Text
"Seus bisavós nasceram em Juiz de Fora, Minas Gerais. Seu bisavô era motorista, trabalhava na estrada com negócio de mudança, a sua bisavó foi para o Rio já separada dele, eu nasci lá. Ela trabalhava como empregada doméstica, mas depois de um tempo aprender plisé e trabalhou em uma tinturaria, fazia isso nos vestidos das moças. A minha mãe se tornou especialista nisso", conta a minha avó em uma conversa que tive com ela meses atrás. Quando pergunto sobre meus bisavós, se os dois eram negros, a minha avó afirma que sim, mas emenda que alguns primos e primas dela se casaram com italianos e franceses. Minha avó também casou-se com um homem branco, meu avô Luiz, que era filho de portugueses. Tenho sustentado as minhas buscas familiares através dessa oralidade: corpos e rostos ancestrais, territórios e mundos, até então desconhecidos pra mim. Chega um momento em que a memória se esbarra na invisibilidade, e é nesse instante que me permito (re) imaginar passados, presentes e futuros possíveis.
0 notes
Text
Vó, As noites tem sido agitadas com sonhos que me lembram algumas passagens do livro Kindred, escrito por Octavia Butler. Estava em um campo de refugiados, era final do dia e o céu tomando suas cores escuras. Naquele momento também chegara uma mulher negra com sua cria, lembro-me dela deitada em uma rede e a criança andando pra lá e pra cá. Mas, em um momento em que o meu corpo tomou distância do dela, só foi possível escutar um tiro. A criança já estava pra dentro de uma casa tipo abrigo, e ela, dada como morta, me aproximei para constatar toda aquela tragédia, um tiro na cabeça, fatal... até que a moça abriu os olhos, gritei bem forte - chamem a ambulância, ela está viva! Os tempos se misturavam e o meu corpo tremia na cama. Noutra noite, me vi em um barco com outras mulheres negras, nosso corpo suado à deriva no azul escuro, não se sabia o que era céu e o que era mar. O barco era tão pequeno que não dava pra se mexer. Meu corpo tremeu na cama, igual no dia anterior, mas dessa vez eu despertei com uma sede imensa. Em todos esses sonhos minha pele era mais escura, igual a tua vó, meu rosto expressava mais idade e meu corpo tinha uma força que até agora sinto em meus braços. Lembro muito de uma sensação de não-lugar e de um azul cintilante misturado com suor.
0 notes
Text
"Seu avô era muito mulherengo, ele bebia, gostava de me bater... Depois que nos separamos, quando ele ia visitar seu pai (o caçula), ele achava que podia me bater. Em dia de chuva, ele andava com um chapéu e uma bengala, rondava a casa, queria me bater.", trecho de um relato da minha avó Wilma, a primeira vez que conversamos sobre muitas coisas da vida e o meu avô, pessoa que não tenho nem ideia do rosto. Minha avó começou a namorar com o seu Joel, padrasto do meu pai, o interesse inicial dela era se proteger e meter medo no meu avô para não apanhar mais. Meu avô morreu no dia 31 de dezembro de 97 ou 98, ele teve outras esposas, qual também praticou violência doméstica, e teve outros filhos. Seu Joel e minha avó continuam juntos, o padrasto do meu pai foi ourives, mas perdeu a visão devido a catarata, lesão ocular que causa opacidade do cristalino. Minha avó nasceu em Minas Gerais, radicou-se no Rio de Janeiro e foi enfermeira, trabalhou no hospital por muito tempo. Frequentou o candomblé, sempre foi de fazer simpatias e relatou que a minha bisavó era benzedeira (Joel também fala que a minha avó tem o poder de curar). Já teve muitos bens materiais, assim como seu ex companheiro (meu avô) e o atual companheiro (Joel), mas também viveu muito tempo na miséria, e isso foi muito recente, antes dela morar em Sorocaba e meus pais passarem a cuidarem deles. Falar dela não é fácil, mas em algum momento da minha vida percebi que sem escutá-la, independente da intenção de suas palavras, não conseguiria ir pra frente. Minha linhagem paterna carrega muitas dores, feridas, questões que fogem do meu entendimento lógico e outras pelas quais limpo para curar e seguir.
