#Colonialismo Pós-Colonialismo e Antropologia
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Y tú, ¿por qué eres negro?
Pode a nossa história pessoal ser veículo para falar de muitas pessoas? Será que a experiência de um negro, em Espanha, é semelhante à de tantos outros compatriotas? Pode a imagem intervir para o debate e a mudança? O nosso seminário pega no fotolivro de Rubén H. Bermúdez, uma autobiografia pessoal que ultrapassou os objectivos iniciais para se firmar como um projecto mais abrangente — numa temática tão presente na sociedade que nunca tivera conversação concreta e assertiva, e que parte do título do seu livro "Y tú, ¿Por qué eres negro?"
I — INTRODUÇÃO
Rubén Bermúdez é cidadão espanhol, nascido em Madrid, em 1981. É fotógrafo, designer gráfico, artista visual e co-fundador do colectivo “Afroconsciência”, um espaço de reflexão e partilhas multiculturais. Desde pequeno que se sentia atraído por imagens, por terem, nas suas palavras, “a capacidade de o transportarem a outros lugares”, pelo que esse relacionamento com o mundo era feito através da fotografia.
"A primeira vez que alguém me chamou negro estava num mercado com a minha avó. Foi outro miúdo pequeno. Usou a palavra "negrito" (pretinho). Ninguém disse nada, eu tampouco.”
A ideia do projecto surge após uma casualidade. Em 2014, ao sair do estádio depois de um jogo do seu clube Atlético de Madrid, foi abordado por uma pessoa negra, numa interacção irreflectida do que partilhavam em comum, a cor da pele. Da conversa, entre vários assuntos, o recém-conhecido perguntou-lhe de onde era Rubén. Perante a resposta de que era espanhol, prosseguiu “E os teus pais, de onde são?”. Também eles eram espanhóis, respondeu Rubén. O interlocutor fez a pergunta que mudaria a sua vida, “Então, e tu, por que és negro?”
O facto desta pergunta ter sido feita por uma pessoa negra refez a sua ideia de integração, levando-o a questionar-se, pela primeira vez, sobre a sua negritude. Ao chegar a casa, de imediato iniciou um blog, ao qual deu o título "Y tú, ¿Por qué eres negro?". Foi o ponto de partida para questionar a sua identidade.
Começou a publicar fotografias e conteúdos, recorrendo aos álbuns de fotografias da família, tentando definir-se a si próprio, de modo a resgatar a sua própria história através desse “outro”. O interesse alargou-se numa investigação na Biblioteca Nacional sobre o papel de Espanha na escravatura, onde encontrou imagens de extrema violência. Entretanto, e perante os questionamentos que mundialmente vão sendo feitos, concluiu que também em Espanha as pessoas negras não se encontram completamente integradas e visíveis na sociedade.
Acontece que por essa altura foi convidado pela sua escola de fotografia para dar uma palestra semanal, no Centro Internacional de Fotografia e Cinema, em Madrid. Para Rubén, era uma oportunidade importante para lançar o debate, principalmente num espaço habitualmente frequentado por pessoas brancas. A relevância e divulgação do seu projecto possibilitaram que também pessoas negras começassem a assistir. O projecto cresceu ainda mais com a projecção alcançada via facebook e o interesse de outros conterrâneos negros fê-lo, mais tarde, considerar a hipótese de publicar toda esta pesquisa, participação e assertividade do tema, em livro.
Depois de muito trabalho e muito stress, foi editada a sua autobiografia, através da sucessão de imagens acompanhadas de pequenos textos, tendo o lançamento ocorrido num espaço, segundo as palavras de Rubén Bermúdez, “de cultura branca”, chamado La Fabrica, onde acorreram muitas pessoas negras, que se sentaram na primeira fila.
O que no princípio começou por ser um gesto de raiva, acabou por se tornar num abraço em que a comunidade negra se sentiu envolvida, pois a partir do momento em que o livro era lido, as pessoas faziam questão de lhe enviarem as suas fotos, mostrando a importância delas nas suas vidas.
Como consta no seu site, Rubén Bermúdez “constrói um conto autobiográfico que funciona como um ensaio político, resgatando a sua memória capturada nas imagens, conversas e símbolos, que marcaram a sua vida e, assim, narra o quotidiano e o extraordinário de uma sociedade vista a partir de uma perspectiva negra.”
II — IDENTIDADE, NEGRITUDE E REPRESENTATIVIDADE
“Creio que nós negros temos que contar as nossas próprias historias e nos definirmos a nós mesmos.”
Rubén Bermúdez entende que é necessário produzir um imaginário da “negritude”. O seu projecto passa da esfera pessoal e familiar para uma dimensão nacional, e na relação de Espanha com a presença negra no país. Para ele, Espanha vira costas à comunidade negra, por isso um projecto com o objectivo de abraçar a negritude, ou seja, a valorização da cultura negra, se tornou tão importante para despertar consciências e fomentar alargado debate público.
Reflectindo criticamente sobre o fotolivro de Rubén Bermúdez, o que se encontrará num primeiro momento, uma identidade de negritude ou uma identidade unicamente humana? No fundo, sabendo que identidade e representatividade são assuntos intrinsecamente ligados, de que forma se coloca esta questão?
"É preciso perceber-se que humanamente somos pessoas, mas politicamente somos negros. Existe uma política de negros, e não fomos nós que a criámos." Como disse o português Rui Estrela, membro da Plataforma Gueto, numa conferência em 2015.
Se o crescimento de Rubén acontece sem a consciência concreta da simbologia da sua cor, será na idade adulta que a sua identidade se assume política, através da negritude.
Numa sociedade maioritariamente branca, a visibilidade de pessoas negras é usualmente driblada entre o risível e o invisível. É o jogo sujo de idealizações colonialistas e estereótipos centenários. Reduzidos à condição de apoucamento e de objecto.
Estas ilustrações do séc. XVIII, são um elaborado esquema do sistema de castas nas colónias espanholas. Como uma fórmula matemática de 1+1 igual a algo que é necessário nomear. Porque o resultado nunca é puro-sangue. Há que chamar os bois pelos nomes porque a humanos por inteiro nunca poderiam ascender: "mulata" deriva de mula. A não ser que haja novamente "cruzamentos" com espanhóis e recupera-se a branquitude sagrada. É o conceito do one drop rule (regra da gota de sangue) tão impregnado até hoje. Contínua segregação e busca de identidade, a negritude invisível que o colonialismo espanhol se deu ao trabalho de literalmente ilustrar. No Brasil e em Portugal, com tanta possibilidade de mistura, inventaram-se mais de 200 nomes diferentes.
Conguitos e Cola-Cao são dois produtos alimentares espanhóis, criados após a 2ª Guerra Mundial, que também se vendem em Portugal. A larga popularidade em Espanha atravessou várias gerações, e como podemos ver pela comunicação, houve a continuidade da associação aos “bons velhos tempos” das plantações coloniais, e da 'macaquização' do africano.
Conguitos. É fácil fazer esta "conta" semântica: negrito, pretinho, África, Congo. A famosa e terrível colónia africana... dos belgas, não dos espanhóis.
A marca Conguitos tem algumas décadas em Portugal, mas é difícil aferir o mesmo uso depreciativo na linguagem corrente. Curiosamente, a Cola-Cao não reproduz os mesmos rótulos para o mercado português.
