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stairway to heaven
Plantados na terra e fascinados pelo céus, os humanos inventaram o afago num assomo de luz. Algumas escadarias, atravessadas por lençóis de claridade, assemelham-se a templos onde a ascensão confluiu na clarabóia um simbolismo cosmológico de apoteose imaginada. Secretamente, a forja da antiga torre de Babel foi retomada no interior das casas, refúgio e travessia para o mistério, uma escalada possível à proximidade aos deuses, se estes existirem. Estas escadarias são corredores verticais, santuários involuntários ou escondidos, seguramente perdidos no casario restrito, uma oportunidade individual no contacto com as estrelas e o infinito.
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azul
Meus olhos falam na cor da planície do céu e da madrugada de (a)mar o incandescente ideal dos sonhos
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que chova, que chova
Esta não é a manta dos dias actuais. Ou das noites. A metáfora de céu dantesco tem hoje uma só cor e textura: azul plano. Que nos embala e aquece, que nos mapeia os sonhos em cúpula celeste. Todavia, ilude-nos bonança interminável. Na verdade é sintoma de desequilíbrio da biosfera, consequência da intervenção industrial humana, cuja atitude predatória sobre o planeta o torna mais finito.
Que chova, que chova. Que regresse a cortina de água para beijar os solos e abraçar as albufeiras.
A seca severa tropeça continuamente a sustentabilidade da natureza, da nossa existência. Bom tempo no inverno não é um verão gostoso fora de tempo; bom tempo no inverno é chuva para irrigar os campos, florescer os alimentos que todos necessitamos, cuidar da diversidade da fauna e da flora.
O azul infinito desvia para os sentidos da ignorância um conforto momentâneo que prenuncia a catástrofe anualmente renovada. Para ver nuvens não gostaria de somente me agraciar no romantismo das pinturas de John Constable ou nas dramáticas fotografias de Sebastião Salgado.
Que chova, que chova. Sem chuva todos perdemos. Sem água todos morremos.
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Lisboa, de Ulisses a Pandora
Vários são os sujeitos do nosso apaixonamento. No humano desejo social entregamo-nos a pessoas; com o intelecto, a livros e filmes; noutras formas de intimidade construímos lugares de pertença até na imaginação. Lisboa, cidade que Ulysses fundou e as Tágides camonianas persistem em seduzir corporalizando peito e ventre desta cidade milenar, ostenta mitos fundadores do seu encantamento. De alto a baixo as colinas respiram histórias de povos diversos, episódios e experiências que alimentam memórias, páginas e imaginação. É fácil entender o desejo do encontro e o amor de perdição que inunda os visitantes. Cantam poetas e fadistas a Lisboa mulher, menina e moça, a cidade-amante, que nos abraça e rapta para noites boémias.
Destas sensações se fizeram ideias de marketing, e Lisboa surgiu aos olhos de muitos como a mais excitante paixão da Europa. Histórica e castiça certamente, a experiência lisboeta foi vendida como a novidade de um passado moderno, de algum modo virginal, e a diferença que faltava face a outros destinos. Em poucos anos, parafraseando Júlio César, milhões de pessoas chegaram, visitaram e partiram. Lisboa era finalmente uma cidade global, para gáudio da administração local e governamental, de hotéis e restaurantes. Todo o sistema turístico local reinventou-se, entre oportunidades e oportunismos (no jeito desenrasca e chico-esperto tão português), e rapidamente reclamou a cidade para si própria. Demasiado rápido, na verdade. Em cerca de seis anos fomos desapossados da nossa cidade. Entre 2016 e os primeiros meses de 2020, os turistas que antes com orgulho achávamos graça, tornaram-se em "hordas de estrangeiros invasores", exasperando repúdio, e por vezes fermentando intolerância imprópria para uma sociedade democrática. Lisboa massificou-se na senda de Barcelona, Paris e Veneza.