0 notes
Text
Pai, Esses dias sonhei que você recebia uma carta, nela tinha a informação que você deveria ir até um lugar específico retirar uma encomenda. Quando você chegou lá, pai, encontrou os militares e uma caixa de coisas, dentro dela havia uma faca grande e reluzente toda de metal e aquele objeto, também conhecido como arma, fazia seus olhos brilharem. No sonho, eu tentava entender o motivo da faca e me espantava por você encontrar os militares. Ao acordar, lembrei que dias antes tinha sonhado com Exu, o orixá da comunicação, do movimento. Exu, o mensageiro. A faca, por vez, não saía da minha cabeça e isso me fez novamente pensar nos orixás, dessa vez nas armas. Encontrei Ogum, o senhor do ferro, da guerra, da agricultura e da tecnologia. O candomblé, por muito tempo foi seguido pela vó, mas aqui em casa sempre esteve muito próximo da linha entre o bem e o mal, tanto que hoje ela desvia a conversa. Sabe, eu tenho pequenas imagens na minha cabeça, do pai de santo que morava em Piracicaba, dos rituais no Rio de Janeiro, das oferendas com pipoca em cima do muro das casas e o quanto tudo aquilo fazia meus olhos brilharem, mesmo sem entender, como andava muito livre por lá sempre era atraída pelos tambores e pontos. Só quero que saiba que isso tudo voltou a bater na porta, e que dessa vez, eu decidi abrir.
0 notes
Text
O silêncio sempre foi a base para a sobrevivência da nossa família. Em alguns momentos, o não verbal dava a sensação do invisível. Sempre foi assim, tudo engolido pra dentro, e se tentar falar o choro engasga o raciocínio. Nunca nomeamos certo tipos de coisas em casa, mas isso não fez com que essas coisas não nos atingissem. Elas sempre moraram ali, não eram transparentes. Na pré adolescência, por exemplo, percebi que os meninos gostavam mais das meninas de olhos verdes ou azuis e dentro da minha cabeça funcionava assim: se eu ficasse meia hora por dia olhando para o espelho meus olhos mudariam de cor. Não mudaram. Mais pra frente eu resolvi ir pra escola sem óculos para que os outros pudessem perceber que a minha visão míope cor castanha também tinha a sua beleza. Ninguém percebeu. Depois foram os cabelos que deveriam ser alisados, o nariz que era largo demais ou como diziam - pelo menos é mais branquinha. Você também é fruto de um relacionamento interracial, camadas e mais camadas de experiências e traumas que se cruzam e bifurcam em medidas diferentes. Nunca fomos de falar diretamente sobre esse assunto, mas o nosso corpo sabe. E tudo o que outros corpos, que já nascem com a certeza de que podem existir e andar pra frente, falam - dói. E ontem doeu mais que das outras vezes, e você me acolheu dentro do que foi possível. Penso que, o exercício de nomear, primeiro causa um efeito hemorrágico pois dispara um gatilho infinito de situações que nunca foram verbalizadas, depois vem um tipo de fúria e abre-se um portal onde o silêncio não mais conforta, faz morrer.
0 notes
Text
A síndrome do túnel do carpo provoca dormência, formigamento e é causada principalmente por lesões relacionadas a esforço repetitivo. Eu sempre chamei ela de "carmo". Essa síndrome que te resguardou do lugar militar me lembra ao nome científico da carpa: Cyprinus Carpio. Penso que, talvez seja seu corpo peixe te chamando novamente para o lugar de origem, e se tem túnel no meio é um portal. Sua ancestralidade. Temo em perguntar se o esforço repetitivo foi pela arma - foi? E aí um lampejo vem e me lembra que eu já vi uma algema, assim como a munição, o cassetete, a tua farda de segurança no cabide engomada com uma mistura de Maizena, os golpes de defesa pessoal que você me ensinou na adolescência. Olha minha filha, se você fizer assim a pessoa não consegue se mover, você dizia e eu rezava pra nunca precisar usar os golpes físicos. Você sempre quis que eu lutasse Karatê. Tua vida mudou depois disso, você fica mais em casa e ocupa afazeres domésticos, mesmo assim ainda demonstra um saudosismo quanto a esse lugar que teu corpo ainda deseja reocupar. A sua mão te trai e você quebra todas as alças das xícaras, as vezes o corpo todo se desfaz e você sente dor. Seria suas mãos uma espécie de barbatana? Eu vejo que sua maior força está nesse yin que os homens não reconhecem. Nem eu. Me sinto feliz quando você chega mostrando uma muda de samambaia com delicadeza e amor, a nutrição e o universo da água que existe dentro de você. E quero que saiba que sempre preferi ser nadadora do que aprendiz de golpes fatais.
