Desenhados, rabiscados, coloridos. Devaneios, pensamento e sonhos frouxos, viscerais e casuais. Manifestos firmes, diretos, indiretos e algo mais. Por Viviane de Paoli. Facebook: www.facebook.com/vivianesdepaoli Instagram: @essasuafototresporquatro
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Depoimento
Não tenho vontade de me levantar pela manhã. Quero ficar sempre no escuro, enterrar a cabeça no travesseiro, esquecer que existe vida lá fora.
Não tenho vontade de comer. Qualquer alimento tem o mesmo gosto na minha boca. Tudo está sem sabor, sem cor, sem aroma. Não quero cozinhar. Não quero provar. Olho para a comida diante de mim e sinto repulsa. De mim, da comida, de cada célula de tecido adiposo em mim.
Sexo? Não sei o que é sexo. Não sei mais o que é sexo. Pornografia sim. Consumo pornografia. Assisto, vejo, toco meu corpo e tenho orgasmos contidos olhando o prazer fictício alheio. Sim, pornografia é meu sexo. Meu sexo é masturbação. Me masturbo muito. Tenho ânsias de orgasmos somente meus. Faço o meu sexo com quem eu quiser. Sim, é meio adolescente. Não, eu não sinto culpa ou vergonha.
Meu corpo está seco. Não sinto nada. Escorrego minhas mãos pelo meu corpo e não sinto nada. Me lavo no banho e é como se eu lavasse um cadáver. Esqueço de pentear os cabelos. Não me lembro nunca de secar minhas costas! Deito na cama ao mesmo tempo leve e pesada... Leve do banho, gosto do banho. Pesada por estar morta.
Às vezes meu corpo não me obedece. Tenho tosse. Tenho vômitos. Isso é normal? Que bom que é. Estava acostumando já. Não consigo mais viver sem náuseas, elas são quase um tipo de orgasmo para mim.
Falo muito pouco. Respondo, sim, quando me perguntam algo, mas não tenho puxado muita conversa. É algo como... impotência. Impotência... Não, não assim de não conseguir conversar, impotência de não sentir excitação nenhuma sabe? As palavras não mais me masturbam como deveriam. Ou me acariciam como deveriam. Ou me fodem como deveriam. Escrever é uma lástima! Escrever e nunca ser lido. Como esse negócio aqui, que será engavetado e mal será lido. Isso me dá náuseas, o que é bom, e me dá impotência, essa que falei aí. É como se eu quisesse muito trepar, muito foder, mesmo, mas chega na hora e não quero mais. Aí é como estupro, não?
Sinto cansaço. Muito.
A TV? Não. Está desligada. Sempre esteve. Os livros são bons. Escolho sempre o personagem que mais faz sexo e me imagino nele. Meu corpo reage muito bem às descrições. Quando não tenho pesadelos, o que é mais comum, tenho sonhos com os personagens e estamos todos em uma imensa orgia. Nos beijamos, fodemos, comemos pedaços de nossa própria carne, bebemos nossos sangues e fluidos. Acordo exaltada. Hein? Não.
Cartas? Não. Correio eletrônico? Não.
Vontades? Agora? Mudar. Ser diferente. Ser outra pessoa. Pode ser isso? Alguém com corpo esguio e pele perfeita. Seios pequenos, bons de colocar na boca. Pernas mais finas e bonitas. Pele fresca. Pele... já falei três vezes! Tudo bem. Olhos bem vivos, convidativos. Cabelos mais fortes, longos, bonitos, escuros na tonalidade certa. Unhas longas pintadas. Às vezes, um pênis. Penetrar é bom. Quando coloquei meus dedos na vagina de outras mulheres, pensei em como seria colocar um pênis, se eu o tivesse. Sempre fico excitada quando penso nisso. Às vezes, uma vagina. Não, acho que um pênis, com tudo isso aí. Boca sorridente, carnuda, boa de beijar e morder. Língua para lamber. E tudo isso. Pode?
Estou doente?
Nasci doente. Pode escrever aí. Nasci doente. Não há cura. Nasci sem querer, sem poder. Nasci com as coisas todas trocadas. Sou fruto de uma coisa estranha. É como se alguém tivesse vomitado em uma vagina e assim eu tivesse sido concebida. Creio que deve ter sido isso mesmo. Isso traz problemas pra sempre. A gente nasce assim, estranha. As pessoas dizem que é “diferente��. Eu digo “estranha” mesmo. Uma mistura estranha de coisa boa e ruim. Sabe as flores que você deposita sobre um túmulo? Primeiro viçosas, perfumadas e depois começam a estragar, a morrer e a ostentar aquela aparência de coisas mortas-vivas, aquele aroma de algo que está se decompondo... Mas ainda é flor, não é?
