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revistazunai · 7 years ago
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Periscópio 1: Um oriente além do Oriente - releituras de Haroldo de Campos
por Claudio Daniel*
Revelando o imaginário e a alquimia verbal de uma poética de circulação restrita em nosso idioma, Haroldo de Campos reuniu, em Escrito sobre Jade(1996), peças de autores clássicos chineses, como Li T'ai Po e Wang Wei, do século VII, e cantos de autores anônimos, compilados por Confúcio no Livro das Odes, ou Shi King, seis séculos antes de nossa era. Para realizar essa façanha titânica, o poeta fez uma leitura metódica dos textos originais e de numerosas versões ocidentais, como as de Ruckert (1833), Strauss (1880) e Klabund (1915), além das criativas versões de Pound, coletadas em Cathay(1915). Longe de se contentar com um exotismo decorativo e impressionista, recorrente na maioria das versões, Haroldo de Campos adotou outra estratégia de leitura, enfatizando a estrutura composicional, as imagens verbais e a rica sonoridade dessa poética densa e delicada. Como se sabe, a escrita ideográfica tem um caráter visual distinto do alfabeto fonético; é uma escrita para o olho e o pensamento, que registra o desenho da coisa e não o seu nome. Conceitos abstratos são também representados por figuras abreviadas, que se associam para compor significados. Assim, no exemplo citado por Pound, para dizer “vermelho”, um poeta do Império do Meio podia juntar os ideogramas de “rosa”, “cereja” e “flamingo”. Esta é uma escrita imagética e analógica, em que as idéias são construídas por relações combinatórias. Quanto à oralização, o chinês é idioma altamente concentrado, monossilábico, em que palavras semelhantes se distinguem pela entonação musical. A leitura ocorre da direita para a esquerda, com os ideogramas dispostos em colunas verticais. Como recriar em português esse peculiar universo lingüístico, tarefa borgeana similar ao traçado da quadratura do círculo (para usar analogia empregada pelo próprio Haroldo de Campos, em seu estudo sobre poesia chinesa, publicado em 1977 no livro A Arte no Horizonte do Provável)?
 Desde meados do século XIX, diferentes tradutores têm se debruçado sobre a questão, como o português Camilo Pessanha (que viveu em Macau) e a brasileira Cecília Meireles, que optaram pela adoção de recursos conhecidos em nossa lírica tradicional para expressar o “conteúdo” ou o substrato emocional dos poemas. O jesuíta Joaquim A. Guerra, que traduziu na íntegra o Shi King (O Livro dos Cantares, 1979), chegou a utilizar a sextilha e o verso de sete silabas para recriar a Ode 93 (“De veste alva e lenço azul”). Haroldo de Campos, em Escrito sobre Jade, caminhou em outro sentido, usando recursos avançados da poesia atual para “transcriar” ou “reimaginar” não apenas os significados, mas também os significantes dessa cifrada escritura. Diz Haroldo, em seu prólogo: “Procuro compensar os aspectos caligráfico-visuais de uma poesia (...) escrita por meio de ideogramas, adotando técnicas de espacialização gráfica da poesia moderna para dispor o texto no branco da página e usando, quase exclusivamente, a composição em caixa baixa, dispensada a pontuação habitual (...). No plano fônico e prosódico, não sendo possível reproduzir os módulos sonoros de uma língua tonal e, conseqüentemente, os esquemas de rimas do original, compenso esses aspectos através da extrema concisão (característica do chinês clássico, língua isolante) e do minucioso trabalho de orquestração das figuras fônicas e rítmico-sintáticas.”
 Adotando um repertório vocabular de alta precisão, com ênfase nos substantivos (e logo nas coisas) e um discurso mais sintético que sintático, com cortes elípticos, Haroldo de Campos recupera o pensamento plástico dessa poesia onde a visão de mundo, marcada pelo Tao e pelo Zen, se dá pela observação da natureza direta dos fenômenos, não raro rompendo com os limites da lógica rotineira. A tensão entre preciso e impreciso, presença e ausência, concreto e abstrato, real e imaginado é um tropo freqüente nessa lírica desconcertante, recordando processos da pintura ch'an e os aforismas ou filosofemas de Chuang Tzu: perfeição do imperfeito, inacabado ou desfeito, sugerindo a mutabilidade e impermanêcia do homem e do mundo. Esse choque entre o velado e o revelado atinge um alto nível de realização neste poema de Wang Wei, poeta-pintor da dinastia T'ang: 
                          montanha vazia          não se vê ninguém
                        ouvir só se ouve           um alguém de ecos
                        raios do poente           filtram na espessura
                        um reflexo ainda         luz no musgo verde
Notável, nesta peça articulada na zona fronteiriça entre filosofia e pintura, o choque entre vocábulos como montanha e ninguém, raios do poente e alguém de ecos, em refinado contraponto. Caligrafia e silêncio, movimento e repouso, paleta cromática e página em branco compõem uma só experiência estética, que não difere da jornada do ser no tempo.
 Sutileza e paradoxo são os signos por excelência na lírica de Li T'ai Po, santo ébrio taoísta, adepto de artes mágicas e alquímicas, que segundo a tradição morreu afogado no rio Yang-tse, ao tentar abraçar o reflexo da lua (anedota ou episódio registrado em poema de Pound). Sua rica imagética se assemelha a um cinema barroco, com inflexão filosófica e existencial, articulada em escalas de canto. Escrito sobre Jade registra oito composições desse autor insólito, o “Eremita do Lótus Verdeazul” que celebrou a vida e o vinho em poemas como este (que em sua configuração tradutória conta com espaçamentos, rupturas e a inclusão de ideogramas mesclados ao texto em português, à maneira dos Cantos): “entre flores uma jarra de vinho / solitário bebendo sem convivas / erguer a copa à lua lunescente / lua e sombra / somos três agora / (mas a lua é sóbria / e em vão / a sombra me arremeda) / um instante / sombra e lua / celebremos / a alegria volátil primavera! / canto e a lua se evola / danço e a sombra se alvoroça / despertos o prazer nos unia / ébrios separamos os caminhos / nós de água nunca mais reatáveis? / já nos veremos pela via láctea”.
 Imagens de Cipango
Reimaginar a poesia chinesa clássica numa língua e numa estrutura de pensamento regidos pela lógica de origem grega e hebraica é certamente uma temeridade, como confessa o tradutor (ou transcriador); o que dizer, então, do esforço de recriar o Hagoromo, ou O Manto de Plumas, peça de teatro nô escrita por Zeami, no século XV, no Império do Sol Nascente? Se o haicai é uma forma poética que dialoga com a caligrafia e a pintura, o nô é uma experiência de gesamtkunstwerk (“obra de arte total”) que une a recitação poética cantada e a declamação dos textos em prosa, a música de flautas e tambores e a narrativa dançada, com a colaboração de máscaras, indumentárias e de todos os recursos visuais de uma obra dramática. De maneira diversa do teatro musical wagneriano, porém, aqui não é a ação externa do episódio épico que causa o pathos, e sim os movimentos psicológicos, sugeridos por gestos mínimos de atuação, mímica e dança. Conforme diz Haroldo de Campos em ensaio sobre o tema publicado no livro A Operação do Texto (1976), “um simples movimento de leque basta para indicar a morte da personagem: eidética do drama, sem demagogia e sem parafernália”.
 O drama simbólico reclama a participação mental do espectador, “que encena ele mesmo as coisas”, no dizer de Mallarmé, em sua quase-epígrafe a Igitur(texto-limite entre poesia, prosa e representação). O nô, em sua forma estrita, não é literatura, mas uma ópera de câmara, uma arte que sintetiza as outras artes, sendo por isso considerado a quintessência da cultura japonesa (que, como toda “civilização realizada”, tem um “projeto geral de beleza”, uma “tradição viva” que “não deve apenas ser conservada, mas continuamente vivificada”, como afirma o poeta no texto citado). Apesar de toda a riqueza dessa confluência de códigos, só recuperável plenamente (se isso é possível) com recursos intersemióticos, a tradução criativa dos textos do teatro nô, tal como realizada por Haroldo de Campos, é uma aventura fascinante, pela grande beleza plástico-sonora dessas composições, que podem ser lidas, hoje, como poemas altamente elaborados (tal como acontece com o repertório do teatro grego, traduzido entre nós por Trajano Vieira). No campo puramente verbal, uma peça como Hagoromo traz inquietantes desafios de linguagem, pertinentes à discussão sobre as possibilidades do poema longo moderno (que motivou, em nossa tradição literária recente, a Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, o livro inacabado de Mário Faustino, Galáxias e Finismundo, do próprio Haroldo). Não se trata de resgatar uma exótica curiosidade ancestral, mas de recuperar para o debate (e o fazer) poético atual as “essências e medulas” de uma arte sutil e complexa como um brocado de seda.
 Na introdução a Hagoromo de Zeami (1993), que traz a versão integral da peça, acompanhada pelo libreto original, com os ideogramas, transcrição fonética e significados literais de cada verso, o autor assim descreve a estrutura composicional desse poema constelar: “O nô combina passagens em verso (sob a forma de canto ou de recitativo) com outras em prosa (kotoba), declamadas de forma lenta e solene, sem acompanhamento musical. O resultado geral do canto ou da entonação, para ouvidos ocidentais, assemelha-se aos modos 'gregorianos' ou, talvez, ao Sprechgesang ('canto falado') da música moderna. Os estudiosos ressaltam o caráter 'arcaico' e 'artificial' da linguagem do nô. A língua usada nos monólogos e diálogos não era a falada no tempo de Zeami, mas um coloquial de corte, anterior de pelo menos um século, vetusto, isento de qualquer vulgaridade. A parte lírica e os coros compreendiam citações de poesia japonesa e chinesa e de narrativas clássicas, em prosa permeada de poesia.” Em seu trabalho de reorquestração das cintilâncias do poemário nipônico, Haroldo de Campos optou por uma mandala verbal que não distingue a prosa da poesia, inserindo pausas e espaçamentos entre palavras e linhas, conforme a fluência melódica e narrativa, recuperando também o aspecto visual da escrita ideográfica . “Preferi, assim, adotar um verso livre, espacejado e ritmado, salmodiável, com cortes e apoios fônicos onde estrategicamente necessários para o relevo arquitetural do texto.” Utilizando recursos aliterativos, de assonância e paronomásicos, Haroldo responde em eco à prosódia do original, obtendo efeitos sonoros como estes: “Singram barcos ao largo da Baía de Miho. / Os brados dos pescadores marcam a rota das ondas”, onde ouvimos os sons especulares de b, g e ar. Em outras seções, o poeta elabora neologismos e montagens verbais de feição cinemática como “Lua clariluna” (para transcriar meigetsu: mei: clara, brilhante, e getsu, lua) ou “cor-aroma” (para keshiki: ke, vapor, respirar, e shiki, cor), renovando a estranheza e o alto poder de impacto dessa curiosa partitura, atualizando-a com as figuras e modos de linguagem da poesia mais radical de nosso tempo: make it new.
 Uma peculiaridade da poesia tradicional japonesa é o kakekotoba, ou “palavra pendurada”, que instiga o tradutor a criar inusitadas simbioses verbais, amálgamas de nomes e formas como variações de um caleidoscópio. Conforme diz Haroldo: “Trata-se de um recurso de compressão semântica e ambigüidade poética, algo como a 'palavra-valise' de Lewis Carrol e Joyce. Assim, matsubara significa 'pinheiral' (matsu, pinheiro; bara, campo), mas, ao mesmo tempo, matsu é um verbo, com a acepção de esperar.” E Donald Keene, citado por Leminski em Matsuo Bashô, A Lágrima do Peixe, faz o seguinte comentário: “A palavra shiranámi, que significa 'ondas brancas', poderia sugerir a um japonês a palavra shiráni, que quer dizer 'desconhecido', ou 'námida', que quer dizer 'lágrima' ”. A função do kakekotoba, conclui Keene, “consiste em ligar duas idéias diferentes mediante um giro ou desvio do seu significado próprio”. Fazendo um paralelo com as sagas escandinavas, estudadas por Jorge Luis Borges em Antigas Literaturas Germânicas, poderíamos citar o kenning, tipo bizarro de metáfora em que o sangue é chamado de “água da espada” e o escudo de “lua dos piratas”; porém, a comparação seria imprecisa, pelo alto grau de síntese e ambigüidade da construção poética nipônica. Para dar conta desse paradoxal palimpsesto, Haroldo criou em português soluções não menos desafiadoras. A esse respeito, diz o poeta: “A dificuldade é o sal da terra da tradução criativa. O prazer do jogo. Tenho afirmado, mais de uma vez, que em matéria de tradução de poesia vige a lei da compensação: o que não se pode obter de um modo, se consegue de outro. Assim:
                         ‘.............................o pinheiral
                        espera a primavera: cor-aroma’.
De PinhEiRAl sai esPERA e rima com PRimavERA: progressivamente, a primeira palavra vai-se projetando e ecoando na última”.
 Princípios similares de leitura crítica e recriação serviram de bússola ao poeta em seu meticuloso artesanato reimaginativo dos haicais de Matsuo Bashô, poeta-samurai do século XVII, contemporâneo de nosso Gregório de Matos. Nos ensaios “Haicai: Homenagem à Síntese” e “Visualidade e Concisão na Poesia Japonesa”, presentes em A Arte no Horizonte do Provável, encontramos preciosas amostras dessa arte combinatória de vocábulos, como a peça seguinte: “o velho tanque / rã salt' / tomba / rumor de água”. Além da fusão sonora das palavras, numa rápida sequência de eventos, temos aqui uma relação de mímese e mímica verbal em que o poema, com truques de camaleão, reproduz em seu corpo semântico o movimento da rã em direção ao poço. A síntese entre natureza e artifício, refinamento e simplicidade, que orienta as artes tradicionais japonesas, é bem ilustrada nessa pequena saga verbal, que aponta para a visão direta dos fenômenos, em sua harmonia e espontaneidade. Em outra peça de Bashô, recriada por Haroldo, temos: “marescuro / gaivotas: gritos / vagamente brancos”, onde o impacto do claro-escuro e da sinestesia é reforçado pelo advérbio, que torna imprecisa a imagem verbal, tal como ocorre na pintura sumiê, onde as figuras de montanhas ou nuvens por vezes são borradas, num quase abstracionismo. A força de expressão do haicai, que reside na ação imprevista, na surpresa, no inusitado, é amplificada ao máximo no teatro nô, que pode ser considerado, em certo sentido, como uma coleção ou sequência de poemas breves. E o coro final de Hagoromo, que celebra o vôo da tenin (ninfa do céu budista) de volta a sua morada, após recuperar o sagrado manto de plumas, pode ser lido, nessa perspectiva, como a montagem de pequenos aforismas ou sentenças, unificados pelo ritmo e pela apoteose dramática. Haroldo de Campos assim redesenhou esse canto, em timbre epifânico: “Muitos são os jogos do Nascente / muitos são os júbilos do Nascente / Quem se chama Pessoa Alva da Lua / na décima Quinta noite culmina: / plenilúnio / plenitude / perfeição / Cumpriram-se os votos circulares / Espada e alabarda guardam o país. / O tesouro das sete benesses / chove / profuso / na terra. / Passa-se agora o tempo: / o celeste manto de plumas está no vento. / Sobre o Pinheiral de Miho / sobre as Ilhas Balouçantes / sobre o monte Ashitaka / sobre o pico do Fuji / flutua / excelso / dissolvido no céu do céu. / Esfuma-se na névoa / e a vista o perde”.
  Barroco lúdico: transa chim
 Transitando entre a fúria metafórica barroca, a geometria fractal da fase concreta e a alta concentração vocabular da maquinaria pós-utópica, a obra poética de Haroldo de Campos, ao longo de seu percurso textual (iniciado em 1950, com O Auto do Possesso), dialoga com o princípio do ideograma e os recursos de representação estética da literatura do Extremo Oriente. Já em Ciropédia ou a Educação do Príncipe (1952), publicado na revista Noigandres n. 2, a disposição espacial das seções 2 e 6 recorda a visualidade ideográfica, e a montagem de termos neológicos como “cítaradolorosas” e “AUREAMUSARONDINAALUVIA” registra certa similaridade com as mesclas simbióticas da poesia japonesa. Essa relação intertextual irá se aprofundar em movimentos sucessivos de sua escritura, como em austin poems (1971), incluído em Xadrez de Estrelas (1949-1974), Signantia Quasi Coelum (1979) e A Educação dos Cinco Sentidos (1985). Porém, é no livro Crisantempo (1998) que Haroldo, vestindo a máscara/persona de um calígrafo de Cipango, dá vazão a uma série de poemas de finíssimo sabor oriental, escritos sob a égide do princípio poundiano da crítica como exercício de criação no estilo de uma época.
O caderno Yugen: Caderno Japonês, que integra essa coletânea, traz 16 poemas de reluzente beleza plástica, sobre temas da história e do folclore do Japão, além do registro de recordações de viagem ao país de Issa e Buson. Em Ryoanji, assim o poeta retrata o famoso jardim zen de pedras e areia, construído num templo de Kyoto: “o silêncio / ajardinado / sussurra um / koan de pedra / caligrafado / na areia / são / dorsos de tigre / estes / que assomam / na escuma / da areia / branca? / quinze pedras / mas você / nunca as vê / todas / imaginar / as que faltam / alegra / a mente / de ausente / presença”. Em outra bela peça, inspirada na trama de um drama nô escrito por Kan'ami (pai de Zeami), lemos: “matsukaze / moça pinheirovento / dança / no quimono roxoprata: / vestida de príncipe / gesto e leque / a amadora converte-se no amado / trinta anos para ver essa dança / agora que a vi / já posso devolvê-la / intacta / à memória de Deus”. Em contraponto com Yugen (termo que significa “charme sutil”, um dos princípios da filosofia estética desse ambiente cultural), o cadernoDíptico para Gozo Yoshimasu traz recriações de um dos mais destacados autores da atual poesia japonesa, com as palavras e linhas dispostas em colunas verticais, à maneira dos kanji. Sonho dentro de um sonho (como na parábola de Chuang-Tzu), a releitura das formas poéticas do Oriente por Haroldo de Campos (reimaginar: re-sonhar uma escritura pretérita, fazendo-a atual) soma-se a inúmeras outras aventuras verbais do poeta, como as transcriações doParadiso dantesco, do Fausto de Goethe, da Ilíada de Homero, da Bíblia hebraica e dos mais diversos idiomas, códigos e códices, em busca de uma transculturação ou reapropriação crítica do patrimônio cultural da humanidade, dentro da perspectiva de um mundo sem fronteiras. Jornada titânica, beirando os limites do impossível, que só poderia ser trilhada pelo maior poeta vivo do hemisfério ocidental. 
*Claudio Daniel é poeta, tradutor e ensaísta. Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. Colunista da revista CULT entre 2013 e 2015. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras Metálicas (2005), Fera Bifronte (2009), Letra Negra (2010), Cores para cegos (2012), Cadernos bestiais (2015), Esqueletos do nunca (2015), Livro de orikis (2015) e o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004). Como tradutor, publicou a antologia Jardim de camaleões, a poesia neobarroca na América Latina (2004), entre outros títulos. Em Portugal, publicou a antologia poética pessoal Escrito em Osso.
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revistazunai · 7 years ago
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Periscópio 2: A essência do Dao e a metacorporeidade
por Chiu Yi Chih*
Segundo a concepção da Metacorporeidade, somos uma existência total que pode se integrar com múltiplos fenômenos do universo. Assim, se movemos de maneira natural, por exemplo, ao caminharmos numa rua, seremos capazes de perceber inúmeras realidades. Contudo, se possuirmos diversas preocupações, estaremos ignorando essa relação com o ambiente e restringindo nossa percepção. Porém, se um redemoinho de vento chegar subitamente com uma vertiginosa reverberação e se infiltrar na atmosfera ao nosso redor, nosso corpo será afetado por essa mudança. Nesse momento, perceberemos imediatamente nossa conexão e interação com a realidade material. Na verdade, nossa percepção sempre esteve em relação intensa com o entorno, mas, por causa de certas limitações, ela perde essa conexão intensa e natural.
Por isso, vivenciando essas transformações, nosso corpo poderá criar com naturalidade uma ampliação de intensidades, uma profunda e intensa metamorfose. Tal metamorfose não é senão um processo natural de metacorporificação que se origina também de uma fonte de energia interna. Sendo assim, manifestamos de modo intenso essa vastidão do coração assim como experienciamos a interioridade de nossa própria natureza. A partir dessa experimentação, o que se evidencia é que não há diferença entre nós e o processo constante de mutação do universo. No fundo, percebemos que nós e toda a natureza pertencemos à mesma dimensão como se morássemos na mesma essência. Embora tenhamos alguns pensamentos, condutas, sentimentos e hábitos próprios, entretanto, se pudermos transcender essas limitações e ampliar nossa potência intuitiva, necessariamente nosso campo de experiência expandirá suas possibilidades.
Nesse aspecto, consideramos que a relação entre corpo e espírito é uma questão muito relevante. De acordo com nossa concepção, podemos harmonizar a relação entre corpo e espírito fazendo com que as duas partes se reúnam numa essência harmoniosa. De fato, ambas são compatíveis entre si e coexistem numa mesma dimensão. Somente a partir dessa experimentação a arte poderá acontecer em todo momento do processo de transformações, fazendo com que nossa existência possa de modo pleno transcender quaisquer limitações. Em outras palavras, nós e todo universo nos tornamos um só corpo que se desenvolve na mesma dimensão natural. Corpo e espírito são geralmente considerados pelos seres humanos como duas partes opostas e contraditórias, e sobretudo, acabaram se tornando duas realidades muito distintas. Em nossa filosofia estética, enfatizamos especialmente que a Metacorporeidade nos leva a eliminar certos equívocos em relação a esse conflito. Esses equívocos são baseados no fato de que as pessoas ignoram a visão da totalidade. Apesar de certos fenômenos serem parciais, fragmentados e temporários, entretanto, passando pela potência criativa da arte, eles podem ser unificados numa dimensão totalizante. Desejamos instigar a nós mesmos no sentido de transcender certas preconcepções unilaterais para que, a cada momento do processo, possamos aprofundar nosso pensamento, cultivar nosso coração e nutrir nossa natureza.
