Tumgik
#eu só sinto que o Oleg precisa de uma base sólida antes
raspvtinho · 6 years
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❝ ESPELHO DE OJESED — rise and rise again until lambs become lions...
                                                         “Most people are sheep 
                                                        and sheep don't eat meat.”
                                                 — Mr. Mercedes, Stephen King.
DICA: Leia ao som disto aqui (obviamente, não é necessário ouvir tudo, mas a música auxilia na criação da atmosfera indicada).
TRIGGER WARNING: violência explícita; gore; assassinato (de familiares); tortura (de familiares)... Basicamente desgraça bem gráfica (mas com simbolismo, se você conseguir limpar todo o sangue da sua tela).
Era uma curiosidade quase infantil aquela que o acometia ao perceber a intrigante presença na sala escura. Dizia "presença", embora o objeto fosse inanimado, porque emanava tal energia capaz de enganar qualquer um sobre seu estado de consciência. Magia corria por cada arabesco dourado que compunha sua moldura, e a lâmina de vidro refletindo a imagem do jovem Rasputin parecia respirar, aspirando e expirando misticidade. Em meio ao breu, a única luz advinha das íris esverdeadas, agindo como lanternas de jade para guiar a aproximação do rapaz.
Ao alcançar a exótica peça, estendeu a mão para tocá-la. A ponta dos dedos pálidos ameaçaram fundir-se ao material do espelho, pintando as feições do soviético com surpresa e fazendo-o se afastar por mero instinto de sobrevivência. Seu toque pareceu agir como gatilho e aos poucos modificou a imagem. A cena moldou-se aos arredores em seu próprio tempo. Candeeiros apagados foram subitamente acesos por forças ocultas, iluminando paredes repletas de tapeçarias antigas com o brasão de corvos em fundo preto e vermelho; existiam olhos e ouvidos espalhados por cada trançado dos tecidos, Oleg sabia. Também sabia que ocupava posição central em um dos cômodos mais pomposos da nobre mansão pertencente ao seu clã: o Arsenal.
Embora nomeado Arsenal, o âmbito não limitava-se a guardar apenas armas. Abrigava relíquias amaldiçoadas e peças de grande valor para o sobrenome Rasputin, pequenos tesouros recuperados de uma fortuna que outrora ocupara salões inteiros. Agora eram apenas os restos da riqueza esquecida de um velho dragão. Cada qual contava um pedaço de um longo e desgastante histórico familiar permeado por hábitos cruéis e duras penas. Mas não cabia a Oleg analisar a hediondez dos objetos presentes em cena, adornando cada prateleira e preenchendo cada armário atrás de si. Ainda mais quando seu reflexo tomava vida própria e decidia brincar com os pensamentos mais frequentes de sua mente.
A sensação era estranha e o assombraria por dias. Mesmo que a imagem do espelho possuísse sua face — incluindo o sorriso matreiro guardado no canto dos lábios e a malícia dos olhos —, não obedecia seus comandos... Até porque Oleg não conseguia mover nem um dedo. Paralisado, não havia opção se não observar o ser defronte a si retirar das costas dois khanjali, arma típica da região do Cáucaso. Os cabos ornamentados em marfim e esmeralda exibiam suntuosidade ímpar, encimados por lâminas afiadas de metal entremeado por fios dourados, formando complexos desenhos que remetiam aos esquemas anteriormente vistos pelo jovem em livros sobre cultura caucasiana. Eram obviamente moldados à mão, ainda que fossem exatamente iguais em todas as suas medidas e contornos. Um trabalho primoroso executado pelas mãos de seu povo.
Um suave e traiçoeiro arco formou-se nos lábios rosáceos, gêmeos aos seus, assim como as khanjali em seus dedos de pianista. Silhuetas escuras moviam-se de maneira errática às suas costas, parecendo andar a esmo de um lado para o outro. Não eram nada mais do que vultos etéreos, sem formas concretas, mas conforme o reflexo diminuía distância com a mais próximas, os traços ganharam maior clareza.
Estavam ali os clarissímos olhos de sua mãe, de um tempestuoso azul capaz de enregelar a alma dos mais bravos homens; cabelos escuros enrolados em grossas tranças presas em um coque alto; pele pálida como a de um fantasma e pequenas rugas surgindo ao longo das feições rígidas. Era uma mulher bonita no auge de seus cinquenta anos, uma dama da alta sociedade puro sangue, tudo o que as outras senhoras desejavam ser. Quando desconfiada, enfileirava os filhos e os escrutinia um à um de forma a encontrar o que ansiava. Poderiam jurar que aqueles olhos reviravam almas e sabiam tudo o que ocorria em cada canto da casa. Aqueles olhos... Subitamente, as lâminas cravaram-se nos orbes celestes, arrancando-os do crânio com facilidade sobrehumana. O som que deixou a garganta dela não era humano. Acompanhando os rios vermelhos deixados para trás, ajoelhou-se com mãos em forma de garras, agarrando as bochechas em pânico.
