#prosa zunai vol4num1
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revistazunai · 6 years ago
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Manuscritos de Alexandria 1: Claudio Rodrigues
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Epifanias pela dor
FRANCISCO (1181-1226)
A cruz entalada na garganta. Luz por todos os poros. O corpo são lanças que o transpassam. Uma só ferida. E doer e sangrar. Amanhecer pela dor. O ser todo escâncara.
Eu me libertarei! O todo amor. Tudo todos. Tudo muito. Solidão.
Não dizer o já dito. A língua se agita. A palavra é Tua. E tudo já foi feito.
Amanhece.
Abriram-se chagas em meus pés e mãos como se eu fosse o crucificado. Os ombros doem-me como quem o céu sustém. Abro meus braços em cruz e me entrego aos prazeres da dor. Tuas chagas abertas nos pontos cardeais do meu corpo. No limite do ser. Quando sou pedra, sou raio, sou língua de fogo, sou ninguém. Multidão.
Por que é preciso tanta dor, meu Deus? Por que tanto prazer?
Porque é preciso compreender.
O quê?
O quê. O isso. Francisco!
De braços abertos Cristo somos todos os homens.
TERESA (1515-1582)
O mar encapelado, línguas azuis, verde-douradas, brancas, para cima aos milhares, navios luzem à distância, de quaisquer terras distantes, em uma terceira margem, ao mar adentram. No coração do oceano, como perdidos, à Nova Espanha se dirigem. Meus irmãos, Hernando, Rodrigo, Lourenço, Jerônimo, Pedro e Antônio vão dentro deles, cada qual com sua espada e seu mosquete para levar a palavra de Deus. Não como vigários. Não pregarão. Serão soldados do Divino. É sua ação e exemplo de cristãos que se quer levar às novas terras de além-mar. Para que as descobrimos, meu Deus, se não para semear Tua palavra? Para isso é preciso abrir-lhes um sulco e regar com sangue a semente.
Cascos de navios como cascas de nozes sobre as águas, pequenas e frágeis vistas à distância, aos olhos do cosmos e de Deus, à mercê dos elementos. Para enfrentar os elementos é preciso uma alma intrépida e atrevida que desafie o medo. É necessário vencer a si mesmo. Os elementos somos nós mesmos a gesticular com violência colocando em perigo nossas eternas almas. Mas nossa é a vontade de Deus.
Ao longe o mar cintila. É lá que minha alma está e meu corpo gostaria de estar. No limite. No coração da aventura. Sulcando o oceano, brandindo espadas, cravejando de sangue o peito do inimigo com a explosão do meu mosquete. A lâmina de fogo da língua de um anjo doma as terras de além. O sopro de Deus sobre as coisas. Mas, estou em terra firme, se é que firme a terra é. E entre paredes. Minha missão é de pedra e com ela erguer Tua morada. Foi-me dado fundar conventos, esta é a minha aventura. Agarrar-me às pedras, subir com elas paredes, fazê-las chegar ao céu. Desmesurar-me neste afã. Desafiar a Deus para servi-lo.
O mar, onde meus irmãos estão, e inteira eu gostaria de estar. Em breve, um dia as irmãs em Deus seguirão os caminhos abertos por eles e novos mares e terras se abrirão para nós. Desbravaremos com eles terras mais novas ainda, que desoladas serão reabitadas. Desabitaremos o planeta se for preciso para conquistá-lo. Um país tem que tomar o mundo de assalto. A terra é pouca para um país.
Para levar Tua palavra é preciso antes apossar-se da carne alheia e tomar a alma para domá-la. Como Deus faz conosco. Não teve pena nem de seu filho na cruz e não o livrou da morte infame entre ladrões. Pela ousadia de ter nascido homem, morreu como cão.
Ó, lancetado coração! Eu que tenho pecado tanto e tanto errei nesta vida e tanto te amei com a força de meus pecados e erros. Eu que sou voltada à loucura. Eu, a tua pecadora, sou toda entregue a ti.
Toca meus seios um anjo. Um anjo só asas adeja. Abre meus braços em cruz e penetra certeira uma seta. A carne diante do espanto sacrifical. Um espiral se abre em minha testa em voluta infinita.
Suave martírio de teus laços. O fogo de teu abraço docemente fere-me a alma. As bodas contigo já começaram.
FRIDA KAHLO (1907-1954)
Tudo pela causa. O amor pela causa. A dor. Torturada constante. Como se amada por um deus. Toda entregue à causa. Só ela existe. E o amor. Ah, o amor! É tudo o que existe. O amor é a própria causa.
