#OCampeão
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Champ x Mickey
A academia de boxe cheirava a sovaco, suor peludo, impregnado nas lonas ensebadas e maturadas pela umidade cozida em um teto de zinco. O ar pastoso era movido por preguiçosos ventiladores que faziam as vezes de uma colher de pau. Uma lufada de ar sortuda podia se arrastar lá dentro por anos até ganhar a liberdade através de um ou outro basculante emperrado aberto no alto das paredes do galpão.
Esse era o ar que Billy respirava, trocou por gás carbônico devagar, e por um instante se sentiu em casa, no aconchego do lar. Esse pequeno fio de pensamento trouxe uma breve sensação de conforto, potencializada pelo gancho que tomou no queixo, as costas raladas contra as cordas do ringue e as gotas de suor azedas de uísque que vertiam para a sua boca. Escorregou como macarrão no escorredor e se acomodou na lona com as boas vindas da força da gravidade, de quem chega em casa e se joga no sofá depois de um dia de trabalho. Claro, se não tivesse de ressaca graças à noitada no Tropical Dancing Inn, a história desse treino seria outra; não seria ele no chão.
Precisava de um tempo para se concentrar e, irritado, arrastou-se até o vestiário. Tirou o capacete, cuspiu o protetor bucal na pia, desamarrou as luvas com os dentes, abriu a torneira e usou as mãos em concha, empapando as bandagens, para jogar água na cara. Apoiou-se na cuba e olhou tão fundo no espelho que se viu envelhecido.
Mickey Donovan creditou a imagem rejuvenescida no espelho ao excesso de uísque e pó. Quem sabe miopia também? Não, não, os óculos estavam sobre o nariz, mas não no nariz refletido. Devia ser um golpe de memória, mas não era nada mau para um homem da sua idade se lembrar com tanta precisão do seu rosto há quarenta anos. Novamente jogou água na face e sorriu para o outro eu. Então, olhou ao redor para se assegurar que ainda estava no banheiro da academia de boxe de seu filho Terry.
Billy encarou a pele flácida, as bochechas caídas, o cabelo ralo e as entradas do seu futuro com fome de detalhes. Quem sabe nesse tempo já tivesse resolvido os seus problemas? Já fosse um campeão do mundo, rico e tivesse dado uma boa vida para o seu filho. “Campeão! Campeão!”, esganiçava o pequeno toda vez que queria sua atenção. E Billy acreditava que seria campeão só para agradar seu filho, para que o chamamento dele se tornasse realidade e pudesse então cuidar do garoto, dar a ele tudo do bom e do melhor. Fogos de artifício emocionais para tirar o foco do seu egocentrismo e se afastar da culpa.
Mickey lembrou-se de como era bom ser jovem e livre. Ter todo vigor do mundo sem precisar da azulzinha para cheirar pó e comer umas bucetas na mesma noite. Nunca ligou para os filhos. O boxe faria por eles o que ele não pôde fazer por trás das grades; e os transformaria em verdadeiros homens: capazes de suportar os golpes sujos da vida. Foram tantos os anos fora de circulação que agora, velho e liberto, Mickey só os via como um plano de aposentadoria que usava com amor durante os seus golpes.
Futuro e passado refletidos em faces opostas do mesmo espelho. Um buraco de minhoca virtual, um vislumbre de tempos e vidas diferentes em espaços similares. Billy respirou fundo, fez o sinal da cruz, esconjurou aquele velho e abandonou o espelho de volta ao treino. Já Mickey fez o sinal da cruz, teve uma ereção por se rever jovem e, enquanto apertava o pau, amaldiçoou aquela voz fina que insistia em chamá-lo de campeão − embora a afirmação tivesse ares de verdade.
Texto de Lobo e ilustração de André Ducci.
Billy foi interpretado por Jon Voight em The Champ (O Campeão), filme escrito por Frances Marion, baseado em uma história de Walter Newman, e dirigido por Franco Zeffirelli em 1979. Jon Voight também interpretou Mickey Donovan em Ray Donovan, série de televisão criada por Ann Biderman em 2013.
Sobre Cafés e Cigarros é uma série de breves viagens literárias promovidas por Atomic Tangerine.
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"Ninguém sabe o quanto eu dei por isso, Sangue, Suor, Lágrima, Dinheiro e Muito Sacrifício..." #OCampeão 💪🏼
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