Oleg, que assistia tudo fora de seu reflexo, quis gritar. Mas não conseguia. Como um sádico espectador, observou os nervos oculares cravados na ponta das adagas, as escleras vermelhas pelas veias rompidas. Por mais grotesco que a cena pudesse parecer, não conseguia afastar os olhos da lunática expressão de sua própria face ao segurar as armas ensanguentadas. Havia morte em cada linha, cada distinção, cada aspecto. Era apenas morte. Como se o espírito da própria Olga houvesse adentrado seu corpo e feito de sua mente a morada da psicopatia desenvolvida ainda em infância.
❝ — Por ser uma testemunha oculta, com o poder de salvá-lo. Ela escolheu não utilizá-lo. Que receba então olho por olho. E nós não nos importamos se acabar cega. ❞ Ao passo que as palavras deixavam seus lábios, o corpo nocauteado da mulher que anteriormente fora sua mãe derretia. A algidez da tez foi substituída por tons áureos, ouro líquido aos seus pés. O reflexo pisou nos restos dela e as solas douradas deixaram pegadas no assoalho conforme avançava para a próxima sombra. Pintou um caminho de amarelo no chão, e seus estranhos passos pareciam como os de quem sobe degraus, ainda que não houvesse escada alguma ali, apenas madeira úmida e barulhenta.
A próxima sombra era bastante parecida com a anterior, tendo apenas anos a menos em suas costas. Reconheceu-a como uma de suas irmãs. Assim como a mãe, teve alguma parte de si mutilada. Assim por diante, o show de horrores seguiu-se. Línguas pelo que não foi contado, orelhas pelo que foi ouvido e nunca relatado, lábios e dentes pelo que foi fingido, mãos pelo que não foi curado. Os espectros assumiam formas e ajoelhavam-se para receber a sentença das mãos de seu juiz e algoz, como se aceitassem o destino que os levara até ali, uma rendição muda ante o pagamento por seus pecados. Os corpos dissolviam-se em matérias preciosas — prata, estilhaços de rubi, lascas de ametista, partículas de safira. Cada qual pintava alguma parte do corpo gêmeo de Oleg, formando linhas multicoloridas de imensurável valor na pele de seu sanguinário reflexo.
Completando seu caminho de ruína, a distinta figura possuía as mangas da camisa negra puxadas na altura dos cotovelos, onde terminava o tecido e iniciava um fluxo de carmesim advindo da seiva vital roubada de familiares. Embora as pontas dos dígitos fossem prateadas, os braços estavam vermelhos, tal qual as lâminas sujismundas de suas armas. Representava uma profunda dicotomia aquela combinação de branco, preto e vermelho: as cores de sua casa, agora expostos em sua própria pele. A última sombra o aguardava, e nela Oleg discerniu o semblante do próprio progenitor.
Visarion ajoelhou-se, mas ainda de joelhos era altivo, como se o desafiasse a fazer qualquer coisa consigo, implicitamente comentando a incapacidade de sua criança. Até o momento o reflexo exibira frieza cirúrgica ao eviscerar e torturar, mas defronte o homem havia alguma coisa em si que acordara. De súbito, Oleg sentiu-se finalmente adentrar o corpo de seu gêmeo psicótico para deixar que a cena fluísse. Não era mais um espectador de fora, mas sim o próprio reflexo, com o homem que mais odiava aos seus pés, esperando por sua punição.
O sorriso mais sincero do mundo espalhou-se pelo rosto maculado de sangue rubro. Oh, como esperara por aquele momento... Quantas noites sonhara com aquele dia. Sabia que Visarion pereceria por suas mãos, mas não tinha certeza de quanta alegria poderia obter do ato. Sentia o coração batendo acelerado no peito, ansioso para descobrir.
E a lâmina baixou sobre Visarion, uma e outra vez. Em uma avaliação clínica, nenhum dos golpes o mataria, mas o fariam sentir dor intensa. ❝ — Pelas minhas lágrimas e pela minha sanidade. Eu não me importo se acabar morto... Aliás, eu vou fazê-lo desejar que assim estivesse. ❞ Quando o corpo caiu, continuou golpeando, rodeando a estrutura para cortar tendões, desfazer ligamentos e quebrar ossos. Conhecimentos anatômicos para tal não lhe faltavam, assim como o prazer atroz em observar o sofrimento de quem tanto o castigara sem motivos. A cena poderia ser classificada como cômica, se não fosse todo o sangue, porque fora a insistência do próprio patriarca Rasputin que levara Oleg a adquirir maior sabedoria sobre o corpo e seus limites. Como diziam os trouxas mesmo? Ah, sim... Visarion havia cavado a própria cova.