O que vou fazer para melhorar... Não sei. O que devo fazer? Não seria você o especialista? Me diga o que melhorar. Como melhorar. Tem cura?
Ah... acabou o tempo.
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Idade
De todas as estradas percorridas, as grandes maratonas e inclusive quando resolvi me sentar cansada, avariada, segurando a cabeça com as mãos para então, conseguir erguer o corpo e tomar a difícil decisão de dar a meia-volta dos percursos sonhados, castrados, feitos apenas no imaginário guardo as marcas no rosto, nos olhos, nas mãos, no corpo todo.
Vincos, linhas, olheiras e manchas queimaduras, cicatrizes, tatuagens estrias, machucaduras, veios delineados todos esses caminhos bradam como vozes ferozes vindas de uma garganta quente e dizem que envelheci.
Esses caminhos impressos em toda a minha pele que poderiam me chamar “experiente”, “vivida”, viva me chamam “velha” me chamam “mãe” me chamam “passado” e cospem: conforme-se! O tempo passou! Encolha-se, volte ao casulo, ao esquife, enrole-se em suas sedas bolorentas afaste-se, recue, assuma, envelheça, morra!
E as lágrimas caem pelos rios secos das linhas finas e o sorriso se acovarda cada vez mais e as roupas cobrem cada vez mais e as portas se abrem cada vez menos e os olhares ficam cada vez mais pequenos e dor cresce como rebento bem nutrido em ventre saudável e farto para nascer todos os dias em forma de restrição dizendo-me que é tempo de recolher, é tempo de parar é tempo de parar de pensar, é tempo de aceitar que envelheci.
Não mais amores tumores não mais casos prazos não mais desejos lampejos não mais.
De todas as prostitutas, a vida é a mais cara e a mais ingrata faz tudo tão rápido, é tão superficial não geme, não transpira e nem goza e ainda faz com que se corra e implore por mais estrada, por outra estrada por tempo, por mais tempo “Dê-me mais, eu vou mais, eu pago mais!” E o vinco dos pés vai subindo até o rosto, o colo e pescoço e quando se dá conta, é tudo um rabisco, um labirinto um punhado de papel amassado cujo único destino é a lata do lixo.
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"Mocinha"
O caso da menstruação não parecia ser suficiente para arruinar seu dia e seu fim de semana. A amiga tinha que manter o hábito de ir à sua casa depois do almoço. Treze anos. Pensava que essa sim era a idade das tragédias. Chorar no berço pelo colo da mãe, cair pela primeira vez andando de bicicleta, apanhar de alguém da escola ou ficar de castigo por assistir filmes de terror da TV não eram situações assim tão ruins quando comparadas àquelas que acompanhavam seu recente aniversário de treze anos. Cólicas! Banida do quarto dos pais, onde foi choramingar o acontecido – que não foi bem recebido pela mãe e o pai, por sua vez, fingiu que não ouviu – recolheu-se então no seu quarto, debaixo da coberta azul de toalha, embora lá fora o sol estivesse forte e nem parecia tão frio assim. A amiga entrou. Pulou na cama e falante como sempre, começou a discorrer sobre seu mísero dia. A mãe a acordou cedo demais para um sábado. O irmão andou usando algum tipo de droga que o fez dormir na calçada. Ela ri enquanto conta isso. A mãe fez algo que ela não gosta de comer. Contou que descobriu que uma de suas colegas da rua se masturbava com um travesseiro. “Fazia sexo com o travesseiro!” – assim se referia... e ria. De repente, levanta-se da cama e começa a fuçar na gaveta de maquiagem. Passa o batom cinza-cintilante e pergunta se ficou bom. Corre na cômoda, tira várias roupas e começa a vesti-las. Olha-se no espelho, mexe nos cabelos, empina a bunda, acaricia os seios pequeninos. Tudo isso é embalado por uma sinfonia de dor e uma vontade imensa de chutar a garota para fora do quarto, do mundo. E ela torna a sentar do seu lado. - O que houve? Tá pálida. Tá doente? - Menstruei. Tô com cólicas. - Ah... Comigo foi no ano passado. Você se lembra, não? É ruim mesmo. Agora, você é mulher. Vai ver, seu pai e sua mãe vão encher o saco. - Eles nem deram bola. Meu pai só falou que se eu tivesse dor, ele comprava um