0 notes
Text
Aos poucos as coisas se clareiam dentro de mim. Eu lembro dos atravessamentos letais: do cassetete atrás da porta e das munições na gaveta, o encontro que tive quando criança. Não sabia que era mortal. Agora, mulher, me encontro novamente. Mãe me disse que tudo que tinha ligação com o teu trabalho virava presente, e aí eu entendo a munição em formato de coração, as fotos do exército com declarações de amor no verso e daquela outra foto na praça Mauá com a Marinha ao fundo.
Você, ainda desconfiado da minha intenção, me deixa realizar as primeiras imagens. Minha câmera é munição, entendo o ato fatal, tem um disparo nela que nem a bala trinta e oito milímetros. No final, eu também virei uma atiradora e tenho gestos memorizados em meu corpo. Pra mim, o senhor é um peixe agora, mesmo que a carcaça seja dura pelos sentidos que alguém gritou, e as munições: anzóis. Sabe, eu rezo em silêncio pelos meus tios mortos pelo atravessamento letal. Sinto que, em tese, nasci pra varrer as dores da minha ancestralidade. Clamo por uma beleza divina, por algo que se rasga em luz e não em sangue.
[ a imagem da bala ainda não saiu da minha cabeça ]
0 notes
Text
Com a intenção de focar nos gestos e nas posturas militares, ao pesquisar fotos de soldados negros no Pinterest, me deparei com a imagem e história de Nimrod Burke, veterano da guerra civil americana (1861-1865). Burke serviu como primeiro sargento da companhia F, 23° regimento. Durante a primeira parte da Guerra Civil, até o final de 1862, a política era não recrutar afro-americanos. Sendo assim, os afro-americanos envolvidos na fase inicial da Guerra eram trabalhadores civis ou funcionários de alto escalão da União. Depois que homens negros foram autorizados, mais de 200 soldados afro-americanos de Washigton se alistaram no Exército da União. Depois de ler sobre a história do sargento Burke, pesquisei na internet sobre os negros nas Forças Armadas, quis compreender um pouco de como isso funcionou no Brasil. Segundo Sionei Ricardo Leão, jornalista, pesquisador e diretor do documentário Kamba'Race ("lamento de negro" em Guarani), o Exército Brasileiro contou com apenas cinco generais negros, apesar da imensa participação deles no contingente total. Outra informação vem do jornalista Leandro Fortes, ele afirma que, apesar de existirem muitos negros nas Forças Armadas, eles ocupam postos subalternos. Além disso, há um mito de que a ascensão é democrática. Todas essas informações são de 2006, não consegui encontrar algo mais recente, pelo menos até o momento.
Adentrando mais um pouco, e até mesmo lendo mais sobre o documentário do Sionei, esbarrei com a Guerra do Paraguai, onde se argumenta de que o Exército Brasileiro, naquela época, era formado por negros escravos alistados compulsoriamente. No artigo "Comprando soldados: uma estratégia de recrutamento para a Guerra do Paraguai" de Denise Moraes, ela indaga que o Império do Brasil criou uma Lei que permitia a alforria de escravos em troca de serviço militar – e dinheiro para o “seu senhor”. Em outros artigos e pesquisas que encontrei na internet, quais ainda preciso me debruçar com calma e atenção, o entendimento dessa situação vem pelo viés do heroísmo, nisto é utilizado a referência do "Corpo dos Zuavos da Bahia" e do "Batalhão Uruguaio Florida". Nas contradições que permeia esse assunto, considerando as informações acima e que os militares trazem a carga de heróis da pátria, questiono (anotações que fiz no caderno de pesquisa) - Por que essa pátria mata os negros? Qual é a pátria dos negros?
0 notes
Text
Ontem depois da minha mãe ter encontrado a xerox do Certificado de Reservista do meu pai, e ainda muito atravessada pelo texto 'Memória e Memória Coletiva" escrito pela Zilda Kessel, onde ela descreve que a memória individual e coletiva se alimentam e têm pontos de contato com a memória história e, tal como ela, são socialmente negociadas, resolvi pesquisar acontecimentos de 08 de junho de 1964, dia do nascimento do meu pai. Encontrei três ocorridos que me chamaram a atenção, quais nomeei de "pequenas conexões":
1 [ nesse mesmo dia/mês/ano JK, ex-presidente do Brasil e senador eleito em 1961, teve seu mandato cassado];
2 [ também ocorreu a segunda marcha da Família com Deus pela Liberdade, a manifestação foi em resposta às suposta ameaça comunista ];
3 [ em 64, meses antes do meu pai nascer um golpe militar foi deflagrado contra o governo de João Goulart]. Pesquisar sobre os corpos negros que ocuparam lugares militares como profissão na minha família, não é algo tão prático e muito menos inofensivo, pois tem uma parte de mim que cai no juízo de valor. Porém, tenho feito anotações e observações, fico bem perto, mastigo e engulo e depois, em outros momentos, crio uma distância para que aquilo faça digestão.