Desse modo, a visão da totalidade permite romper com certas limitações espaço-temporais. Como todos sabem, o tempo e o espaço pertencem ao âmbito da relatividade, da oposição e da contradição, e por isso precisamos romper com as resistências, os nós do pensamento e as prisões/correntes mentais. Se pudermos transcender/superar essas limitações relativas desse tempo/espaço, e ao mesmo tempo, integrar o corpo e o espírito numa dimensão de inclusividade/compreensividade, logo perceberemos que não há limites entre meu eu e o universo como um todo. Assim, como podemos experienciar esse universo inominável, informe e ilimitado? Transcender as limitações não pertence a um domínio abstrato e vazio. A razão fundamental é que essa dimensão ilimitada abarca todos seres e fenômenos. Ela não é distanciada do mundo, pois está em todas as partes, é onipresente e englobante. Essa realidade onipresente é vastíssima, mas não é mística e absurda. Existe no coração do ser humano, e por isso, possui caráter de imanência. Com efeito, é uma espécie de expansão de nossa intuição, uma mutação profunda, não é completamente interna ou externa, porque na verdade transcendeu quaisquer distinções e limites. Portanto, quando mergulhamos no processo de união entre corpo e espírito, alcançamos uma harmonia que possibilita a transcendência de quaisquer obstáculos. Além disso, essa união profunda manifesta uma energia ilimitada assim como produz novas formas e figuras. No fundo, essas formas e figuras se originam da dimensão do Informe, ou seja, originam-se da essência do Vazio. Assim, se pudermos aprofundar na essência do Vazio, então adentraremos num universo mais amplo. Isso significa que o ser humano possui uma energia imensa que faz com que possa continuamente transcender seus próprios limites. Se pudermos experienciar essa dimensão da liberdade, a dimensão do processo vigoroso e dinâmico da arte, então compreenderemos a essência da Metacorporeidade.
Uma vez que todo universo se move e se transforma ininterruptamente, pela mesma razão, nossa existência pode ser considerada como fluxo contínuo que, desde a juventude até velhice, desde o nascimento até o declínio, sofre as influências externas. Embora ela seja determinada pelas inúmeras influências do ambiente, no entanto, ela pode ainda conscientemente se transformar e moldar-se a si mesma. Não concebemos a existência como uma realidade fixa, já que a definição de realidade é uma ideia abstrata. A partir da observação dos fenômenos naturais, ficamos conscientes de que a existência se manifesta justamente naquilo que o homem faz, naquilo que ele cria, e então de modo algum é algo já predeterminado. Após tal compreensão, talvez possamos compreender que tanto a existência como a arte são uma espécie de vida experimental, dinâmica, vital e vigorosa.
Torna-se evidente a partir daí que em relação a certas atitudes, movimentos, hábitos e pensamentos rígidos, poderemos transcender a ponto de adentrarmos no estado de naturalidade. Contudo, como é possível penetrar nessa dimensão? A dificuldade consiste em que ainda não compreendemos que nossa existência não é um mero projeto predeterminado, e por isso mesmo, mal temos a consciência das possibilidades dessa dimensão do Vazio ilimitado. Na verdade, o Vazio ou o Nada foi algo que Heidegger e Laozi experienciaram, mas as suas concepções e ideias são diferentes. A razão é que o Nada de Heidegger se assemelha mais a um sofrimento negativo que leva o ser humano a sentir que a existência é monótona e tediosa. Mas sabemos também que, após experienciar esse Nada, podemos ampliar a visão no sentido de alcançar uma existência mais significativa e substancial. Heidegger diz que a existência deve se confrontar com a morte para que possa compreender a sua meta verdadeira. Se pudermos profundamente experienciar a dimensão da finitude e compreender que a existência é um processo, podemos então gradualmente transcender e superar certos impasses de modo a escolher e experienciar uma vida autêntica, assumindo nossas próprias escolhas. Nem será preciso dizer que a existência nunca é uma realidade inerte e rígida, mas uma espécie de reinvenção interminável. A implicação fundamental é salientar que o ser humano é um criador, um agente ativo, e não passivo, e por isso o mais importante é que ele tenha atitude de responsabilidade diante de sua própria vida.
Por outro lado, a concepção do Vazio experienciada por Laozi em momento algum é negativista e pessimista. A dimensão do Vazio não é senão a origem fundamental, já que todos os fenômenos do universo se originaram da realidade do Vazio e retornarão a ela. Ou seja, sem a existência do Vazio, nenhuma espécie de ser poderia ser gerada e assim subsistir de modo permanente. Aqui o Vazio refere-se ao próprio Dao que é a própria origem de nosso universo, ou seja, a fonte de energia ilimitada. De maneira análoga, nossa Metacorporeidade também manifesta uma espécie de energia ilimitada no sentido de aprofundar a dimensão do Vazio. Por isso, precisamos remover as preconcepções e erradicar certas formas artificiais e arbitrárias para que possamos transcender certos pensamentos confusos. Alguns pensamentos parecem obstruir nosso processo artístico impedindo que experiencemos naturalmente a dimensão do Vazio. Quando experienciamos tal dimensão, todos seres manifestam seu mistério, e inclusive, despertam a potencialidade intuitiva de cada pessoa no sentido de fazer com que ela possa experienciar o estado de pureza e mergulhar no Vazio profundo. A partir dessa experienciação, somos semelhantes às ondas turbilhonantes que incessantemente ondulam e mergulham no vasto oceano. Essa metáfora revela claramente que a existência humana é apenas um fenômeno ínfimo. Se uma pessoa mergulhar profundamente nesse imenso universo, ela compreenderá verdadeiramente que o universo é profundo, misterioso, vasto e ilimitado, sendo que, portanto, ela e o todo se originam de uma mesma raiz.
Nesse sentido, tornamo-nos capazes de dissolver certas limitações confusas. Seguindo as mutações naturais, consideramos que isso é um processo artístico valioso e maravilhoso. Se pudermos nos integrar com o todo e experienciar o silêncio do Vazio, então nossa existência se tornará uma metamorfose natural e plena como as águas silenciosas do rio que fluem para o vasto e selvagem oceano. De acordo com essa experienciação, a Metacorporeidade não nos incentiva para concentrarmos num único foco, mas, ao contrário, deseja ampliar nossa própria sensibilidade, intuição e consciência. Segundo esse processo de expansão, cada pessoa poderá pouco a pouco mergulhar na meditação profunda experienciando incontáveis universos. Como não há mais limites e distinções entre meu eu e o universo, é evidente que houve uma integração. Isso é muito intenso, enérgico e profundo. Cada vez mais sentimos que esse universo manifesta incontáveis e múltiplas paisagens.
Trata-se de uma vasta e infinita mutação que dilata nosso corpo na dimensão do Vazio. Isso quer dizer que podemos atravessar de modo profundo diversas realidades, evidenciando que não há barreira entre nós e os diversos mundos. A partir dessa imersão, sentiremos a dimensão do philomundus. Isso fará emergir nossa energia interior a ponto de revelar que somos seres de transcendência e imanência. Essas duas características podem coexistir numa mesma dimensão assim como remover a diferenciação entre o exterior e o interior. Nessa circunstância, vivenciaremos a existência philomúndica, ou seja, um processo de expansão da consciência. Daí por que a harmonização entre corpo e espírito conduza a um coração mais compreensivo. No entanto, isso não somente possui o caráter de transcendência como manifesta a força do corpo e do espírito, fazendo com que o indivíduo possa experienciar a coexistência entre seu ser e a natureza. Em última análise, isso revela a energia latente e infinita no que concerne às múltiplas e ilimitadas realidades. Sendo assim, essa expansão não é absolutamente uma espécie de atitude de negação ou de escapismo em relação ao mundo, porque mais do que uma visão negativa e limitada, trata-se de uma espécie de processo de coexistência.
Assim, poderemos imergir na imaginação ilimitada para criar múltiplas paisagens, seguindo a naturalidade e mergulhando na dimensão do silêncio. Concebemos que esse cultivo essencialmente não é senão um processo natural de expansividade. É natural pelo fato de não possuir ação forçosa, artificial, arbitrária e tampouco possui atitude de engenhosidade artificiosa. É uma espécie de dilatação das intensidades. Pode ser visto como um processo de devir, o que significa que está continuamente se transformando. Se passamos por esse processo de autoconsciência, então inevitavelmente sentiremos diversos estados como a água que flui suavemente mudando suas formas. Assim, em virtude de sentirmos e absorvermos inúmeras formas e figuras, então nossa arte acaba se tornando um processo contínuo de expansividade.
Por isso, a Metacorporeidade se relaciona com a filosofia estética de Deleuze. Concebemos o corpo como um processo de devir, visto que ele manifesta as potencialidades de cada ser no sentido de experienciar dimensões infinitas. Isso mostra que o ser humano possui uma potência inesgotável de expressividade. Sem dúvida, isso pode ser considerado nosso pensamento central, sobretudo, quando já experienciamos a potencialidade infinita e ilimitada. Assim, a natureza da existência humana não tem limites, e por isso mesmo pode ser vista como um processo sem uma definição predeterminada. Ela corresponde ao universo inteiro e, por essa razão, o ponto crucial reside na ideia de interdependência. A existência humana e o universo tem relações um com o outro e são interdependentes, porque são interconectados e se influenciam mutuamente. Em virtude de podermos manifestar a potência da coexistência, somos capazes de romper com certas limitações, aflições, pensamentos dispersivos, crenças, o que significa que podemos abandonar de modo natural alguns prejulgamentos. Quando pudermos superar tais obstáculos, teremos consciência de que somos uma potência infinita, o que implica que imergiremos na dimensão do Não-Eu. Esse é um território sutil e profundo. Tudo que sentimos e compreendemos passa a ser como uma estética da simultaneidade.
Sabemos que a potência humana supera certos estados de resistência e separação. Para Deleuze, o ser humano através do processo de devir pode manifestar as suas próprias potencialidades. Dilatar as potencialidades de si mesmo e expandir a sensibilidade, a intuição e a visão não é senão criar uma espécie de arte com plenitude singular. Se pudermos sinceramente expandir essa percepção estética, perceberemos que nos unificamos com a natureza, conscientes da interdependência e capazes de expandir a amplitude de potência da consciência. Em última instância, a Metacorporeidade pode ser vista como processo incessante, como se fosse um vasto e ilimitado oceano. No que diz respeito a essa experiência singular, escrevemos esse poema: “contemplo todos seres / desde o pequeno broto / até a montanha das flamas / o céu tão verde-escuro / dilata-se ao infinito / aniquila a cidade-aflição / ilumina-se de esmeraldas / luxuriosa & vastamente / vou me esfacelando / dissolvendo as barras de aço / fulminando meu próprio corpo”. Na verdade, após mergulharmos nessa dimensão ilimitada, ficamos conscientes de que somos apenas um grão minúsculo de areia.   
道的精髓与气质变化
依据『气质变化』的观念,我们是一个整体的存在,我们与一切宇宙的现象都能融为一体。因此,假设我们能自然地行动,譬如说,当我们走路的时候,我们能发现有多重多樣的现象。但是,如果我们常有太多的忧虑,因而就会忘掉自己与整个环境有一种联系而有被限制的感觉。然而,如果突然间,一阵旋风来临,带来眩晕的回荡,渗透到整个周围,我们的身体就会受它的影响。在这时候,我们就会感觉我们与物质的本体是相连的,且有感应���。其实,我们的感性本来与整个环境是有一种强烈的联系,但是,由于某些的限制,它就失去了这个强烈与自然的关系。
因此,当我们体验这些变化时,我们的身体会自然地产生一种强度的扩张,一种幽深与强烈的『质变』。这种『质变』无非是『转变的自然过程』,亦即它也来自于内在的能源。因如此,我们极大地能展现其浩瀚的心境以及体验内在的『本性』。从这种体验,很明显的是我们与整个宇宙的变化过程是没有区别的。其实我们发现了我们与整个大自然是属于同样的范围,貌似居住于相同的『本质』。即使我们有某些偏袒的思想、行为、心情而习惯,但是如果我们能够超越任何限制,把其『直觉性』扩大一点,免不得我们所体验的范围就会扩张。
在这方面,我们认为肉体与精神的结合是非常重要的问题。依照我们的观念,我们能协调肉体与灵魂的关系,好似将两个成分融合在和谐的『本质』。它们其实是相容的,而是完全能共存在同样的范围。仅仅从这样的体验,我们的艺术才每时每刻会在变化中而前进,使得我们的人生能丰富地超越任何障碍。换言之,我们与整个宇宙是融为一体,是在吻合的自然境界所演变。肉体与灵魂都是常常被人类视为两种對立与矛盾的成分,尤其是会变成两种不同的实体。在我们的美术哲学,我们特别侧重气质变化使我们能突破一些误解于有关肉体与灵魂的冲突存在。这些误解取决于人们忽视『整体观』。虽然任何现象表面上都是片断的、零碎的、短暂的,但却经由艺术的创造力使它们都能综合在一种『整体』的境界。我们想策励自己,得以超越某些偏袒的成见而在每个过程当中能深沉反思、修心养性。
既然如此,『整体观』会使我们能突破任何时空的限制。众所周知,时间与空间是属于相对、對立与矛盾的范畴,所以我们需要突破重重阻力,思想的束缚与心态的枷锁。若我们能『超越』这时空『相对』的限制,同时将肉体与灵魂综合在『全方位』的境界,那我们就能领悟我们与整个宇宙是没有界限的。那么,我们要如何才能体验这种『无名』、『无形』、���无边无际』的世界呢? 超过任何限制并非是属于抽象与空洞的范围。最根本的原因在于它还包含一切事物和现象。它不是远离于世界,反而是满山遍野,无所不包,无所不在。这种无所不在的实体是宽广,但是并不是神秘而荒谬的。它存在于人的心境,所以它是有『内在性』。它确实是一种自身知觉的扩张,凝寂的质变,它截然不只是内在或是外在,因为其实它超越了任何区分与界限。据此,当我们能沉浸在肉体与灵魂的结合过程时,我们能达到和谐的状态以及超越任何障碍。并且,这种深广的结合彰显一种无限制的能量,以便能产生清新的形状与形象。实际上,这些形状与形象缘于『无形』的境界,亦即缘于『虚无』的精髓。这样,如果我们能深入到『虚无』的精髓,那我们就进入一个宽广的世界。这就是说人有巨大的能量,使得他能绵绵不断超越自己的界限。若我们能体验到这个逍遥的境界、活跃而蓬勃的艺术过程的境界,那么我们就能领悟到『气质变化』的精华。
由于整个宇宙不停的在变动与变化,同理,我们人生也被视为是一种连续不断的流动,从青春到暮年,从出生到衰老,实际上它受到任何外在强有力的影响。尽管它被繁多环境影响所限制,但最后它还能自觉地转化而塑造自身。我们不设想人生有一种固定的『实体』,因为『实体』的定义是抽象的概念。从任何自然过程来观察,我们意识到人生展现在人所造成的,所创造的,则绝然不是固定的。理解这个道理之后,我们兴许会意识到人生与艺术是一种活跃、灵活而刚健的生活体验。
由此可知,对任何僵硬的态度、行动、习惯与思维,我们可以超越,以致于进入到自然的心态。可是,如何我们能进入到这样的境界呢? 困难在于我们没了解我们人生不仅是一种固定的计划,且不知道如何能意识到无际无边的『虚无』境界。实则,『虚无』就是海德格尔与老子所体验到的,不过他们所表达的是不同的思想与概念。原因在于海德格尔的『虚无』概念比较显得消极的痛楚,使人觉得人生是太单调而乏味。可是我们也知道,体验这种『虚无』之后,我们可以扩张其视野,用以寻找而达到更有意义与充实的人生。海德格尔说人生是要面临死亡才能了解真正的目的。如果我们徹底地透过死亡的痛楚及明白人生其实只是一个过程,我们就能渐渐地超越与突破任何困境,以便能选择与体验真实的生命,则能承担自己的选择。不言而喻,这就是因为人生不是麻木与僵硬的实体,而是一种绵绵不绝的过程。其基本的含义在提示人是创造者,是主动的,而不是被动的,所以最重要的还是人需要对自己的生命有一种负责任的态度。
反之,老子所体悟的『虚无』概念绝非是消极与��观的。『虚无』的境界无非是根本的本源,因为整个宇宙的现象都是来自于『虚无』的本体,而最后要回归于它。就是说,如果没有『虚无』,各类事物一定不能滋生而继续地存活下去。这里的『虚无』提示出『道』的本身。它就是我们宇宙的根源,无穷无尽的能源。同样,我们的气质变化也是在展现一种无穷无尽的能量,以便深入到『虚无』的境界。所以,我们必须去破除成见,消除一些虚伪、任意而人为的形式,才能超越任何杂乱的心念。某些心念好像是在阻扰我们的艺术过程,使得我们不能自自然然体验到这种『虚无』的境界。『虚无』的境界一旦被我们所体验到,于是芸芸众生都会展现其奥妙,甚至还能启示各人的『直观性』,使人们能体验清净的心态,用以沉潜于幽深的『虚无』。从这样的体验来说,我们就像似一条不断旋转的波涛,它徘徊与沉潜在浩荡的深海中。这个比喻显然展示人生只是一种微小的现象。若各人深入到浩瀚的世界,他就会真正了解整个宇宙是幽深、奥妙、宽广而无限的,从而他与总体是来自于相同的根底。
在这方面,我们可以化解一些杂乱的界限。顺应自然变化,我们认为这是很高贵与神妙的艺术过程。倘若我们能与总体融为一体而体验到『虚无』的静默,那么我们人生就变成充沛而自然的质变,如同寥寂的河水流荡在荒野的沧海。据这种体验,气质变化并不是促使我们要对一个重点特别关注,反而是要我们扩张自身的感性、直观与知觉。依照这样的扩张过程,各人就能慢慢地深入到深邃的沉思,体验出无数的世界。由于我与整个宇宙是没有任何区别与界限,当然我们就与宇宙融为一体。这是很强烈、积极与深广的。我们越来越会觉得这个世界在展现其无数而五彩缤纷的景象。
这就是广大无边的『变革』,使我们的身体被广大无边的境界所扩张。这意味我们能深深地通过多种不同的实体,显示我们与多重世界没有任何障碍。从这样体验,我们就会感受到『爱世界』的境界。这是会迸发出其内在能量,以致于显示我们是『超越性』与『内在性』的存在。这两种特征都能共存在相同的境界以及破除『外』与『内』的区分。在这样情况,我们就变成『爱世界』的存在,亦即意识的扩张过程。之所以说我们肉体与精神的『和谐性』导致一种包容的心神。然而,这不仅是有『超越性』,但它具有带来肉体与精神的实力,使个人能体验自身与大自然的『共存性』。说到底,这也是在展现潜在与无穷的能量关于无限与无数的实体。即便如此,这个扩张绝非是一种否定或是逃离世间的态度,与其说是一种消极狭隘的视野,不如说它是一种共存性的过程。
这样,我们能沉浸于『无边的想像』而能够创造繁多的景致,任其自然而沉浸在寂静的范围里。我们设想这样的修养本质上无非是『扩展性的自然过程』。它是『自然』因为它没有强制、人为与独断独行的行动,而没有巧诈的态度。它是一种强度的扩张,可作为一种『流变的过程』,意味着这种过程是永续地在变化。假如我们透过了自我意识的过程,那必然地我们就会感受多种不同的状态,如同水是顺畅地在流动而改变其形状。鉴于我们能感受与吸取多种形状和形象,从而我们的艺术就成为无尽无休的扩张过程。
为此,气质变化与德勒兹的美术哲学有关联。我们设想身体是一种流变的过程,因为它展现个体的潜藏力得以让个人体验无穷的境界。由此可知,我们就能发现了人们本身是有巨大的表达能力。毫无疑问,这也可作为我们的内心思維,尤其是当时我们已体验到无穷与无限的潜藏力。这样,人生的本性是没有界限的,因此它只可视为一种过程而没有一个固定的定义。它与整个宇宙是相应的,所以症结在于『互相依存』的概念。人生与宇宙是有关系的,是互相依存的,因为他们有相互关系和相互影响。因为我们能展现共存性的潜力,我们就能突破某种的限制,对于自身的忧思、杂念、信仰,意即把一些成见自然地摈弃。当我们能超越这些障碍时,我们就意识到自己原来就是有无穷的潜藏力,意味能沉浸到『无我』的境界。这其实是微妙而幽深的领域。我们所感受的,所领悟的都完全成为『同时性的美感』。
我们知道,人的潜藏力是能超越任何阻力与隔绝的心态。据德勒兹说,人是以流变过程能展现自身的潜藏力。扩张本身的潜藏力,扩张感知、直觉与视野无非是创造一种丰裕与独特的艺术。若我们诚然地扩张其美感,我们会发现与整个大自然融合为一,便意识到互相依存的美感而立即扩张了『知觉力』的广度。说到底,气质变化其实可视为一种绵绵不绝的过程,恰如浩瀚与无边无际的沧海。对这种独特的体验,我们就写了一篇诗:『我观众生,从小树苗,到火焰山。天挺碧绿,绵延不绝,破烦恼城,显明翠绿。将我茂盛,茫茫粉碎,融金属棒,燃烧本身。』诚然,沉浸这样无边无际的境界之后,我们就意识到我们只是沧海中的一颗微小的沙粒而已。
Chiu Yi Chih (邱奕智) é professor de filosofia taoísta do Centro Cultural de Taipei onde ensina as obras clássicas de Laozi, Chuangzi, Liezi, Huainanzi e I Ching. É professor de mandarim, tradutor, poeta e filósofo criador da Metacorporeidade (气质变化 - qizhibianhua). Ele nasceu em 1982 na cidade de Taipei (Taiwan) e se naturalizou brasileiro. Fez mestrado em Filosofia Antiga (USP) e graduou-se em Língua e Literatura Grega Clássica (USP). Publicou o Dao De Jing de Laozi (Editora Mantra-2017) em versão bilíngue, um livro de poesias Naufrágios (Editora Multifoco-2011) e outro livro de ensaios filosóficos e poemas Metacorporeidade (Editora Córrego-2016). Atualmente traduz o Clássico do Vazio Perfeito do filósofo taoísta Liezi, escreve seu terceiro livro de poemas chineses em versão bilíngue e outro de filosofia em versão bilíngue. Visite www.filosofiataoista.blogspot.com  
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revistazunai · 7 years ago
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Periscópio 3: Poesia e tradução à luz de Walter Benjamin
por Suzel Domini dos Santos*
De acordo com as reflexões de Alfredo Bosi (2010), apresentadas no livro O ser e o tempo da poesia, o desejo de transformação do mundo decorrente de incompatibilidade ideológica é um traço distintivo da poesia moderna. Do interior de uma posição crítica nostálgica, o autor enfatiza que os mecanismos do interesse pela produtividade, pelo lucro e pela propriedade privada, característicos da sociedade capitalista e burguesa, engolem, por extensão, “as almas e os objetos” (idem, p. 164). Dessa maneira, em um panorama sociocultural que promove o individualismo e a racionalização, colocando em perspectiva de utilidade e valor de troca também aquilo que é da ordem do humano, a poesia sofre um processo de marginalização cultural, e, por sua vez, desponta como resistência.