remédio. - Eu fico brava, pois eu menstruei e não tenho peito. Ninguém vai querer ficar comigo. Nunca vão saber que sou mulher, já. Você tem peito. Agora você vai ter que ficar com alguém. - Não quero ficar com ninguém. - Quer sim. Todo mundo quer. Eu quero. Mas não sei beijar ainda. Tenho que aprender, mas não sei como. A gente poderia tentar. - Tentar beijar alguém? - Tentar beijar... a gente se beijar. Nós duas... pra saber como é que é. Praticar. Vamos? - Não... não quero praticar... com você! O dia que eu tiver que beijar eu beijo e pronto. - Mas eles vão tirar sarro da sua cara se você não souber. Boba! Deveria tentar. Eu ia escolher a outra, mas resolvi escolher você. É rapidinho. Se a gente não gostar, a gente para. Começou a pensar milhões de coisas. Será que ela tinha razão? Tinha que aprender a beijar? Era esta a forma mais eficaz de aprender? Fazia algum sentido. Afinal, era só para saber como era, era para saber fazer quando chegasse a hora. Esse beijo não era errado e nem feio, nem iria contar. Ainda teria o primeiro beijo com um garoto para contar. Era mocinha agora. Tinha peito. É... ou não. Olhou para a amiga. Ela nem era assim tão bonita. Os cabelos sempre desgrenhados, os pés em sandálias. As unhas compridas demais, as roupas que cobriam seu corpo todo. Nem sabia ao certo como era o seu corpo. Aquilo foi fazendo com que sentisse repulsa da garota e da proposta. Não. Nada de beijo. Nada de praticar nada. - Não quero. Estou com dor. Não quero. - Tem certeza? - Tenho. E se você não se importa, eu quero tentar dormir. A gente se vê na segunda, na escola. - ... - Eu tô cansada mesmo. Vou pedir para meu pai comprar o remédio. - ... Ela tira as roupas e corre no banheiro. Esfrega a boca com papel para tirar o batom. Volta e veste as suas próprias roupas. Dá uma olhada no quarto e fala sem fixar um ponto: - Eu tenho certeza que vou beijar antes de você. Ao dizer isso, sai. A dor não impede que vá até a porta e a feche – o pai não permite chaves – e coloque uma fita para tocar no toca-fitas. Coloca num volume baixo, o que não é costume. Fecha as cortinas e sente o silêncio do sábado monótono e pesaroso. Olha no calendário e marca o dia com uma caneta. Volta para a cama e se enrola nas cobertas. Pensa que se isso é ser mocinha, queria ter nascido moleque. Quem sabe até poderia então beijar a amiga sem precisar praticar nada. Se isso era ser mocinha, mulher, virgem... então isso era uma grande merda.
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A revista
Estava a caminho da escola quando subitamente sentiu vontade de parar na ponte. Olhou para um lado e depois para o outro. Colocou as mãos no parapeito e começou a observar o curso da água esverdeada e encorpada. A água fedia. Não parecia um riozinho, parecia uma grande vala de esgoto. Olhou para o céu. Nenhuma nuvem. O sol ardia na cabeça, revirava o almoço no estômago. O peso da mochila nas costas causava uma estranha vertigem. Do nada, o céu ficou esverdeado e encorpado e o rio, por sua vez, azul, quente. Os olhos pararam de ver toda e qualquer coisa por um segundo e ele vomitou. Vomitou ali, na ponte, dentro do rio, o almoço, o café da manhã, o pacote de biscoitos da madrugada. Tudo e mais um pouco saía da sua boca e o desespero começou a fazer com que suas mãos ficassem geladas, as pernas bambas. Algum raciocínio conseguiu fazer lembrá-lo que tinha que ir para a escola, que não podia faltar ou ligariam para a mãe. A mãe não gostava de ligações da escola. Na verdade, a mãe não gostava de quase nada. Achava que ela gostava de novela e de confeccionar suéteres pequenos demais para os filhos, que enchiam uma cesta num quarto vazio da casa. A escola! Tinha que ir para a escola, mas as pernas fraquejavam. Apoiou-se com alguma dificuldade nos próprios joelhos e, assim curvado, suando quente e gelado, tentou recobrar os sentidos. Tirou a mochila, a jaqueta e a camiseta e ficou assim, seminu na beira da rua. Limpou a boca com o avesso da camiseta escura e vestiu-a novamente. Voltou-se para o rio. Alguma coisa no