Desta menorização fenotípica se desenharam mais preconceitos e mitos sexuais animalescos ao longo de séculos — para lá da escravatura, na comunicação e na diversão. A racialização não tem fronteiras, está aberta a todas as xenofobias. Rubén cresceu com esta representação do seu semelhante — com toda a população negra e toda a população branca. Que estigma terrível ser cravado com um "negrito, conguito!" vindo da boca de alguém.
Rubén expõe no seu livro as diferentes formas de percepção do negro. Esse alguém ausente, imaginado, ridicularizado. Mas também figuras de destaque e impacto positivo, apesar da pouca representatividade negra na infância espanhola de Rubén, assim como para tantos espanhóis negros. Negros em destaque — tolerados, aproveitados, respeitados ou idolatrados — nas décadas de 1980 e 90 continuavam quase exclusivos ao desporto e à música.
Para a maioria branca, a representatividade é uma não-questão. Mas para a comunidade negra, sem vislumbre de aspiração social e política, filmes como A Cor Púrpura (1985) e Black Panther (2018) são marcos imensos. Se o primeiro nos relata história verdadeira e cruel do passado, o segundo eleva a imaginação e o orgulho num afrofuturismo cinematográfico que reconstrói de forma heróica a imagem negra.
Em 2020, a Disney/Pixar lança Soul, o primeiro filme de animação com protagonistas negros e cuja história se manifesta através da cultura afro-americana. Portanto, praticamente todo o casting original tem vozes de actores e cantores negros. A cada voz, a sua cor. E assim se fez nas versões brasileira e francesa, por exemplo. Contudo, em Portugal e na Dinamarca, a dobragem dos protagonistas são vozes brancas do catálogo habitual, profissionais sem dúvida, mas cujas versões rompem o espírito e objectivos originais do próprio filme — representatividade e identidade.
III — RACISMO ESTRUTURAL
Assim se movimenta hoje a sociedade. Resultado da experiência histórica que consolidou memórias e amnésias. As relações de desigualdade são traços subliminares de ideias segregacionistas. A invisibilidade e o preconceito enraizados colocam pessoas não-brancas nas franjas da sociedade. A cor da pele significa incapacidade, pobreza, marginalização e violência — apenas suplantada em áreas onde a maioria branca não consegue ser melhor.
“Não sou racista, até tenho amigos pretos!” ou “Nada tenho contra negros, mas há qualquer coisa que me faz desconfiar deles” são frases que tentam suavizar o que está à flor da pele. É sempre este o problema, não é? A pele. Esse lugar simbólico tão sólido e volátil. O tom escuro remetido ao trabalho precário. As oportunidades negadas para uma ascensão social. O cabelo que causa aspereza apenas no preconceito. A habitação débil que alimenta exclusão. O espaço da fala que é silenciado. O assassinato de uma pessoa negra que passa impune, porque violência é exercício de poder, mesmo numa sociedade democrática. Quotidianamente. Porque o passado é mantido debaixo do tapete. Porque os mitos calam a verdade. Porque o racismo estrutural é uma herança colonial…
...onde um simples hífen pode fazer toda a diferença, como nos diz Toni Morrison, primeira mulher negra a vencer o Nobel da Literatura, quando afirma “Neste país, americano significa branco. Todos os outros precisam de um hífen.” Esta frase remete-nos mais uma vez para as implicações da miscigenação que Rubén também aborda, como vimos nas ilustrações de mestiçagem das colónias espanholas. As palavras que definem e impõem diferenças, que estigmatizam e racializam.
IV — EXPERIÊNCIA PESSOAL
Propomos outra viagem na primeira pessoa. A oportunidade surgiu e pensámos que seria enriquecedor incluir neste seminário, o testemunho de uma experiência de vida de alguém que, como o Rubén, cresceu rodeado de uma comunidade branca, na qual ele era a maior parte das vezes a única excepção.
Convidámos Paulo Gonçalves para uma entrevista. Cidadão português, nascido em Lisboa, há 54 anos. Mãe branca, pai negro. Vive há 18 anos em Barcelona. De uma longa, extremamente útil e enriquecedora conversa, retirámos excertos para revisitar temáticas que o fotolivro e o próprio Rubén nos tinham suscitado. Nomeadamente, confirmar que a sua abordagem autobiográfica pode, e é efectivamente, a história de si e de outros.
“No meu caso, na verdade, nunca me considerei negro. Eu vivi num entorno europeu, com uma educação comum europeia, em Portugal. Sempre os meus colegas foram brancos (...) habituei-me a ser quase a única pessoa, em entornos sociais, ao longo da minha vida em Lisboa. Isso também me fez ver que eu vivi, não numa [bolha] mas num entorno social mais cómodo para uma pessoa nas minhas condições.”
Como nos diz o Rubén “o negro é uma construção social que muda, dependendo de quem a faça, onde e quando se faça”. Paulo fala da sua experiência na escola:
“De alguma forma tive um choque. Ao enfrentar-me com os outros miúdos e apontarem-me como diferente. Era dos poucos negros nessa escola. No ano em que iniciei os estudos primários, havia muito poucos negros em Portugal.”
De facto, tanto o Paulo como o Rubén, não se reconheciam na diferença, pois nas suas bolhas familiares, a sua cor nunca foi critério para coisa nenhuma. A diferenciação pela cor surge no contacto social, fora do ambiente familiar. No caso do Paulo, a escola foi esse momento traumático de tomada de consciência da diferença. De tal forma, que a família decidiu que ele ficaria esse ano em casa e não iria às aulas, pois tinha crises histéricas todos os dias quando tentavam tirá-lo de casa.
Como nos diz o autor, “Em Espanha… não se faz uma leitura do racismo como estrutura de poder, nem falamos de racismo institucional” é “la españolidad complicada”. Eis um episódio que se passou com o Paulo, e que demonstra o quão instalado está o racismo nas mentalidades e instituições, subliminarmente latente nos actos e nas palavras:
“Tive alguns exemplos de racismo (…) não posso queixar-me demasiado, porque movo-me sempre em ambientes que sei que são ‘confortáveis’. Mas soube de casos. Tive algumas situações desagradáveis em relação à raça. Normalmente com a polícia. Os polícias, por seres negro, podem parar-te na rua à noite, como aconteceu a mim. Não havia quase ninguém, eu sozinho a caminhar com a bicicleta. Pára um carro de polícia, e perguntam-me ‘Já estiveste na prisão, tu?’"
Apesar de evidências quotidianas como esta, a cultura ocidental nega sistematicamente que se baseia, entre outras coisas, na construção do conceito de “raças” e “racismo”. Razão pela qual o racismo é maioritariamente aflorado como se se tratasse de uma questão moral ou de carácter: ser racista ou não ser racista. Ao negar a existência do racismo, as sociedades ocidentais esquivam-se a uma leitura do mesmo como estrutural e institucionalmente instalado, o que acaba por garantir a sua perpetuação, ainda que por vezes em resquícios subliminares quase imperceptíveis.
O ciclo do racismo Quisemos traduzir num esquema, aquele que no nosso entender é o ciclo perpetuador do racismo… e facilmente percebemos que voltamos sempre ao ponto de partida. Quer seja o racismo uma atitude mais ou menos consciente, as suas consequências práticas e simbólicas são sempre condutoras de exclusão, de fragilização individual e colectiva. Este colectivo fragilizado também procura meios confortáveis, como nos referiu o Paulo. Uma identidade periférica é assim formada em ghettos, epicentros de uma sobrevivência física e psicológica cuja acção marginalizadora assume uma expressão eminentemente sócio-política para a qual urge uma resposta contra a exclusão.