 Antimoderna – conforme o termo cunhado por Compagnon (2011) –, a poesia lírica da modernidade assume uma postura de reação ao mundo, recolhendo os resíduos da vida moderna e buscando, de maneira compulsiva, a reconfiguração ideal deles no plano da linguagem, ainda que, na maioria das vezes, a consciência da impossibilidade esteja vinculada de modo indissolúvel a essa busca. Dito de outra forma, a poesia moderna escancara as mazelas que o advento da modernização material trouxe para o homem, e aponta para a possibilidade idílica de restauração da vida em comunidade, isto é, de uma organização social pautada na comunhão entre o homem e seus iguais, na comunhão do homem consigo mesmo e, também, com a natureza.
 Segundo a visão de Walter Benjamin (1986), delineada no ensaio “Experiência e pobreza”, o desenvolvimento desenfreado da técnica, vinculado ao contexto da modernização material, modificou as estruturas do mundo ocidental de maneira profunda e irreversível. Dentre as transformações ocorridas, o autor sublinha as mudanças no modo como o homem percebe e se relaciona com o mundo, bem como no modo como lida com seus semelhantes. Nas palavras de Benjamin, o advento da vida moderna operou uma mudança radical nas ações da experiência, e tal mudança refere-se ao fato de que o homem, intrincado nas engrenagens históricas da modernidade material, sofre uma perda da capacidade de acúmulo e transmissão ou compartilhamento de valores coletivos e tradicionais. “Ficamos pobres”, afirma Walter Benjamin (1986, p. 119). E arremata: “Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’.” (idem, ibidem).
 As configurações da vida moderna lançaram as inquietações humanas no âmbito do estritamente individual e, com isso, promoveram um esgarçamento da rede de experiências comunicáveis que ligava os homens em uma espécie de entranhável comunhão. Os acontecimentos acabaram por reduzirem-se ao contexto do privado, de maneira que a experiência se fecha em si mesma, no indivíduo, e não conta com muitas possibilidades de integrar-se a um conjunto de coletividade humana. As próprias formas de comunicação características do período moderno, tais como a notícia de jornal, por exemplo, contribuem para a circunstância que Benjamin (2010) denominou “atrofia da experiência” (p. 107), no ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”. O autor destaca que os acontecimentos transmitidos pela notícia jornalística se afastam de qualquer âmbito em que se fizesse possível uma conjunção entre a experiência daquele que escreve e a do leitor, tendo em vista que o jornal se particulariza pela concisão e pela novidade no sentido mais trivial, pela fragmentação e pela falta de conectividade entre um texto e outro. Já a narração, que se apresenta como uma das formas mais antigas de comunicação, segundo Benjamin (2010), singulariza-se por promover a conexão entre o passado individual e o coletivo. De acordo com as palavras do autor, a narração “não tem a pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informação o faz); integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso de argila.” (BENJAMIN, 2010, p. 107).  
 Tomando as reflexões de Walter Benjamin como ponto de apoio, pensamos que, em um mundo marcado pela cisão de uma estrutura de comunidade entre os homens, a linguagem poética acaba por manifestar-se como um lugar possível para a integração, transmissão e permanência da experiência. O pensador alemão afirma que o processo de atrofiamento das experiências comunicáveis leva os indivíduos a um novo estado de barbárie, em sentido positivo, pois a pobreza de experiência impele o homem, no campo das artes e do pensamento, “a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.” (BENJAMIN, 1986, p. 116). Bárbaro, o poeta moderno junta com as mãos, em exercício estético, o extrato da experiência que lhe coube, e disponibiliza-a ao outro, seu semelhante.
 Frisamos, aqui, como mote de nossa leitura, um questionamento que Claude Esteban (1991) apresenta no livro Crítica da razão poética:
O dever da poesia, esse ‘dever por buscar’ cuja urgência Rimbaud não cessa de declarar, não será, na verdade, suscitar, fora de todo lugar situável, na presença restauradora do Verbo, esse lugar onde o sentido pode renascer da troca entre os espíritos e da partilha entre todos de alguns alimentos ainda substanciais? (p. 221)
 A palavra poética esforça-se por concretizar a experiência subjetiva daquele que escreve e, nesse processo de concreção, acaba por transformar o que é da ordem do privado em algo que transcende a individualidade, uma vez que a linguagem se abre e se entrega ao leitor, convidando-o a mesclar sua própria experiência àquela expressa no espaço do poema. Nesse sentido, podemos afirmar que a poesia moderna propicia uma espécie de comunhão entre os homens, já que restabelece um fio, ainda que frágil, de interligação de valores. A experiência “que se manifesta na vida normatizada, desnaturada das massas civilizadas” (BENJAMIN, 2010, p. 104) é recusada pelos poetas modernos, que se dão ao exercício de buscar e flagrar uma experiência mais verdadeira e profunda da vida moderna. A linguagem poética caracteriza-se por elaborar o signo e transformá-lo em novo-signo, e o novo-signo expressa uma verdade das coisas e da vida que ultrapassa qualquer vivência automatizada do mundo. Sendo assim, a poesia moderna manifesta-se como experiência em estado de linguagem, impondo-se como resistência em um árduo contexto no qual, conforme ressalta Benjamin, “as condições de receptividade de obras líricas se tornaram menos favoráveis.” (2010, p. 104).
 Reforçamos tal leitura com base nas ideias que Theodor Adorno (2003) apresenta em “Palestra sobre lírica e sociedade”, uma vez que o autor considera o sujeito lírico moderno um eu multifacetado e, portanto, coletivo, que faz de sua voz um reflexo da voz do outro porque está comprometido com os problemas da sociedade em que se insere. Estendemos essa característica para a poesia contemporânea também, e concebemos a compleição de um eu fragmentado como instância de encontros, ou seja, como possibilidade de sobrevivência e renovação da experiência.  
 Indo além, propomos uma leitura crítica que entende a tradução de poesia enquanto potencialização dessa possibilidade, haja vista que seu processo implica uma reconstrução criativa, um trabalho de linguagem autoral, para que a literariedade presente no texto da língua de partida se manifeste, também, no texto traduzido. Partindo de uma visão bastante idealista, no ensaio “A tarefa do tradutor”, Walter Benjamin (2011) define o processo de tradução como um exercício que teria o poder de renovar constantemente o original, na medida em que promove o seu desdobramento, a sua recriação, já que “a fidelidade na tradução de cada palavra isolada quase nunca é capaz de reproduzir plenamente o sentido que ela possui no original” (p. 114). Ou seja, o texto traduzido não se limita a manifestar uma cópia, antes se apresenta como um duplo.  
 Nesse sentido, trazemos aqui, também, as reflexões de Ivan Junqueira (2012), presentes no ensaio “A poesia é traduzível?”. Nesse texto, Junqueira afirma que,
 [...] diferentemente de um leitor que se põe a sonhar com o eventual sentido de uma palavra, o tradutor não opera no plano da ortonímia, e sim no da sinonímia, buscando menos a nomeação absoluta do que a nomeação aproximativa, razão pela qual o seu estatuto é não o de criador, mas antes o de recriador. E a recriação – ou transcriação, como pretendia Haroldo de Campos – é a fórmula a que o linguista Roman Jakobson recorre para explicar o paradoxo da tradução poética, caracterizando-a nos termos de uma transposição interlingual, ou seja, de uma forma poética para outra. É esse sentido de aproximação e de parentesco semântico-fonológico que deve presidir a operação de traduzir poesia.” (p. 09).
 O autor diz, ainda, que o exercício da tradução poética encerra um potencial paralelo de exercício crítico, pois o tradutor, na pele do “homo ludens”,  “está diante do complexo e prismático problema da escolha, dessa escolha que se processa no plano do significado e do significante”, envolvendo “opções semânticas, fonéticas, morfológicas, sintáticas, prosódicas, rítmicas, métricas, rímicas, estróficas – enfim, um espectro ambíguo e infinito constituído pelas chamadas figuras de linguagem.” (p. 10).
 Considerando as questões apresentadas ao longo deste ensaio, finalizamos nosso texto com a seguinte reflexão: defendemos que o texto poético, original e tradução, pode ser criticamente concebido como um lugar de resistência, como um lugar de sobrevivência da experiência, uma vez que se mostra capaz de promover, em algum nível, uma espécie de comunhão, de interligação de valores entre os homens.  
Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. Notas de literatura I. Trad. de J. Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Trad. de S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad. de J. C. M. Barbosa e H. A. Baptista. São Paulo: Brasiliense, 2010.
BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2011.
BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
COMPAGNON, A. Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Trad. de L. T. Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.  
ESTEBAN, C. Crítica da razão poética. Trad. de P. A. N. Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
JUNQUEIRA, I. A poesia é traduzível? In: Estudos Avançados (Instituto de Estudos Avançados da USP), São Paulo, nº 26 (76), 2012.
  *Suzel Domini dos Santos é Doutora em Teoria e Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de São José do Rio Preto. Dedica-se ao estudo crítico da poesia, sendo que sua produção científica se concentra, predominantemente, nas áreas de Poesia Brasileira, Poesia Contemporânea e Teoria da Poesia.  
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revistazunai · 7 years ago
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Periscópio 4: Benedito Nunes e Max Martins - relações entre crítica e poesia
por Romário dos Anjos Aires (UFPA)[1]
RESUMO: O presente estudo integra pesquisa de mestrado vinculada ao PPGL/UFPA cujo objetivo é analisar a produção de crítica literária de Benedito Nunes acerca do trabalho poético de Max Martins. Amigos íntimos, Nunes e Martins possuem algumas semelhanças desde suas respectivas estreias. Na edição do jornal “Folha do Norte” de 12 de setembro de 1952, Benedito Nunes inaugura-se como crítico literário com o texto “A estreia de um poeta”, onde analisa a primeira obra de Max Martins, O estranho, que também é prefaciada pelo crítico. Ambos os textos, de Nunes e Max, marcam a introdução dos mesmos na crítica e na poesia, respectivamente, e estudá-los pode indicar possíveis mudanças no decorrer dos anos. Quatro décadas após suas estreias, Nunes prefacia a reunião de poemas do amigo na obra Não para consolar, considerando tanto a evolução do poeta como poeta, como, também, a sua própria evolução na crítica. Os trabalhos de crítica e o de poesia nas relações estabelecidas entre Benedito Nunes e Max Martins, demonstram que a recepção analítica, tanto como a produção poética, está sujeita a mudanças em seus respectivos caminhos na história: se atualizando, se depurando, se ampliando, se refinando, se encontrando e se distanciando.
PALAVRAS-CHAVE: Benedito Nunes; Max Martins; Crítica; Poesia.
Introdução
A produção de crítica literária de Benedito Nunes é um conjunto vário e extenso de assaz valor para o entendimento acerca da evolução da literatura brasileira no século XX, em especial o movimento modernista desde as suas fundações. Tal crítica demonstra um teor de atualização que denuncia o quanto Nunes se preocupava em lançar olhar ao que de mais novo e renovado acontecia no contexto literário nacional.
 Em sua tese de doutoramento intitulada Benedito Nunes e a Moderna Crítica Literária Brasileira (1946-1969), Maria de Fátima do Nascimento traz um recorte da evolução de Nunes desde a sua base leitora, passando pelos textos publicados no Arte Suplemento Literatura, do Jornal Folha do Norte, e culmina nos densos trabalhos sobre Clarice Lispector, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Essa tese é particularmente interessante por trazer um questionamento chave para o estudo que aqui se esboça: “Por que Benedito Nunes não fica mais conhecido também como estudioso dos poetas?”. (NASCIMENTO, 2012, v. 1, p. 246). Por meio dessa pergunta outra pode ser elaborada: como se configura a crítica poética nunesiana?
 Outrora se observou a produção de Nunes enquanto crítico literário em sentindo amplo, as questões acima permitem uma delimitação mais precisa sobre essa produção; nesse momento Benedito Nunes é o crítico de poesia. O enfoque do estudioso sobre o labor poético, bem como a sua evolução metodológica, será o foco da presente análise, enfatizando-se o que o crítico escreveu em relação ao seu amigo íntimo e conterrâneo Max Martins.
 Max detém o título de ser uma das maiores vozes poéticas da história do Pará. Sua importância para a inserção da produção literária local na estética modernista é inegável. Sua proximidade ao amigo crítico corrobora para entender a evolução de sua técnica de composição e experimentação.
 Dois eventos marcam substancialmente a relação entre Max e Nunes, a estreia de ambos em 1952, o primeiro com o livro “O Estranho” e o segundo publicando sua crítica sobre o livro do amigo no jornal Folha do Norte. O outro evento se dá quarenta anos depois, em 1992, em que Benedito Nunes prefacia a livro do amigo “Não Para Consolar”, que reúne quatro decênios de produção poética. Esses dois momentos servem para compreender tanto a evolução estética e crítica, e servem, de igual maneira, para perceber a relação estabelecida entre as duas modalidades de produção, revisitadas e atualizadas no decorrer do tempo por fatores os mais vários.
1.      Benedito Nunes: interpretação e crítica
Nascido em Belém do Pará, a 21 de novembro de 1929, Benedito Viana da Costa Nunes inicia sua carreira na crítica em 1952, no encarte Arte Suplemento Literatura, no jornal Folha do Norte. Não cabe aqui descrever detalhadamente a passagem do crítico pelo citado encarte, mas apenas ressaltar a importância desse momento inicial, uma vez que:
Nesse periódico, o ensaísta paraense publica seus primeiros textos, iniciando sua trajetória de homem de letras, dando seus primeiros passos como crítico, passando posteriormente a figurar em livros nacionais como um dos expoentes nos estudos de vários literatos da moderna arte verbal brasileira e portuguesa, a exemplo de Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mário Faustino e Fernando Pessoa, acrescentando-se estudos seus de autores estrangeiros, como Apollinaire e Cendras. (NASCIMENTO, 2012, v. 1, p. 11)
 Essa fase basilar das atividades no Suplemento supracitado lhe permitiram tercontato com intelectuais que contribuíram para a sua formação enquanto estudioso, como Ruy Paranatinga Barata, Paulo Plínio Abreu, Rui Coutinho, Raymundo de Sousa Moura e Francisco Paulo Mendes, o último em especial por iniciar Benedito Nunes à leitura de filósofos cristãos como São Tomás de Aquino, Pascal e Kierkegaard.
 Sua formação preambular importa particularmente para a compreensão do percurso evolutivo como leitor e crítico, uma vez que “Nunes vem de uma família católica praticante, chegando, inclusive a ser coroinha, mas parece que, desde muito cedo, convive com dúvidas a respeito de dogmas religiosos” (NASCIMENTO, 2012, v. 1, p. 137). Essa influência de filósofos religiosos sobre o crítico é uma recorrente questão dentro de sua produção e vai perdurar “mesmo depois de ele se tornar um estudioso da filosofia dos existencialistas ateus, como Heidegger e Sartre” (NASCIMENTO, 2012, v. 1, p. 171).
 A disposição do jovem Benedito Nunes para o estudo crítico é fruto de seu precoce, constante e metódico interesse pela leitura, e sua formação como filósofo se dá quase que integralmente por meio desse ofício de leitor, já que Belém não dispunha àquela época de um curso superior de Filosofia. Portanto, onde os recursos se mostravam limitados, o autodidatismo se vazia necessário. Dessa forma, as relações entre reflexão filosófica e pensamento poético são constantes nas produções crítica de nunesianas.
 Vias que se cruzam, a literária e a filosófica perfazem quase que absolutamente o caminho evolutivo do crítico, o que poderia levar à ideia errônea de que o método crítico nunesiano reside em uma subordinação da literatura aos moldes hermenêuticos da filosofia. Precisamente sobre isso, esclarece Nunes, referindo-se ao seu estilo dúplice:
 Se pensado for o hibridismo sem o genuíno balouço entre as duas, parece que estava propondo, de saída, uma subordinação metodológica da literatura à filosofia. A Filosofia seria o caminho real para levar à Literatura. Nada disso. Não pretendi e nem pretendo aplicar a filosofia, como método uniforme, ao conhecimento da literatura, nem fazer da literatura um instrumento de ilustração da filosofia ou uma figuração de verdades filosóficas. (2005, p. 292)
 Para se compreender melhor a explanação acima, é necessário refletir sobre a seguinte frase: “Há homens, dizia meu mestre, que vão da Poética à Filosofia. O inevitável, nisso como em tudo, é ir de um termo a outro”[2]. De autoria do fictício professor de Retórica Juan de Mairena, heterônimo usado por Antonio Machado, esse aforismo é recorrente nos escritos de Nunes (Meu caminho na crítica, Passagem para o poético, Hermenêutica e poesia), servindo por vezes como critério avaliativo não apenas dos escritores, de ficção ou filosofia, sobre os quais reflete e estuda, mas, também, do seu próprio modo de compreender a relação entre as esferas poética e filosófico, e logo, de se perceber como o crítico que se estabelece nesse entrecruzamento “inevitável”.
 Transitar entre o filosófico e o poético não é legitimar a sujeição do primeiro aos métodos analíticos do segundo, ou reivindicar o patamar de precursor da Poesia frente às reflexões da Filosofia. Isso precisa estar claro para toda a aproximação com a obra nunesiana, híbrida e ampla nos seus pressupostos e objetivos, pois quaisquer tentativas de indicar uma ou outra área como superior ou de maior importância resultará em um erro interpretativo que limitará a abrangência dos processos críticos e hermenêuticos do estudioso.
 Percebe-se que Benedito Nunes, em seu conjunto de conceitos e teorias filosóficas, reúne estudiosos de doutrinas cristãs e agnósticas, o que permite compreender um panorama complexo de entendimento da temática existencial. Esse aparato vário de influências força a uma seleção do que o crítico emprega para entender o trabalho poético, nesse caso particular, a influição das concepções da filosofia existencialista de Heidegger, a quem o crítico paraense passou boa parte da vida estudando.
 Martin Heidegger atualiza um dos temas centrais da Filosofia desde as suas bases: a questão ontológica. Em Ser e Tempo (1927), empregando o conceito de Dasein (Ser-aí, Ser-no-mundo), o filósofo alemão concebe a existência como um dinâmico intercâmbio de abertura entre o Ser, seus pares e as coisas no mundo. Ou seja, nem o Ser, nem os entes (coisas) são instâncias independentes. Com isso, só é possível falar em um Ser ligando-o ao contexto de interação com a sua “práxis entitativa”. Isto ocorre pela “interpretabilidade do Dasein, no fato de que, a todo momento, graças à abertura, estamos nos interpretando em relação ao mundo e em relação a nós mesmos” (NUNES, 1999, p. 60).
 A interpretação é uma elaboração da compreensão (estágio preliminar da apropriação das coisas pelo conhecimento), e que Nunes entende como um “tripé”:
 Já que interpretar exige a compreensão preliminar do que interpretamos, a interpretação começa por uma apreensão prévia do que temos (Vorhander), circunscrevendo a nossa situação. Daí incluir-se numa perspectiva (Vorsich) e sob uma formulação conceptual, prévia também: uma pré-concepção. (NUNES, 1999, p. 76)
 A interpretação é produto daquilo que já foi assimilado, dentro de um campo de perspectiva situacional, exigindo o uso de padrões cotidianos de entendimento. Isso permite inserir a seguinte problemática: como a interpretação se comporta diante de um texto poético?
 A poesia, como obra de arte, é fruto de elaborações de atividades ficcionais, que Wolfgang Iser chamará deatos de fingir, são eles: seleção, combinação e auto referenciação. A primeira é o processo de retirada/escolha das coisas do mundo para compor a obra ficcional, que em seguida serão reajustadas/combinadas, com o intuito de criar um todo independente de sua matéria prima, no caso da obra literária, a linguagem prática do mundo imediato.
 Os atos de fingir reconhecíveis no texto ficcional se configuram então por darem lugar a determinadas configurações distinguíveis entre si: a seleção resulta na configuração da intencionalidade do texto; a combinação, na configuração do relacionamento; e o autodesnudamento, na configuração do pôr entre parênteses. (ISER, 1996, p. 32)
 É precisamente esse “pôr entre parênteses” que deve ser compreendido como “a tendência que a ficção literária apresenta de se expor, não como simulacro da realidade, mas como uma apresentação desta, muitas vezes desmistificante” (LIMA, 2006, p. 289). A arte, aqui enfocada pela poesia, retira da práxis seu material e devolve um produto não de todo referenciável por aquela mesma práxis. O époché, pôr entre parênteses, da poesia devolve à linguagem algo estranho, algo que não estava na linguagem, ou que estava, mas por vezes a praticidade da vivência não permitiu perscrutar.
 O conceito de époché vem dos gregos e se atualiza na fenomenologia husserliana.Edmund Husserl considerava que os fenômenos, para serem devidamente compreendidos, não deveriam ser sujeitos a conceituações de valor como: bom, ruim, verdadeiro ou falso. Para isso, eles deveriam ser isolados da situação natural, tornarem-se neutros, assim o pensamento poderia chegar à consciência deverdade das coisas.