Fecundada de cores. Represento a história do meu corpo.
Eu te amo. Meus lábios fecham esta palavra. Cada gesto cria uma aurora. É sempre manhã. Amanhã tudo luz.
A causa é o amor. O amor da carne. A carne ama como se alma existisse. A humanidade é um deus.
O corpo ama a vida. A vida precisa de um corpo. Anima um corpo a vida. Mistério. A arte e o amor irão algum dia deslindá-lo? Mas para quê? Não bastaria vivê-lo?
No ar um verso há que um poeta resgata. A pintura é um grito a custo revelado. Procuro a paisagem no retrato. Sou todos os seres que me pintam diante do espelho. Não há Deus. Não há alma. Só há arte. E o amor. Sem amor não há arte ou causa alguma. Só o amor importa.
A causa é o povo redivivo. A sociedade renovada. Os direitos que se igualam. Deveres e haveres distribuídos entre todos. E tudo é de todos e todos são um. Mesmo que custe mais de um milênio de lutas para que se realize. O homem pequeno, diante da vida se engrandece. Um grão frente ao mar esconde o universo. O coração no peito aberto. Um dia seremos isso. Mas é preciso lutar.
Amar não crendo em alma ou deuses é um desafio. Amar por amar. Ser corpo. Alma não precisa. Não precisamos de deuses. Precisamos acreditar em nós mesmos. Se Deus ou deuses houvesse é isso que esperariam de nós.
Perder a vida assim tão cedo. Perder a morte na velhice. Perder a experiência de ser velho. Por mais dura e seca e só. Perder um pedaço de mim mesma que seria. A experiência de outro eu. O meu próprio envelhecer. O ver um mundo novo nascer de novo das cinzas do antigo.
Ao morrer perdemos a fração de eternidade que nos cabe do universo? O universo morre conosco? Nós nos entregaremos novamente ao nada de onde viemos? Mas por que deixamos por algum momento de ser nada? Por que fomos compelidos a ser? Por que este esforço da natureza por nos tirar para depois nos devolver ao nada? Que somos nós desabalados de volta rumo ao abismo do qual saímos?
Amo um pintor de paredes. Eu, uma pintora de telas. Ele pinta murais. Eu pinto a mim mesma, a mesma paisagem que sempre se renova. Um umbigo a girar. Faço o filme de uma vida. No meu corpo habita a humanidade e um panteão de deuses ilimitado. Um lúcido delírio. Línguas de sol sobre nossas cabeças.
Coroada de flores. Eu toda flores. Como um arranjo. Eterna noiva. Leio um livro. Pinto um quadro. Sorrio meus lamentos. O corpo floresce. Primavera-se enquanto eu morro.
Dilacerada.
O mural de meu marido. Meu homem. O meu povo. A sua carne e o seu sangue. Um prédio se ergue sobre nós. Entre nós. Por nós. De dentro de nós. Feito por nossas mãos. Mas não o habitamos. No mural, sobre o prédio, uma antena dita suas regras. Pedra a pedra nós trouxemos. Tijolo a tijolo o erguemos. O espaço da parede é constelado. O aqui e o ali. O antes e o depois. O agora e o outrora. O mais próximo e o mais ao fundo. Um ponto de mistério. O ponto de fuga submetido ao delírio de uma elipse. O outro revelado. A câmara-clara no quarto escuro. O espaço se desvela múltiplo. A página em branco preenchida por lacunas.
Só a dúvida fecunda.
A mão do pintor na parede nua. Carrega uma tocha a figura da pintura. A chama das tintas. De dentro do mural a mão arranha a realidade. Arranca dela marcas de tinta. Meu coração estremece. A espátula na mão do pintor aponta a ferir-me. Abre uma exceção em meu peito. Como um espelho.
O pintor tem uma canção assobiada. De lado mastiga um talo de capim. Cospe nas mãos para masturbar-se. E ardem seus olhos como os de um tarado. As meninas-dos-olhos excitadas.
Cada cor me fere. O vento venta. A chuva chove. O luar escorre. O suor e o sangue.
As meninas-dos-olhos, agora exaustas, cochilam. Bocejam burocráticas à lembrança das velhas aventuras. As pálpebras caem. Os cílios se encontram assustados. Minhas mãos se soltam distraídas. A pose se desfaz.