Quisemos saber de viva voz o que pensa o Paulo sobre as consequências do racismo…
“Considero o racismo bastante penoso porque retira todo o conhecimento e sabedoria que podíamos ter de outras culturas. Se considerarmos que somos apenas uma raça, a raça humana, todos nós, independentemente da cor ou da genética, se simplificarmos as coisas, vemos que a união sempre foi a única coisa que melhorou este mundo.”
É verdade que “o racismo retira todo o conhecimento e sabedoria que podíamos ter de outras culturas.”, como nos diz o Paulo. É preciso quebrar o ciclo da invisibilidade social e cultural, que a racialização provoca. É preciso dar voz e criar lugares de fala.
Quebrar o ciclo do racismo É para aqui que acreditamos estar a caminhar… para quebrar o ciclo do racismo. Quando o lugar de exclusão é simultaneamente berço para confrontar o desconforto deste conforto forçado, através de movimentos de resistência e afirmação legítima da identidade humana.
Desta resistência tomada consciência nasce um sentimento formado movimento “anti-racista”, uma atitude que reclama políticas de inclusão e não de integração. E não nos deixemos ludibriar por "paliativos sócio-culturais”, sob a forma de quotização étnica, ou de género, ou tokenismo, pois a maior parte dessas iniciativas são actos isolados cujo único intuito é “marketing de integração”.
A grande e recente novidade da luta anti-racial é trazê-la dos ghettos para o espaço público e político. A criação e consolidação de uma "afroconsciência" que permite a identidade da pessoa negra e a afirmação do grupo enquanto colectivo na sociedade. Nesta perspectiva, o fotolivro de Rubén Bermúdez pode ser considerado um manifesto político em Espanha, pois tem propiciado o debate do tabu — “a negritude em Espanha”.
Contudo, e para que efectivamente se desencadeiam alternativas e oportunidades de reconhecimento e ascensão, é necessário que esta afroconsciência se propague política, social e culturalmente. Que possa vir a ter/ser “lugar de fala” através de representatividade política e educação, os dois pilares fundamentais para alavancar uma inclusão de facto do(s) “outro(s)”, e se possa então verdadeiramente pensar um mundo de pluriculturalidades.
V — ARTE COMO ARMA DE MUDANÇA
Um dos lugares de intervenção para quebrar o ciclo do racismo é na arte. Ernst Fischer, jornalista, escritor e político austríaco, escreveu em 1959 no seu livro A Necessidade da Arte, o seguinte: "A arte pode ser percebida como um excelente caminho para a consciência, tanto individual como de consciência social.”
O fotolivro de Rubén Bermúdez, é um veículo disto mesmo. De muitas formas, a intervenção artística e o artista activista manifestam-se para protestar injustiças, despertar consciências, rasgar discursos. Criam espaço de discussão sobre racismo, colonialismo e humanidade (e da falta desta) no quotidiano que espelha dimensões sociais e políticas. Por isso, equacionar a questão racial num modo de comunicação alternativo e imediato através da arte é, criativamente por natureza, acelerar o debate e a denúncia.
Citamos Fischer, novamente: "No mundo alienado em que vivemos, a realidade social precisa ser mostrada no seu mecanismo de aprisionamento (...). A obra de arte deve apoderar-se da plateia não através da identificação passiva, mas através de um apelo à razão que requeira acção e decisão."
Do palco para a plateia, para desafiar com imagem e palavra as estruturas herdeiras do passado.
Quebrar linguagens serôdias. Ironizar memórias bafientas. Desmistificar a história. Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial (2020), de Patrícia Lino, poetisa portuguesa e professora na Universidade da Califórnia, é exemplar nesta “afronta”.
Contar histórias que sejam representação, que sejam a exaltação de um imaginário de orgulho que sempre existiu, mas fora sempre negada. A arte do cinema e da música compõem imagens e palavras para quebrar o racismo e a colonialidade. Se o rap e o hip-hop foram pioneiros lugares de intervenção, o trabalho de Beyoncé (especialmente o álbum Black is King, 2020), reforça tudo o que dissemos antes, evocando cultura e identidade, convocando história e pluralidade.
Assim, pela arte, podemos inverter modos de representação, propondo visões alternativas e equivalentes da existência negra no seio da diversidade humana. A pintora afro-cubana-americana (os hífens…) Harmonia Rosales decoloniza, recupera, empodera
O poder da arte. Do protesto e aspiração até à representatividade e inspiração.
A afroconsciência que mencionamos não é uma introspecção silenciosa — é a afirmação sonora e visível que finalmente acontece. É a activação concreta da verdade e da reconstrução. É um primeiro passo concertado no caminho da inclusão.
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DEBATE
1) O império colonial acabou. Mas a linguagem quotidiana mantém a mesma narrativa colonialista?
2) Como sociedades modernas ocidentais vivemos numa “democracia racial”. Alguém quer comentar?
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BIBLIOGRAFIA
BERMÚDEZ, Rubén H. & Koln Studio. “Y Tú, ¿Por Qué Eres Negro?” (2017). Madrid: Kadmos / PHREE + Motto Diseño
FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte (1959). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 9ª edição 1981
BIBLIOGRAFIA ONLINE
Sobre o autor e Espanha
Rubén Bermúdez https://www.rubenhbermudez.com/y-tu-por-que-eres-negro-and-you-why-are-you-black
AUX Magazine | “Y tú, ¿por qué eres negro? Historias de la negritud en España.” https://www.auxmagazine.com/8424/y-tu-por-que-eres-negro-historias-sobre-la-negritud-en-espana/ David Tijero, 2 Fevereiro 2020
El País | “La España afro es invisible” https://elpais.com/elpais/2017/11/06/planeta_futuro/1509973183_806384.html Sara Rosati, 10 Novembro 2017
Público | “Conguitos: marca de chocolate pressionada a repensar imagem�� https://www.publico.pt/2020/07/02/p3/noticia/conguitos-marca-chocolate-pressionada-repensar-imagem-1922809 Beatriz Cardoso Ribeiro, 2 Julho 2020
Portugal DN | "É preciso descolonizar Portugal" https://www.dn.pt/portugal/racismo-e-preciso-descolonizar-portugal-8558961.html Fernanda Câncio, 13 Junho 2017
SOS Racismo | “Olhares sobre o Racismo” www.youtube.com/watch?v=IV-wrKED-Es Fevereiro 2021
Arte e activismo Redbrick | “Art and Activism: The Black Arts Movement” https://www.redbrick.me/art-and-activism-the-black-arts-movement/ Emily Gulbis, 17 June 2020
Widewalls | “The History of the Black Arts Movement” https://www.widewalls.ch/magazine/black-arts-movement-art Patina Lee, 7 September 2016
Autores e artistas Banksy — http://www.banksy.co.uk Harmonia Rosales — https://www.harmoniarosales.com Kehinde Wiley — http://kehindewiley.com/works/ Patrícia Lino — https://www.patricialino.com/
— Seminário de grupo COLONIALISMO, PÓS-COLONIALISMO E ANTROPOLOGIA 2º ano, 2º semestre • 2020/2021 11 Março 2021 — Avaliação: 18
Licenciatura de Antropologia | Iscte-IUL, Lisboa
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Marcus Mubarack: “Tattoos from Paradise”
Conheça o trabalho do artista que se inspira na Cultura Oriental para produzir seus trabalhos
Fotografia de Anbezzi
“ Acho que vivendo num mundo político, todas as coisas, até as mais simples, viram política; não acredito em políticas individuais. Meu trabalho não é sobre mim, é sobre um coletivo, sobre abrir espaço de fala e sobre descolonização.”