 Nisso, a interpretação da poesia deve apreender o texto dentro do époché, a fim de assimilar a verdade da obra, a obra em si, e “para tal se conseguir, seria preciso retirar a obra de todas as relações com aquilo que é outro que não ela, a fim de a deixar repousar por si própria em si mesma” (HEIDEGGER, 1991, p. 31).
 Quando a obra de arte não é recebida por intermédio de um isolamento quanto a suas elaborações estéticas próprias, ocorre o que Benedito Nunes chama de “erros” históricos, dos quais fora vítima a célebre obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas:
 Para os críticos, quando ainda não havia conceitos formados, o que levaria tempo – o tempo identificado ao curso do processo interpretativo –, vigorou a pré-concepção de que o romance de Guimarães Rosa era regionalista, tão forte fora para a tradição regionalista, estimulada pelo modernismo. Mas o sertão não era o sertão localizado, regionalista. [...] Como, então, falar em regionalismo? Além do mais, podemos distinguir nessa obra certos padrões literários, referentes a recorrências míticas etc. Não é, portanto, de admirar que muitos se dessem mal na interpretação de Guimarães Rosa. (NUNES, 1999, p. 76-77)
 Esse exemplo de interpretação enganosa ocorre ao não ser observado que a obra literária, como obra artística, deve ser perspectivada por si mesma, na sua verdade. Verdade, para Heidegger, é a verdade praticada pelos gregos, a alétheia, ou seja, o desvelamento das coisas, a abertura dos entes sobre a qual o Ser se lança e imerge. A possibilidade de imersão na obra só acontece, pois, pelo seu teor de desvelamento das coisas, abre um mundo que
 É o sempre inobjectal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser. Onde se jogam as decisões essenciais da nossa história, por nós são tomadas e deixadas, onde não são reconhecidas e onde de novo são interrogadas, aí o mundo mundifica. (HEIDEGGER, 1991, p. 35)
 A obra de arte inaugura um mundo de experiências que vão além da capacidade das coisas em sua banalidade usual, propriamente por abrir um campo de perspectivas sobre as coisas, tornando-as verdadeiras, desveladas, esclarecidas. A poesia se vale das palavras (coisas), mas de um modo peculiar em que “o poeta utiliza a palavra, não, porém, como aqueles que habitualmente falam e escrevem têm de gastaras palavras, mas de uma forma tal que a palavra se torna e permanece verdadeiramente uma palavra” (HEIDEGGER, 1991, p. 37).
Nesse momento é pertinente atribuir algumas distinções entre o trabalho leitor e o crítico. Tanto um como o outro estabelecem significações ao texto poético partindo de padrões habituais de constituição, quanto a isso,
 Críticos e leitores têm a mesma competência. A situação do crítico se torna difícil no momento em que ele exige validez normativa para sua estrutura de apreensão. Nesse caso, as interpretações do crítico se confrontam com as objeções do público, pois o processo idêntico de estabelecimento de consistência pode ser atualizado sempre de diversos modos e, em face das orientações habituais, por conteúdos diferentes. Sua indignação com as restrições mostra que o crítico não reflete as orientações habituais que o dirigem. (ISER, 1996, p. 46)
 O trabalho de crítica, mesmo partindo de processos hermenêuticos pré-determinados, terá a complexa tarefa de legalizar sua interpretação por critérios e postulações que, por vezes, contestam os modelos predominantes de constituição de significados, como fora observado anteriormente acerca das considerações de Nunes sobre a recepção de Grande sertão: veredas.
 Compreendendo que a obra poética, pela sua abertura, instiga o intérprete ao adentramento em um mundo de experiências diversas do corriqueiro pragmatismo do Ser, devolvendo à matéria da linguagem, a palavra, uma potencialização sui generis de sua capacidade de dizer, e que as atividades leitora e crítica possuem atribuições particulares quanto aos seus processos construtivos, passar-se-á, nesse momento, à apreciação de Max Martins e sua produção poética.]
2.      Max Martins: poesia e experimentação
Nascido na capital paraense em 20 de junho de 1926, filho de comerciantes, vindo a exercer essa função, Max Martins foi amigo íntimo de Benedito Nunes, e um dos responsáveis pela inclusão da produção poética na capital provinciana de Belém na estética moderna. Começa pela publicação de O Estranho (1952), passando a Anti-Retrato (1960), Alguns Poemas (1965), 15 Poemas (1970), H’Era (1971), O Ovo Filosófico (1975), O Risco Subscrito (1980), e outros. Esse constructo poético tem a sua reunião em Não Para Consolar, de 1992, obra prefaciada pelo crítico paraense, que servirá para um breve exame do trabalho apreciativo desse último, enfocando a evolução da produção de seu patrício, e, como se verá, a sua própria evolução de exegeta.
 A formação literária inicial de Max Martins, como a de Nunes, foi sobre os moldes do simbolismo e do parnasianismo, aprendendo a versificar em pequenas cartilhas como o próprio Tratado de versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, publicado nos idos de 1905. A distância em relação aos grandes centros urbanos e culturais do Brasil, na primeira metade do século XX, dificultou o contato apropriado com as novas tendências estéticas, as do Movimento Modernista, já largamente aceitas e praticadas no território nacional. O principal meio de contato com as novidades estéticas se deu anos depois, e eram transmitidas ao núcleo dos amigos em Belém pela figura de Francisco Paulo Mendes, sobretudo.
 Nisso, com o conhecimento da revolução modernista no cenário nacional e o contato com os preceitos da geração de 45, há o desenlace do poeta daqueles padrões do l’art pour l’art. Isso se manifestou de forma tão intensa no poeta, que Benedito Nunes compara-o a Graça Aranha no ímpeto de defesa das novidades estéticas frente aos anacronismos dos defensores da tradição:
 Max Martins, honra-lhe seja feita, antecipou-se a esse processo de geral conversão estética. Bancando o Graça Aranha, gritou Morra a Academia! numa sessão solene. E saindo espaventosamente da sala, ou do recinto, conforme dizíamos, foi sentar-se no banco público fronteiro à minha casa, sede do silogeu, onde esperou a saída dos confrades para a costumeira badalação em bando pelas ruas da cidade. (NUNES, apud MARTINS, 1992, p. 18)
 O poeta, como se pode perceber, detinha um espírito inconformado precisamente pelo conformismo daqueles que representavam a mais alta expressão da cultura letrada da época. Incomodava-o esse isolamento em relação às revoluções artísticas ocorrida mais ao sul do país, isolamento esse que em parte advinha da própria petrificação da Academia de Letras Paraense.
 A sua relação tardia com o Modernismo, já amadurecido como movimento estético, vem para refutar as próprias bases poéticas de Max Martins: aquele primaveril contato com os padrões parnasianos de composição e os atritos com a classe erudita da Academia, mantenedora de uma visão retrógrada e engessada de poesia.
 Tomado pela vontade de atualização dos padrões estéticos já obsoletos e inexpressivos, declara Max que morra a academia. A simbólica morte do arcaico, do atrasado, do ultrapassado; sacrifício necessário para a procura do sempre novo, que é a dinâmica do labor poético.
 Isso se reflete na sua procura constante pela experimentação. Oxigenar a linguagem literária e as possibilidades de expressão vem a se tornar uma recorrente na poesia de Max Martins, fruto de uma singular manifestação dessa poética de ruptura, transgressora de limites impostos pelo arcaísmo apático compreendido acima, e dele fiel combatente.
 Dentre umas das grandes influências na trajetória poética de Max Martins, é imprescindível a presença de Carlos Drummond de Andrade, o que será visto com maior apreciação adiante. O poeta mineiro, incontestavelmente um homem de seu tempo, considera que a poesia não deveria isolar-se da história social, pregado por outras correntes estéticas, mas, sim, participar e dialogar com o mundo:
 Participação na vida, identificação com os ideais do tempo (e esses ideais existem sempre, mesmo sob as mais sórdidas aparências de decomposição), curiosidade e interesse pelos outros homens, apetite sempre renovado em face das coisas, desconfiança da própria e excessiva riqueza interior, eis aí algumas indicações que permitirão talvez ao poeta de ser um bicho esquisito para voltar a ser, simplesmente, um homem. (ANDRADE, 2012, p. 182)
 Estar contra o isolamento da literatura, expressa no arcaísmo das cátedras da Academia, na tradição que não se deixa superar por vontade própria, indica em Max essa mesma vontade de participação e humanização do vate que é a missão do poeta. Ele toma para si a missão de fazer com que a sua poesia trabalhe com a palavra de maneira a proporcionar uma singular experiência de comunicação entre os espíritos humanos que já não pode ser encontrada nos padrões de antanho. O crepúsculo da Academia é a possibilidade do amanhecer de uma nova poética, fresca em suas intenções de significação.
 Portanto, a sua produção estética Martins pode ser percebida como uma sanha constante por inovação e atualização, permeado por um rigor seletivo de um verdadeiro mestre. Isso o torna, como muitos outros, adepto da experimentação do modernismo brasileiro, presente desde a sua gênese, em 1922.
 Justamente por isso, temos a manifestação de temas ocidentais expressos pela leitura e reflexão acerca das vanguardas, tão disseminadas no século XX, como também temáticas orientais como o I-ching e a peculiar composição por dois ou mais poetas escrevendo em turnos, a renga japonesa, essa última faceta modula a obra de 1982, A fala entre parêntesis, parceria com o seu amigo Age de Carvalho.
 O que se observou logo acima é uma simples síntese dos processos únicos da construção poética de Max Martins, que foram trabalhados em um intenso é singular modo de composição que variou consideravelmente desde o momento de sua estreia até os quarenta anos seguintes, trabalho observado e compartilhado de perto por Benedito Nunes, como se ressaltará a seguir.
3.      Max e Benedito: um balanço de quarenta anos
 Com intuito de lançar perspectiva sobre a evolução do crítico e do poeta, dois textos críticos serão a base para o traçado comparativo de Martins e Nunes. O primeiro, publicado no dia 12 de setembro de 1952, tem como título “A estreia de um poeta”, mas, além do que a chamada sugere, aí também ocorre o início da trajetória do crítico. O segundo texto, que se distancia em quatro décadas da crítica inaugural, vindo a público em 1992, é o prefácio “Max Martins: mestre-aprendiz” da obra “Não para consolar”, que reúne os quarenta anos de produção do poeta paraense. Por intermédio da contraposição desses textos formar-se-á um panorama das expectativas que a crítica nunesiana elabora sobre o trabalho poético e aquilo que se efetiva na passagem dos anos, e no domínio das técnicas de produção.
 É válido salientar que Benedito Nunes também elaborou o prefácio de “O estranho”, um texto curto e superficial, encarregando à sua crítica publicada no Suplemento a análise propriamente dita da obra de Max, portanto, opta-se, pelo critério de adequabilidade ao trabalho que assim se dispôs a ser realizado, considerar somente o texto do jornal.
 Outrora, quando se voltou a atenção para a formação do crítico e do poeta aqui em estudo, considerou-se que ambos tiveram contato tardio com as novas e inovadoras tendências estéticas que revolucionaram o cenário nacional de produção artística, a saber: o modernismo e tudo o que por ele foi desencadeado, como as diversas vanguardas europeias adaptadas eficaz ou ineficazmente ao contexto local. Esse atraso, proveniente do isolamento provinciano das regiões mais setentrionais do Brasil, repercute nas produções iniciais dos autores em suas determinadas competências, como já fora assinalado. Essas ponderações devem ser realizadas para se compreender a posição em que se encontram Max e Nunes no início de suas respectivas carreiras, e a que se circunscreve após quatro decênios.
 Já iniciado na estética moderna e influenciado pela poesia de Carlos Drummond de Andrade, Max Martins lança seu primeiro livro O Estranho em 1952, um ano depois do poeta mineiro publicar Claro Enigma, entretanto, como Nunes irá observar ao dizer que “o parentesco da poesia de O Estranho (...) era com um Drummond muito anterior, o de Alguma Poesia, Brejo das Almas e José” (apud MARTINS,1992, p. 21),a confluência da obra de estreia de Max é com a poesia drummondiana da década de 30 e início de 40; portanto, atrasada em estilo e temas. Por isso, Nunes não se poupa ao arrematar que
 A primeira impressão que desperta a leitura desse livro de estreia é a ligação constante dos seus versos com o que o movimento modernista teve de superável: o anedótico, a facilidade de soluções poéticas e o desprezo formal pelo verso como unidade rítmica. Aqui e ali, lendo esses vinte e três poemas, percebemos logo que o poeta, talvez insensivelmente, adota aquela verve superficial que, estampada nos primeiros poemas de Carlos Drummond de Andrade – e apenas em alguns deles – foram um mero acidente, sem relação com o humorismo doloroso e irônico de – A Rosa do Povo. (NASCIMENTO, 2012, vol. 2, p. 128)
 O crítico não só considera que o amigo toma a exceção de certos aspectos da poesia drummondiana por regra, como também o que o movimento modernista teve de “superável”, ou seja, reafirma o atraso do diálogo poético de Martins com Drummond e um certo descuido do primeiro em sua assimilação do segundo.
 Isso pode ser percebido ao se comparar dois poemas: “Cidadezinha qualquer”, de Drummond, publicado pela primeira vez na obra Alguma poesia, em 1930, e “Muaná da beira do rio” de Martins, que compõe sua obra de estréia O estranho.
Cidadezinha Qualquer
 Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar.
Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus. (DRUMMOND, 1974, p. 34)
E
Muaná da Beira do Rio
A velha matriz branca De portas largas Sozinha na praça Olhando o rio sujo. Montaria dançando. Tarde preguiçosa. Rua quieta. Jornal do prefeito Com santo na primeira página. E a usina bufando, bufando, Engolindo lenha. Na janela do posto do Correio um cacho de bananas balançando. (MARTINS, 1992, p. 47)
 Nos dois poemas ocorre a tematização da vida em uma cidade interiorana: a calmaria bucólica, a simplicidade e a mesmice do campo são facilmente apreciáveis. Versos do poema drummondiano como “Um homem vai devagar/Um cachorro vai devagar” dialogam forçosamente com os de Max “Montaria dançando/Tarde preguiçosa/Rua quieta”. Aspectos como esses denunciam a influência do poeta mineiro sobre o paraense, e são os principais pontos da crítica de sua estreia denunciando o estilo “atrasado”.
 Nunes afere ainda que a produção de seu amigo é de cunho assaz imaturo, necessitando de um maior aperfeiçoamento, pois para ele “o Sr. Max Martin apresenta-nos em O Estranho muitos poemas fragmentários que poderiam sofrer um mais apurado trabalho de depuração à espera de amadurecimento” (NASCIMENTO, 2012, v. 2, p. 128). Isso leve o crítico, no prefácio de 1992, a atualizar sua posição anterior:
 Jargão muito ao gosto da época: o crítico, granjeiro-horticultor, apalparia os frutos poéticos para avaliar se ainda estavam verdes ou já maduros. O amadurecimento representava um certo padrão de linguagem, mais puro quanto às imagens, mais sério nos motivos líricos, mais essencial na expressão sublimada dos sentimentos, para o qual deveria encaminhar-se o poeta como termo ideal de sua evolução. (NUNES apud MARTINS, 1992, p. 21-2)
 O ideário de amadurecimento da produção poética é um lugar comum ao qual os críticos recorrem, principalmente os que estão começando, para indicar um fim ideal para a evolução do poeta. Quatro décadas após o seu texto inaugural de análise poética, Nunes observa que o movimento de criação de Max Martins não seguiu o amadurecimento idealizado em uma depuração laboral, mas encontra caminhos outros. O crítico, acompanhando o encadeamento das produções de seu amigo poeta, compreende que “a leitura do conjunto da obra de Max revela outro curso temporal e força-me a criticar a minha crítica” (NUNES, apud MARTINS, 1992, p. 22).
Se Nunes denuncia o atraso da poesia de Max Martins por meio da influência de um primeiro Drummond, também, pela perspectiva definidora de uma “maturação poética”, acusa a sua própria crítica de uma generalização clichê dos caminhos que devem ser trilhados pelo poeta, como se fosse tarefa do crítico indicar ou mesmo prever as veredas pelas quais a produção poética de determinado indivíduo precisa necessariamente seguir, caso contrário, essa mesma produção seria ineficiente em alcançar suas pretensões, sejam elas quais forem.          
Com isso, os quarenta anos que separam os textos inaugurais de ambos permitem perceber que as previsões não foram alcançadas, e os processos evolutivos de crítica e poesia seguem por veredas díspares, onde a segunda se emancipa à primeira, e esta necessita de uma constante revisitação para abarcar a dinâmica da produção poética.
CONCLUSÃO
O mais importante nessa concisa inferência à crítica de Benedito Nunes, é a revisão do estudioso sobre a sua própria atividade, mostrando um caráter de reflexão capaz de atualizar seus preceitos e se adequar ao movimento da criação poética que analisa: a possibilidade de uma autocrítica. O que denota uma depuração interna sobre a sua própria produção, não caindo, de fato, no senso comum de que os julgamentos do crítico são absolutos e devem ser respeitados e seguidos sem se levar em consideração as mudanças temporais a que todo e qualquer posicionamento apreciativo está sujeito na evolução e modificação dos parâmetros hermenêuticos.
 Igualmente é substancial o desenvolvimento da produção poética de Max, superando os excessos explorados pelo movimento modernista brasileiro, oferece aos leitores uma bibliografia incomparável em diversidade e possibilidades interpretativas, obras que buscam sempre a novidade alcançada apenas por uma constante experimentação de temáticas e formas. E, com isso, proporciona um manancial inesgotável e de inegável peso para entender o cenário da poesia paraense no século XX.
 Portanto, compreender o paralelo de evolução da crítica e da poesia pela relação estabelecida entre Benedito Nunes e Max Martins é entender que tanto uma quanto a outra operação escrita seguem linhas de desenvolvimento que convergem e divergem, se rompem e se completam, se apartam e se atam, permitindo vislumbrar como processos tão específicos revelam a interação do homem consigo mesmo e com o seu mundo.
  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 12a edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p. 34.
________. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. Maria da Conceição Costa Lisboa: Edições 70, 1971.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1996. 2 v.
________. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
________.Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
________. Prefácio. In MARTINS, Max. Não para consolar: poemas reunidos 1952-1992. Belém: CEJUP, 1992.
________. Meu caminho na crítica. Rio de Janeiro: Revista Estudos Avançados, 2005.
 Endereços eletrônicos consultados
NASCIMENTO, Maria de Fátima do. Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1969). Unicamp: Campinas, 2012. 1 v. Disponível aqui. Acesso em: 19 ago. 2015.
NASCIMENTO, Maria de Fátima do. Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1969). Unicamp: Campinas, 2012. 2 v. Disponível aqui. Acesso em: 19 ago. 2015.
 [1] Mestrando em Estudos Literários. E-mail: [email protected]
[2] MACHADO, Mairena. Juan de Mairena. Sentencias, donaires, apuntes y recuerdos de un profesor apócrifo (1934-1936). Cf. o original em: Poesías completas. Madrid: Espasa-Calpe, 1936. V 4, p. 1998: “Hay hombres, decía mi maestro, que van de la Poética a la Filosofía; otros que van de La Filosofía a la Poética. Lo inevitable es ir de lo uno a lo otro, em esto como em todo.”
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revistazunai · 7 years ago
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Periscópio 5: Sob a égide do tempo - a velhice em Corpo de Baile e Grande Sertão: veredas
por Rosalina Albuquerque Henrique
1.      Ponto de partida
Este trabalho apresenta algumas breves reflexões ligadas à abordagem da velhice perante os acontecimentos vividos pelos personagens rosianos em duas obras, Corpo de baile (1956) e Grande sertão: veredas (1956b), de João Guimarães Rosa (1908-1967). Sobre a temática da velhice, tornou-se natural considerarmos a ideia de decrepitude física e mental de um homem velho conforme as descobertas científicas nas áreas das ciências biológicas. No entanto, Guimarães Rosa não alimenta a perspectiva de que a morte do homem é estabelecida a partir de seus sessenta anos.
A exemplo disso, os personagens Liodoro e Manuelzão (de Corpo de baile) e Riobaldo (de Grande sertão: veredas) embora sejam homens envelhecidos pelo tempo, as suas histórias, por mais banais que possam parecer, os reanimam para o fato de que a sua própria condição humana ainda está inacabada. Além do mais, segundo Alfredo Bosi (2006), as histórias não são acompanhadas por “fraturas psíquicas nem pela mimese de grupos e tipos locais: faz-se pela interação assídua da personagem com um todo natural-cultural onipresente: o sertão” (BOSI, 2006, p. 460).  
Os espaços por onde transcorrem os enredos de Grande sertão: veredas e Corpo de baile são povoados por estes homens, que se tornaram emblemáticos para a constituição ficcional rosiana, moradores das paragens abertas chamada de “Gerais”. Uma referência ao espaço sertanejo de Minas, Bahia e Goiás, que Euclides da Cunha, “em poucas palavras descreveu, como formada de vastas planuras, paragem formosíssima, expandida em chapadões ondulantes — grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros” (NUNES, 1957, p. 2).
Em “Primeira notícia sobre Grande sertão: veredas”, Benedito Nunes enfatiza um desses vaqueiros de idade avançada, o ex-jagunço de nome Riobaldo: “antigo bandoleiro, condutor de homens através do sertão agreste, [que] conta ao moço da cidade, na calma de uma fazenda, à qual se recolhera, para viver mansamente” (NUNES, 1957, p. 2) a sua história, que é a trama de Grande sertão: veredas. Para o autor de Crivo de papel, a classificação e o tamanho das narrativas de Corpo de baile contrariaram padrões aceitos à época dos anos cinquenta, o que não impediu a manifestação da crítica literária sobre os dípticos de 1956 até o presente momento.
Atualmente, há diversos estudos rosianos como os linguísticos, estilísticos, estruturais, esotéricos, mitológicos, metafísicos e, também, os voltados às análises sociológicas, antropológicas, feministas, históricas e políticas, etc. Isto significa que a produção do objeto artístico visa a um único fim, o ato da leitura gerando infinitas formas, modos e pensamentos assinalados ao texto. O que acarreta para uma linha de interpretação em que o leitor é instigado a exercer uma atividade reflexiva em relação ao texto; dessa maneira, tornando-se um colaborador na interpretação da narrativa (JAUSS, 1994).