Uma catarse agressiva dominou cada músculo do jovem Rasputin, disparando uma carga de adrenalina violenta em seu corpo. Levou a mão escarlate aos lábios, aos estilhaços de rubi presos à boca vermelha, e espalhou sangue através do maxilar e queixo em gestos descontrolados. Barbarizar o corpo paterno em breve não seria suficiente. A devoção inserida em cada corte e pedaço de pele separada indicava o quanto tentava prolongar o momento porque sabia que sua fome era grande demais. Maior que seu próprio corpo, maior que o mundo. Não havia vingança suficiente para sustentá-lo, agora que acabara com sua linhagem de monstros degenerados.
Em algum momento, Visarion já não era mais Visarion. Ele já não era mais nada que pudesse ser reconhecido como humano, apenas uma estrutura vazia. Oleg, de pé ao lado do que um dia fora o tronco do pai, observava o amontoado de tiras de carne e músculo estriado, ofegante e sôfrego. A visão o satisfez por um minuto. Por um minuto apenas. Deixou-se cair ao chão manchado de vermelho, as pernas abertas e os braços apoiados sobre os joelhos. As khajali tombaram junto de si, flutuando no fluxo sanguíneo. Sua missão estava completada. E como ele se sentia?
Livre.
Não havia tanta leveza em seu interior desde seus sete anos, quando Olga ainda estava viva e saudável. Deixou a cabeça recair para trás e, pela primeira vez em muito tempo, riu. As gargalhadas escorreram como mel dos lábios preciosos, preenchendo o breu que o cercava, enchendo de vida o campo maculado pela morte, abrindo brechas para a luz entrar no coração vazio. Ironicamente, um ato de tremenda hediondez lhe trouxera felicidade. Era tão claro, a resposta sempre estivera ao alcance de suas mãos. Estava salvo: a extinção dos Rasputin era a única coisa que poderia salvar aquele sangue maldito.
Levantou-se. O desenrolar da cena parecera durar horas, mas foram apenas alguns longos minutos mentais. No espelho, seu reflexo ensanguentado o observava. Ambos riam de maneira maníaca, uma risada histérica ecoando pela noite. Era isso, estava claro. Tinha de livrar o mundo não apenas de seus parentes, mas também dos que seguiam seus preceitos e haviam aceitado de bom grado envolver-se nos rituais aterradores e confecções bestiais coodernadas pelos Rasputin. Todos os que de bom grado agrediam suas crianças com as pontas das botas e azarações sussurradas. O mundo precisava ser expurgado da raça pútrida.
O tempo todo seu objetivo fora garantir a ascensão dos Rasputin por outro método, outra via, um caminho que nunca havia sido usado. Eles estariam novamente nas histórias como heróis. Mas primeiro, tinha de dar um jeito em seus indesejados membros. Em sua mente ressoavam palavras ditas por seu pai, agora repetidas em sua própria voz, ditadas em um ritmo frenético e louco: "My podnimem." Sua missão na vida. Eles iriam voltar. Eles iriam conquistar. Eles iriam ascender.
My podnimem. My podnimem. My podnimem.
RESUMÃO: Aos que ficaram confusos, o maior desejo do Oleg é a liberdade. Mas essa liberdade só poderia vir com a vingança contra a família e seus membros, responsáveis por oprimi-lo e ostracizá-lo ao longo de toda sua vida. Tendo uma grande raiva dentro de si, ele não conseguiu pensar em nenhuma outra forma de se vingar se não através da violência, um ensinamento que o próprio pai colocou na cabeça dele desde pequeno a partir do comportamento abusivo e punitivo. Isso é o básico. 
As sombras negras que marcam cada membro da família representam a falta de significado que os mesmos possuem para Oleg. Ele foi criado em um campo de batalha, então nenhum dos irmãos (com exceção de Svetlana, que não estava entre os mortos -q) ou pais são considerados familiares. São apenas adversários.
Por fim, ele completa sua vingança e consegue a liberdade de tudo que esconde — inclusive sua insânia. Mas conseguindo sua vingança, como iria viver sem um objetivo? Então ele decide estendê-la para vingar todos os filhos de famílias puristas que nunca puderam se erguer contra seus pais, tal qual ele. Sua recém adquirida coragem e fome de matança o cegam para perceber que seu método não é o mais humano possível... E isso é só o começo, pessoal, esperem o bicho papão que está ainda pior e mais traumatizante.
Ainda tem um simbolismo para antropofagia, mas ssssh, vamos deixar essa parte bem quietinha.
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