“Jesus Insurgente”
Marcus Mubarack (@mubarack.mar) é tatuador no estúdio thINK Art Club, em Porto Alegre. Conheci seu trabalho através do Instagram e, inicialmente, me interessei por ver que era diferente de muitas das tradições de tatuagem das quais eu já estava familiarizada (como a tradição da tatuagem maori ou japonesa, que já se estenderam por toda cultura ocidental). Conhecendo mais as influências de Marcus para a elaboração de seus desenhos, compreendi que tínhamos uma origem em comum em nossas famílias: ambos somos brasileiros descendentes de imigrantes árabes, e isso me fez interessar ainda mais por seu trabalho, já que as tradições em que ele se baseia para a elaboração dos seus trabalhos são principalmente inspiradas na cultura do Oriente Médio.
Compreendo o trabalho de Marcus não apenas com destaque artístico, como também com uma função social bastante forte. Na cultura Ocidental, há uma enorme contribuição da cultura árabe em diversas áreas do conhecimento, inclusive nas artes; mas nem sempre temos consciência delas, assim como ocorre com as influências indígenas e africanas na cultura brasileira. Durante a colonização e o imperialismo, a cultura europeia se instaurou mundialmente se afirmando como o “bom gosto” da arte, esquecendo-se de que se apropriou dos patrimônios materiais e imateriais de diversas culturas não-ocidentais.
Há diversos preconceitos construídos sobre os árabes, judeus e muçulmanos no contexto ocidental, principalmente na Europa. São muitas vezes associados a algo exótico, ou reduzidos aos grupos extremistas. Quantas vezes já não escutamos piadas associando árabes ao terrorismo? Por isso, me fascina o que muitos artistas (não apenas árabes, como diversas minorias identitárias) estão fazendo nos dias de hoje ao trazer as histórias que não foram contadas sobre todos esses grupos; histórias que vão muito mais além da religião, do que suas expressões extremistas ou seus símbolos místicos. Muitas expressões artísticas contemporâneas são voltadas ao decolonialismo — esse nome é dado a qualquer prática do conhecimento que desmistifiquie preconceitos associados aos povos que foram colonizados ou sofreram pela ação do imperialismo. Com a retomada da história dos povos árabes através da imagem, como realiza Marcus Mubarack com suas “Tattoos from Paradise”, vejo uma grande força decolonial, além de ser um trabalho de grande força estética.
“Salomé com João Batista” e “Freedom Fighter”
Para entender melhor o processo de elaboração dos trabalhos de Marcus, fiz uma entrevista com ele e ele explicou sobre sua origem e suas influências. Dê uma olhada a seguir!
Mari: Começando pela pergunta clássica: como você se interessou por começar a tatuar? Quem foram (e quem são) suas principais referências na tattoo?
Marcus: Acho que nunca foi por interesse, e sim por necessidade; a tatuagem veio como uma ferramenta pra pagar meus estudos, pois venho de família humilde e meu ensino superior era uma escolha minha que dependia de mim. Ensino superior ainda é uma parada muito elitizada, e pro moleque que trabalha em chão de fábrica que nem eu era, ficava difícil competir vaga em universidade pública com quem tem tempo e grana pra estudar, então fui pra uma universidade particular estudar história e antropologia, que era minha área de interesse. Obviamente não concluí minha formação acadêmica.
Quem me ensinou a tatuar foi o amigo de vida Ryan Muterle, que tinha um método de ensino muito bem estruturado baseado na disciplina. Dentro do aprendizado, o respeito pelo tradicional japonês sempre se fez presente, foi uma referência sobre simplicidade e sofisticação na tatuagem.
Outras influências vem de amigos e colegas de trabalho; pessoas com quem eu tive o privilégio de trabalhar e trocar informação. Meus colegas do thINK artclub e os amigos do Covil, do Vértebra, do Labirinto, Casa Caos. Acho que as referências que eu tenho são invariavelmente de expressões do coletivo e não expressões individuais.
“Hell’s Mouth” (“Boca do Inferno”)
“Gilgamesh”
Mari: O que são as “Tattoos from Paradise” (Tatuagens do Paraíso)? Quais são as tradições em que você se inspira pra elaborar seus desenhos?
Marcus: No Paraíso tudo é lindo, imaculado, harmônico, e tudo contém a presença divina e está próximo do Criador. “Tattoos from Paradise” surgiu de uma brincadeira quando o pessoal falava que comentários grandes burlavam o algoritmo, então comecei a comentar “eu achava que tatuagens bonitas como essa só existiam no Paraíso” nos posts dos meus amigos e meio que adotei a brincadeira; várias culturas que tatuavam inclusive falam que levamos nossas tatuagens para o além. Minhas inspirações vem da tatuagem tradicional americana, japonesa, grafismos étnicos, arte folclórica. Busco trazer elementos da minha cultura, então tudo é muito embasado em arte iraniana, egípcia, assíria; também de artistas como Burhan Kartukly, Helmi El-Touni, Afifa Aleiby, Louay Kayali, Hayv Kahraman, Rawand Issa, Tulip Hazbar. A referência é majoritariamente fora da tatuagem.
“NIQABI”. Ilustração de Marcus Mubarack
“Transmigration”. Flashes de Marcus Mubarack
Mari: Você me falou uma vez sobre a origem dos seus pais e sobre a chegada deles ao Brasil. Queria que você contasse um pouco sobre isso. De que forma suas raízes foram determinantes pra que você escolhesse estudar a cultura árabe na sua profissão?
Marcus: Desde pequeno sempre fui curioso sobre cultura e história árabe; meu foco quando estudava era história e antropologia do Oriente Médio. Minha família por parte de pai veio da Síria Otomana e do Egito; uns vieram no contexto do Genocídio Assírio e outros no contexto do Oriente Médio pós Primeira Guerra. Acho que além de mero interesse, muito vem de eu ter crescido numa cidade onde todo mundo era branco e que existe uma prevalência impositiva da estética europeia; tudo parecia um chalé alemão, casinha italiana, com uma inexistência de outras expressões culturais que não fossem europeias. Acho que isso também influenciou muito meu trabalho pra adotar uma estética que é igualmente bonita mas que não existe visibilidade na TV, nas artes, em padrões de beleza, em roupas, em conhecimento. Nossos gostos, preferências, referências e conteúdos são todos influenciados pelo colonialismo europeu.
“ מלאכים”
Mari: Vi algumas vezes você falando sobre você enxergar o seu trabalho com tatuagem como sendo um ofício, um trabalho artesanal, e não um trabalho artístico. Queria que você contasse um pouco sobre essa visão.