Os Caminhos de Guimarães Rosa
Desde a publicação de Sagarana, em 1946, Guimarães Rosa começava a galgar seu lugar na historiografia literária brasileira ao se vincular cronologicamente à chamada “Geração de 45”. Mas, se pensarmos no texto “História da literatura” de René Wellek (19--, p. 318) ao afirmar que o seguimento cronológico da criação não é suficiente para provocar uma evolução na historiografia literária, podemos afirmar que uma dada obra de arte não permanece inalterada através do decurso da história, não podendo ser alterada a configuração da obra, sendo dinâmica a sua estrutura durante o processo da história, “enquanto vai atravessando os espíritos dos leitores, dos críticos e dos outros artistas” (WELLEK, 19--, p. 318).
Dessa forma, quando muitos pensavam que o tema regionalista já havia sido cristalizado pela tradição, Sagarana surpreendeu a crítica em virtude da originalidade de suas técnicas narrativas, que apontavam uma mudança substancial na velha tradição regionalista. Para Wellek, todas as obras de artes surgem em um determinado período, unidas pelo processo histórico, que não pode ser ignorado, todavia, a literatura não deve ser concebida como sendo um “passivo reflexo”, ou seja, “por critérios puramente literários que deve fixar-se o período literário” (WELLEK, 19--, p. 331), devendo também o trabalho da literatura ser um objeto estético capaz de despertar a experiência científica.
Para Antonio Candido (2012, p. 6), a obra de arte é por natureza “uma entidade autônoma”. O que, para Alfredo Bosi, gera uma busca pelo caráter singular da obra de arte em que cada autor representa as características próprias de um gênero literário, mas sem deixar a individualidade imanente do fazer literário de cada artista. As narrativas Grande sertão: veredas e Corpo de baile expõem uma escrita literária que dão vida aos recursos da expressão poética, sem causar prejuízo para o enredo, ao usar “células rítmicas, aliterações, onomatopeias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, arcaico ou de todo neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos” (BOSI, 2006, p. 459).
Ao conceber uma crítica à Corpo de baile, Paulo Rónai (2001) instiga o leitor para a personalidade singular de Rosa no sentido dele querer marcar a paisagem literária ao dar destaque na capa do livro uma árvore gigante, o Buriti-Grande, que sinaliza um ponto de demarcação para os enredos criados por este escritor:
Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre (RÓNAI, 2001, p. 17-18).
A partir da “personagem central”, Rónai delineia os personagens (crianças, loucos, velhos, mendigos, cantadores, capangas, vaqueiros, prostitutas) que compõem a obra, “formando o corpo de baile num teatro em que não há separação entre palco e plateia” (RÓNAI, 2001, p. 18). Seres que passam pelos abismos imaginados por Guimarães Rosa incidindo-lhes medos atávicos do homem: o amor, o dever, o horror à solidão, à morte e ao esquecimento, seus vãos esforços de sustentar o passado e fugir do futuro.
Na verdade, a literatura deixa ver o que se pretende esconder dado que a ligação entre as obras elencadas para análise apresentam heróis inadaptados, os quais possuem a consciência de não pertencerem a este mundo, a esta sociedade, e suas atitudes são interpretadas como transgressoras. Além do que, são homens em estado de processo de envelhecimento, cujo corpo revela uma velhice não esperada, tão pouco desejada. Homens que moram no sertão, um lugar tomado pela força da ação, da relação homem e natureza, e que acabam sofrendo por essa força ocultada pelo tempo chamada velhice.
Para a crítica literária, ao longo dos sessenta e um anos de publicação, Grande sertão: veredas e Corpo de baile são obras que continuam fomentando tensões entre a escrita do autor Guimarães Rosa e a leitura dos críticos, cujo “sentido que a leitura interpretativa vem lhes afiançando é que as tornou [e as torna] grandes” (NUNES, 1998, p. 262), sobretudo em torno de nossa temática acerca da presença das figurações da velhice nestas narrativas.  
O sentido dessas duas obras não seria o de transmitir a sabedoria das experiências do passado de um velho, porém, o “seu sentido estaria próximo de tentar compreender as mesmas experiências tecendo e unindo os fios soltos que o tempo e os caminhos da vida foram deixando”, de acordo com Helder Santos Rocha (2014, p. 72). É de se relevar, assim, o registro de que “refletir sobre o sentido do envelhecimento e a consequente aproximação da velhice é evocar em nós mesmos, o temor da morte”; ideia essa ratificada nos apontamentos de Danielle Pitanga (2006, p. 70).
A imagem da clarificação da ideia da morte sempre se interpõe nas conversas, ou mesmo, nas lembranças e nas atitudes dos personagens em Grande sertão: veredas e Corpo de baile. O que indica uma espécie de descrença no determinismo universal, pois, vivemos em um mundo no qual cada vez mais há incertezas geradas pela própria complexidade existencial do ser humano, o qual não pode mais prender-se à causalidade circular em que o próprio efeito volta à causa, o que pode levar-nos ao erro e à ilusão (MORIN, 1997, p. 15-16). É justamente nesse ponto que pretendemos analisar como os velhos assumem um discurso: o de que sua atual condição não está destinada ao nada, no entanto, a dada condição que se encontram os destina à qualidade de poder se conhecer e se reconhecer também numa condição humana que ainda está inacabada, ou seja, há vida.
Em “O homem dos avessos”, as palavras de Antonio Candido são inspiradoras quanto às possibilidades de interpretação da ficção rosiana que independente à escolha de abordagem em cada aspecto a ser analisado “aparecerá o traço fundamental do autor, a absoluta confiança na liberdade de inventar” (CANDIDO, 1964, p. 21). Diferentemente, do que ocorre em O dorso do tigre, em que Benedito Nunes (2009) postula que o sentido da obra de arte não se aparta do sentido do ser, com base filosófica de ascendência heideggeriana em torno das narrativas mencionadas, nossa discussão incide numa leitura sociológica da velhice presente em Guimarães Rosa ligando-se à ideia da relação entre literatura e sociedade, balizada no método estético-recepcional postulado pelo teórico Hans Robert Jauss.
Certos de que a obra literária não pode ser escrava de seu tempo, podemos propor uma nova compreensão a partir de um presente condicionante. O que não se deve ao acaso o elo entre a história e a experiência estética seja demasiado fundamental para ser negligenciado, reduzindo o texto literário a uma cronologia rigorosamente pensada na série de influências que recebe ou mesmo nas reações que suscita uma obra.
De acordo com os estudos da Estética da Recepção, ao lermos as obras em questão (Corpo de baile e Grande sertão: veredas) inicia-se um processo de compreensão a partir da percepção estética da obra literária, que chamamos de processo de leitura. Após a leitura compreensiva, dar-se-á a leitura retrospectiva, que é a interpretação, baseada em uma teoria, estudo específico, por exemplo religioso. A estas leituras sobrevém a leitura histórica da obra com a intenção de recuperar a recepção da qual ela foi alvo no decorrer do tempo e, também, para o próprio leitor analisar sua atuação nesse ciclo temporal.
“Por isso, a leitura encontra-se no centro das reflexões seguintes, pois, nela os processos provocados pelos textos literários podem ser observados” (ISER, 1996-1999, p. 15), ou seja, ela se atualiza no processo da leitura. É um momento que, por meio da interação e do questionamento do texto, o leitor também é levado a interrogar-se sobre a obra. Portanto, com este estudo, podemos contribuir com a ideia de que os momentos literários mais fecundos são os que criam maior tensão entre a escrita e a recepção de seus leitores (NUNES, 2000, p. 54).
2.      Figurações da Velhice em Liodoro, Manuelzão e Riobaldo
“Definida como criação, a obra literária não é produzida sem que outra imaginação seja ativada primeira: a do escritor” (ZILBERMAN; SILVA, 2006, p. 35) e que depois estimula o imaginário do leitor que, assim, se abre a novos caminhos à experiência futura, sem deixar de refletir os dilemas do momento histórico em que vive.
Wolfgang Iser analisa que o surgimento do mundo moderno nos trouxe uma “tendência clara em privilegiar-se o aspecto performativo da relação autor-texto-leitor, pelo qual o pré-dado não é mais visto como um objeto de representação, mas sim como o material a partir do qual algo novo é modelado, portanto, atualizado” (ISER, 2002, p. 105). Dessa forma, a participação do leitor é indispensável em qualquer texto. Porque, desde o momento que lança seu olhar sobre a obra invoca uma consciência crítica.
Uma consciência que reclama ao sentimento e à reflexão de Corpo de baile e Grande sertão: veredas ao deflagrar a relação humana com o meio e o impacto desse meio na formação da personalidade das personagens. De tal modo que, quando pensamos nas mensagens propositadamente veladas por Guimarães Rosa, como quem decifra o enigma de uma esfinge, percebemos a “malícia brincalhona” (RÓNAI, 1973, p. XX) desse escritor, que valorizou o mundo do sertanejo por meio da recriação e tradução poética de sua linguagem.
A linguagem literária de Rosa demonstra a intenção de algo próprio que lhe proporcionasse configurar a sua diferença: a de realizar também a sua representação do país. A busca por esse elemento diferenciador, no qual Afrânio Coutinho (2014) designa de nacionalismo literário brasileiro, se perpetuou na escrita de Machado de Assis, no século dezenove, quando defendia que uma literatura, em especial uma literatura nascente, não pode deixar de se alimentar dos assuntos latentes de sua região, devendo ter o cuidado de não cair em ardilosas doutrinas tão absolutas que empobrecem o texto literário. Assim, Guimarães Rosa defendia que um escritor seja ele de prosa, seja de poemas precisava buscar “certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (ASSIS, 1992, p. 804).
É sob a égide da palavra, sempre geradora de significações imbricadas, que o jogo e o saber agem em Corpo de baile e Grande sertão: veredas rememorando episódios que deixaram marcas nos homens que estão na terceira idade. Nesse sentido, o personagem Riobaldo (de Grande sertão: veredas) inicia sua narrativa a partir de clássicas questões filosóficas ocidentais, por exemplo, a origem do homem, a existência da vida, do bom e do mal, fala de sua mãe, de como havia conhecido Diadorim, relembra também a sua vida de jagunço e de sua batalha com Hermógenes. E, “ao contá-las, [Riobaldo] as vivencia novamente”, de acordo com Eduardo Coutinho (1993, p. 27).
Por outro lado, sob nosso olhar, em Corpo de baile, vemos o embate das inquietações veladas no espírito frustro, angustiado e torturado por ideias de solidão, de uma vida falha e morte próxima de Manuelzão, que ao final da vida, impelido pela vontade de se perpetuar, decide construir uma capela, desejo antigo de sua mãe, cuja festa de inauguração apaga a ideia de vida incompleta desse personagem, que pela prosa do velho Camilo eclode um milagre inesperado, a descrição de uma epopeia a respeito de um valente vaqueiro e sua boiada que inspira o existir de Manuelzão.
A estudiosa da obra de Guimarães Rosa, Elizabeth Mendonça, atenta-nos para o final da estória “Uma estória de amor” (Corpo de baile) quando Manuelzão consegue retomar a sua antiga firmeza, isto é, a sua vitalidade é retomada e, ao mesmo tempo, simbolizada, pelo laço:
— Seo Camilo, a estória é bôa!
— Manuelzão, sua festa é bôa!
— Simião, me preza um laço dos seus, um laço bom, que careço, a quando a boiada fôr sair...
— Laço lação! Eu gosto de ver a argola estalar no pé-do-chifre e o trem pular pra riba!
— Aprecio, por demais, de ajudar numa saída de gado. Vadiar mais os companheiros...
— Ei, eh, êpa! A isso, lá?
— O João Urúgem, vigia: que veio em ouvir, na beira da escuridão... Ôi, o João Urúgem de quatro patas, de sombrio, com tôdas as mãos no chão...
— Tenção de caluda, companheiros, deixa a estória terminar (ROSA, 1956, p. 244)”.
Desse modo, ela afirma que a “mensagem do velho é entendida pelo vaqueiro que, pelo estado de ânimo em que se encontrava, podemos inferir que estava aberto a receber as dádivas proporcionadas pela narrativa-louvação de Camilo” (MENDONÇA, 2013, p. 168). Na sua tese intitulada “A infância e a velhice: percursos em Miguilim e Manuelzão”, Luciana Ferraz declara ser a velhice uma reedição dos modelos vividos durante a infância sendo “atualizados frente às novas vivências e às alterações do corpo” (FERRAZ, 2010, p. 106) como se nota em Manuelzão, em “Uma estória de amor”: “De todo não queria parar, não quereria suspeitar em sua natureza própria um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do corpo” (ROSA, 1956, p. 149). Conforme a linha de pensamento de Ferraz (2010), a preparação e a realização da festa em Samarra tornam-se em prerrogativas para o velho administrador da fazenda como um meio de “ressignificar sua história pessoal e se [configurarem a decadência física e a aproximação da morte] como uma nova etapa de amadurecimento psíquico, em que novos recursos, do pensar podem ser adquiridos” (FERRAZ, 2010, p. 106).
Para Alfredo Bosi (2006), devemos ao escritor Guimarães Rosa o fato de que passamos a entender novamente uma antiga verdade, a de que “os conteúdos sociais e psicológicos só entram a fazer parte da obra quando veiculados por um código de arte pelo qual o conflito entre eu/herói e o mundo não desaparece” (BOSI, 2006, p. 458). O que nos lembra da fala inesquecível de Riobaldo: “Viver é negócio muito perigoso” (ROSA, 1956, p. 12), esta, por sua vez, referenda o discurso de Edgar Morin (1997) ao fato de que se vive da morte. Ele explica que “viver é um processo de rejuvenescimento permanente. Nós rejuvenescemos a cada batida do coração, de 60 a 80 por minuto. Multiplicando por 60 temos o tempo de rejuvenescimento por hora” (MORIN, 1997, p. 19), considerando que morremos de tantas vezes nos rejuvenescer.
A sociedade como um todo está em nós desde o nascer e dela as pessoas recebem as normas, as influências, a linguagem, os costumes, os comportamentos e as proibições. Toda a vida é um constante veículo de mudança. O ser humano está sempre em desenvolvimento e cada fase sua tem seus desafios próprios e pertinentes, então, obviamente, a velhice não é uma exceção. De todo modo, as idades marcam as fases naturais pelas quais as pessoas passam de um estágio a outro durante a sua existência: o nascimento, a infância, a adolescência, a maturidade, a velhice e a morte. Além de mudanças consideradas biológicas, visualizamos outras de natureza cultural ou mesmo simbólica.
As discussões em torno das noções de velhice e de terceira idade como sendo uma etapa diferenciada da vida surgiram no período de transição entre os séculos XIX e XX, quando houve a revolução no campo dos conhecimentos da natureza emocional do homem e da criança. Nesse período, os apontamentos de Simone de Beauvoir ajudaram-nos a vermos a velhice como um prolongamento de um processo que, longe de ser uma etapa estática, se une “à ideia de mudança [porque] a vida é um sistema instável no qual, a cada instante, o equilíbrio se perde e se reconquista: é a inércia, que é sinônimo de morte. Mudar é a lei da vida” (BEAUVOIR, 1990, p. 17).
A idade é uma importante variável para determinar como os indivíduos se comportam em suas relações mútuas. Há muitas formas de envelhecer e as atitudes diante da vida, de si e entre os pares ajudam a definir a idade da velhice de cada pessoa. Sem perder de vista às possibilidades de mudanças nas áreas mentais e emocionais sem deixar de ousar e de se entregar. Tal circunstância se passa em “Buriti” (de Corpo de baile), mais precisamente com Liodoro, a de não se deixar vencer pela idade, retratada por Joselaine Medeiros em seu texto “Buriti Bom e Buriti-Grande: patriarcalismo e erotismo”:
Liodoro é chefe patriarcal, com moral, dotado de bons costumes. Perante a sociedade, não possui mácula, representando o papel do senhor que, após a viuvez, resguarda-se para a família. Mas, à sombra da noite, carece de mulher, visto que é ainda homem forte, viril, como o Buriti-Grande, ereto, magistral, o mais viçoso, imponente, vendo tudo, como um Deus. Liodoro tem suas amantes, sai à noitinha e volta só de madrugada (MEDEIROS, 2007, p. 139-140).
Pois, assim como a árvore rígida Buriti, o peso de patriarca, de proprietário e de homem experiente o faz ser o centro dos acontecimentos e inspirar desejos sexuais e dominar o universo do outro:
Avança coragem. Iô Liodoro regressa a casa às vêzes já no raiar das barras, esteve lavourando de amor a noite inteira. Iô Liodoro pastoreava suas mulheres com a severidade de quem conseguisse um dever. — “Êle mancheia e gala, como se compraz — essas duas passam o dia repousando ou se adengando para esperar o afã dêle...” — dizia nhô Gaspar, seu vassalo (ROSA, 1956, p. 695).
Se, conforme Ecléa Bosi (2009), a morte do homem é decretada quando este chega aos sessenta anos, Liodoro, Manuelzão e Riobaldo fogem desse parâmetro de inutilidade e esquecimento. Por isso mesmo, que a narração “é o testemunho mais eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória” (BOSI, 2009, p. 29). Antes de tudo, a narração também educa e àquele a quem escuta consegue dá sentido ao passado vivendo no presente diferente, permitindo-se com isto compreender o futuro.
Um mudo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte. Para quem sabe ouvi-la, é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a mísera figura do consumidor atual (BOSI, 2009, p. 82).
No caso de Riobaldo, os fatos narrados de sua vida obedecem ao tempo do passado, tendo em vista que ao ser contada pela voz do velho sertanejo, os acontecimentos passam a ser representados tal como havia acontecido, quando os mesmos eram ainda presentes, não estavam concluídos, conforme, Ariadne Nunes (2009, p. 361), “sendo impossível prever a sucessão dos acontecimentos futuros (e imprevisíveis, por ainda não terem ocorrido e a vida não obedecer a qualquer lógica sequencial)”. O início de Grande sertão: veredas persegue essa ideia:
— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acêrto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu arrebitado de beiços, êsse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dêle nem sei quem fôr. Vieram emprestar minhas armas, cedi (ROSA, 1956, p. 9).
O que para Helder Rocha (2014) a passagem a seguir expõe também esse momento de sua vida, de “folga” e “de range rêde (ROSA, 1956, p. 11)”, referindo-se a sua velhice e da sua “‘aposentadoria’ da jagunçagem, é propício para a especulação, para o pensamento e também para a fantasia, porque, antes, quando mais jovem, havia muito trabalho pesado que não lhe permitisse viver esse tipo de ação da mente e inação do corpo” (ROCHA, 2014, p. 62). Vejamos:
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pen­sava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossêgos, estou de range rêde. E me inventei neste gôsto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias (ROSA, 1956, p. 11-12).  
Helder Santos Rocha acredita que o indivíduo que está na terceira idade, se preferir, na velhice, de acordo com o ponto de vista da estudiosa da memória social dos velhos, Ecléa Bosi, a pessoas nesse estado tem uma função essencial para a sociedade que é a “da lembrança e do ‘trabalho mnemônico’, pois os movimentos exaustivos que, outrora, o ofício braçal exigia do corpo cessaram e deram lugar, agora, a um trabalho mais dinâmico de aprofundamento psíquico e espiritual” (ROCHA, 2014, p. 62)
Para os estudiosos do comportamento humano Aurélio Bolsanello e Maria Augusta Bolsanello (1981, p. 53), a condição social de velhice “só se torna uma preparação para a morte, quando se renuncia a um projeto de vida, quando se mata a esperança”. A verdade é que todos nós iremos envelhecer e é isto o que sucede com as pessoas que se tornam velhas. O respeito e a valorização da velhice advêm de um dado construto acordado com o contexto social no qual os indivíduos estão inseridos.
Elizabeth Mendonça defende a ideia de que na trama literária de Guimarães Rosa “não são retratados apenas físicos e geográficos de uma região, mas também o aspecto humano é representado por meio de personagens sertanejos que carregam uma força de transcendência dos aspectos da vida corriqueira” (MENDONÇA, 2013, p. 12). Entretanto, Benedito Nunes (2009, p. 164) assinala que a presença da velhice na obra rosiana significa mais do que simples diversificação de experiências. Segundo o autor de O dorso do tigre, a velhice impulsiona os lances de iniciação, transição e espiritualização ao longo do périplo ascensional de Eros.
Naturalmente, muitas questões são levantadas de Grande sertão: veredas e Corpo de baile, uma delas, é de que como a velhice não destina Riobaldo, Manuelzão e Liodoro à doença, à morte e ao esquecimento. Ela pode sim influenciar em suas atitudes e descobertas quanto à própria sexualidade, as formas de relacionamento afetivo, familiar, amoroso e entre as pessoas ao redor e com sua própria condição física e biológica.
Isso tudo ganha força interpretativa diante de inúmeras recepções críticas em torno da obra rosiana pelo viés da Estética da Recepção, pela qual é admitida a ideia de que a história da literatura é a matéria principal de reflexão quando argumenta que ela é um processo “de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete” (JAUSS, 1994, p. 25). Portanto, defender a imprescindibilidade de que o foco artístico é provocado pelo autor e sua produção, exclusivamente, levaria a rejeitar a ideia da participação do leitor e sua recepção da obra, não valendo também sua experiência literária. Esta concepção negaria a finalidade e o efeito da arte, que, além de pôr em uso os horizontes de expectativa da vida prática do leitor, o liberta das suas percepções rotineiras, conferindo-lhe nova visão da realidade. Isto é possível pela convocação da imaginação que trabalha junto com o intelecto durante a decodificação e compreensão de um texto.