A capital tem perdido população nas últimas quatro décadas. Em 1961 havia 802.230 habitantes. Entre 1981 e 2001 diminuiu em cerca de 300 mil, resultado de vários factores sociais (demografia) e económicos (deslocação para subúrbios, p.e.). Os resultados provisórios do Censos’2021 indicam que existem 545.923 lisboetas.
Quanto aos números do turismo, um relatório da Deloitte indicava que a cidade recebera em 2005 cerca de 2,5 milhões de visitantes, com crescimento ligeiro até 2013 (3,1 milhões). Daí em diante os números escalaram extraordinariamente, até atingir 7,5 milhões em 2018. Na verdade, toda a região de Lisboa, de 2016 a 2019, recebia quase dez milhões de turistas por ano.
Escrevi o seguinte em 2017: "Que Lisboa tenha mais visitantes, óptimo. Que Lisboa se assuma cosmopolita e global, magnífico. Que as pessoas possam tirar rendimentos disso tudo, muito bem. Mas tanta gente está a tornar muita gente gananciosa, a transformar os bairros very typical em dormitórios elitistas de curtíssima duração, degradando todo o seu espírito e genuinidade, potenciando a sua irrelevância social a médio prazo, eliminando lisboetas (nativos e adoptivos) a favor do dinheiro fácil de um qualquer turista. A Câmara Municipal de Lisboa precisa intervir e ter legislação para proteger os residentes, os que querem viver e trabalhar na capital, cuidar da cidade como um conjunto de comunidades que merece respeito, oportunidades, justiça e integração social. Uma cidade que se desocupa dos seus habitantes e se preenche com privilégios unicamente para visitantes caminha para um parque de diversões museulógico e nocturno, sem integridade social e a perda das apelativas características e valores que hoje possui e umas das razões da sua procura.”
Ao regressar a estas palavras recordo sentir-me estranho em terra estranha nesses anos controversos, e afastar-me por vários meses. Para muitos pareceu que Lisboa abrira, com o turismo, a caixa de Pandora, e de lá sairam hordas de tuk-tuk's ruidosos e poluentes, filas intermináveis de camones nos Pastéis de Belém e em todas as ruas, à beira-Tejo e na diversão nocturna, acelerando fins de contratos de arrendamento para dar lugar a alojamentos locais e bairros gentrificados.
As críticas mantêm-se, outras levantam-se com o conhecimento mais largo entretanto adquirido. O cosmopolitismo desenhado para a cidade deslumbrou-a ficando cega de si própria, à beira de vender a sua alma na pressa de uma ocupação e reconfiguração urbana (necessária) mas que descura realidades e dinâmicas sociais preexistentes, e onde até mesmo um inocente negócio por via da nova conjectura económica alimenta o imperialismo turístico que desfaz e desenraiza os lugares.
A pandemia Covid-19 interrompeu ciclos de migração turística e laboral. A cidade ficou silenciosa, vazia, desocupada. A vantagem deste intervalo sanitário deu espaço para respirar. Mas, claro, a perigosidade do momento retirou o fervilhar que se conhecia antes do terramoto turístico. Quando se sofria pela nostalgia de um passado — como todos, ilusório, assente numa cultura petrificada nos templos e no isolamento (Pfeijffer, 2021:113) —, percorrer as ruas calmas em glória de reconquista rapidamente resvalava para o desconfortável último habitante vivo da cidade.
Mia Couto escreveu numa das suas crónicas: ”A cidade não é apenas um espaço físico mas uma forja de relações. É o centro de um tempo onde se fabricam e refabricam as identidades próprias. (...) A cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida.” (in Pensatempos, 2005).