Marcus: Acho que arte é uma parada muito abrangente, que existe em tudo e que é de livre interpretação; igual Deus. Deus tá em todas as coisas, mas nem todas as coisas são Deus. Tatuagem pra mim é o que é — um ornamento no corpo -, quem dá o significado pra ela somos nós. Não tenho como negar que meu trabalho tem um elemento artístico, mas no mais básico, ainda é só um ornamento. Não vejo a diferença dessa profissão pra profissão do alfaiate ou do sapateiro: criar uma peça pra um corpo. Acho que é fácil se perder na ideia do artista, de buscar ser vanguardista em alguma coisa e usar a arte como um meio de expressão puramente individual. As grandes construções da Antiguidade, as estátuas, expressões artísticas do passado são artes sem artista; ninguém sabe quem fez porque não tem nome e não interessava ter, era uma pura expressão do coletivo e seguia o modelo e a forma do coletivo que estava se expressando. Acho que vivendo num mundo político, todas as coisas, até as mais simples, viram política; não acredito em políticas individuais. Meu trabalho não é sobre mim, é sobre um coletivo, sobre abrir espaço de fala e sobre descolonização; técnica artística e conceito são os aspectos menos interessantes do meu trabalho. O ponto a ser atingido é a atemporalidade e a funcionalidade; ser um trabalho bonito, duradouro e apropriado em todas ocasiões.
“Heat Stroke” e “Deer huntress” (beduína com cervo)
Mari: Apesar de ser um trabalho que se inspira bastante na tatuagem tradicional na técnica de aplicação, seus desenhos têm um estilo bastante único. Já houve alguma crítica com relação às temáticas que você aborda?
Marcus: A recepção do público é sempre positiva; tanto do público do Oriente quanto do Ocidente. A recepção daqui é muito mais voltada pra estética; do Oriente Médio é muito voltada pra representatividade, por se identificar com o contexto e por ser tatuagem, que tem um outro contexto no Oriente. Acho que as vezes, aqui, a temática afasta quem tem cautela em se apropriar de elementos culturais de outros povos. E é válido ter isso em mente, porém consumir o produto — seja uma ilustração ou até mesmo a tatuagem — de quem faz parte desse contexto não é errado, e sim uma forma de fortalecer quem busca espaço de fala. Já ouvi que meu trabalho acaba sendo excessivamente político, mas acho que há um padrão duplo de julgamento em discursos como esse; o indivíduo de privilégio que se apropria da estética que a minoria usa pra ganhar voz é ok, mas uma minoria levantando a voz em busca de lugar de fala é um extremista. A dinâmica de pintar a minoria como extremista é um dos mecanismos de silenciamento e opressão do racismo.
“Hashish” (homem beduíno)
Mari: Por fim, falando sobre o impacto do seu trabalho. Existem vários movimentos identitários hoje em dia que buscam desconstruir a visão preconceituosa que existe sobre os povos não-brancos, trazendo de volta os costumes desses povos. Pensando nisso, qual pode ser o impacto de trabalhos como o seu (que buscam outras fontes de conhecimento pra criar) na nossa sociedade?
Marcus: Acho que nada cria impacto sozinho; precisa de pessoas botando esse tipo de ação em prática e pessoas abertas pra consumir esse tipo de conteúdo. Ninguém faz nada por si só. Se meu trabalho soar como a voz de outra pessoa do meu grupo, ele já cumpriu seu papel; se levantou um questionamento pra quem não pertence a esse grupo, também já cumpriu seu papel. A imagem é um dos métodos didáticos mais eficientes; é muito mais fácil e agradável entender algo quando a abordagem é lúdica e abre espaço pro questionamento. Educar as pessoas é essencial; quem tem conhecimento tá em dívida com quem não tem, e nenhum conhecimento é útil quando é levado pro caixão. O preconceito nasce da ignorância, e a educação é o que segura a violência de acontecer. De forma alguma quero me considerar ativista porque não acho que ativismo é gerar conteúdo na internet, ficar desenhando ou denunciar preconceito; no fim, tatuagem e ilustração é o que paga minhas contas. Ativismo é parada séria, que exige real dedicação e muito trabalho; quem faz um pouco de tudo, faz muito de nada. Eu a princípio sou professor sem formação acadêmica e me dedico a educar e dialogar com o público que consome meu conteúdo; minha plataforma é o Instagram e minha função é entregar a ferramenta, quem constrói são os alunos.
Veja os trabalhos de Marcus em seu Instagram @mubarack.mar !
SOBRE A AUTORA:
MARI DAGLI Tatuadora, artista visual e viciada em estudar a cultura artística underground. Sigam no Instagram:
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Marcus Mubarack: “Tattoos from Paradise” was originally published in Tattoo2me Blog on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.
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A questão racial apresenta-se como estrutural e estruturante na nossa sociedade. . Fundado em bases marcadas pelo patriarcado, pelo colonialismo, exploração e violência. . O Brasil estruturou as bases das relações sociais com marcas profundas de exploração, amenizadas no discurso histórico oficial. . O racismo, continuamente abordado pelos negros e negras, tem tido a sua analise negligenciada pela sociedade como um todo, mesmo que dados e números demonstrem o abismo colossal existente na nossa sociedade, seja na educação, moradia, saneamento, emprego, renda, dentre outros indicadores, onde a população negra ocupa histórica a base da pirâmide. . E o seu elemento principal, o racismo, que entranhado impacta no nascer, viver e morrer desta população. . Vidas negras importam? Sim. . Para os negros e negras sempre importou. . E para a sociedade brasileira? . . Para discutir essa importante questão, teremos a presença do Mestre em Saúde Coletiva, Bacharel em Antropologia da Saúde, Descendente do Povo FULA da Guiné-Bissau e do Povo MENDE e TEMNE de Serra Leoa - ÁFRICA, Fundador da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doenças Falciformes - FENAFAL e Coordenador da área temática de Saúde da População Negra da ABPN, ALTAIR LIRA ( @AltairLira ). . Do outro lado da conexão e, ao mesmo tempo, na ESCUTA, o Professor, Pós Graduado em Coaching, Pós Graduando em Psicologia Positiva, PNL Master Coach, The Inner Game Coach, PSICOTERAPEUTA filiado ao @CONBRAPSI e Palestrante TEDx, PEDRO CORDIER ( @PedroCordier ). . . Pedro e Altair estarão juntos em uma MetaLIVE imperdível, dia 18 de junho, quinta, às 19h, nos STORIES do Prof. @PedroCordier!! . . Coloquem o despertador pra tocar às 19h e agende o evento no calendário de vocês, agora mesmo!! . . . ... #Covid19 #Coronavírus #Escuta #MetaLIVES #IsolamentoSocial #MetainteligenciaEmocional #Quarentena #VidasNegrasImportam #MudeAfequência #PsicologiaPositiva #Racismo #Psicoterapia #Exploração #Conexão #Consciência #Ação #Resultados #PNL #TLT® #Negro #Preto #Coaching #IKIGAI #TheInnerGame #Escutatória ... . (em Em Casa) https://www.instagram.com/p/CBjis0ug6BH/?igshid=pvjjz4ynsm4z
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Como o afrofuturismo pode ajudar a estruturar modelos de sociedade mais justos para a população negra
O futuro desse planeta nascerá do lado de lá do Atlântico. E será cada vez mais preto.
Ou, como declarou em 2016 Achille Mbembe, filósofo camaronês e um dos principais estudiosos do pós-colonialismo: "O mundo de amanhã será a África", referindo-se ao fato de que daqui 30 a 50 anos uma em cada três pessoas no planeta será africana ou descendente de uma em diáspora. Na visão do intelectual, torna-se necessário pensar caminhos para que essa vantagem populacional se traduza em produção de riquezas em vez de uma maior precarização da vida de negros e negras no mundo.