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revistazunai · 7 years ago
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Periscópio 6: O estrangeiro na narrativa fraturada - leitura de Relato de um certo oriente
por Jean Marcos Torres de Oliveira e Marcellus Vital**
Resumo: Este artigo apresenta um estudo acerca da figura do estrangeiro no romance de Milton Hatoum, Relato de um certo oriente (1989), mais precisamente na contribuição para o desenvolvimento narrativo, tendo em vista que o texto é fragmentado e reúne os relatos de personagens com quem a narradora inominada, de volta para sua terra, interage. Embora boa parte dos relatos venha de membros da família, outros, como Dorner, o alemão, amigo de Emir, contribuem com informações sobre o passado obscuro da personagem e de todos ao seu redor. Sua presença, contudo, é marcada por uma postura quase neutra, representada pela mania de registro e o olhar intermediado pela lente de sua câmera. Procuramos expor a ideia de uma Manaus marcada pela pluralidade de etnias e vozes, mas que, com isso, se formou fraturada e conflituosa, o que está explícito, sobretudo, na sua urbanização. Parte dessa formação começa com o primeiro ciclo da borracha, tal qual foi mostrado por críticos como Rafael Leandro (2014). Quanto ao hibridismo social, procuramos embasamento em Homi Bhabha (1998) e Zilá Bernd (1998), que nos ajudam a compreender o processo de formação multifacetado do qual a capital amazonense é exemplo.
Palavras-chave: Miltom Hatoum; Relato de um certo oriente; estrangeiro; narrativa.
Abstract: This paper aims to study the figure of the foreigner in the Milton Hatoum’s novel, Relato de um certo oriente (1989), more precisely in the contribution for the development narrative, in view of the text is fragmented and it gathers the stories of characters with whom the innominate narrator, back to her land, interacts. Though a good part of the stories comes to members of the family, others characters, like Dorner, the German, friend of Emir, contributes with information about the dark past of the character and all around her. The presence of Dorner however is marked for a posture almost neutral, represented by the mania of record and the look intermediated by the lens of your camera. We try to explain the idea of a Manaus marked by the plurality of ethnicities and voices, but what thereat it was formed fractured and conflicted, what is explicit, mainly, in its urbanization. Part of that formation begins with the first rubber cycle, such as was demonstrated for critics like Rafael Leandro (2014). As for social hybridity, we seek grounding in Homi Bhabha (1998) and Zilá Bernd, who help us to understand the process of multifaceted training whose the Amazonian capital is example.
Keywords: Milton Hatoum; Relato de um certo oriente; foreigner; narrative.
Introdução
Milton Hatoum, embora importante para a literatura brasileira contemporânea, ainda não ganhou destaque na historiografia recente, aparecendo, por exemplo, apenas em um parágrafo de Alfredo Bosi na atualização de sua História concisa da Literatura Brasileira, quando apenas o Relato havia sido publicado. Trabalhos que explorem aspectos que justifiquem sua importância, como é parte de nosso objetivo, são necessários na divulgação de um escritor motivado em evidenciar os processos de desenvolvimento de uma região até então pouco explorada na literatura, ou apenas explorada com elementos relativos ao exotismo do espaço.
Em texto publicado fora do Brasil, na revista Letterature d’America, Milton Hatoum (2002, p. 5-17) aborda questões relativas ao seu primeiro romance, sobretudo no que concerne à questão do estrangeiro na narrativa. Tal marca não aparece apenas nas personagens que surgem ao longo do texto, mas na forma como suas raízes libanesas contribuíram para a elaboração do Relato de um certo oriente (1989). Suas próprias experiências durante o regime militar são evocadas, com inúmeras ressalvas, para explorar o universo ficcional que possui marcas históricas de um tempo e espaço muito específicos, a Manaus do século XX com memórias ainda mais antigas as quais remetem, por exemplo, aos tempos da economia da borracha, seu auge e derrocada, que é acompanhada do desenvolvimento da cidade e o estabelecimento das famílias que migraram em busca de uma vida melhor.
Sem dúvida, os aspectos das relações com o Outro, a forma como os nativos interagiram com os imigrantes e como, ao longo do tempo, esses imigrantes se tornaram parte daquela sociedade são temas explorados pelo escritor amazonense, que não esconde algumas de suas leituras ressonantes nos seus textos e que nos ajudam a compreender como Milton Hatoum entendia parte dessas relações. Seu texto para a revista italiana nos apresenta duas epígrafes curiosas, sendo a primeira do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), consagrado pelo seu realismo fantástico que representa um dos pontos altos da literatura latino-americana; a outra de um dos maiores escritores da literatura brasileira, o mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), que explorou, ao máximo, as questões de alteridade, dos estrangeiros no interior de sertão e a recepção deste sertanejo, marcada geralmente pela cordialidade de ambas as partes, o que explica a epígrafe extraída do monólogo de Riobaldo no célebre Grande sertão: veredas (1956), o único romance de Guimarães Rosa e um dos grandes textos da nossa literatura. Ao longo de suas andanças pelo sertão como jagunço, Riobaldo vai nos apresentando a alguns viajantes que estavam de passagem ou que foram tentar ganhar a vida nas paragens do interior brasileiro. É o caso do turco Assis Wababa e do alemão Vuspis. Riobaldo afirma que sempre gostou muito dos estrangeiros, travando certa relação afetiva com alguns.
Alguns outros textos do Guimarães Rosa exploram mais profundamente a questão da interação entre o nativo e o Outro, como é o caso da novela do volume Corpo de baile (1956), “O recado do morro”, que narra a viagem de uma comitiva guiada por Pedro Orósio com o objetivo de que seo Alquiste visite e pesquise as locações por onde passam. Ao longo do texto, ambos expressam suas opiniões explícita ou implicitamente sobre o outro; seo Alquiste se admira pela estatura de soldado de Pedro, enquanto este, namorador, se espanta quando ouve de Alquiste sua vontade de namorar uma moça mulata, quando possuía o desejo de conseguir uma com traços mais europeus.
O que nos chama mais atenção, no entanto, são os aparatos utilizados pelo naturalista, voltado para a ciência se valendo de binóculos, uma câmera, cadernetas, além de desenhar com perfeição os elementos que procura reproduzir, como animais e plantas. Para alguns críticos, como Marli Fantini (2008), os mecanismos aproveitados, como câmera e binóculos, seriam alguns aspectos da Modernidade que contrastam com a realidade sertaneja, numa época em que a codaque ainda despontava nos mercados europeus como marca popular de máquinas fotográficas. Isso vai nos ajudar a pensar no modo como Milton Hatoum utiliza aspectos semelhantes no alemão Dorner, que é parte essencial em Relato de um certo oriente, por ser portador de fragmentos importantes para compor o mosaico que a personagem inominada busca construir ao voltar a sua terra.
I
Muito se tem pensado a pós-modernidade no contexto brasileiro em muitas esferas do conhecimento e a Literatura não é a exceção. O que aqui se pensa, contudo, ainda que no estudo de um autor que apresenta seu primeiro romance ainda na década de 80, é uma obra que lida com aspectos de uma modernidade, muitas vezes dita tardia, no contexto de uma cidade que teve, basicamente, seu desenvolvimento ligado aos aspectos econômicos provenientes da extração da borracha, tornando-se quase exclusivamente fornecedora de matéria-prima. A migração da população de estados vizinhos ou mesmo de países do outro lado do Atlântico tornou o quadro ocupacional ainda mais caótico e desordenado, sem que fossem impostas políticas que ajudassem a controlar o desenvolvimento confuso em que Manaus estava envolvida.
Mais tarde, no segundo ciclo da borracha, o Governo brasileiro aumentou o fluxo de imigrantes na tentativa de fornecer ainda mais material para os Aliados na Segunda Guerra. A tentativa de apresentar aspectos mais próximos daqueles modelos europeus, que funcionaram parcialmente na recém-criada capital brasileira, surgiram quando os militares assumiram o comando do país. Esse suposto progresso, pregado pelos então governantes, apresentam aspectos próximos aos que surgem nos estudos da modernidade na América Latina.
O artigo de Carlos Gadea (2007) apresenta-nos um panorama sintético sobre os aspectos da modernidade na América Latina que muito se assemelham com a formação da capital amazonense. Sobre seu estudo, Gadea nos diz
A idéia [sic] de fundo é enfatizar que uma análise da modernidade na América Latina sugere destacar aqueles dispositivos normativos que se referem à formalização e institucionalização de experiências sociais e culturais. A modernidade apareceria, assim, como uma categoria claramente definível devido ao produto de uma construção sociológica baseada na clássica dicotomia entre modernidade e tradição. (GADEA, 2007, p. 105)
Com isso, surge a ideia de modelos pré-estabelecidos retirados da tradição que emerge de países que já passaram pelo processo de modernização. O que se assemelha, já no campo da literatura, com o exposto por Tania Pelegrini sobre a modernidade problematizada como proveniente desses modelos europeus. Alguns aspectos, contudo, apresentam-se radicais em relação aos originais, numa forma muito mais superficial do que dotada de profundidade em relação aos aspectos sociais. É contestável, segundo o autor, a ideia de que há apenas uma substituição de valores tradicionais pelos modernos no contexto latino-americano, sendo mais apropriada a ideia de uma hibridização desses entre a modernidade e a tradição. Além disso, há a concepção de que, como não há um tempo relativo necessariamente à modernidade o desenvolvimento na América Latina supõe “uma repetição destemporalizada de uma suposta modernidade gerada na Europa ou nos Estados Unidos” (GADEA, 2007, 106), mais uma vez reforçando a ideia dos modelos, desta vez pensando, também, no desenvolvimento do país norte-americano.
Todas essas ponderações servem para argumentar que não se pode pensar numa modernidade “particular” na América Latina. Talvez não no sentido da independência baseada nos aspectos sociais, históricos e econômicos que deveria repensar a concepção de modernidade no âmbito em questão, mas a ideia de hibridização faz com que surja, de certa forma, algo que é substancialmente diverso dos moldes europeu ou norte-americano, o que no caso do Amazonas chamamos “fraturada”, pois é baseada em tentativas retalhadas que formaram a totalidade apresentada até hoje na cidade de Manaus e arredores.
Outros aspectos são importantes para a introdução do nosso trabalho, que aparecem na obra de Milton Hatoum e são problematizados pelo autor amazonense, embora não se possa subentender que apenas um ou outro apresente os componentes que expomos até aqui, sendo necessária a compreensão de que os romances e contos compõem uma unidade que se liga por intermédio de alguns personagens ou até mesmo de discussões que perpassam as obras de Hatoum.
Daí que, se num primeiro momento, o escritor focou em dramas familiares cujo cenário é a Manaus lidando com as consequências de seu primeiro fluxo migratório, em outro estaremos diante do quadro de tentativa de modernização empreendida pelo Governo Militar, bem como a repressão daqueles que lutaram contra o progresso a qualquer custo dos governantes, o que é, também, parte da ideia de modernidade na América Latina, na qual a marginalização foi ferramenta para criar a superficialidade da qual tratamos. Ferramenta utilizada para impor uma suposta ordem socialcultura (GADEA, 2007, p. 107) baseada numa institucionalização proveniente de seus modelos e ideais progressistas. Fala-se numa “universalização de normas” e “generalização de valores” que procuram excluir aqueles que não dispostos a seguirem tais sistemas pré-estabelecidos. “Na América Latina, este se inicia e se consolida com a industrialização massiva, a urbanização em grande escala e os diferentes dispositivos de racionalização da vida cotidiana” (GADEA, 2007, p. 107), que é exatamente o que surge em Manaus quando esta se torna imensa fonte de renda para a Nação. Foi deixada de lado durante a derrocada da borracha e mais uma vez visada quando eclodiu a Segunda Guerra e a necessidade de dar suporte aos Aliados. A implantação da Zona Franca pelos militares encerra um ciclo de desenvolvimento completamente fraturado e que, como consequência, tornou Manaus exemplo dos aspectos mais evidentes da modernidade na América Latina. A obra hatoumiana é permeada desses aspectos, que se encontram tanto na forma como no conteúdo da narrativa. Partimos do primeiro romance e dos elementos primordiais do universo manauara na ficção de Milton Hatoum, com a figura do estrangeiro e a voz que este ganha num ambiente em que se envolveu durante os processos migratórios do primeiro ciclo da borracha, assim como a forma que a narrativa ganha, passando por diversos narradores e compondo o quadro geral.
II
Se, em Guimarães Rosa, temos o sertão sertanejo como o espaço predominante da narrativa, em Milton Hatoum, Manaus, como dissemos, é que aparece evidenciada e em um período que foi apenas parcialmente explorado na Literatura brasileira, ainda que certos rótulos, como literatura amazônica, persistam nos estudos literários ainda hoje. Talvez esse tenha sido um dos motivos pelos quais o escritor amazonense tenha se preocupado em fugir, de certa forma, do exotismo:
Por outro lado, escrever sobre a floresta exuberante, os índios e seringueiros pode significar um aceno à imagem que muitos leitores estrangeiros (e brasileiros) esperam de um escritor do Amazonas. Por isso uma de minhas preocupações foi evitar o exotismo e a descrição da natureza, que, muitas vezes, podem tornar-se uma camisa de força, uma forma de inscrever o texto numa área geográfica. (HATOUM, 2002, p. 11)
Evidentemente que, como o próprio autor afirma, é difícil que não escapem certas descrições ou aspectos da infância de Milton Hatoum na narrativa, mas esse não foi o foco do amazonense que mergulha nos conflitos familiares na medida em que a narrativa avança, o que descentraliza da questão espacial e da natureza exuberante, como nos mostra Rafael Voigt (2014), que estudou um memorial do ciclo da borracha nas narrativas amazônicas, reservando um bloco ao amazonense. O texto se mostra importante por trazer alguns desses aspectos que Hatoum pincela sem necessariamente aprofundar. Voigt afirma que aspectos da economia e migração para Amazônia estão expressas em algumas obras de Milton Hatoum indiretamente, mas logo são deixadas um pouco de lado para dar lugar aos dramas familiares. Essa é uma das questões de maior relevância, ao tratarmos do escritor, pois se tornou uma constante em todos os romances que publicou até então.
A narrativa hatoumiana funciona como um foco de câmera cinematográfica que se expande aos poucos, revelando outros elementos ao redor do núcleo. Enquanto em Cinzas do Norte (2007), último romance publicado, a personagem Mundo viaja pelo Brasil e alguns países da Europa, em Relato de um certo oriente é centralizada a visita da narradora principal à Manaus após anos internada em uma clínica de repouso, possivelmente em função da “agitação vertiginosa da cidade de São Paulo [onde morou]”, como afirma Marleine de Toledo, em seu Milton Hatoum: itinerário para um certo Relato (2006), texto esclarecedor para o exame de aspectos básicos da narrativa, como enredo, personagens, espaço etc. Voltando para a questão do foco, Dois irmãos (2000) é como um meio termo, em que a ação se passa toda em Manaus, contudo um dos irmãos gêmeos vai morar no Sudeste do país e se torna um dos apoiadores do progresso proclamado pelo regime militar. Embora, na infância, Yaqub tenha morado no Líbano, o rapaz, ainda que marcado pela experiência, reserva severo silêncio em relação ao tempo em que esteve fora do Brasil.
Com isso, podemos pensar que o trajeto que o escritor percorre pela obra é um pouco o funcionamento do desenvolvimento da capital amazonense, que aos poucos foi se abrindo para o mundo externo. Curiosamente isso tudo parte de famílias que não são nativas da região, embora aos poucos se tornem tão amazonenses quanto os que habitam há tempos a região. Daí surge uma questão relevante quanto aos tipos de estrangeiros que compõem a sociedade manauara.
É sabido que a economia da borracha foi um dos grandes modos de produção que ajudaram a sustentar a nação durante período áureo do ciclo. Milhares de pessoas, brasileiras ou não, migraram para o interior do Brasil em busca de melhores condições de vida. E isso não aconteceu apenas uma, mas duas vezes, quando consideramos que houve dois momentos em que a borracha esteve em alta, chamados “ciclos gomíferos”. O estudo de Voigt, que pensa parte da Literatura Amazônica como um memorial dos ciclos da borracha, nos ajuda a compreender como as questões relativas ao período da borracha foram ficcionalizadas, além de serem parte de uma problematização que se estende até hoje nas narrativas produzidas na região:
pode-se afirmar que o ciclo da borracha é o grande responsável pela entrada definitiva das letras amazônicas no circuito nacional. Porém, essa entrada não se promove de maneira simplista. Ao mesmo tempo em que a borracha produzia mudanças na estrutura econômica e social da Amazônia, criavam-se novas condições materiais para a produção e circulação da literatura, impulsionadas pela atmosfera belle époque de Belém e Manaus, as duas principais capitais do Norte. (LEANDRO, 2014, p. 8)
Fala-se numa atenção dada pelo centro do país às terras amazônicas em função da movimentação financeira gerada pelo ciclo da borracha, o que projetou novamente a imagem do eldorado amazônico para o imaginário nacional *. O espaço que se abre, com isso, é plural, de culturas múltiplas que interagem para a construção dessa sociedade multifacetada que compõe a Manaus de Hatoum. Vale dizer que, no segundo ciclo, proveniente da Segunda Guerra Mundial em que o Brasil se tornou o principal fornecedor de borracha dos Aliados, o Governo brasileiro patrocinou diversas campanhas de apoio à migração de povos para a Amazônia, com promessas que, em quase todas as vezes, não se realizaram. Foram feitos cartazes com ilustrações do suíço Jean-Pierre Chabloz (1910-1984) com temas de oportunidades na capital amazonense, anunciando fartura e vida nova que dificilmente chegaram para os que resolveram acreditar.
Ao conceber, em sua obra literária, um cenário onde grupos minoritários migrantes — libaneses, alemães, portugueses etc. — transitam entre culturas diversas, Milton Hatoum confere à Amazônia um aspecto de “não amazonismo”, fazendo dela um local fronteiriço e multifacetado, que se distancia da concepção de homogeneidade cultural como sendo um importante instrumento edificador de um espaço literário periférico. Segundo Homi Bhabha:
A demografia do novo internacionalismo é a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades camponesas e aborígenes, as poéticas do exílio, a prosa austera dos refugiados políticos e econômicos. É nesse sentido que a fronteira se torna o ligar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente [...] Os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas “orgânicas” — enquanto base do comparativismo cultural  —, estão em profundo processo de redefinição. (BHABHA, 1998, p. 24)
Ao assumir uma postura não apologética acerca da Amazônia — não retratar de maneira idealizada o homem amazônico e o meio, preocupar-se não somente em levantar questões regionalistas e folclóricas ou centrar a narrativa apenas na recuperação de histórias amazônicas reprimidas —, Milton Hatoum, em Relato de um certo Oriente, afasta-se da “era de oposições binárias, de essencialismos e de culto à pureza” (BERND, 1998, p. 43), para aproximar-se “d[e] outra, marcada por heterogeneidades, polifonias e cruzamentos onde a recuperação identitária estaria mais atenta à recuperação de traços, vestígios, fragmentos e de vozes até então inaudíveis do que ao registro de vozes legitimadas e oficiais” (BERND, 1998, p. 43). Ou seja, Milton Hatoum constrói uma narrativa em que essas múltiplas vozes surgem de grupos variados sem que haja qualquer hierarquia entre os discursos. Somente munido de cada parte é que o todo é moldado e desvela o quadro que a narradora busca em sua viagem. Enquanto familiares contribuem para o relato, o alemão Dorner também possui sua parcela de narrativa, ou mesmo a quase escrava Hindié Conceição, que servia a família de Emilie e que esteve ao seu lado durante o tempo final de sua vida.
Trata-se, portanto, da elaboração de um espaço múltiplo (mas também antagônico, hostil), capaz de absorver elementos provenientes de culturas exteriores ─ obtidos graças às novas conexões internacionais ─, sem, contudo, deixar de lado valores culturais próprios:
Se algo havia de análogo entre Manaus e Trípoli, não era exatamente a vida portuária, a profusão de feiras e mercados, o grito dos mascates e peixeiros, ou a tez morena das pessoas; na ver­dade, as diferenças, mais que as semelhanças, saltavam aos olhos dos que aqui desembarcavam, mesmo porque mudar de porto quase sempre pressupõe uma mudança na vida: a paisagem oceânica, as montanhas cobertas de neve, o sal marítimo, outros templos, e sobretudo o nome de Deus evo­cado em outro idioma. (HATOUM, 2017, p. 29)
Consequentemente, esse “intercâmbio de valores” abre espaço não apenas para benéficas permutas antropológicas, questões referentes ao enriquecimento do cabedal culinário, pois é, também, um vasto campo para prováveis conflitos interpessoais. Tais embates surgem como decorrência das dificultosas adaptações ao hibridismo cultural, seja no campo das relações sociais, religiosas, linguísticas e culturais, aos quais aqueles que residem no entre-meio são submetidos.
Para certos personagens do romance de Hatoum, alojados nos interstícios das diferenças culturais, as adaptações não decorrem harmonicamente. Foi o que ocorreu, provavelmente, com “[o]s quatro filhos de Emilie; Hakim e Samara Dé­lia, (...), e os outros dois, inomi­náveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o demônio ta­tuado no corpo e uma língua de fogo” (HATOUM, 2017, p. 10), personagens que transitavam entre duas realidades sociais e que “sentiram na pele” o quão difícil foi adequar-se à atividade de empregar a língua portuguesa na escola e nas ruas da cidade de Manaus e conviver com o aprendizado do “alifebata” árabe na própria residência. Tratava-se de uma dualidade cultural de “viver vidas distintas”, à qual precisavam submeter-se diariamente.
Por outro lado, em se tratando de hibridismo cultural, há, também, a possibilidade de absorção ou aceitação de valores locais, por parte dos migrantes fixados no entre lugar. Em Relato de um certo Oriente, um momento de aceitação da cultura da Região Norte pode ser percebido quando a personagem Emilie faz uso dos serviços de um vidente chamado “Tucumã”, famoso por conseguir desvendar o paradeiro de pessoas desaparecidas nos rios e na floresta.
