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pipocacompequi · 6 years ago
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[Sessão Crítica] "Black Mirror Bandersnatch": a liberdade como uma escolha
Por Pedro Roma
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Para Santo Agostinho, é o homem que, dotado de livre-arbítrio, cria o mal que existe a seu redor. Dentro de seu pensamento medieval, ele dizia que, dispondo de liberdade e vontade para escolher qual caminho seguir, ele se torna responsável pelo mundo que cria. 
Os maniqueistas de sua época, criticavam sua posição ao dizer que, se Deus de tudo sabe, como seria possível não somente o homem ser dono de sua vontade como de sua maldade, afinal de contas, Deus tudo conhece, inclusive o futuro. A base ética e moral do Ocidente vieram de seu pensamento que continua a reverberar até hoje, mesmo que a questão da liberdade tenha adquirido outro direcionamento, mais político por assim dizer.
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O novo filme da já consagrada franquia Black Mirror é uma tentativa de sua atual dona, a Netflix, experimentar e propagandear seu ‘’novo formato’’, filmes-jogos interativos. Coloco aspas, pois esse tipo de experiência não é novo. Desde os anos 1990, o videogame vem se destacando na tentativa de criar esse espectador-autor. O antigo Sega 32X viveu dessa novidade e atualmente empresas como a Telltale ou a Quantic Dream foram e são especialistas nessas narrativas interativas, por vezes bem sucedidas, outras nem tanto. Mas então, onde está de fato a novidade?
Além de ser uma tentativa de atrair um público cada vez mais disperso entre tantos serviços de streaming, haja vista o surgimento da Disney + e do Dc Universe, Bandersnatch é muito mais do que isso, apresentando reflexões e indagações necessárias acerca da liberdade, nada mais relevante em uma época de neofascismo cada vez mais recorrente no mundo. A trama gira em torno da história de Stefan, um jovem programador em busca do sonho de realizar um jogo de múltiplas escolhas de mesmo nome e inspirado em um livro de sua mãe. O filme tem os anos 1980 como plano de fundo, nada mais coerente afinal, apenas nessa época, games poderiam ser feitos por um único programador.
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No desenvolvimento da narrativa, você "espectador", deve escolher entre vários caminhos que poderão, de modo mais ou menos coerente, te levar até cinco finais, tendo um no qual fica claro, que, de fato, dá um fim à história. O roteiro, então começa a investir em vários pequenos contos para poder explorar temas como controle, escolha e livre arbítrio. O personagem vivido pelo ator Will Poulter (Colin), é quem irá fazer a trama caminhar, confrontando Stefan rumo à sua criatividade, podada pela convivência arbitrária com o pai, um homem que prefere encher o filho de remédios, a pedir perdão pelos erros do passado. 
Diferente do que poderíamos achar, as escolhas nem sempre serão bem aceitas por Stefan, a ponto dele passar a confrontar o próprio espectador - uma clara referência à principal alegoria do episódio, Pac-Man. Como no jogo em questão, ele está preso em um labirinto de escolhas e decisões em que, imaginando controlar sua própria vontade, de fato, é apenas uma personagem moldado às decisões de outras pessoas, estando alheio à sua vida. Por isso, fica nítido, que o foco do roteiro não é sua história em si, mas o seu significado, na verdade o tom adotado é o da metalinguagem, e a ideia preponderante é criticar a nossa ilusão de real controle sobre todos os aspectos da vida: somos a todos os momentos controlados, seja pelos progenitores, remédios, propagandas, pelo Estado ou mesmo pelas infindáveis possibilidades de compras, marcas e drogas a se escolher. Muito auspicioso para uma trama que se passa em 1984, e é assistida em tempos de Trump e Bolsonaro.
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Tecnicamente, a obra continua a virtuose técnica da terceira e da quarta temporada da série. A cinematografia feita por Aaron Morton e Jake Polonsky alcança um dos melhores resultados de todo o seriado. A iluminação feita em estúdio, prioriza tons brancos sem nenhum trabalho de sombras mais direto, evidenciando apenas mudanças temporais por meio da temperatura da luz. Essa estética naturalista se manterá com pequenas modificações, por exemplo, o uso de temperaturas amareladas para ambientes fechados, como o quarto de Stefan e a casa de Colin. Contudo, o trabalho de colorização é notável: os tons atingidos e a maneira como eles promovem uma atmosfera melancólica que, junto à uma excelente reconstrução de época - obra da diretora de arte Catrin Meredydd - traz a ambientação necessária. Aliás, essa ambientação foge aos excessos nostálgicos propagados por séries como Stanger Things, a exemplo.
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A direção ficou a cargo de David Slade, diretor já experiente, vindo de produções excelentes como 30 Dias de Noite e outras questionáveis como Crepúsculo: Amanhecer, geralmente mantendo um bom nível, mesmo quando a história não colabora. Aqui, ele performa um trabalho maduro e artisticamente relevante e, de longe, um de seus melhores filmes. A decupagem é precisa e apresenta excelentes planos, mesmo que nenhum deles seja assim tão memorável. Ao ter que trabalhar com tantas possibilidades narrativas ele se sai bem, sua direção de atores se mantém fiel e acaba por não se perder em meio às várias escolhas possíveis.
Contudo, há um ponto negativo a se destacar: Bandersnatch por mais profundo que seja, acaba não podendo se aprofundar seu discurso em meio a tantas coisas que acontecem. No fim, a não ser que haja certo esforço, significados podem se diluir em meio a tantas voltas às mesmas cenas, já que parte da estrutura do jogo-filme é retornar às suas escolhas e fazer novas, havendo certas cenas que só podem ser acessadas dessa forma. Mesmo assim, há pouco espaço para a gratuidade: ao buscar seu título em uma personagem de Alice Através do Espelho, o filme tenta desenvolver a vida de alguém em busca de um caminho, incapaz de alterar o passado, pois o passado é imutável. Caminho esse descoberto quando ele busca em si mesmo, através do espelho, uma saída para seu futuro.
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Ao refletir sobre a questão, o filósofo Arthur Schopenhauer diz que, o livre-arbítrio é uma ilusão, pois toda a escolha moral está submetida à Vontade, aos nossos desejos. Da mesma forma, a liberdade - antes de ser um direito - é uma decisão. Ao se negar quebrar seu computador, Stefan nos informa que ser livre mais que uma escolha, é na verdade uma luta.
Melhor que a maioria dos últimos episódios de Black Mirror, Bandersnatch também é um dos melhores filmes de gênero, capaz de refletir sobre sua própria natureza e ainda assim divertir com uma experiência que mesmo não se sustentando por tanto tempo, fisga, não somente pela sua novidade, mas pela sua qualidade.
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Pedro Roma
Cinéfilo dedicado, amante de todo tipo de filme (mesmo que eu prefira um pouco mais cinema russo e polaco). Além de aspirante a cineasta, atualmente curso Cinema e Audiovisual e espero poder contribuir de forma ativa com o pensamento cinematográfico, começando pela crítica, é claro, podendo colocar em palavras toda a emoção que sinto nesse prazeroso e ao mesmo tempo intrigante ato de ver um filme.
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