E se perguntarem qual será a cara desse futuro, talvez possamos dizer que se parecerá com um pássaro, muito conhecido em algumas culturas africanas. Diferente dos outros, o bicho pode ser facilmente reconhecido por estar sempre olhando para trás enquanto voa para frente. E por isso é comumente usado para ilustrar o conceito de Sankofa, que tem como base um provérbio vindo do que hoje conhecemos por Gana, que diz: "não é errado voltar para buscar aquilo que esquecemos", em tradução para o português. Comumente também observamos a utilização dessa imagem para representar um movimento que justamente nasce para abrir espaços largos para o negro em diáspora fantasiar imagens de futuro.
O afrofuturismo, assim como o pássaro, apesar da grande ligação com o que ainda está por vir, sempre olha para trás. Busca os saberes ancestrais enquanto avança. O movimento formalmente recebeu esse nome no começo dos anos 1990 e possui algumas definições — só nessa reportagem, seis pessoas dão seis visões diferentes, porém não excludentes. O afrofuturismo vive em uma constante conversa entre o que é a realidade e o que é ficção. Apesar das obras mais conhecidas serem no campo do cinema, música e literatura, o diálogo com a ciência e a tecnologia também se faz de forma direta.
Enquanto pessoas negras estão escrevendo obras ficcionais, cientistas, professores, estudiosos trabalham para provar na prática e formalizar os conhecimentos que o movimento prega.
Ficção e realidade andam juntas, se completam e buscam, também juntas, construir o movimento que tem como principal trunfo apresentar novas narrativas que contam histórias do povo negro para além das tragédias, da dor e do sofrimento, buscando no passado pré-colonial respostas para perguntas que podem construir um outro tipo de presente e de futuro.
O que é afrofuturismo?
Gosto de uma definiç��o curta que é a de pensar o afrofuturismo como a junção entre narrativas, as obras de ficção especulativa e a autoria e perspectivas negras. Juntando as duas coisas você tem o afrofuturismo.
Kênia Freitas, doutora em Comunicação e Cultura e mestre em Multimeios
Afrofuturismoé um movimento político, é um projeto de soberania preta autônoma, que tem por interesse e meta garantir um futuro para o povo preto a nível mundial.
Esdras Oliveira de Souza, professor, especialista em educação e pesquisador do afrofuturismo
Para mim, afrofuturismo é: arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. Ou seja, o que foi historicamente negado a nós relacionado à presença de africanos e afrodescendentes no processo da história enquanto participação na construção do conhecimento universal.
Zaika Santos, multi-artista, pesquisadora, cientista e divulgadora científica do Afrofuturismo
A minha definição de afrofuturismo é muito pautada na ficção especulativa. Então, eu defino o afrofuturismo como ficção especulativa de autoria negra e que traz também protagonismo negro nas obras.
Waldson Gomes de Souza, Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea
Sempre dialogo com duas definições que acho que explicam bem o que o afrofuturismo é: uma delas vem da Kênia Freitas que fala que o afrofuturismo é um movimento multifacetado e plural. Mas também gosto da simplicidade da definição da Nataly Nery, que é influencer, quando ela fala que o afrofuturismo é a ideia radical de que negros estarão vivos no futuro.
Morena Mariah, pesquisadora
Ele é uma possibilidade dos novos tempos da tecnologia, da comunicação dessa nova geração negra que tem feito e ocupado espaços de literatura, artes, ciência, tecnologia, entre outros, como uma possibilidade de refazermos a nossa própria história.
Lu Ain-Zaila, escritora afrofuturista
Temporalidade circular
Vale ressaltar que afrofuturismo nada tem relação com o movimento Futurista, nascido na Itália, na década de 1900. Enquanto o primeiro prega um olhar atento ao passado para construir o futuro, o segundo rejeita o que já aconteceu, focando apenas na ideia de futuro, de modernização futurística.
O tempo do afrofuturismo funciona de forma diferente do que é ensinado no ocidente porque segue algo já sabido em culturas africanas: a temporalidade não é linear, mas cíclica. "A esteira do tempo move-se para trás mais do que para a frente", como definiu a doutora em psicologia e antropologia da África negra Ronilda Ribeiro em "Alma Africana no Brasil", referindo-se a como essa concepção de tempo está mais atenta ao que já aconteceu do que ao que poderá ocorrer.
A antropóloga descreve o ciclo da vida circular da seguinte forma: "A criança vai se transformando até chegar a adulto; este se transforma até chegar a velho; este, por sua vez, se transforma, inclusive atravessando o portal da morte, para alcançar a condição de antepassado; o antepassado renascerá como criança."
A pesquisadora e estudiosa do movimento Morena Mariah desenvolve bem o tema no podcast "Afrofuturo", projeto que aborda vários aspectos do conhecimento afrofuturista. Segunda ela, quando a concepção de tempo está sempre voltada ao futuro, ao que pode ou não acontecer nesse tempo que virá, como ocorre nas culturas ocidentais, o resultado disso é a ansiedade que "se torna a tônica do tempo da cultura ocidental. O que a gente vai perceber é que a orientação temporal africana busca na tradição uma alternativa para os problemas e desafios do presente".
Ou seja, existe o entendimento de que as soluções para os desafios que encontramos na vida já estão dadas. Enquanto a cultura ocidental acredita que as respostas para esses problemas, desafios e inquietações estão no futuro, a temporalidade africana vai dizer que elas já vieram no passado.
E mais do que olhar a todo o tempo para o passado que já está definido e guarda todas as respostas, a temporalidade africana vê uma coexistência entre o que vivemos no passado, o que estamos vivendo no hoje e o que viveremos no futuro. O resgate do passado que o afrofuturismo faz está diretamente relacionado a esse outro tipo de temporalidade que não é linear. É olhando para o passado que o povo africano ou diaspórico encontra sua identidade no presente para conseguir projetar modelos de futuros.
Humanidade compartilhada
Mas o fato é que ainda é difícil ser uma pessoa negra e pensar em futuro. Não à toa é necessário que exista um movimento para incentivar esse tipo de especulação. As desigualdades sociais e raciais às quais essa parte da população está submetida ainda apresentam-se como um entrave para o sonhar. Como pensar em futuro em um país onde já decoramos de cabo a rabo a estatística que diz que a cada 23 minutos um jovem negro é morto? Algo parecido pensou Samuel R. Delany, um dos principais autores do afrofuturismo, em 1994.
O escritor dizia que o motivo dessa ausência de imagens de futuro para a população preta era histórica e encontrava suas raízes na sistemática privação de qualquer imagem de passado. "Quando, de fato, nós dizemos que esse país [no caso, os Estados Unidos] foi fundado na escravidão, nós devemos lembrar que queremos dizer, especificamente, que ele foi fundado na destruição sistemática, consciente e massiva das reminiscências culturais africanas", escreveu sobre a tentativa de apagamento por completo de qualquer vestígio da cultura de países africanos em negros da diáspora.
Agora, se no afrofuturismo é preciso voltar ao passado para pensar no futuro, para onde volta um povo que não tem qualquer referência ou mesmo noção de onde veio?
"As respostas são muito de ir para os processos imaginativos desse passado, sabe? Ir para processos de fabulação. Por exemplo, existe o conceito de fabulação crítica que algumas historiadoras usam", explica Kênia Freitas, doutora em comunicação e cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e mestre em multimeios pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Nesse processo, estudiosos passam a olhar para fatos históricos que geralmente são contados dando foco ao desfecho mais do que o processo, com outra lente.
A história contada por quem venceu já não interesse mais, é preciso falar também das contribuições dadas por quem perdeu. Kênia exemplifica falando sobre os episódios de rebelião de negros escravizados, que costumam ser lembrados pelo fim trágico que muitos tiveram, mas pouco lançamos o olhar para a criação do sentimento de coragem que gerou um ato revolucionário.