rio o hipnotizara. Ou não seria alguma coisa no rio? Seria a noite passada? A noite passada era para ter sido uma noite como as outras noites. Alguma coisa na TV, um pacote de biscoitos, um copo de leite com achocolatado. Quando estava subindo para dormir, o telefone tocou. Era ele. Disse que estava sem sono e queria saber se poderia jogar uma partida de videogame ou xadrez. Ok, respondeu. Pensou longamente como amigos podem ser inconvenientes. Resolveu esperar na sala. Pegou o caderno dentro da mochila e foi direto para a penúltima página, onde escrevia por muito tempo uma carta para a sua garota favorita. Ela, que tinha cheiro de xampu, de hidratante, de batonzinho de morango. Ela, que tinha o rosto sardento e as mãos branquinhas e com a pele bem fininha. Pensava em quão bom seria acariciar aquelas mãos. Perdido ao tentar imaginar essas coisas e sentindo seu corpo começar a responder às suas fantasias, tomou um susto ao ouvir a campainha. Ele chegara. Cumprimentou-o com um aceno, mas ele sorriu largo e insistiu em dar aquele tapa nas costas. Ele sempre fazia isso, assim como sempre elogiava a decoração da mãe e perguntava se tinha biscoito caseiro. Tinha. Pega. Pegou. Videogame? Xadrez? Xadrez. Jogaram uma partida e ele disse que tinha algo a mostrar. Abriu a jaqueta de lona pesada e mostrou uma revista pornográfica. Deu uma risadinha e sugeriu o quarto para mais privacidade. Sentaram na cama e começaram a folhear a revista. Ele observava o amigo empolgado que olhava tudo como se fosse um cardápio de lanchonete. Parecia querer comer aquelas folhas de papel ilustrado, beber o leite que poderia sair daqueles peitos enormes, encostar a cabeça e dormir naquelas bundas fartas. Falava e descrevia as coisas que faria, mas isso não o movia tanto assim. Enquanto o via enfeitiçado pelas imagens, ele se perdia nos detalhes. Um umbigo. Mãos. Pés. Orelhas. Cabelos longos e sedosos. Curvas que delineavam os quadris. A pelve... – Olha! – e isso lhe arrancou do transe. Fechou a revista bruscamente e olhou bem nos olhos do outro garoto. Este não fechou a cara, que era o que ele imaginava que talvez fizesse. Encarou-o bem. Ele ainda sorria aberto, um ou outro dente torto, o cabelo ainda molhado do banho, o cheiro da loção de barba do pai na cara imberbe. Aquele sorriso o fez recuar e por sua vez, baixou ele a cabeça e emburrou. Quando ergueu o cenho emburrado, o amigo o beijou no canto da boca. Foram dois segundos que fizeram até com que fechasse os olhos. Afastou-se, brusco. Ele não desistiu. Sentou mais perto e desta vez, durou cinco segundos. Cinco segundos de lábio um tanto áspero, de hálito de creme dental e biscoito, de três gotas de saliva. Afastou-se. Ele disse que tinha que ir, era tarde. Concordou. Desceu as escadas, abriu a porta, disse “até amanhã”. Carregou o resto dos biscoitos para o quarto e devorou-os todos, embebidos em lágrimas açucaradas. Dormiu agoniado. Não podia deixar de ir para a escola. De estômago vazio começou a caminhar devagar, cego do sol e ainda lívido do mal estar. O sinal já berrava em seus ouvidos quando chegou. Nem viu a si mesmo entrar na sala. Sentou na carteira e deitou a cabeça nos braços, exausto. Ao ouvir a voz do professor, ergueu os olhos com uma preguiça danada. Diante dele, na carteira da frente, o sorriso da noite passada. Ofereceu um chiclete. Aceitou. Pegou. Olhou firme. Outro sorriso. Sorriu de volta. O chiclete era de canela. Parecia que alguma cor lhe voltava ao rosto. Estava e não estava ali. O sinal berrando de novo. Levantou. O amigo estava saindo. Correu. Alcançou-o. Tocou na sua jaqueta de lona. Sorriram. Perguntou se queria outra partida de xadrez. Ou de videogame. Ou outra revista. Sim, ele tinha outra revista. Caminhou devagar para casa. Cantarolava alguma coisa boba que tinha ouvido no rádio. Passou ao lado do rio e tirou o chiclete da boca para jogá-lo fora. Não conseguiu. Queria engolir aquele chiclete e foi isso o que fez. Dane-se o que pensa a mãe. Dane-se o que pensam os adultos. O importante é que eles teriam outra revista.