Ele morde a maçã de meu rosto e me oferece um pedaço.
Da dor escapa um sorriso. Delírio doce a flor escarlate. A rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa de Gertrude e o verde que se quer é o de Lorca. As mãos tintas das tentações. Ou vender-se a alma ao demônio ao entregar a arte ao mercado? Do lado de cá da pintura. O lado de dentro do espelho. O sonho de névoa.
A causa é a arte. A arte pela arte. Ou a arte pela causa. O que, no fundo (e na forma), dá no mesmo. A arte é a causa. E a causa é o povo. Mas, o que mesmo importa é o amor.
MISHIMA (1925-1970)
Sob a luz da janela, em uma sala em penumbra – dentro do filme – o menino de coxas grossas dedilha um livro de capa dura com representações das pinturas dos mestres do Ocidente. Abre uma página ao acaso e se depara com o santo.
Sebastião crivado de flechas – os flancos do jovem forte sangram – coxas de homem furadas – o corpo cravejado de estrelas vermelhas – o sexo pulsa – a virilha – homens armados – homens de flechas – homens de lanças – línguas de fogo, ardentes anjos terríveis – flores de sangue exalam aromas excitantes – martírio, martírio, martírio – o corpo jogado às feras – homem e homem em luta sobre a cama como anjos que se enfrentam pelo amor divino, cheios do Espírito, cheios de espanto, cravados punhais. O menino bate uma punheta.
O corpo mudo escreve o homem. O corpo nu se escreve. Um livro. A saga de um corpo. Um conjunto de corpos. Corpos feitos de palavras. Signos. O corpo significa. O homem. Maduro o livro se publica. O corpo do livro nu aberto.
Amadurece o corpo. Abre-se e fecha-se a obturadora rapidamente. A imagem é capturada. A cópia da cópia é perfeita. É um original. E será reproduzida a imagem do corpo em quantas outras cópias forem necessárias.
Representa um samurai de flanco ardente. A sunga de pano branco. A braguilha aberta como se preparado para o coito, enquanto as mãos seguras empunham o sabre para a autoexecução.
A outra foto é o santo. O flanco nu. Cravejado de flechas. Os olhos esgazeados ardem de desejo pela dor do próprio corpo exposto.
O sabre penetra o corpo. Fura o fígado. Rasga os intestinos na direção do umbigo. Da boca sai um urro e uma flor de sangue.
Um amigo o degola.
É um fim honrado. Antes de tudo, uma decisão. O sabre, a mente, as mãos, o corte, o âmago estrelado, a luz no centro do crânio. Tudo centelha, tudo lâmina de luz, tudo luz. Uma noz.
O abismo e a vida por um fio.
CHE (1928-1967)
Ao Lula da Silva
“Se o principal instrumento do Governo popular em tempos de paz é a virtude, em momentos de revolução devem ser a virtude e o terror: a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente.”
Maximilien Robespierre
  “Trabalho, estudo e fuzil.”
Ernesto Che Guevara
Olhos abertos. Estrelas opacas. Cintilam.
As sombras. Sobras de luzes. Os olhos opacos abertos cintilam.
A imagem de um homem se destaca e se aproxima. Olha nos olhos do outro homem. Aponta a arma. Uma rajada de tiros. A queda. Outra rajada. E está morto.
A morte exemplar. O Cristo redivivo. O corpo em uma urna de vidro. Sangram as feridas do deus martirizado. Os olhos estatelados. Estrelas opacas cintilam.
A morte eloqüente. A morte que se diz. A morte propaganda. Propaga a morte ela mesma. A morte símbolo. A morte metáfora. A morte mais que a morte, que é a vida.
Uma leva de homens. Uma salva de tiros. Um magote de corpos. Outra salva de tiros. As mãos amarradas às costas. É preciso que estejam rendidos e não possam se defender. Homens encostados às paredes. Homens encostados às árvores. Homens desamparados e sós sem nada a poder se encostar. Apenas o abismo em que caem.
Uma salva de tiros. Um raio de Iansã. Cai um homem em si mesmo. Um santo em desmesura.
(Tudo está suspenso. Tempo e espaço não são mais enquanto os deuses curiosos observam o que acontece. Deuses arrastam seus móveis. Resmungam, sussurram. Pigarros de deuses ecoam no alto das serras. Deuses são antigos e têm costumes antigos. Usam esporas dentro de casa. Adentram salões de palácios alheios com seus cavalos alados empunhando suas armas ou instrumentos de trabalho. Precisam dessas coisas ou não seriam deuses. E fazem e desfazem de nossas idas e vindas, chamadas vidas.)