O regresso foi lento. Sempre que posso, vou lisboando sem parar por todas as ruas e calçadas, velhas e novas, como se nunca as tivesse abandonado, como se as tivesse esquecido, como se sempre as tivesse vivido. Talvez seja esta sedução e imaginação que tantos turistas partilham. Em cada janela encontro um reconfortante rosto desconhecido da minha infância. As ruelas ostentam a mesma largura das balizas do futebol de rua que infernizava os vizinhos. Passo por uma porta entreaberta que esqueci fechar algures nos meus frescos vinte anos ao escapulir no raiar da manhã após uma noite aventurosa. Sinto a cidade no modo idealizado em que me (re)vejo, ignorando a ilusão geográfica da utopia, tão-somente porque quero. Acumulo lembranças, invento memórias, construo identidades. Na Lisboa europeia, moura, africana, criola, poética e enigmática, esta cidade inventa-se à minha medida, pois só regressa a casa quem mantém vivo o sentimento de pertença (in "O Angolano que comprou Lisboa (por metade do preço)", Kalaf Epalanga, 2014). E caminho no destino de maratona infinita, cujas pausas se revelam no beijo das fachadas centenárias, no abraço perfumado das árvores homónimas na Travessa da Laranjeira, na beleza simples e anfitriã no miratejo que Santa Catarina e o Adamastor romanceiam de casa aberta. Recebo aqui a luz do entardecer em todos os poros, refresco a sede com gostosas cervejas, e fixo todos os sentidos físicos e misteriosos na paisagem. Esta é a minha Lisbon Story, um deambular plural — lisboando é a palavra — entre veredas das várias facetas, experiências e memórias da cidade. Assim comungam, neste lugar e final de dia, o estio destas sensações, os turistas de fora e este turista-da-casa.
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K
— Há letras inesquecíveis na grafia dos nomes e palavras que perfumam poesia. Desenham formas insólitas de encontro e destino, sublinham na pele traços suaves que conduzem às portas do coração, inventam futuro mesmo que se elevem em elegias de amor passado. Há letras que nunca deixarei de escrever, porque se aproximam do sublime, ainda que breve, na fortuna beleza do inverno florido. —
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A Metamorfose dos Pássaros
vimeo
Lindo. Lindo. Lindo. Três vezes o disse, como se numa só palavra pudesse ilusoriamente abarcar os melhores adjectivos do mundo. Admito, fui trivial e repetitivo. Mas ao contrário do discípulo Pedro quando confrontado pelo povo, fui verdadeiro. Ao sair do cinema após ver “A Metamorfose dos Pássaros” nenhuma outra expressava a intensa experiência emocional. Quando um filme nos derruba como uma noite de amor, escasseiam as palavras para envolver o coração aberto. Talvez a beleza tenha este efeito intolerável da dificuldade em declarar correctamente o que temos diante de nós. Assim, peço auxílio aos poetas no elogio desta obra. "Toda beleza é um sonho, inda que exista. Porque a beleza é sempre mais do que é”. Assim escreveu Fernando Pessoa. Assim é o maravilhoso filme de Catarina Vasconcelos.
Já tanto li sobre “A Metamorfose dos Pássaros” que tenho a sensação que me roubaram tudo o que queria dizer. Fico feliz por tamanha reacção ao cinemático toque celestial. Como escreveu Shakespeare, “a beleza provoca o ladrão mais do que o ouro”, e face ao sublime encantamento do filme roubo-lhe também isto: “Uma coisa bela persuade por si mesma, sem necessidade de um orador.” Então para quê mais esta prosa? Porque no amor há sempre falas novas que encontram o seu caminho.
O filme é um poema circular (só Álvaro de Campos o conseguiu em linha recta). No carrossel mágico que se chama ”A Metamorfose dos Pássaros” navegamos nas palavras e nas metáforas (lembro-me de Mario e Neruda, na praia), em simbiose com imagens que parecem pinturas (esqueço que estou numa sala de cinema, imaginando-me em contemplação de museu), e cada frame beija-me de volta na mesma linguagem poética que seduzira ao primeiro instante.