Nesse sentido, o afrofuturismo vai contra o que a autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie definiu como "história única", quando alertava para os perigos de conhecer apenas um lado de uma narrativa e torná-lo a única versão do ocorrido. Assim, ela diz que a consequência disso é a seguinte: "ela [história única] rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes em vez de como somos semelhantes."
São essas voltas, de olhar para o passado e desafiar a narrativa, imaginar além, imaginar nas brechas, contar de outra forma, que não é desviado esse processo real e histórico, não é uma invenção da história, é entender que essa história oficial que chega para a gente já é uma história fabulatória e que existem outros meios de contá-la.
Kênia Freitas, doutora em Comunicac?a?o e Cultura e mstre em Multimeios
Reconstrução de imaginários
Em seu artigo "Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea", o escritor e pesquisador do movimento, Waldson Gomes de Souza escreve sobre a possibilidade de mudar o passado quando há narrativa. Em entrevista a Ecoa, ele explica: "o movimento vem para mudar imaginários. Quando a gente mudar o foco e colocar pessoas negras como protagonistas, temos aí essa capacidade de mudar o passado porque a gente está mudando as imagens que estão sendo reproduzidas sobre nós."
Assim como ele, Morena Mariah acredita que um dos maiores potenciais do afrofuturismo é justamente o de conseguir trabalhar na prática com a reconstrução de imaginários.
"De onde viemos? O que aconteceu nesse lugar antes virmos para cá? O que aconteceu depois que chegamos aqui? Como esse processo que vivemos hoje como sociedade pode se desenrolar no futuro de pessoas negras? E que futuro será esse? Como chegaremos lá?", são as perguntas que ela utiliza e julga necessário de serem abordadas dentro do movimento.
E, assim, por meio desses questionamentos surge um processo de retomada da cultura negra por pessoas que passam a contar suas próprias histórias de forma diferente do que estamos acostumados a aprender formalmente em instituições de ensino ou livros didáticos.
"O afrofuturismo é uma espécie de mola propulsora ou de gatilho que vai gerar uma série de reflexões, que aí sim vão transformar nossa realidade e que podem trazer objetivos a serem conquistados. Mas essencialmente ele traz a reflexão para a gente entender onde queremos chegar e o que queremos conquistar. Isso provoca um movimento de crítica também da nossa situação do presente", completa Morena.
Afrofuturismo em dupla frequência
"A própria existência do afrofuturismo já é uma prática de afrocentricidade e antirracismo combinadas", diz Luz Ain Zaila, primeira mulher negra a publicar um livro de ficção científica afrofuturista no Brasil. Para ela, o processo de colonização que gerou três séculos de escravidão e produziu diversas tentativas de apagamento de culturas, saberes e costumes de povos negros africanos, dificultou a criação de um novo imaginário sobre o que é ser negro no Brasil.
"Precisamos entender que as coisas foram feitas para que a gente acredite que só existe uma história única, que é a história branca, de quem venceu. E isso nos faz chegar em um ponto que a nossa mente não consegue visualizar uma imagem de representação negra. É como quando você lê um livro e automaticamente imagina que o personagem é branco", fala a escritora. Por isso, ela desenvolveu o que chama de "Afrofuturismo em dupla frequência", tema que virou até um curso.
Nesse conceito, o movimento passa a ser visto como uma ferramenta antirracista porque fala para a pessoa negra que ela tem uma História para além da escravidão, que existe cultura, matemática, biologia, entre tantas outras coisas, mas, principalmente, humanidade.
Enquanto diz para pessoas brancas contemporâneas que "apesar delas não terem culpa pela criação do racismo, são elas as responsáveis pela manutenção dele e, por isso, "precisam ter um posicionamento antirracista, de entender que o povo negro tem humanidade e que elas precisam fazer parte da mudança, do combate ao racismo que venha da consciência prática do cotidiano".
Afinal, o afrofuturismo é uma utopia?
Enquanto pessoas brancas tentam imaginar como seria o apocalipse que resultaria no fim do mundo, pessoas negras já passaram por ele. Essa é uma das principais concepções do afrofuturismo. O apocalipse negro já ocorreu. E foi justamente quando africanos foram retirados de seus lugares para serem levados forçosamente para a Europa e as Américas. O colonialismo, a escravidão, o racismo, as desigualdades sociais e raciais que negros enfrentaram e enfrentam até hoje é a distopia que já chegou e se mantém firme desde então.
Nesse sentido, considerar o afrofuturismo uma utopia não significa simplesmente acreditar que esse é um ideal, mas sim uma oposição ao momento atual distópico no qua a humanidade vive há séculos. Ao telefone, quando perguntado qual a maior contribuição do movimento para o cotidiano dele, o professor Esdras responde sem titubear de forma simples e poética: "o Afrofuturismo me ensinou a sonhar. O que eu mais ganhei foi isso. E sonhar coisas boas."
Qual a importância da utopia? Ela serve para criticarmos a realidade atual que é essa distopia. Pensa: a cada 23 minutos um jovem preto é assassinado. Isso não é normal. Mas a vida continua porque a gente nem se comove mais, fomos ensinados a naturalizar a morte de pessoas negras. Essa é a distopia do presente. Nós somos os condenados da terra, como afirma [Frantz] Fanon. Nós vivemos em situação de guerra. Nossos territórios são vigiados, tem policiamento ostensivo. O nosso direito à cidadania é negado. Repito: vivemos uma distopia. O afrofuturismo me apresenta o oposto, a utopia. Existe um mundo para além disso. Se não for aqui na Terra, que seja em Saturno como pregava Sun Ra. Nós merecemos mais do que essa realidade distópica.
Esdras Oliveira de Souza, professor, especialista em educação e pesquisador do afrofuturismo
Mas nem só de ficção vive o afrofuturismo. A mineira Zaika Santos, por exemplo, é multiartista, pesquisadora, cientista e divulgadora científica, com trabalho de comprovação científica dos conhecimentos que movimento prega. O ponto de partida tem sido a própria criação da palavra que denomina o movimento.
Em 1994, foi o crítico cultural norte americano branco chamado Mark Dery que, ao entrevistar três intelectuais negros (Greg Tate, Tricia Rose e Samuel R. Delany), escreveu o ensaio "Black to the Future: Ficção Científica e Cibercultura do Século XX a Serviço de uma Apropriação Imaginária da Experiência e da Identidade Negra", afirmando que certas produções de pessoas negras que utilizavam da tecnologia e ficção especulativa para pensar em futuros poderiam ser chamadas de afrofuturismo.
Ele analisava especialmente as produções culturais do músico e filosofo Sun Ra. "Ele [Mark Dery] escreve esse artigo que vai para uma revista de cultura pop e cunha esse movimento, mas sem visibilizar, por exemplo, que o Sun Ra tinha uma perspectiva antropológica, sociológica, que ele pesquisou Kemet [nome dado ao Antigo Egito]. Não era só numa perspectiva artística, estética, mas em uma perspectiva de realidade da dimensão da vida, de quem estudou muito, sabe? E isso é ignorado", conta Zaika.