Cabeça de santo. Raios de luz iridescentes incidem por todos os poros. Barbas de Cristo. Longos cabelos de um nazireu. Vários tiros no corpo. Abertos olhos vidrados de peixe-morto.
Olhos obcecados pelos sonhos que os corpos inventam.
A morte triunfa sobre o corpo. A humildade de um morto. O corpo cego. O corpo surdo. O corpo mudo. Todos os sentidos nulos. Mas significa. A vida do morto em seu corpo, como o morto o viveu. E dobra-se e desdobra-se esta imagem de palavras. O morto e o seu corpo.
Assombram-lhes as sombras. São corpos. Foram homens. E tombam. Um a um. Dois a dois. Quantos forem necessários. Já não enxergam. Nada sentem. Opacos olhos brilham ao sol da madrugada. Os olhos do corpo morto. Os olhos mortos do corpo. Globos arregalados diante da morte. De olhos abertos eles morrem. Espantados. Os corpos tombam. Um a um. Dois a dois. Tantos quantos forem necessários. A fuzilaria recomeça. Feridas do tamanho de um punho. Corações e outras vísceras.
Os globos dos olhos se enchem de sombras. São corpos. São homens. Tombam. Em suas retinas. Nos globos de vidro de seus mortos olhos de santo. Corpos sem nome. São números. São homens. Mãos amarradas às costas. A fuzilaria recomeça. Sacos vazios os corpos dos homens. São vidas. E sombras. E tombam. Não se pode desperdiçar uma bala. Um fuzil para cada homem e um tiro em cada corpo. Dentro dos olhos abertos do morto. À superfície dos olhos mortos do corpo. Os globos vidrados.
Grita o animal degolado sobre a pedra da ara. Ele quer viver. Contorce-se. Corcoveia. O fio da lâmina o degola. O corpo tomba. A fuzilaria recomeça. Um tiro em cada peito. A rosa vermelha no centro do corpo. Sobre a superfície dos olhos baços do homem. Deitado como santo. Inocente como santo. Inofensivo como santo. Velado como à santa efígie de Jesus Cristo morto.
Olhos abertos focados no nada. Os olhos de santo só veem o deserto. De cada poro sai um raio irisado de luz. A sua aura. Os milagres de suas mãos com o fuzil. O corpo sangra. Tomba. Dedos de fogo penetram-lhe as entranhas. Há uma dor que é de todos. A humanidade nos corpos que tombam.
Ele sabe que é preciso. (Dói escrever isso.) A fuzilaria recomeça. Corpos são jogados em valas comuns. Apagar aqueles nomes. Apagar aqueles homens e mulheres. Dizer não ao que representam. Definitivamente não! E o limite é um tiro de fuzil. Um só. É preciso economizar. A fuzilaria recomeça. Os corpos tombam. Um a um. Dois a dois. Aos magotes. É necessário para a Revolução. A revolução definitiva. A revolução constante. Para que não haja mais necessidade de revoluções.
Os olhos vazios diante do espanto. Vazios diante do mundo. Seus olhos de santo. Não veem mais. Opacos, brilham. Diante deles, mais uma vez tombam os corpos dos homens. Um coração para cada tiro. À superfície dos olhos baços. Claros lagos de águas mortas.
Um tiro é uma palavra. Um tiro é um poema. Um tiro é um coração furado. Um tiro é um dente lascado. Um tiro é um pai. Um tiro é uma mãe. Um tiro é um filho. Um tiro é um santo. Um tiro é uma boca. Um tiro é um nariz. Um tiro são dois olhos. Um tiro são duas pernas. Um tiro são dois pés. Um tiro são dois braços. Um tiro são duas mãos. Um tiro é o sexo. Um tiro é o ânus. Um tiro é o umbigo. Um tiro é o cérebro. Um tiro é uma bala a menos. É preciso economizar. A fuzilaria recomeça.
Quando se começa a morrer?
Os olhos captam o homem. À sua imagem e semelhança. A última cena começa. O cenário é uma sala de aula de uma escola pública onde está encarcerado. O homem entra com a manhã. É pela manhã que se executa uma pessoa. É dada a quem vai morrer uma última noite de insônia.
O homem é um índio. Olhares se cruzam. O deus que preside os encontros está presente. Olhos nos olhos. O homem e o homem. O que vai matar e o que vai morrer.