Magistral e de terna sensualidade, ouso reconhecer no texto de Catarina, infinitamente belo, denso e íntimo, palavras que poderiam (desejaria) sair da minha boca. No gesto e no enquadramento, a história abraça-me a imaginação, na delícia do amor e até mesmo na violência da dor que nunca senti.
Imagino cada enquadramento e texto reproduzidos em livro, apenas disponível para quem já viu o filme. Infelizmente já não tenho o bilhete como prova. Agora são meros papelinhos quadrados sem alma (se realmente existir, a alma claro, que muita gente quadrada abunda por aí). Seria uma maravilhosa oportunidade de sentir nas mãos as palavras depois do deslumbrante visionamento do filme.
Num mundo que nos afoga com imagens esdrúxulas e palavras enganadoras, “A Metamorfose dos Pássaros” é um refúgio de manhãs límpidas situado na fímbria íntima de apurada liberdade criativa. Neste lírico lugar idealizado, entre as histórias que somos e a memória que inventamos, adoro este jogar ao sabor da querença — eis o horizonte do sublime que apenas Catarina Vasconcelos alcançou.
metamorfosedospassaros.pt
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imaterialidade gloriosa e trágica
— Compreender que até na natureza guardar a pérola mais doce exige talento extraordinário. A beleza alcançada reside no desafio entre o cuidado genial e a fragilidade da matéria. Tal como na imaterialidade gloriosa e trágica que é o amor.
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horizonte no teu coração
Casa no horizonte o abraço longínquo abrigo desejado no teu coração
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textura de livro e pele
Na mesa de café nascem histórias. Fala-me uma, pedes. Queres ouvir uma longa ou bonita? Quero uma verdadeira, respondes em desafio. Creio que todas se conjugam, confesso, segurando-te delicadamente a mão. Começa no azul do teu vestido, prossegue nos nossos vislumbres inspirados, e culmina em noites conspirativas inauguradas aqui neste lugar. Com textura de livro e pele, de sabor a lua e beijos de flor. Acontecer tudo isto numa livraria é o paraíso de Borges tornado realidade.
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a medida de um abraço
As coisas deste mundo? Prefiro falar do precipício concreto de um abraço. — Manuel de Freitas
O astrónomo grego Eratóstenes foi o primeiro a medir a circunferência da Terra. Algures no Egipto do século III a.C., observando as dimensões da sombra de um pau ao meio-dia, em Alexandria e mais a sul na cidade de Siena, os seus cálculos comprovaram caminho matemático do que um século antes o filósofo Aristóteles empiricamente expusera mirando as estrelas a evidência que não só a Terra era circular, como bastava uma mudança de posição para sul ou para norte para se obter uma alteração nítida no horizonte. Colombo em 1492, navegando para Ocidente com o objectivo de chegar à Índia, ao atracar no que se nomearia mais tarde as Américas, revelou não propriamente contas mal feitas, mas que o conhecimento europeu era menor que as verdadeiras medidas do planeta. Fernão de Magalhães se não fosse tão arruaceiro ao perecer numa praia das Filipinas teria completado ele próprio a circum-navegação, porém foi outro comandante da sua frota, o espanhol Juan Sebastián Elcano, que “esferizou” por fim a Terra, em 1522. Desde então fomos sabendo com exactidão que a nossa casa celeste possui o diâmetro de 12.742 km, e mede na sua circunferência equatorial 40.075,017 km.
Porém, como se mede um abraço? O diâmetro aqui é irrelevante. Dois obesos ou dois magricelas ou uma combinação infinita de formas e tamanhos não nos dariam o dimensão certa (ou errada), porque estamos noutra natureza de corpos e nos domínios do contacto humano. Se tomarmos em conta a energia mediríamos as calorias consumidas ou, em quilojoules a força utilizada? Que significa essa energia entre dois seres humanos? Não há uma unidade de medida concreta para quantificar um abraço mas, na percepção fenomenológica, há uma possível qualificação da transcendência energética humana. Contudo, repito, como medir um abraço? Na vontade de o concretizar? Na firmeza que o valida? Na conexão pré-existente? No tempo que demora? Tudo isto?