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Rotina
Quando, pela manhã, me acorda a rotina sinto-me caminhando para uma guilhotina onde desço escadas que me conduzem a um mundo oco que é destinado somente àquele que se encontra louco Sinto que as paredes me apertam assim como os objetos que me cercam ouço a minha voz responder às minhas próprias indagações e me entrego às mais diversas divagações A solidão me faz desejar estar em outro lugar lugar qualquer este que não poderei nunca estar aperto os pulsos como se acariciasse grilhões invisíveis acaricio os tornozelos como se houvessem marcas de sofrimentos indizíveis Tento recompor a mente, forçar as rimas de um poema tento, em vão, construir em minha mente uma grande cena porém, quando dou por mim, tenho um bolo recém assado sobre a mesa que acaba por endossar o meu sentimento de tristeza Afasto-me pouco a pouco e as lágrimas insistem em cair e, em todo o tempo, insisto em querer sair buscar em que páginas de livro me perdi em quais lajotas esfregadas com tanta sofreguidão eu me rendi Uma ampulheta imaginária conta os dias a cada milhares de grãos de tristeza, conto um de alegria não sei de quem foi a ideia de não poder apagar a vida de ter que continuar a sentir a pústula viva, a maldita ferida Vejo o vento cantar cantigas estranhas ao enfiar-se porta a dentro, pela casa, em suas entranhas arrepia-me a alma, um sentimento pesado, passado uma inércia consoladora, uma placidez de lago parado A caneta cai das minhas mãos, a canção se vai, tarde a lembrança de quem me mastigou a vida, tão covarde foram as rimas, foram todos os diálogos, partiram ao meio, em pedaços tão pequenos, sumiram Escoaram junto com a louça lavada esconderam-se em meio às roupas dobradas olho para minhas mãos e vejo quando tempo passou e penso: quando é que foi mesmo que minha vida acabou?
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Diálogo final
“- Deixa que eu te mate agora? - Não. - Ah, deixa que te mate agora! - Não quero morrer pelas tuas mãos. Prefiro morrer pelas minhas. - Prometo que serei sensível e que não sentirás nada. - Eu até gostaria de sentir alguma coisa... faz muito tempo que nada sinto. - Que queres sentir? Dor? Alvoroço? Sufocamento? Tudo isso posso fazer! - Qualquer coisa, desde que me faça sentir alguma coisa. - Quando queres então que eu te mate? - Ah, espera um pouco... esperamos por tanto tempo, espera mais um minuto, ou dois, ou uma hora... - E enquanto isso? - Enquanto isso, olhemos um nos olhos do outro. - Deixa que te mate! Prometo fazer com que tu sintas o que queres! - Ainda acho que seria conveniente morrer por minhas mãos. - Não... as tuas mãos são quentinhas... as minhas são mais apropriadas! São geladas, os dedos são finos. Olha bem! Melhor morrer pelas minhas! - Tudo bem. Morro pelas tuas mãos. - Vou te matar agora! - (...) - O que houve? Estica os braços, pega o pescoço! - Não consigo. - Não consegues? Estavas até agora morrendo de excitação! Dá cabo disso! - Não quero. - (...) - Dá-me um beijo... - Se eu te der um beijo, não importa quão excitado estejas, não conseguirás me matar... - Mato a mim, então. - Mas... como? - Vou sair pela porta e não voltarei mais. Levarei o beijo e carregarei as mãos geladas para sempre. - Então vá. - E a tua morte? - Eu já morri quando encontrei pela primeira vez os teus olhos.”