0 notes
Text
as vozes dos peixes
part. 1 - dentro da minha garganta moram as vozes dos peixes antigos
part. 2 - eu quero esvaziar a minha garganta até nascerem outros peixes em mim
0 notes
Text
tentativa n°1 de atravessar um peixe
Sonhei que você estava sentado em uma cadeira e teus olhos desconfiavam de mim. Tudo era verde e azul, cor das suas duas moradas: o mato e o mar. Me sentia febril, feito aquele outro dia em que vomitei peixes. Naquele outro dia em que pari você. Ó céus!!! Tudo naquele sonho era tão granulado e você abria e fechava os olhos com lentidão. Fugia de mim. Eu, antes que tudo cintilasse feito a tua pele, sussurrei aos ventos e mares que te sentia em imagem, desejei te atravessar.
0 notes
Text
o dia em que eu pari um peixe
Das minhas mãos escorreram água salgada e da minha boca sairam peixes enormes. Um deles era meu pai. Pari meu pai entre meus dentes e o lavei com a água do mar. Desejei cura para aquele peixe que já nasceu velho. Lembrei-me das mãos, agora nadadeiras, que já não atiram mais. Meu pai voltou a ter escamas cintilantes, mesmo assim, seu corpo peixe carrega marcas de um homem-cavalo. Fechei os olhos e continuei lavando seu corpo escorregadio até que tudo pudesse ser mutável como vapor. O eflúvio das coisas que não tem contorno definido. Tudo o que sustentou ele na terra foram os pés fincados no chão e a visão dos detalhes, mas agora o tempo era dos afetamentos e um bocado de sal deveria atravessá-lo.
0 notes
Text
Meu avô, ainda sem rosto dentro de mim, era branco e filho de portugueses, ele foi bombeiro e escrivão judiciário. Casou-se com a minha avó, uma mulher negra radicada no Rio de Janeiro, e teve 9 filhos neste casamento, dois faleceram ainda pequenos, três foram mortos por arma de fogo e um devido a AIDS. Meu pai, um homem negro falante na contação das coisas práticas e silencioso diante da sua própria memória, já foi salva-vidas, serviu ao exército e exerceu a profissão de segurança até descobrir que tinha uma doença que tirava a sensibilidade de suas mãos. Na época, apesar do meu pai nunca trazer a arma pra casa, o cassetete sempre esteve presente na nossa morada. Desde que passei a escrever textos e escanear fotos antigas do meu pai, comecei a refletir sobre os corpos negros que ocuparam lugares militares como profissão em minha família. O corpo negro militar, vivo e morto pelo mesmo sistema.
0 notes
Text
Meu pai e eu sempre fomos próximos e distantes ao mesmo tempo. Talvez porque o próximo que eu espero não seja o mesmo que ele exerce, aos poucos tenho compreendido que as palavras e os gestos tem um tipo de multiplicidade na própria existência. Numa tentativa de aproximação pelos meus meios, perguntei ao meu pai a palavra favorita dele. Silêncio. Não a palavra silêncio, e sim, o gesto. Subi a escada frustrada, até que me lembrei que meu pai é do tipo de pessoa que ama peixe. Desci e perguntei pra ele o nome do seu peixe favorito - qualquer peixe que seja do mar, me respondeu. Claro que, eu esperava um nome, um peixe específico. Porém, essa resposta já é início de uma ponte, e o caminho é o peixe. Isso me fez consultar ligeiramente sonhos antigos, do vômito com os peixes e de quando a voz do meu pai apareceu dizendo que não era pr'eu ter medo pois estávamos caindo no mar. Falar do meu pai, é também falar da energia yin. É acessar o sensível e a intimidade sutil. O silêncio. Difícil pra mim, essa pessoa nomeadora de coisas.
1 note
·
View note