*
Há algum tempo que não nos reuníamos todos na mesma casa. Esporádicos encontros, uns para café outros para almoço, alinhados na agenda de cada um, marcaram o ritmo alternado dos últimos meses que mais parecem anos. Isto da medida do tempo é outra problemática que me confunde. No acalmar do bulício da cidade que a noite cobre com elegância, o núcleo de amigos eternos conseguira na noite passada quebrar o jejum do quorum, em casa de um amigo-irmão de décadas, anfitrião por excelência. Uma amiga após outro amigo após outra amiga sucederam-se no reencontro e conversas felizes. Nessa noite reencontrei-a. Ela, o amor maior de uma vida antiga, cuja medida do longo afastamento aprendi a ignorar para buscar silencioso apaziguamento. Imersos o mais possível nas diversas tertúlias e gargalhadas de grupo que a alegria alimenta e o vinho benze, tacitamente evitámos alguma possibilidade de diálogo estranho, estéril.
Na despedida, as tímidas palavras trocadas que infelizmente não me recordo, tiveram, no entanto, mais significado que nas horas anteriores. Perto do fim, arrisquei perguntar-lhe se podia abraçá-la. Lavrado na curva inesquecível do seu sorriso ela aceitou, e para meu espanto apagou a luz do corredor. Os nossos braços estenderam-se como ramos, os corpos aproximaram-se e os peitos tocaram-se, éramos duas árvores magicamente unidas. O silêncio tomou o lugar do momento e do gesto, e perscrutei na respiração o acelerar de um universo antigo. Enquanto procurava o calor alquimista do abraço, ela agia nos limites que a movem hoje, não produzindo retorno, mesmo involuntário, de algum indício da sua memória de nós. Dos seus braços esguios, das suas mãos mestres, do seu corpo deusa, nada simbolizava “sim, amei-te, não te esqueças”. Por breves instantes, fui incapaz de sentir o bater físico do coração ou o perfume da vida que juntos tivémos. O corpo de amor nela morrera, e o seu gesto firmava apenas uma amizade inventada para os novos dias. Apercebi-me, aterrorizado, que eu próprio já não reconhecia a firmeza e toque do seu corpo. E de olhos fixos um no outro, como num filme que termina, afastamo-nos em silêncio, assinando despedida definitiva num travelling final culminado em fade-out nocturno.
Que medi eu neste abraço? Uma cordialidade entre dois estranhos. Uma memória fugaz quase ilusória. Creio que a natureza humana, no desejo da proximidade e no alcance tangível do outro, renova no toque um florescer simbólico da sua (co)existência. Em silêncio ou em exuberância, se convida retorno caloroso aos braços de alguém. Todavia não neste abraço, não entre nós. Do gesto fiquei ciente que o esquecimento é a medida mais atroz do universo.
—— 📸 Marco Bianchetti / unsplash
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a casa eterna
Melhor do que cantava Vinicius, esta é uma casa muito engraçada, que tem tudo, que é amada. Lar-doce-lar é descrição curta e ingénua, esta casa é superlativo ventre de primavera. É doce recanto florescido entre ruelas medievais, portentosa filha do meio habitando entre muralhas, como se a própria vila fosse livraria e biblioteca de histórias centenárias. Esta nossa casa eterna é um livro de muitas páginas e capítulos. Por detrás da porta vermelha crepuscular, a geometria das lembranças desafia as leis da física — aqui dentro somos viajantes do tempo novelando emoções e entregas, formas brandas e cores que recusam atraiçoar o abraço dos dias. A proporcionalidade do espaço não foi concebida apenas na medida humana, toda a matéria e textura, todo o ritmo e escala, são estrelas de uma cosmogonia singular. As suas formas orgânicas e quase labirínticas são caverna-aconchego, respirando nas superfícies rugosas das brancas paredes um rosto manso, um colo maternal, um peito amante.