_Você veio me matar, jovem?
_Sim!
E o outro se engrandeceu diante do homem. Muito grande para ele era ele. A vertigem diante do outro. Diante do ato que vai cometer. O outro poderia com um movimento rápido tomar-lhe a arma, mas não o faz. Pacientemente espera.
O homem que vai matar se apequena diante do homem que vai morrer. Sente-se envergonhado pelo que vai fazer. O homem que vai morrer o observa. Parece ter pena. O todo vitória e de arma em punho treme diante do homem desarmado que ele executará. O espanto diante da morte do outro. Respirar é difícil. Seu corpo sua. As mãos que seguram a arma tremem. Os olhos se esgazeiam. O homem diante do mito.
_Por favor, fique calmo! – Ele disse. – Você vai apenas matar um homem, não vencer uma guerra.
O homem concentrou-se, deu um passo atrás, postou-se à soleira da porta, engatilhou a arma e soltou a primeira rajada. O outro caiu com as pernas destroçadas, se contorcendo em um jorro de sangue. Uma segunda rajada atingiu-lhe um dos braços, o ombro e o coração.
O que seus olhos não viram:
_Suas mãos cortadas a pedido de seu amigo Juan Coronel Quiroga e mantidas em formol durante décadas.
_Seu corpo levado para o hospital de Vallegrande.
_Seu corpo exposto como um santo morto. E as sombras dos camponeses passando em fila para o assistirem. (Eis, um cão! – Era a mensagem aos camponeses – É assim que acabarão se o seguirem! É assim que acabam os que o seguem. Continuem a ser o que são e se contentem com o que têm! Só o trabalho liberta! Não ousem levantar a cabeça acima de suas cervizes curvadas! Jamais serás além do que és!)
_Um tratorista ser acordado de madrugada pelos militares para abrir uma cova na pista do aeroporto da cidade e depois ser por eles ameaçado para que não revelasse o paradeiro do corpo e apagar-se o seu nome e a sua memória.
_A sua ossada sem mãos encontrada 30 anos depois.
_E a foto de seu corpo emoldurado por seus algozes, como os olhos de Jesus Cristo morto.
Em março de 1967, chegou à Bolívia com um grupo de 44 homens para organizar um levante como o de Cuba e impulsionar a Revolução na América Latina. Acamparam na fazenda de um militante comunista, mas foram delatados por desertores e o exército boliviano os atacou, mas em uma emboscada o grupo os venceu, sem sofrer nenhuma baixa. Um segundo ataque do exército chegou ao mês de abril, quando os guerrilheiros os venceram mais uma vez. Mas foram novamente traídos, agora por um camponês que cooperava com eles, de nome Honorato Rojas, que lhes armou uma emboscada no Vale Del Leso, onde toda a retaguarda do grupo foi morta. Vendendo-se pelos US$4.200 que a CIA oferecia em recompensa por seu paradeiro, outro camponês, de nome Pedro Pena os traiu, levando-os a uma ravina chamada Quebrada Del Churo, onde o grupo foi cercado por uma companhia do exército dirigida pelo general Gary Prado. No dia 8 de outubro, em combate, foi atingido em uma perna e perdeu sua arma. Seu companheiro Willy (Simon Cuba) conseguiu retirá-lo da linha de fogo, mas os dois foram capturados por um jovem de nome Félix Rodríguez, treinado pela CIA para caçá-lo, e levados para o povoado de La Higuera onde ficaram presos, cada qual em uma sala de uma escola pública. No dia seguinte, um rapaz de 24 anos, de nome Mário Terán, também treinado pelos norte-americanos, a mando do coronel Joaquin Zenteno Anaya e do vice-presidente da Bolívia, o ultra-direitista René Barrientos Ortuño, os executou.
No povoado de La Higuera, departamento de Santa Cruz, na Bolívia, há quase dois mil metros acima do nível do mar sobre a cordilheira dos Andes, em pleno coração do século XX nasceu um santo novo. O santo vermelho. O santo marxista. O santo do povo. O povo que não sabe o que é direita ou o que é esquerda, mas sabe que é povo. E assim como todo povo, sabe que pode erigir um santo novo assim que os velhos se desgastam. E a imagem de um santo é sobreposta à de outro. Cabelos e barbas longas, uma história de ideais, paixões, viagens, lutas, privações e de martírio. E está pronto o novo santo, à imagem e semelhança do próprio povo: San Ernesto de La Higuera.
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