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Poema em Sol Maior
Todos os dias eu escuto o vento cantar nas venezianas no mesmo horário, aquele mesmo horário que costumavas chegar e bater na porta e com tímido abraço me envolvias e assim, me devolvias a vida minha que estava contigo. Todos os dias eu paro para ouvir o pianista desafinado que mora no andar de cima que em dó e em sol arranca aquela canção que costumávamos ouvir quando estavas deitado em meu colo sendo meu solo, meu sal, meu chão enquanto meu coração estava contigo. Todos os dias, quando a madrugada chega eu escolho uma das maçãs da fruteira e corto cuidadosamente dois pedaços de cada vez um para mim, um para ti e ainda ouço teu sorriso adocicado e teu beijo de alento que consolava meu sono e permeava meus sonhos enquanto estavas comigo. Todos os dias, quando o sol acorda e posteriormente, me obriga a acordar com ele desejo que minh’ alma não estivesse mais aqui pois o vento não canta mais na veneziana não há mais música ao piano [só o sol e o dó] não há mais maçãs frescas na fruteira e não há mais espera, nem teus braços enlaçados em meu corpo e nem beijos que possam me cobrir a noite... estou aqui e não estou contigo, estás e não sei onde estás, mas não estás aqui comigo.
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Dormente
Devo cantar a cantiga do sono para que ele venha? Devo morrer acordada, com os olhos vidrados? Devo deitar e sonhar acordada que durmo, com febres em todo o meu corpo? Devo espetar o corpo com agulhas finas para que, entre dores, ele adormeça? Adormeça, adormeça... corpo dormente. Dor-mente. Dor na mente. Dor.
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Antropofagia
Matar-te 150 vezes e escrever 150 versos e transformá-los em canções. Devorar todas as tuas vísceras picadas 79 vezes salgadas, cozidas em vapor. Beber 200 cálices do teu sangue degustar cada gota de sabor metálico. Coser cada feixe de músculo teu num casaco para cobrir meu corpo nas noites frias. Lamber todos os teus 206 ossos empilhá-los todos diante de mim e contá-los até perder a conta. Guardar a tua língua salgada para metê-la em minha boca quando eu bem achar devido. Decepar as tuas mãos e alisá-las com creme e perfume e deslizá-las, geladas, sobre cada pedaço de mim. Desejar na morte todos os prazeres que então tive em vida desejar tua morte para ter prazer com o que restou da tua vida. Consumir cada pedaço teu e paralisar a digestão guardar para sempre teu adorado e maldito corpo, agora morto agora meu.
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Ritual
Lavo-me com sabão cremoso e passo em todo o corpo o óleo com aroma de flores. Feito isso, visto a camisola rosada, rendada, de alcinhas finas e que deixa o colo nu. Ela cobre as coxas, chega perto dos joelhos. Passo as mãos nos cabelos molhados e recém-escovados. Olho para o espelho, mas ele não olha para mim. Não me vejo. Não vejo nada. Sinto o vapor do banho quente tomar conta do quarto quando eu abro a porta. O vapor sai como fumaça misteriosa que anuncia uma nova atração. Eu não sinto atração. Observo o leito estéril. Deito. Deito quase na beirada e vou esticando meu corpo longilíneo até a cabeceira dele. Sinto o perfume artificial dos lençóis recém-lavados. Deslizo minhas mãos por todo o meu corpo. Sinto o osso do esterno, sinto os seios, as costelas, o vazio macio da cintura, a marcação dos quadris, a pele suave das coxas, o calor do sexo. Viro a cabeça para o lado. É o mesmo quarto, o mesmo dia, a mesma noite, as mesmas horas. Ergo devagar a camisola e vou expondo aquilo que sempre é o segredo. Exponho, viro a cabeça para o outro lado. Quando adentra meu corpo, é dolorido. É sempre como se fosse a ruptura da virgindade. Ele entra quente, molhado (eu estou molhada), ereto e cheio de veios, ele entra com sede dentro de mim. Ao lado da minha cabeça, a sua cabeça. A sua boca de hálito cálido suspira de forma rítmica, seus braços tremem, seu corpo todo é tomado de um vigor sobre-humano. Ele quer entrar completamente em mim, quer ficar para sempre lá, quer encontrar uma forma de ficar lá. Eu não o beijo, ele não me beija. Ele quer arrancar minhas vestes, ele torce os dedos das mãos num acesso. O corpo vai e vem, as pernas abrem-se cada vez mais e eu o recebo, mais rápido, mais fundo, mais líquido. O suor escorre de sua testa e cai em meus lábios. No seu pescoço, a vermelhidão e em seus olhos, o êxtase. Por alguns minutos, ele deixa o peso do seu corpo em cima do meu. Eu sinto que seu corpo quase encaixa no meu durante esse mísero espaço de tempo. Quem sabe se ele tivesse entrado e ficado em mim e nossos corpos se encaixassem, pudéssemos ser algo, ser um, para sempre. Mas se ele se ergue e se joga nos lençóis recém-lavados. Suspira, fecha os olhos e respira cansado. Seus lábios parecem esboçar um estranho sorriso. Nossos olhos se encontram e nada dizem um ao outro. Olhamos fixamente um para o outro e nada é falado, nada é balbuciado. Ele desliza suavemente a mão por sobre meu corpo e o cobre com o lençol. Ele parece adormecer, mas eu sei que não adormece. Meu corpo fica dormente de repente. Viro a cabeça para o lado oposto da sua. Olho para a janela coberta de cortinas de veludo. Queria que o veludo fosse o mar ou o céu. Encolho-me e uma lágrima escorre pelo olho. Não sei se é uma lágrima de alegria ou de tristeza. Coloco a mão sobre o seu peito, que a respiração faz subir e descer. Esqueço. Vou pensando e pensando até que adormeço.