Devemos a esta casa os melhores anos das nossas vidas. Aqui mora uma plêiade de estórias e manias em sons e os silêncios partilhados. Nos aromas espirituais da cozinha, e da sensualidade dos teus perfumes. O pátio feito jardim avança pelo interior com fetos e orquídeas. Preciosamente escolhidos, fotografias nossas, algumas das tuas pinturas, esculturas da mestria do teu pai, máscaras africanas e outras artes do mundo, curiosidades das feiras de velharias, posters de filmes, livros e livros sem fim rematam o cenário. Acolhemos tertúlias em qualquer hora do dia e noite regadas com vinho dionísico ou refrescadas a cerveja apolínea, repastos aprimorando fraternidade e importunando vizinhança.
As nossas crianças viveram esta casa como fortaleza e refúgio. Forjaram os primeiros passos e as primeiras palavras e imensos ‘porquês’. Mergulharam em renovadas fantasias que ecoavam brincadeiras e birras. Tiveram uma parede só delas para serem artistas e marcarmos as suas alturas.
Recordo-me de propositadamente acordar mais cedo, ascender ao terraço e inspirar a aurora do mundo, como se fosse a primeira, como se fosse a última. Lentamente, caminhando descalço sobre o chão dócil, os sentidos despertos em cada milímetro qual criança que sente as texturas nos pés pela primeira vez, reentrava nos breves degraus até ao quarto para assistir à luz matinal que trepara até à janela, deslumbrar-me ante a vigilância inocente da cortina leve, e ver a maré de sol estender-se banhando detalhes deste palco magistral atingindo o auge na curva resplandecente do teu corpo na cama. Em uníssono todo o cosmos da nossa partilha renovava fôlego, e replicava-se ali a aurora do mundo, como se fosse a primeira, como se fosse a última.
Por tantas horas me sentava no quarto ao lado convertido em sala criativa de palavras que tentam conjugar-se para literatura eficaz. Cada livro é concebido em silencioso labor sob amplos horizontes que a imaginação transforma. À minha esquerda, a janela sobre o pátio e a muralha ao fundo emolduram a luz cambiante e as nuvens que o pintor John Constable tão magnificamente pintou, agindo como caleidoscópios que avançam sobre a minha mesa harmonizando caligrafia e corpo. Sorrateiramente, envolvias os teus braços no meu peito e eu tremia ao sussurrares ardentes poemas de Maria Teresa Horta no meu ouvido. Quantas vezes estes gestos furtivos nos prolongavam em antologias maiores alimentando inspiração e exaltação de ambos sobre lençóis celestes.
A casa habita em silêncio agora. Um intervalo que produzimos, num afastamento necessário para todos redescobrirem o seu caminho. Regressamos menos vezes que desejamos. Os garotos fizeram-se adultos, e suponho que também fortaleçam parte da sua identidade nas memórias que estas paredes, cujos sulcos conheço de cor, guardaram com graciosidade. Nós dois, apesar do calendário teimosamente nos vincar mais velhos, mantemos a mesma noção de juventude e liberdade que a casa moldou. Beijo o meu olhar no teu e vivo em todo o instante ternura e esperança embora não sejamos os mesmos pássaros brancos voando elegantes entre corredores breves e a abóbada íntima que o quarto nos oferecia. Como gerações anteriores somos filhos deste abrigo, e a herança ilumina a nossa experiência. A casa nossa, doce enclave entre ruelas medievais, discreta e portentosa entre muralhas, é portal de eternidade onde cada vinda é um retorno à infância e à felicidade, uma viagem à floresta essencial, e sempre um regresso ao futuro.