Graças aos “poderes” do vidente, o corpo de Emir ─ irmão de Emilie e grande amigo do alemão Dorner ─, pôde ser encontrado. Além de ser possuidor da habilidade visionária, Lobato Naturidade, nome de batismo de Tucumã, era reconhecido por ser um renomado curandeiro. Respeitado por Emilie, Naturidade tinha entrada garantida na Parisiense e, posteriormente, na nova casa da família. Quando solicitado, o curandeiro lançava mão de plantas e ervas da Amazônia para o preparo de unguentos medicinais
Era um mestre na cura de dores reumáticas, inchações, gripes, cóli­cas e um leque de doenças benignas; para tanto, misturava algumas ervas com mel de abelha e azeite doce, e massageava os membros inchados e reumáticos do corpo com uma pasta que consistia na mistura de cascas piladas de várias árvores, gotas de arnica e uma pitada de sebo de Holanda. (HATOUM, 2017, p. 105)
Desta maneira, as reminiscências pessoais presentes na narrativa da personagem central de Relato de um certo Oriente, e que dão vida a esse romance de Milton Hatoum, ilustram o quão importante podem ser as relações entre “passado-presente” e o posicionamento cultural do “novo” no entre lugar ─ tal ideia encontra-se no pensamento de Silviano Santiago ─, local estratégico que possibilita a junção de temas, aparentemente, incompatíveis, como a inserção da cultura árabe em território amazônico. Ou ainda, propicia o desenvolvimento de um mesmo tema em situações diversas. Trata-se, portanto, do enriquecimento da literatura produzida na América Latina, que, gradativamente, se desvincula do “compromisso” de relatar unicamente as experiências relacionadas ao imaginário local.
III
Falamos sobre a multiplicidade de discursos que surgem no Relato de um certo oriente. Vozes oriundas de classes e culturas diferentes que possuem o mesmo fim, de relatar os momentos conturbados do passado obscuro que a narradora vasculha na volta para Manaus. Nas palavras de Marleine Toledo:
O Relato é um romance de memórias, polifônico, com cinco narradores. O primeiro narrador relembra alguns fatos, pessoas, situações, depois passa a palavra para um segundo, este para um terceiro e assim sucessivamente. Um parece completar o anterior, em pé de igualdade, sempre em busca do que aconteceu no passado. (TOLEDO, 2006, p. 35)
Não é, contudo, um discurso passado propositalmente, pois a narradora principal, cujo nome não nos é revelado, é que procura, nos diálogos com as personagens, remontar o passado. Alguns membros da família e outros que não são aparecem com seus relatos e ajudam na busca por respostas sobre os momentos mais importantes da vida da matriarca Emilie e seu relacionamento com os familiares.
Embora as vozes sejam de pessoas diferentes, o estilo é o mesmo para todos, sem marcas que caracterizem as particularidades de cada um, mesmo que suas impressões sobre as outras personagens sejam dissonantes. Isso tudo porque, ainda que sejam diferentes pessoas, todos os relatos são padronizados pela narradora principal. Ela mesma atesta que não pode transcrever aspectos que caracterizassem cada um, suas diferenças e trejeitos.
Também me deparei com outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. (HATOUM, 2017, p. 189)
Isso explica a padronização dos discursos de cada um dos narradores e sustenta o papel da narradora principal de recuperar as memórias de um tempo já quase esquecido em que as lembranças são turvas, neblinadas e, aos poucos, vão se formando, o que é passado para o leitor na forma estrutural do romance, constituído dos fragmentos recolhidos por ela. O leitor também é partícipe da obscuridade que vai desaparecendo, conforme a narrativa se desenvolve, ou melhor, conforme os fragmentos se completam. Evidentemente, é preciso certo de grau de atenção, pois as vozes se confundem e, por vezes, não é bem marcado o momento em que a palavra está com outro narrador. Isso tudo ajuda na atmosfera de suspense e confusão em que a narradora está envolvida na busca pelas respostas.
O que nos chama atenção é a intromissão de alguém externo, relativamente próximo à família, mas um estrangeiro, que se inseriu já adulto no mundo amazonense e que, ainda assim, tem papel importante na constituição da narrativa. Dorner, como dissemos, lembra muito aqueles estrangeiros rosianos, por aspectos comportamentais, de certa forma, e pelas ferramentas que utiliza. Sua fotografia de Emir é o último registro do irmão suicida de Emilie, que mandou pôr a imagem no túmulo do rapaz, além de fazer outras treze cópias que utilizava para um ritual todos os anos no dia em que se completava outro ano da morte do irmão, que já tinha ameaçado se suicidar, quando, ainda no Líbano, a irmã havia se juntado à um convento em Trípoli. Embora ambos também se apresentem, de certa forma, como estrangeiros, alguns traços, principalmente em Emilie, atestam para a fusão entre os mundos. Ela era fervorosa católica, enquanto o marido praticava a religião mulçumana.
Curiosamente, Dorner, de forma simbólica, era fotógrafo, como se captasse aquele mundo pela sua lente e não necessariamente com seus olhos. Uma marca que reforça sua posição como apenas observador. Quando da morte de Emir, assim que percebeu sua expressão apática a caminho do suicídio, não procurou saber o que se passava; tirou a foto que Emilie tanto adorava, o que, segundo o próprio Dorner, era um dos seus maiores arrependimentos, ainda que para isso tivesse a justificativa de que estava atento para a orquídea que o rapaz segurava, um raro exemplar que chamou atenção por, naquele dia, ter fotografado outras não tão raras:
Não sem um certo arrependimento, eu pensava: por que eu não levara Emir para a casa dos Ahler? Por que fotografá-lo com a orquídea na mão e deixá-lo vagar, atordoado, a um passo do desastre? Aquelas imagens de Emir, ainda vivas na minha memória, estavam registradas no filme da câmera que eu esquecera no La Ville de Paris. (HATOUM, p. 74, 2017)
Podemos apenas supor que a falta de interferência de Dorner se deva a um aspecto inconsciente de não interferência naquele mundo, mantendo a postura de observador que destacamos no alemão, ainda que as troças de Hakim não ofendam o alemão que parece ter consciência de sua neutralidade. O mesmo Hakim, durante seu relato, realça o aspecto de distanciamento de Dorner e comenta a fusão que aparentava entre seus olhos e a câmera fotográfica, sempre em mãos, embora atribua sua postura neutra ao comportamento que desvelava uma personalidade distraída:
Tu e teu irmão conheceram Dorner. Não sei se naquele tempo foste aluna dele, mas sabes o quanto era distraído. Às vezes pensava que sua distração era uma maneira de se esquivar das pessoas e da realidade que o cercavam; tudo o que ele enxergava era enquadrado no visor da câmera; dizia-lhe, troçando, que as lentes da Hassel, dos óculos e as pupilas azuladas dos seus olhos formavam um único sistema ótico. Ele nunca se irritava com essas comparações um tanto aberrantes; respondia-me que ao olhar para a Hassel via seu próprio rosto. (HATOUM, 2017, p. 66-67)
A proximidade do alemão Dorner com o estrangeiro rosiano não se dá apenas pelo uso de aparelhos específicos, mas pelas atitudes metódicas e a necessidade de registro, o que é várias vezes reforçado por Hakim, inclusive na imagem que forma do alemão quando funde os olhos do fotógrafo à lente da câmera, como um eterno observador cuja função não é muito mais que a de recolha de dados, embora a construção se desse, obviamente, pelo estranhamento e troça de Hakim da constante utilização da máquina fotográfica, como se ambos fossem um só. Se o Alquiste de “O recado do morro” tomava nota de traço de tudo que conhecia, Dorner, de O relato de um certo oriente, não foge desse padrão. Nas conversas com Hakim, a narradora inominada descobre que o alemão mantinha registros das suas conversas com o marido de Emilie, revelando uma necessidade de preservar toda a informação da melhor forma possível, além de destacar a imensa contribuição de Dorner para a composição da narrativa, embora pela via da distância e do registro fiel dos fatos, o que não possibilitou uma intervenção no dia do suicídio de Emir. Ao contrário do estrangeiro rosiano, no entanto, o alemão não nutria muito gosto pela cidade em que residia, Manaus, classificando-a como “corroída pela solidão e decadência” (HATOUM, 2017, p. 68).
Dorner também apresenta uma postura sobre os imigrantes. Compara Emir aos outros que padeceram ao adentrarem nas matas, adoecendo e enfrentando feras na busca por oportunidades que os tirassem da pobreza, conseguindo um império depois de uma vida de desgraças. O desdém do alemão pela situação às quais os imigrantes se submetiam pode explicar o distanciamento que manteve, durante a vida, daquela realidade. Foi confidente dos percalços enfrentados pelo marido de Emilie e pôde, com isso, colher bastantes informações a respeito dos imigrantes.
Em certo momento é perceptível que, como bom observador, Dorner se dedicou bastante ao entendimento do mundo amazonense. Desvelando o choque de várias culturas, comenta a estranheza que seu comportamento podia causar na família de Emilie: “Nunca me perguntaram se eu era religioso, mas talvez condenassem secretamente este estrangeiro que vivia no mato entre os índios, que nunca entrara numa igreja, e, no entanto, podia rezar uma Ave-Maria em Nhengatu” (HATOUM, 2017, p. 77). Vale destacar que Emilie praticava a religião católica e o marido a muçulmana, mas tinham um pacto para deixarem que seus filhos escolhessem a religião que preferissem, ou nenhuma das duas. A versão da reza em Nhengatu é marca da colonização que impôs a religião católica aos índios, assim como sua língua, mesmo que alguns poucos ainda tenham mantido a língua materna, o que aparentemente não foi um impedimento para catequizá-los.
Em Hatoum, temos inúmeros estrangeiros, vindo de lugares diversos. Enquanto uns, como as famílias libanesas recorrentes em suas narrativas, acabam se mesclando ao novo espaço, sendo nos seus hábitos ou nas formas mais simples, como a culinária, que apresenta tanto ingredientes locais como os importados, outros são responsáveis por mudanças drásticas na vida amazonense. A maioria dos projetos arquitetônicos na cidade são empreendidos por estrangeiros, como o do indiano em Dois irmãos, que é o responsável pelo ápice da batalha entre os gêmeos. Dorner é alguém que, em O relato de um certo oriente, está lá para observar e é o responsável por revelações cruciais para a composição da narrativa. Não carrega os traços caóticos dos estrangeiros que procuram enriquecer com os projetos megalomaníacos na cidade. Também não se mistura completamente com os povos locais. Apresenta uma posição relativamente neutra sobre aquele espaço, embora seja muito próximo da família de Emilie, o que lhe rendeu uma parcela portentosa de informações acerca de todos. Sua relação com a cidade, embora conturbada, é de curiosidade, pois afirma que foi nela que adquiriu a mania de anotar tudo que ouvia de todos. É essa a postura de um outro numa terra nova, desconhecida, e que guarda inúmeros segredos e mistérios. Dorner, contudo, diferentemente de outros, desponta como parte da lente de sua câmera, captando aspectos que considera importantes, sendo parte determinante do quadro que se forma, ao juntar todas as peças buscadas pela narradora inominada de volta à sua terra natal.
Conclusão
Quando pensamos em Relato de um certo oriente logo nos vem à cabeça a imagem de um quebra-cabeças, um todo composto por pedaços fraturados que aos poucos apresenta os conflitos e problemas de uma família libanesa no Amazonas. É evidente que, como fratura, o todo não é sempre captado de maneira plena, um pouco semelhante à própria literatura, na qual nunca podemos contemplar uma obra na sua forma completa, sempre necessitando a contribuição de novas visões sobre o objeto. Semelhante também à cidade manauara, vítima de uma modernidade padronizadora, que procurou, em certo momento, reproduzir modelos que não se encaixavam na realidade amazonense.
Esses aspectos estão explícitos na chegada de estrangeiros empresários que queriam forçar a construção de suas obras megalomaníacas quanto representado nos núcleos familiares apresentados por Milton Hatoum. Famílias que conseguiram se adequar durante muito tempo àquele novo mundo, convivendo com suas religiões, costumes, culinária etc. mas que também, aos poucos, foram fraturadas. Por outro, a figura de Dorner é de um estrangeiro neutro, que possui sua parcela de contribuição na narrativa, mas que pouco interfere nos dramas familiares descritos por Hatoum. Nada fez, por exemplo, quando Emir se encaminhava para o suicídio, ainda que notasse certa estranheza na fisionomia do rapaz. Esse é apenas um aspecto de um tipo de estrangeiro que não queria fazer parte daquele mundo, mas observá-lo, guardando distância dos costumes e hábitos locais, mesmo que também fosse parte da cidade, ainda que apenas registrando e descobrindo aquelas paragens.
Milton Hatoum possui ciência de todos esses tipos de estrangeiros que compõem a capital e soube representá-los de maneira contundente. Mais do que isso, deu voz a eles, sejam os que quiseram ser parte de Manaus ou os que tinham conhecimento dos problemas da cidade, como foi o caso de Dorner e sua câmera. O Relato e a obra hatoumiana, como um todo, são dotados desses aspectos que nos ajudam a compreender não só a Manaus em formação, mas a Manaus oriunda dos processos de modernização que formaram uma capital construída com retalhos, múltipla, plural, mas um tecido remendado em que se é possível notar cada fio da costura.
Nota
* Sobre o eldorado amazônico, ver o já célebre estudo de Neide Gondim (1994). Vale dizer que o próprio Rafael Leandro nos fala um pouco sobre como o foco do eldorado vai mudando ao longo do tempo na Amazônia. Se para os colonizadores era a ideia do ouro, vinculada ao imaginário sobre a mítica cidade banhada na cor dourada, ao longo do tempo se transformou na ideia da borracha ou mesmo nas riquezas naturais de forma. Desta última, talvez o melhor exemplo seja a ideia de ocupação do regime militar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERND, Zilá. A literatura comparada e as literaturas periféricas. In: MARQUES, Reinaldo; BITTENCOURT, Gilda (orgs.). Limiares críticos.  Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 39-44.  
BHABHA, Homi. “Locais da cultura”. In: O local da cultura. Trad. Eliana Reis; Gláucia Gonçalves; Myriam Ávila. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 21-42.
GADEA, Carlos. Dinâmica da modernidade na América Latina: sociabilidades e institucionalização. Topoi. v. 8, n. 15, p. 105-123, jul.- dez. 2007.
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
_________. Relato de um certo oriente. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
_________. Um certo oriente. Letterature d’America, Roma. v. 22, n. 93-94, 5-17, 2002.
FANTINI, Marli. Relato de uma incerta viagem. In: Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São Paulo: SENAC; Cotia: Ateliê, 2003. p. 185-206.
LEANDRO, Rafael Voigt. Os ciclos ficcionais da borracha e a formação de um memorial literário da Amazônia. Brasília, 2014. 220 f. Tese (Doutorado em Letras), Faculdade de Letras, Universidade de Brasília.
ROSA, João Guimarães. Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 2 v.
__________. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956.
TOLEDO, Marleine. Milton Hatoum: itinerário para um certo Relato. São Paulo: Ateliê, 2006.
**Jean Marcos Torres de Oliveira (Doutorando/CAPES/PPGL/UFPA)
**Marcellus Vital (Doutorando/UFPA)
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revistazunai · 7 years ago
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Periscópio 7: Inácia - degradação burguesa em Belém do Grão-Pará, de Dalcídio Jurandir
por Jonathan Pires Fernandes
Resumo: Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla que analisa elementos como degradação e atonia em personagens do universo romanesco de Dalcídio Jurandir, romancista paraense cuja obra é composta por onze romances. Nosso estudo, até o momento, tem contemplado personagens como Eutanázio, de Chove nos campos de Cachoeira, Virgílio Alcântara, de Belém do Grão Pará e Inácia, objeto de análise neste artigo e que também pertence ao romance Belém do Grão Pará.  A análise da degradação presente em Inácia será feita à luz dos trabalhos de Berman (1982), Furtado (2002) e Marx & Engels (1848).     
Palavras-chave: Degradação. Inácia. Burguesia. Ciclo da Borracha.
INTRODUÇÃO
Belém do Grão Pará (1960), quarto romance de Dalcídio Jurandir, é o primeiro do ciclo Extremo-Norte que tem como espaço principal a cidade de Belém do Pará. Os três primeiros – Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947) e Três casas e um rio (1958) – têm como espaço principal a ilha do Marajó. A partir de Belém do Grão Pará, a capital paraense passa a ser o principal espaço dos romances de Dalcídio Jurandir, ainda que em outros romances, posteriores a ele, apareçam outros espaços: a cidade de Muaná, em Passagem dos Inocentes (1963); a cidade de Cachoeira, na primeira parte de Ponte do Galo (1971); a fazenda do Coronel Braulino, localizada no Marajó, que surge através de reminiscências dos personagens de Os Habitantes (1976); o Rio de Janeiro e as entranhas da Amazônia em Chão dos Lobos (1976); e uma cidade do Baixo Amazonas (provavelmente Gurupá) em Ribanceira (1978).      
Aprioristicamente, poderíamos dizer que o tempo histórico do romance é aproximadamente os anos 20 do séc. XX, mais precisamente após a queda de Antônio Lemos – um dos políticos mais importantes do Pará[1].  No entanto, como é de praxe nos romances dalcidianos, o narrador realiza várias analepses através de lembranças dos personagens. Dessa forma, fatos ocorridos na era “Lemista” são retomados e esses fatos são importantes para a construção dos personagens e o desenvolvimento do enredo.
Nesse sentido, o tempo histórico de Belém do Grão Pará é amplo, abrangendo tanto uma parte do período áureo do Ciclo da Borracha – quando Antônio Lemos era um dos políticos mais poderosos da Amazônia –, quanto a sua queda que coincidiu com a queda de Lemos, fato registrado logo na primeira página do livro:  “Com a queda do velho Lemos, no Pará, os Alcântaras se mudaram da 22 de Junho para uma das três casas iguais, a do meio, de porta e duas janelas, n. 160, na Gentil Bittencourt.” (JURANDIR, 1960, p. 5).
O trecho supracitado já adianta um dos núcleos centrais do romance: a vida da família dos Alcântaras, formada por Virgílio, Inácia (esposa de Virgílio) e Emília (filha do casal). É precisamente na casa dos Alcântaras que Alfredo, cuja saga é contada em quase todos os romances de Jurandir – Marajó e Linha do Parque são as exceções–, se hospeda para iniciar seus estudos em Belém.  Contudo, Alfredo não é o único personagem de destaque nesta obra. Os membros da família Alcântara possuem peculiaridades e complexidade suficientes para os elevarem à condição de personagens importantes em Belém do Grão Pará.
Virgílio é um ser angustiado, constantemente atormentado por dúvidas sobre que rumos tomar na vida: “Como viver? Como, na prática, ser um homem de bem, ter uma família, saber julgar uma mulher, julgar-se a si mesmo?” (Idem, p. 270); além de recorrentes questionamentos acerca da fidelidade de sua esposa e tendências ao aviltamento e à degradação.
Emília vive o drama de não conseguir se adaptar adequadamente ao universo burguês em que vive. Em virtude de sua ausência de beleza, tem extrema dificuldade em cumprir uma norma burguesa fundamental: conseguir um casamento. Além disso, a personagem abre possibilidades de análise sobre sua sexualidade, como observou Paulo Maués em Um olhar sobre Belém do Grão Pará (2008), ao analisar a relação entre Emília e sua amiga Isaura que, em certos momentos, carrega uma atmosfera homoerótica.
Os dois personagens são passíveis de estudos acadêmicos, considerando a riqueza que possuem. Contudo, nos deteremos aqui em Inácia, outra personagem bastante rica que ocupa lugar de destaque em Belém do Grão Pará, exercendo influência considerável tanto no enredo quanto em alguns personagens do romance.
Nosso objetivo é contemplar Inácia em nossa pesquisa sobre degradação na obra de Dalcídio Jurandir. Os resultados da análise atestam que fatores sociais são preponderantes para a construção da personalidade de Inácia e mostram que ela, ao contrário de vários personagens dalcidianos como Eutanázio, Major Alberto e Virgílio Alcântara, possui claramente objetivos de vida e pensamento vencedor. Isso faz com que a personagem ocupe um lugar singular na obra dalcidiana, marcada por seres derrotistas e desiludidos.         
INÁCIA E A DEGRADAÇÃO BURGUESA
Apesar de suas ambições burguesas, as origens de Inácia não estão no seio burguês. Ela advém de uma família de retirantes nordestinos, fato narrado logo no primeiro capítulo: “Vindo de uma família de retirantes Ceará, enraizada na Estrada de Ferro de Bragança, onde a fora buscar Virgílio Alcântara, Inácia não perdeu tempo quando se viu à porta que lhe abria o lemismo” (Ibidem, p. 15).
Inácia, ao lado do marido, subiu na vida durante o período em que Antônio Lemos esteve no poder (o “lemismo”), graças às bonanças promovidas pelo período áureo do Ciclo da Borracha.  Nessa época, Inácia integrou a Liga Feminina do Governo Lemos e conseguiu para o marido um bom emprego no mercado de São Brás.
Como se pode ver, Inácia é o que poderia se chamar de alpinista social. Na Literatura Brasileira, pululam exemplos de personagens femininas que são merecedoras da mesma alcunha. Nos romances de Machado de Assis, há vários exemplos: Guiomar, de A Mão e a Luva (1874), que se casa com um homem de ambições políticas; Virgília, de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), que prefere se casar com um homem de ambições políticas a se casar com Brás Cubas, homem sem ambição; e Capitu, de Dom Casmurro (1899), que se casa com Bentinho para ascender socialmente.
 É notório que Inácia, à maneira das mulheres do universo romanesco machadiano, também inseridas em um universo capitalista, almeja tudo aquilo que ele pode oferecer: luxo, riqueza e poder. Entretanto, eram tempos em que as mulheres advindas de classes menos abastadas (Guiomar e Capitu), não poderiam, por si só, lutar pelas maravilhas capitalistas. Por essa razão, precisavam de um bom casamento com homens de alto poder aquisitivo, como Bentinho com quem Capitu se casa; ou com homens de altas ambições financeiras, como Luís Alves, escolhido por Guiomar.
O marido de Inácia, no entanto, não se enquadra em nenhuma das duas perspectivas apontadas acima. Não vem de família rica e nem possui ambições. Não se interessava pela vida da alta sociedade: “Seu Virgílio pouco frequentara a sociedade (...) a muito custo saía, de fraque, pelo braço da senhora, lerdo e sufocado” (Ibidem, p.18).