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"I am/ doll eyes, doll mouth, doll legs I am/ doll arms, big veins, dog bait... I am/ doll parts, bad skin, doll heart It's stands for knife/ For the rest of my life... Yeah, they really want you/ they really want you, they really do Yeah, they really want you/ they really want you, and I do too..."
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Abril despedaçado
Abriu-se em mim uma rachadura lascou-se um pedaço e este pedaço caiu, perdeu-se em mares de profundos dissabores tão fundo mergulhou e por lá ficou deixando-me órfã de sangue, órfã de batimentos cardíacos seca, secura na boca boca que sente ainda o gosto da tua saliva e à deriva fiquei, esperei e guardei um tempo encaixotado que se foi, evaporou.
Abriu-se uma imensa fenda que não cabe emenda nem costura acostumar-se a essa vida insípida e dura emoldurada por tua ausência que nunca passa, nunca termina nunca se vai, nunca ensina a mim, a ti a lição que deveria ser aprendida e que foi perdida em meio ao orgulho, lástima de um pedaço do corpo que adormeceu e não mexe, não sente, não vibra morreu.
Abriu-se em mim a pústula de todos os tempos de languidez e melancolia onde a música muda preenchia a mente dolorida e sem sono sem sopro algum de cousa nova, de veios de raios de sol quente, de calor de gente de calor da tua parte que era gente do calor teu, do aroma dos teus cabelos e do cheiro do teu corpo e da tua voz que prometeu que teus braços me envolveriam para sempre em todas as estações.
Abril, em mim, uma pedra de sal e um punhado de cal, o primeiro a salgar-me toda e qualquer ferida o segundo a sepultar-me rapidamente entre cartas guardadas e palavras faladas e escritas, sou eu um memorial, um ode ao amor morto ao amor falido, esquecido ao amor bruto e virginal do primeiro toque ao desconhecido trinta dias que nunca passam, trinta dias na garganta e nos pulmões, fervendo trinta dias de vermes me comendo.
Abril, cíclico abriu uma porta, despejou dentro de mim líquidos do corpo e do poema que fermentam a mais famigerada das doenças não fecundam, não causam nenhum êxtase não há síntese não há cura, não há de se parir nunca um filho desta dor. Abril despedaçou-se e levou consigo a poesia do amor.
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O amor dos outros
Eu pintei o amor com cores escuras e escondi bem fundo enquanto o mundo me dizia que tais coisas eram puras achei que seria bem melhor escondê-las de todos guardá-las como um capricho ou, até mesmo, jogá-las no lixo. Separei tudo separei-me de tudo e ali fiquei, esperando fiquei acreditando fiquei sonhando até que acordei e quando o fiz, nada lembrei. Do amor me desfiz, esqueci não lembro das cores e nem dos sabores e acho que não reconheceria e a mim não traria alegria pois não mais reconheço seu preço seu valor seu frescor. Vivo assim, bem sem o amor.