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lisboando na luz que me expande
Dois dias de fuga em liberdade. Escapo ao chão movediço, o ar tenso, o corpo desconexo, a mente frágil. Retomo de algum modo prosaico, infantil e impertinente a cidade que Ulysses fundou, entro na luz e no labirinto gracioso da cidade que amo. Aqui não há Minotauro nem Ariadne, as minhas mitologias são as ninfas que Camões invocou, imagino-me entre as formosas Tágides agora que há muito o poeta para longe viajou, e enredo-me sobre o peito e ventre das musas desta cidade milenar. De alto a baixo as colinas respiram histórias de povos diversos, episódios e experiências que alimentam memórias, páginas e imaginação.
Vou Lisboando sem parar por todas as ruas e calçadas, velhas e novas, como se nunca as tivesse abandonado, como se as tivesse esquecido, como se sempre as tivesse vivido. Em cada janela encontro um reconfortante rosto desconhecido da minha infância. As ruelas ostentam a mesma largura das balizas do futebol de rua que infernizava os vizinhos. Passo por uma porta entreaberta que esqueci de fechar algures nos meus frescos vinte anos ao escapulir no raiar da manhã após uma noite aventurosa terminada em corpos enlaçados.
Recordo-me do nosso pequeno apartamento sobre o Tejo, na fronteira mais baixa de Alfama com o rio, na Rua do Paraíso, nome mais extraordinário não poderia haver para jardim de uma vida inaugurada na luz menina e moça da cidade castiça e alegre. Sinto a cidade no modo idealizado em que me (re)vejo, ignorando a ilusão geográfica da utopia, tão-somente porque quero. Acumulo lembranças, invento memórias, construo identidades. Aqui a serenidade abraça-me, pertenço à luz que se dissipa e se expande entre o Tejo e o coração, pois “só regressa a casa quem mantém vivo o sentimento de pertença”(*).
Caminho (s)em destino numa maratona infinita, cujas pausas se revelam no beijo das fachadas centenárias, no abraço perfumado das árvores homónimas na Travessa da Laranjeira, na beleza simples e anfitriã no miratejo que Santa Catarina e o Adamastor romanceiam de casa aberta. Recebo a luz deste entardecer em todos os poros, refresco a sede repetidamente na mais gostosa cerveja que alguma vez bebi, e fixo os olhos na paisagem que se aloja em todos os sentidos físicos e misteriosos. Manobro as regras do sabor das camadas que a vida nos veste e nós despimos. A destreza do acto vem da sagacidade que cada camada nos deu. Não estou inteiramente certo da competência que possuo, contudo sei o suficiente para viver desperto neste instante de lucidez, calma e felicidade, a camada lisboeta da minha existência.
(*) da crónica “Lisboetas”, in O Angolano que Comprou Lisboa (por metade do preço), livro de Kalaf Epalanga (2014), Caminho
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no jardim
Vem até o jardim. Aqui estarás entre a serenidade e a beleza que possuis. Vem para eu desenhar o teu rosto entre as folhagens, sentir a doçura artística do teu sorriso, a densidade rival dos teus verdes olhos. Vem até o jardim para eu venerar teus cabelos soltos no vento como as copas das frondosas árvores que nos acolhem. Vem sentar-te comigo sobre a relva mesmo que persistas em levitar — dá-me a mão e serei tua âncora meu anjo, as asas poupa-as para quando me levares no teu coração.
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irritâncias ruidosas
Esta manhã está particularmente irritante o ambiente. Ou então sou eu o irritante para além do irritado. Há uma irritância premente nos ruídos fora de tempo e invasores de lugar.
O contexto do silêncio e do som mede-se além do conteúdo e do decibel, a irracionalidade destes atrozes rasgos danificam até o âmago mais estável: motas gritando como trovões ou geringonças rachadas são insulto intolerável em qualquer rua, em qualquer cidade, em qualquer hora; o roar dos automóveis, sem qualquer padrão que nos possa fazer ignorar a "naturalidade" da sua correnteza fantasmagórica; o ladrar desconexo de cães presos a varandas minúsculas e reféns da imbecilidade dos donos.