 Ainda assim, Inácia precisa do marido, pois apenas os homens poderiam exercer um cargo tão importante como o do Mercado de São Brás, o que demonstra novamente a condição subalterna a qual as mulheres eram obrigadas a se submeter. Tendo sua condição rebaixada pela sociedade, Inácia precisa dos homens para perseguir seus objetivos de riqueza e ascensão social. Por isso, transfere a eles as suas convicções:
– Gosto dos precipitados. Dos que se arrojam. E isso não aconteceu a Virgílio Alcântara, nas horas de se arriscar e trazer o seu, quando o Senador Lemos só faltava dizer: aproveitem, bons e maus amigos, quem não arrisca... (Ibidem, p. 8).
           Além de gostar dos homens “arrojados” e ambiciosos, ela destaca que prefere aqueles comparados ao “diabo” em detrimento àqueles comparados aos “anjos”. Tudo sugere que, para Inácia, todos os métodos são válidos para que o indivíduo alcance os objetivos que persegue. Até mesmo aqueles que o obriguem a se degradar. Nesse ponto, o pensamento da personagem se aproxima das convicções burguesas sobre as quais Marx e Engels discorrem. Para o pensadores alemães, a burguesia:
Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca (...) (MARX, ENGELS, 1999, p. 68-69).
A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então consideradas dignas de veneração e respeito. Transformou em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem da ciência.  (Idem, p.69).
A burguesia  rasgou o véu de comovente sentimentalismo que envolvia as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias. (op. cit).
De acordo com a concepção de Marx e Engels, o indivíduo burguês pode se ver livre de toda e qualquer amarra que possa impeli-lo de conquistar seus objetivos. Nada mais é sagrado e puro: nem seu trabalho, nem sua dignidade e nem mesmo a sua religiosidade.  Dessa maneira, tudo é válido para que o homem possa alcançar seus ideais de riqueza e poder, até mesmo cometer atos degradantes ou ignominiosos que possam destruir coisas e pessoas. Considerando que nada mais é sagrado, o indivíduo burguês pode ignorar a religião e os valores morais da sociedade, que poderiam lhe dizer o que é certo e errado. A este respeito, Marshall Berman complementa:
De vários modos, Marx sabe que isso é assustador: homens e mulheres modernos podem muito bem ser levados aos nada, carentes de qualquer sentimento de respeito que os detenha; livres de medo e temores, estão livres para atropelar qualquer um em seu caminho, se os interesses imediatos assim o determinarem. (BERMAN, 2013, p. 140).  
Outra teoria marxista importante supracitada é a do valor de troca. De acordo com Marx e Engels, a sociedade burguesa transformou todas as coisas e seres em simples produtos que podem ser trocados, negociados. Todo e qualquer produto: vestuário, comida, obras de arte...; bem como qualquer profissão: advogado, professor, médico...; e todas as pessoas estão passíveis de serem negociados e comercializados. É possível comercializar tanto uma vestimenta quanto o próprio corpo em troca de dinheiro.
Discorremos sobre três dados importantes da narrativa que atestam que Inácia se alinha a essa perspectiva da sociedade burguesa sobre a qual Marx teoriza.
Cito, primeiramente, a provável infidelidade de Inácia em seu casamento. Virgílio, conforme observa Furtado (2002, p. 123), vive o mesmo drama de Bentinho, protagonista do romance machadiano Dom Casmurro: é atormentado frequentemente pela dúvida atroz acerca da fidelidade da esposa. Embora o adultério de Inácia não seja confirmado diretamente na obra, a suspeita do marido é um dado importante na narrativa, sendo retomada várias vezes no romance:  
Uma e outra vez, vendo Inácia no auge do fervor lemista, temeu pela fidelidade da mulher, pelo menos por sua reputação. Não ouvia o que se falava das senhoras ao pé do Senador, e senhoras que podiam desonrar-se impunemente e até mesmo obrigatoriamente por serem da sociedade? Inácia, esta, havia se exposto nas febris demonstrações da Liga, empenhara-se pela nomeação do Mercado.... (JURANDIR, 1960. p. 14-15).
Via, ainda, agora, como a mulher gostava das expansões da rua, da política em que uma senhora já não acha bastante decotar o colo mas levantar a saia. O arpão da suspeita entrara-lhe fundo. (Idem, p. 270).
Todos os fatos lembrados pelo marido estão imbuídos da suspeita: os passeios pela rua nos quais a esposa gostava de se exibir; suas relações com os políticos da era Lemista; e, o mais importante, a presença de Inácia na Liga Feminina, que permitiu a ela conseguir para o marido o cargo importante no Mercado de São Brás. Aqui temos o nosso primeiro dado importante.
Na primeira passagem do livro transcrita acima, justamente a que registra a atuação de Inácia na Liga Feminina, afirma-se que a Alcântara “empenhara-se” para conseguir o cargo para o esposo. Juntando este verbo com a lembrança do marido das senhoras que se envolviam com o senador – ou que ficavam “aos pés dele” –, conclui-se que Virgílio suspeita que Inácia conseguiu a nomeação no Mercado de São Brás em troca de favores sexuais com políticos locais ou com o próprio Antônio Lemos.
Se tomarmos este fato como verdade, podemos atestar que Inácia se enquadra entre aqueles burgueses sobre os quais adverte Marx e Engels, já referidos acima. Aqueles que estão livres de qualquer amarra moral ou religiosa, ignoram todos os limites para conseguir seus objetivos e desprezam qualquer valor sentimental. No caso específico de Inácia, supondo que realmente tenha realizado os favores sexuais, ela não dá importância a qualquer valor moral sendo infiel no matrimônio e assume como válidas todas as formas possíveis de alcançar os objetivos, até mesmo a degradação de entregar o corpo a políticos.
Essa entrega do corpo também alude a teoria do valor de troca. Inácia vende seu corpo em troca do dinheiro que o cargo do marido poderia trazer a ela e a sua família.  Nesse momento, observa-se que ela, enquanto pessoa, é transformada em um simples produto: seu corpo não tem valor qualitativo, sendo apenas um produto de troca que tem determinado preço:
Na vida econômica, que constitui a parte mais importante da vida social moderna, tôda a relação autêntica com o aspecto qualitativo dos objetos e dos sêres tende a desaparecer, tanto das relações entre os homens e as coisas como das relações inter-humanas, para dar lugar a uma relação mediatizada e degradada: a relação com os valôres de troca puramente quantitativos. (GOLDMANN, 1976, p. 17).
Na relação entre Inácia e Virgílio, não há nenhum valor qualitativo. Ela não nutre sentimento algum pelo marido. Casou-se apenas porque precisava de um homem para ajudá-la a ascender socialmente, portanto, só tinha importância o quanto ela poderia acumular. Como já explicado anteriormente, Inácia precisou do marido para ele assumir o cargo importante no Mercado, pois ela não poderia devido à condição subalterna das mulheres naquela época.  
Embora no início do séc. XX as mulheres já tivessem ingressado no mercado de trabalho, a maioria trabalhava em fábricas: “Em 1912, os inspetores do Departamento Estadual do Trabalho visitaram sete estabelecimentos fabris e constatam que, de um total de 1.775 operários, 1.340 eram do sexo feminino” (RAGO,2004, p. 581). Ainda assim, ganhavam menos que os homens e eram preteridas em empregos com altas bonificações:
O desenvolvimento industrial e tecnológico e as economias estatais propiciaram a criação de novos empregos no setor terciário, que aos poucos foram sendo considerados para as mulheres. (...) Contudo, os cargos exercidos pelas mulheres eram geralmente subordinados, não chegavam a chefes e gerentes e não tinham acesso às profissões mais bem pagas no serviço público ou nas empresas privadas[2].
 Apesar de o adultério não ser confirmado, a suspeita existe e é retomada várias vezes durante o romance, conforme pudemos observar. Além disso, há ainda dois momentos da narrativa que mostram que Inácia seria mesmo capaz de se degradar, tamanho o seu desprezo por valores morais e sentimentais, preteridos pela busca de dinheiro e poder.  
O primeiro momento é o episódio em que Virgílio fica próximo de violentar Libânia, narrado no capítulo trinta e cinco. Virgílio já havia concebido essa ideia monstruosa antes e, nesse momento, ele fica próximo de consumar o ato ao ver a criada da casa dormir no chão, imagem que desperta nele desejos sexuais tão intensos que o fazem tremer: “Virgílio, dobrado, tremia um pouco, deu lhe vontade de dizer chamá-la, dizer lhe: minha caboquinha... (...) aqueles lábios na degustação do sono (...) eram para Virgílio uma sedução dolorosa” (JURANDIR,1960, p. 274).    
A imagem erótica dos lábios de Libânia e a vontade de proferir os termos “minha caboquinha” – palavras que, nesse contexto, estão impregnadas de um erotismo obsceno  – sugerem que o Alcântara esteve próximo de abusar sexualmente da criada.  Toda essa cena é observada por Inácia que não se indigna com o marido e nem provoca um escândalo, o que seria natural: “D. Inácia mais parecia curiosa do que indignada”(Idem, p. 275). A costureira Isaura, que estava ao lado dela, se surpreende com a atitude da dona da casa: “Não sabia de quem se espantava mais se do padrinho ou da madrinha” (op.cit).
Através dessa atitude, Inácia mais uma vez expõe seus princípios ideológicos próximos dos burgueses relatados por Marx e Engels: um indivíduo deve correr riscos para satisfazer sua ânsia de poder e dinheiro e realizar seus desejos. . Deve ignorar qualquer amarra moral que possa impedi-lo de conquistar o que almeja.  Para Inácia, valeria a pena Virgílio desrespeitar o matrimônio ao violentar Libânia, além de passar por cima dos traumas e da humilhação aos quais a criada seria submetida. Tudo isso para que ele cumprisse seu objetivo: possuir a jovem.
Ora, até então Virgílio não tinha dado sinais de que era um homem ousado na concepção de Inácia. Caso consumasse a violência sexual contra Libânia, Virgílio provaria à esposa que “era um homem de verdade” – seguindo uma lógica machista abjeta – e sinalizaria que, se foi capaz de correr um risco ao cometer um abuso sexual, poderia ser capaz de correr riscos para ganhar grandes quantias em dinheiro e tirar a família da mediocridade financeira:    
Se atentarmos para as sóbrias cenas criadas pelos membros da nossa burguesia, veremos o modo como eles realmente trabalham e atuam, veremos como esses sólidos cidadãos fariam o mundo em frangalhos, se isso pagasse bem (BERMAN, 2013, p. 123-124).
 De fato, Virgílio tenta conseguir recursos financeiros de modo degradante: entra em um esquema de corrupção para desviar dinheiro da Alfândega onde trabalha. Inicialmente, o Sr. Alcântara esconde da família o fato de ter ajudado a corromper o seu local de trabalho. Apenas no último capítulo do romance, quando o conluio é descoberto na Alfândega, é que os membros da casa da Estrada de Nazaré tomam conhecimento. Aqui, temos o último momento selecionado por nós para delinear Inácia.
No capítulo quarenta e três, o derradeiro capítulo da obra, Virgílio conta à esposa que o esquema de corrupção havia sido descoberto e que ele, por contribuir com a investigação, fora poupado da prisão, mas ainda assim acabou ficando sem o emprego.  Inácia se decepciona com a atitude do marido:        
Aí está a tua desgraça, Virgílio, e o mal dela é ser tão reles, Alcântara. É que tu não nasceu pra isso. Mas agora que meteu o pé na lama, por que não vai até o fundo? Não leva a cruz? Que tinha de ir para a cadeia? As aparências? (...) Fosse pra cadeia. Eu, esta gorda velha, ia com a marmitinha, eu trabalhava com a Magá, vendia no Mercado, ia me empregar na Santa Casa lavando lençol de defunto, ali na Regina fazer caracol e sonho e te serviria, desgraçado, pagando um bom canalha do Fôro, que te tirasse das grades... (...) E voltavas de cabeça em cima do pescoço, meu filho, e não assim caída no peito, degolado. Antes a cadeia, que essa consolação... Meu Deus salvou-se o homem... Antes a gororoba da São José que as bíblias do seu Alburqueque... Antes. (JURANDIR, 1960, p. 357).  
Interessante notar que Inácia não condena o fato de o marido ter se envolvido em um esquema de corrupção. Pelo contrário, seguindo sua linha ideológica de pensamento, já bastante discutida aqui, ela até se orgulharia dele por correr este “risco”, caso a negociata tivesse sido bem sucedida.  
Entretanto, como Virgílio acaba delatando o conluio para se livrar da cadeia, Inácia fica desapontada, vendo mais uma vez o marido como um homem fraco e covarde, como consta neste breve monólogo interior: “A fraqueza dele, a honestidadezinha chuê, a mão no cocho e a outra na consciência, fizera-o confessar, admitir ter dado o passo, sem o macho descaramento de dizer não e não, focinho levantado!” (Idem, p. 356).    
Inácia preferiria que o marido fosse até ao fim na sua empreitada, pois, para ela, isso provaria que ele foi um homem capaz de se arriscar para buscar seus objetivos, ainda  que ele precisasse ir para cadeia e ela tivesse trabalhar arduamente com pequenas vendas e até mesmo se submeter à humilhação de lavar lençóis de defunto para juntar dinheiro para pagar um advogado, como consta na passagem transcrita acima, da página 357.      
Os três momentos (provável traição de Inácia, o quase abuso sexual e o esquema de corrupção na Alfândega) sobre os quais discorremos até aqui, atestam que Inácia se alinha ao degradante pensamento burguês capitalista.
Embora o adultério de Inácia não seja confirmado na narrativa, tudo leva a crer que ela seria capaz de cometê-lo, levando em consideração que poderia até mesmo admirar o marido, caso ele consumasse de fato a violência sexual contra Libânia e tivesse tido sucesso na sua empreitada de desviar dinheiro da Alfândega. Sendo capaz de atos degradantes desse tipo, poderia muito bem ser capaz de se entregar a políticos em troca de cargos para o marido.
No último capítulo do romance, quando Inácia toma conhecimento de que o esposo perdera o emprego por ter ajudado a corromper Alfândega, mas estava livre da prisão por ter colaborado com as investigações, Inácia fica transtornada, pois a decepção com o marido (por ter se entregado) soma-se ao momento em que a casa velha dos Alcântaras na Estrada de Nazaré[3] começa a desabar, tornando o último capítulo de uma das melhores obras de Dalcídio Jurandir, bastante dramático.
  O último capítulo reserva ao leitor grandes momentos. Inácia, em seu estado de inquietação, grita palavras impregnadas de ironia – que é uma das suas marcas – ao chamar a casa de castelo real e até reserva breves momentos de sentimentalismo, algo sobre o qual sempre teve aversão:
– Te desmancha logo, filinha, volta ao pó que és, que somos nós, cozinha do rei! Castelo dos Alcântaras, te despenha, teu dia chegou, desaba! Ah, os sapos da baixa, êles sabendo, que quaquaquá danado! Os meus passarinhos.  (Ibidem, p. 355).  
Atirou no meio do quintal a garrafa quase cheia, sentou-se, arquejante. Riu, travando o riso, riu, riu num esgar, enrolando o cabelo (...) Parecia sem opinião sôbre o sucedido, com um nó, um pavor sem forma, e subitamente lhe deu pena da filha, arrependida das palavras que a ofendiam. (op.cit).
–Mas, meu filho, não, êste desabamento não carrega contigo. Tu nem começastes. Emília... Libânia, escrava, arruma as bagagens reais. (Ibidem, p. 356).  
 Apesar de ter o coração embrutecido pela sua própria ideologia de que o mundo não é feito para os fracos e sentimentais, além das decepções que acumulou com o marido, extremamente inerte por praticamente toda a vida; e com a filha, incapaz de conseguir um bom casamento, Inácia foi acometida por breves momentos de sentimentalismo ao se arrepender de humilhar constantemente Emília e se comover quando Alfredo lhe segura a mão, no momento em que ela se encontrava transtornada: “Na sua confusão, ou comovida pelo que Alfredo lhe fazia (...) d. Inácia desentendia, a mão na mão do afilhado como se isso lhe desse um arrimo” (Ibidem, p. 357).      
Ainda assim, Inácia tenta disfarçar seu desespero diante da iminência do desabamento da casa e o desemprego do marido, por temer parecer sentimental, indo de encontro aos seus princípios que lhe ensinaram a embrutecer os seus sentimentos e manter postura firme: “Diante de Alfredo, (..) d. Inácia temeu dar parte de fraca, temeu que êle a visse chorando. E tinha os seus projetos com aquele menino!” (Ibidem, p. 356).
Vale notar que, ao dizer que tinha planos para Alfredo, Inácia demonstra que poderia transferir para o menino os seus ideais de riqueza, ascensão social e poder – não importando os métodos – como tentara fazer com Virgílio, mas fracassou devido à ausência de ambição do esposo: “D. Inácia via no menino a ambição que desejou no seu Alcântara e nos filhos se estes tivessem nascido.” (Ibidem, p. 49).
De fato, nos três primeiros romances em que se faz presente, Alfredo demonstra ambição de ascender socialmente.  Pressiona os pais para conseguirem um meio de ele ir estudar em Belém –chega ao ponto de tentar fugir em Três casas e um rio –  e consegue ir bem nos estudos quando já está na casa dos Alcântaras.
Sendo, inicialmente, bastante determinado na busca pelos seus objetivos, Alfredo poderia até se transformar no homem ideal que Inácia queria: forte, determinado, que se arrisca e até mesmo se degrada para perseguir a riqueza. Por baixo dos panos, ela seria uma espécie de guia para Alfredo que o orientaria em seus passos e, até mesmo, poderia ajuda-lo como ajudou Virgílio no episódio da nomeação do Mercado de São Brás.
Todavia, nada disso acontece. A casa dos Alcântaras acaba por desabar ao final do romance e a trama da família termina com incertezas sobre o destino de cada um, considerando que não voltam a aparecer nos romances subsequentes do ciclo.
Se olharmos para  Inácia, veremos que o seu desfecho é melancólico. Durante toda a sua vida perseguiu as suas convicções de riqueza e ascensão social em um mundo capitalista que obriga o indivíduo a chegar ao ponto de aviltar-se se for preciso, mas acaba sem nada: perde até a casa onde morava. Termina na mesma situação em que se encontrava antes do Lemismo: errante, sem lar como na sua época de retirante nordestina.     
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a trajetória de Inácia termine de forma melancólica, é inegável que ela, em certos momentos, conseguiu vencer na sociedade e cumpriu certos objetivos seus, ainda que tenha recorrido a métodos degradantes para alcançar aquilo que desejava.  As contradições e as degradações do capitalismo burguês, do qual a Belém do final do séc. XIX e início do séc. XX (tempo histórico do romance em questão) é uma de suas milhares de extensões, não impelem as ações e os desejos de Inácia com acontece com outros personagens dalcidianos.
Se observarmos um personagem como Eutanázio, de Chove nos campos de Cachoeira, veremos que o personagem despreza as relações capitalistas porque as enxerga como mesquinhas, degradantes e insatisfatórias, por isso tenta, de todas as formas, se afastar delas. Inácia segue um caminho totalmente oposto ao dele. Ela gosta da riqueza, dos luxos, das relações políticas e faz de tudo para estar dentro desse universo, mesmo que tenha de se degradar.  Aliás, como observarmos, a personagem pouco dá importância às consequências que atos degradantes poderiam trazer.
Inácia não se importa com o fato de que Libânia poderia ter sua vida destruída se fosse molestada por Virgílio. Também não se importa com o sofrimento que a cadeia poderia trazer ao marido, caso ele se entregasse.  Tudo valeria para que ela cumprisse suas aspirações burguesas.  Buscamos, ao longo do trabalho, relacionar Inácia à burguesia sobre a qual Marx e Engels discorrem: aquela que, várias vezes é contraditória e pode recorrer a atos degradantes apenas para buscar riqueza e poder.  De fato, Inácia tem vários pontos em comum com eles, como pudemos observar.
Entretanto, essa associação de Inácia à burguesia capitalista que, por vezes, pode ser degradante e contraditória conforme avaliam os pensadores alemães, não resume a personagem a uma caricatura burguesa na periferia do capitalismo (a Amazônia do final do séc. XIX e início do séc. XX).   Demonstramos que ela, em vários momentos surpreende o leitor: seja com atitudes ou frases sórdidas no decorrer do romance, seja com seu discurso emocionado e transtornado ao final do romance, que até abre espaços para certos arrependimentos e comoções.  Todos esses fatores fazem dela uma personagem singular na obra do escritor paraense: rica em detalhes, complexa e que merece ser objeto de mais estudos acadêmicos. 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: aventura na modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.  
FURTADO, M. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. 2002. 263f. Tese- Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002.  
GARCIA, Heloise Siqueira. A mulher no mercado de trabalho: uma luta histórica que precisa ser compartilhada. Disponível em:http://emporiododireito.com.br/leitura/a-mulher-no-mercado-do-trabalho-uma-luta-historica-que-merece-ser-compartilhada. Acesso em 01/10/2017.
GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão Pará. São Paulo: Martins, 1960.
_____. Chove nos campos de Cachoeira.2.ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1976.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Marco Aurélio Nogueira, Leandro Konder. 9 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
RAGO, Maragareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, Mary del; BASSANEZI, Carla (orgs). Histórias das mulheres no Brasil. 7 ed. São Paulo: Contexto, 2004.
[1] Antônio Lemos governou Belém no período de 1897 até 1911. Impulsionado pelo crescimento da economia na Amazônia, em virtude da exploração e exportação de látex na região – realizado na época que ficou conhecida como Ciclo da Borracha (1879-1912) –, Antônio Lemos pôde desenvolver a cidade de Belém, transformando-a em um modelo entre as capitais brasileiras. Foi uma das primeiras cidades brasileiras a possuir energia elétrica, bondes elétricos e necrotério. Além disso, Lemos cuidou também da parte estética de Belém, criando praças e boulevares aos moldes das cidades europeias.  Contudo, com a queda de Antônio Lemos, que coincide com o declínio do período áureo do Ciclo da Borracha, a cidade começa a entrar em decadência.  
[2] Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-mulher-no-mercado-do-trabalho-uma-luta-historica-que-merece-ser-compartilhada-por-heloise-siqueira-garcia/. Acesso em: 05 de agosto de 2017.
[3] Hoje em dia, a Estrada de Nazaré é conhecida somente como Avenida Nazaré, via na qual está localizada a Basílica de Nazaré.   O bairro homônimo é uma das áreas mais nobres da capital paraense.  
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