menina de Cabelo Comprido nunca fosse desaparecer da vida dele, que talvez não fosse tão ruim, já que ele percebeu que ele até que gostava de Follow Rivers. Que não doía tanto assim, não dói nunca e nunca mais vai doer.
– A verdade é que eu, Cavaleiro de Prata, tinha minha armadura, por isso eu não sentia nada. Agora eu sinto e sinto muito. Sinto muito por confusões quixotescas de menina gostar de mim que eu causei.
A verdade é que ninguém desculpa ele porque ninguém está nem aí, porque ele é extremamente chato.
Mas eu prestava atenção no que ele dizia. E ele disse:
– Então eu segui entre muralhas caídas de Tróia, Jericó e Constantinopla. O segredo é esperar elas caírem, outras pessoas as derrubarem. Gregos, israelitas, turcos. Então eu passei entre frestas apertadas, entre raios de luz, até chegar nela, mas eu não tinha chegado ainda. Chego agora.
A verdade é que chegou há muito tempo. Encontrou e se despediu, me encontrou. Me contou essa história: Tinha um cara na minha frente, conversando com ela, dando em cima dela.
– Sai da minha frente. Eu disse, porque já estava cansado de ser covarde, e ele saiu. Ele revelou ela como uma cortina de carne, osso e merda. De pensamentos sobre baladas que eu nunca ia conseguir entender ou compatibilizar. Eu não gostava daquele lugar porque era naquele lugar que ela encontrou outra pessoa, que eu não encontraria qualquer pessoa, porque a única outra pessoa era lésbica e estava chorando por causa da namorada dela.
A verdade é que se ele quisesse encontrar outra pessoa ele teria que compatibilizar os pensamentos do Cortina, mas ele já estava longe demais para telepatias. Ela chorava e não tinha nada que eu ou ele pudéssemos fazer a respeito. Eu porque estava longe. Ele porque ele era ruim com essas coisas.
– Tá tudo bem? Eu perguntei e ela fez que sim, mas eu sabia que era mentira, então fiquei perto dela olhando para outro lugar. Aí ela disse Pode ir, eu tô bem. Mas eu ignorei porque eu não estava nem aí se ela queria ficar sozinha, porque eu queria resolver aquele problema. Aí eu perguntei Você está chorando por ela ou pelo que ela fez? Aí ela disse Pelo que ela fez. E o que ela fez? Ela me traiu quando saiu pra ir na balada. Nessa balada. Aí eu disse que se era pra se vingar desse jeito, chorando num canto, ela era bem patética, bem burra, bem sensível demais para lidar com uma traição e com um término.
A verdade é que ele não disse isso. Ficou em silêncio. Deixou ela chorar mais porque ela, por um motivo que ele não entende, mas todo mundo entende, começou a chorar mais.
– Foi mais ou menos bonito. As luzes vermelha, azul e roxa iluminando o rosto dela, as lágrimas como cristais, a cabeça dela como uma bola de cristal de discoteca, mas aquilo era uma balada. As luzes projetando minha sombra na parede, minha armadura era uma silhueta na parede. Muito bonito.
A verdade é que era bonito mesmo, mas eu disse para ele calar a boca e parar de ser insensível. Ele pede desculpas, e diz.
– Eu fiquei com ela uma eternidade. Queria que ela me beijasse e me abraçasse, se vingasse da namorada comigo para eu poder me vingar da Menina de Cabelo Comprido com ela. Filmes adolescentes da Netflix, para eu me sentir melhor. Para eu achar que eu e ela íamos ser um casal feliz depois de uma hora e quarenta de chatice.
A verdade é que ela era lésbica, que ele já tinha entendido isso, mas queria ficar com ela do mesmo jeito. Que ela continuava chorando enquanto ele sonhava em pegar ela do mesmo jeito que sonhava, vinte minutos antes, em pegar, namorar e se casar com a Menina de Cabelo Comprido.
– Eu saí com ela da balada. Eu disse Sai da frente várias vezes para as pessoas. Eu me senti corajoso, mas é porque eu tinha minha armadura de Cavaleiro de Prata, que eu não tenho mais. Ela pediu um Uber e eu botei ela dentro do Uber, memorizei a placa, pedi para ela me avisar assim que chegasse, esqueci de dar meu número para ela, torci pra tudo dar certo. Fui entrar de volta, mas não podia entrar de volta. Ri. Dá pra ver que eu ri? Fiquei esperando do lado de fora meus amigos saírem. Conversei com o segurança. Ele me deixou entrar de novo, mas eu disse que não precisava. Fiquei esperando, espero até hoje. Eles saíram (43, 44, 45, e a Menina de Cabelo Comprido) e eu fui para casa. Nunca mais ouvi falar da Menina de Cabelo Curto porque eu nunca mais falei com a Menina de Cabelo Comprido. Já não tinha mais minha armadura, então doeu demais.
A verdade é que doeu mesmo. Que ele sentiu falta dela e ela sentiu falta dele, mas fora de sincronia, fora de proporção. Fora de lugar, porque ele passava muito tempo em lugares do qual deveria ter ido embora antes de Meninas de Cabelo C... sumirem. Sumiram do mesmo jeito.
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