Esta colectânea maliciosa quebra toda a sintonia, concerto e concentração, desvirtua ciclos de acalmia necessária. O desequilíbrio reina entre os desenhos urbanos, nunca há árvores suficientes para filtrar o arrotar do barulho.
A cidade aproxima e comprime em simultâneo. A constância da irritação almeja por ausências sonoras que retomem a sanidade que escapa.
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se outra vida tiver quero nascer árvore
Se outra vida tiver quero nascer árvore. Serei lugar e mundo. Serei flora e casa de fauna, o meu corpo será anfitrião de aves, esquilos e insectos. Habitarei o silêncio e falarei através do vento nas minhas folhas. Estoico aguentarei o outono e o inverno, e feliz retornarei à primavera e ao verão. Convidarei crianças para subirem e brincarem, alguém lhes fará uma casa entre as trancas mais sólidas, os meus ramos serão braços para se pendurar um baloiço. A minha copa será sombra para conversas e segredos, colo para leitores e escritores, será templo para amantes beijarem promessas e tatuarem os seus nomes no meu tronco.
Se outra vida houver quero ser árvore. Milenar como uma oliveira, gigante quanto uma sequoia, fulgurante como uma magnólia, exótica como uma mangueira. Ambição desmedida, admito. E um dia, mesmo velho, continuarei de alguma forma a ser parte do mundo.
Se outra vida ganhar serei árvore, e crescerei até me cortarem em pedaços assertivos e cuidados, e serei outra forma de casa: serei barco desenhando as minhas raízes no vento para viajar os mares do globo. Um dia serei velho, tão velho que, em naufrágio ou reformado, voltarei a ficar imóvel descansando algures como estátua de outrora. Com sorte serei reencontrado como arquivo de histórias e vidas múltiplas que partilhei. Então alguém saberá dizer que nasci árvore e fui casa de lugar e do mundo, imaginarão os meus antigos troncos como braços onde crianças brincaram e amantes tatuaram os seus nomes.
Se outra vida tiver desejo ser árvore e viajarei mais tempo que a minha inicial forma humana. Serei uno no mistério e natureza, serei enfim sereno. Estarei à mercê dos planos de Gaia, ou refém dos caprichos humanos. E mesmo que morra de pé, ou em cinzas retornando à terra que me gerou, talvez, se outra vida houver, renascerei árvore.
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oásis
Assim são os oásis, breves geografias de salvação, isolados instantes de luxúria. Somos amantes, apertados numa única hora de azul, fervorosamente abraçados como raízes do mundo.
A abóbada em cinzas clama novamente a espessura agreste da partida. Os véus de bruma choram pelo barco cruel da nossa separação.
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a erosão do coração
Encontrei-o empedernido e pálido entre dunas de uma praia abandonada. Apresentava a face com arestas perdidas, como se a sua superfície ausente de texturas revelasse o tempo atroz que elimina rugas e história para criar outra narrativa crua sem expressão de luz. Neste lugar sem nome ou relevância, prostrava-se inerte e caído, de olhar fixo num horizonte inexistente. Perante silêncio de glaciar escandinavo, partilhámos a mesma desconfortável eternidade de um outrora valoroso vulcão tristemente extinto. O único som que nos envolvia era o sopro zangado do vento norte. Com mil cuidados ousei pegar-lhe, na tentativa possivelmente vã, de um salvamento às intempéries do desassossego.
Guardei-o numa caixa preenchida de algodão, uma macieza que se imagina nuvem de sonho e colo de amante. No início de cada estação tomei o hábito de o arejar para retomar vibração perdida, para ambos sentirmos se as (in)diferenças dos dias alterariam a esperança da matéria. Unidos por mudos gestos com errâncias de alquimia, abraçamos o calor que inunda um peito aberto qual varanda do corpo. E, mirando o voo das andorinhas, deciframos palavras que possam esboçar poema que devolva o rubro batimento da vida.
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