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Amor-que-não-existe
Quero um amor que não me cobre não me cubra não tema não teime não reine sobre mim. Quero um amor que não fuja não ruja não fale mas que também não se cale diante de mim. Quero um amor que seja sólido que não me deixe só que não seja somente o pó de algo, mas algo tão grande, o melhor para mim. Quero um amor sedento que não seja sonolento que não viva de tormento que sabendo que estou aberta encaixe completamente em mim. Quero um amor de impacto que não fique no meu rastro que não seja o meu carrasco que encontre em minh‘alma o refúgio e o calor de todos os corpos que habitam em mim. Quero um amor que não existe mas, quem não resiste em tentar rimar com papel e pena? Pois cá estou, enrolada em cadena e somente de sonhos me alimento tentando fazer uma canção de um lamento para salvar o pouco que resta de mim.
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O Príncipe
A tua superioridade não me engana
A forma como teus olhos perscrutam os detalhes e julgam as informalidades
a tua simplicidade escondida por detrás de um vocabulário culto um vocabulário límpido
a entonação correta da tua voz, a articulação perfeita de cada palavra proferida nada disfarça, nada faz com que eu não decifre os teus pensamentos mais mundanos.
Caminhando de cabeça erguida tentas caçar em tua língua o gosto da vitória e encontras apenas o amargor da batalha perdida
de bater em retirada com poucos homens feridos poucos homens cansados
pouco armamento pesado pesado sobre os teus ombros, frágeis ombros tuas articulações de mulher barulhando, crepitando como se colocadas no fogo
tuas mãos ossudas de longos dedos e veios de velho, artrite gotosa, esticando e estralando para sentir um pedaço de vida no teu corpo quase morto.
Quando deitas em tua cama todas as noites imaginas que provaste do leite dos anjos e do gosto proibido dos prazeres infernais
e a tua alma inflama e clama pelo corpo que te alimenta, que te sustenta que jaz num leito muito longe do teu
e arrancas pedaços de carne do peito e puxas teus cabelos e enfias tua cabeça entre os lençóis, num misto de desejo e vergonha
numa vontade enlouquecedora de viajar pelo espaço de viajar pelo tempo de cair dentro do ventre do baixo-templo daquela que tu amas.
A tua soberania caída por terra, suja de lama a tua coroa quebrada, sem nenhuma gema sequer
que legitime a autoridade outrora consistente da tua pessoa bem-nascida e mal composta
e, como todos os semelhantes a ti sem sentir o calor do sol e completamente envolto de muralhas centenárias caminhas para o precipício que já era, então, tão comum (o teu velho conhecido)
aquele do qual escapaste por pouco período de tempo
quando tocaste a carne branca e sentiste a textura de cada centímetro de pele
e provaste do sangue e do flamejar do sêmen quando uma palavra contida, um suspiro e, de olhos fechados adentraste, ao mesmo tempo, as portas de céus e infernos e desejaste ficar ali por uma eternidade…
O teu manto roto roça o chão e o teu corpo, mesmo de pé, rasteja
e vestido de orgulho e tristeza tentas colocar a mão sobre o peito e dizer que governas toda e qualquer célula todo impulso nervoso, todo espasmo muscular
e fazes de ti um bobo-da-corte uma piada infinita, infame inflamado da doença que corrói tua mente e teu corpo
a doença do sentimento que enviaste à guilhotina enquanto, às escondidas, te alimentas do cadáver do teu bem mais raro do teu amor mais caro
aquele que não sentirás jamais.
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"O ódio é inversamente proporcional ao amor e à admiração. Quanto mais admiro, mais odeio. Quanto mais odeio, mais amo." (L. Franci)
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Grito
Não lhe foi permitido trégua nem nenhuma régua que medisse qualquer sentimento qualquer momento parecia decisivo e tudo lhe era incisivo e o perdão não lhe cabia assim como não lhe cabiam as leis todas as coisas todas, as cores todas o preto-e-branco da vida lhe refletiam nos olhos parados fitando o horizonte e nas mãos calejadas e as palavras paradas diziam tantas coisas muito mais do que as palavras faladas e a dor era tão grande que sorria mais do que falava e chorava mais do que sorria e sentia que calada, chorava de olhos bem abertos despertos num sonho infinito de um porvir bonito [com a cara estapeada] E não poderia ir adiante esperar distante quando queria estar perto e caminhava pelo teto entorpecida enlouquecida dominada por loucura por ausência de ternura pelo prazer da tortura de tocar o intocável de sentir o insensível de gostar do abominável [de apanhar] Estira todos os músculos violentamente para tentar arrancar do corpo a alma a calma alarma dentro dela um instinto estranho de tamanho surreal e fora do normal se encolhe e escolhe se entregar ao final.
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