O trabalho que ela realiza baseia-se no que não é sabido, do conhecimento desenvolvido por pessoas negras que deixamos de aprender ou que creditamos a pessoas brancas ao longo dos séculos. A partir da pergunta "O que eu não sei sobre Afrofuturismo, Arte, Tecnologia, Ciência e Inovação Africana e Afro Diaspórica?", ela investiga e divulga o conhecimento científico de pesquisadores negros, especialmente cientistas negras, por meio de palestras, debates, cursos e oficinas. O intuito é realizar a investigação histórica relacionada à produção de saberes por africanos ou afrodescendentes para que isso sirva de material a ser usado em sala de aula.
O lugar do afrofuturismo na dimensão de realidade é a investigação histórica. Porque a ciência legitima pautas, mas conhecemos a ciência ocidental, hegemônica, produzida com uma narrativa universalista abstrata que inviabilizou, suprimiu e absorveu para si a História da arte, ciência, tecnologia e inovação das civilizações africanas e de afrodescendentes. A materialidade da História africana e afrodescendente se dá em todos os campos do conhecimento. Isso foi roubado enquanto consciência cognitiva e na contemporaneidade nomeamos este furto de Epistemicídio.
A retomada desses conhecimentos é super necessária e se dá inicialmente pela realização de cientistas negras que estão no campo da ciência e tecnologia com uma perspectiva emancipatória de descolonização da ciência para além do empoderamento, como Ana Botorantin, Eneida Alves, Anita Canavarro, Katemari Rosa, Bárbara Carine, Zelia Ludwig, Sonia Guimarães, Denise Fungaro, Nilseia Amauro, Luciana Silva, Viviane Alves, Joana D'arc Félix, Nina Da Hora, Jaqueline Góes, Sil Bahia, Marcelle Soares, Sueli Carneiro, Lelia González?
Todas essas mulheres, entre outras, que precisam ser visibilizadas, tanto elas quanto tudo que a gente tem no campo da arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente.
Zaika Santos, multi-artista, pesquisadora, cientista e divulgadora científica do Afrofuturismo
Aplicação na prática
O desafio, porém, ainda é pensar nesse movimento no âmbito da realidade, trazendo os saberes que ele desenvolve para a prática. "O olhar ainda não foi convertido para outros lugares", como afirma Zaika. Na maioria dos casos, por grande parte das produções serem peças ficcionais do campo da arte e literatura, o movimento é encarado como fantasioso.
"Existe uma necessidade grandiosa de se fazer isso, de se pensar nesse movimento como algo real para que possamos entender o que é a dimensão de realidade futura enquanto construção de acontecimento. Tem uma frase que uso muito: 'nós já fomos o futuro de alguém no passado', e isso quer dizer que hoje nós estamos construindo, nesse presente, o futuro de alguém", diz a cientista.
Os entrevistados ouvidos por Ecoa trazem ativamente em seus discursos para o que e para onde nosso olhar como sociedade deve se voltar. Falam sobre a primeira Universidade do mundo ter sido criada no Mali — historiadores afirmam que a instituição existia no século 12. Ou como os egípcios já realizavam procedimentos cirúrgicos em 1700 antes de Cristo, como comprova o Papiro de Edwin Smith.
Em sala de aula, o especialista em educação e interdisciplinaridade pela UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) e professor da rede estadual da Bahia, Esdras de Oliveira Souza traz para a prática o que aprende na teoria estudando o movimento afrofuturista. "Nossa ideia é que a escola precisa compreender que ela tem que colocar o sujeito, ou seja, o povo preto como protagonista da nossa própria história, né?", diz. E assim, para ele, o afrofuturismo pode ser visto como uma importante ferramenta antirracista.
"Desde o domínio do fogo, que não foi simplesmente obra do acaso, até o surgimento da escrita, como forma tecnológica de comunicação, passando pelo domínio das técnicas de plantação e cura através das plantas e ervas, o povo preto tem contribuído para o desenvolvimento da realidade. A escola não pode continuar reduzindo nossas práticas científicas ancestrais ao lugar do senso comum, do não científico, do não tecnológico," diz.
Para ele, o papel do professor que pretende fazer rodar na prática os saberes adquiridos por meio do movimento afrofuturista é o de reinventar os debates promovidos em escolas e universidades, criticando versões estereotipadas que a supremacia branca criou sobre o povo preto e a produção de conhecimento dele — ou a falta dela. Sendo fiéis aos fatos históricos, é possível promover a longo prazo a construção de espaços e futuros seguros para que uma criança preta possa sonhar com uma vida mais digna e próspera.
Interseccionalidade de pautas
"A gente precisaria de fato construir, trazer, resgatar pensamentos. Não para substituir uma centralidade por outra, mas para que exista outra perspectiva que amplie essa possibilidade da gente construir conhecimento de fato plural. Principalmente quando falando de resgate de pensamentos matriarcais", diz Kênia Freitas.
O afrofuturismo é um movimento que já nasce intersecional. Apesar do termo ter sido cunhado apenas nos anos 1990, na década de 1960, a autora norte americana Octavia Butler já produzia peças que hoje são consideradas afrofuturistas. Ela, uma mulher, negra que passou a escrever sobre ficção científica, bem na época em que as leis de segregação racial ainda existiam nos Estados Unidos. "Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco", diz no início de "Kindred" (1979) a grande dama da ficção científica.
Na obra, a personagem principal é uma mulher negra dos anos 1970 que, misteriosamente, consegue viajar no tempo para tentar salvar um antepassado. Só que, se para pessoas brancas, voltar no tempo é quase um fetiche, um sonho, para pessoas negras a pergunta "para qual época do passado você gostaria de ter vivido?" não funciona na prática. Quando Dana, a personagem principal no livro, viaja no tempo diretamente para uma época em que a escravidão ainda era vigente no país, é possível observar diversos momentos em que raça e gênero se conversam de forma brutal.
Em determinado trecho da história, ela diz: "eu era a pior guardiã possível que ele podia ter, uma negra para cuidar dele em uma sociedade que via os negros como sub-humanos, uma mulher para cuidar dele em uma sociedade que via mulheres como eternas incapazes."
No artigo "Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea", Waldson Gomes de Souza afirma que "a abordagem antirracista é indispensável para a construção de obras afrofuturistas, mas não deve ser encarada como única preocupação", o que para ele significa que as pautas feministas e LGBTQIA+, por exemplo, não são raras dentro do movimento. Das três obras afrofuturistas brasileiras que ele analisou para escrever sua tese, — "Ritos de passagem" (2014), de Fábio Kabral, "Brasil 2408" (2016-2017), de Lu Ain-Zaila e "Cidade de Deus Z" (2015), de Julio Pecly —, em duas delas podemos encontrar interseccionalidade de pautas no enredo.
"Fora do afrofuturismo, é muito comum a gente encontrar obras que abordam sexualidade de uma forma muito positiva, mas aí você não vê nenhum personagem negro, sabe? O contrário também acontece. Quando a gente pensa no mainstream, a Marvel, por exemplo, primeiro fez os heróis brancos, depois vem as heroínas brancas, depois vem os heróis negros e, por fim, as heroínas negras.
E isso é complicado porque parece que a gente tem que ir quebrando as barreiras e avançando aos poucos, sendo que já pode entrar no momento tudo meio misturado porque essa é a realidade das pessoas: não somos uma coisa só. Precisamos ir mais além nesse sentido. E o afrofuturismo é um espaço bom para isso. Vai pensar justamente qual será o futuro melhor para pessoas negras, que não são só cis heteronormativas."
Waldson Gomes de Souza
Mercado pode ampliar alcance
As discussões sobre e o que seria o movimento afrofuturista foram parar em casas brasileiras quando combinadas com a cultura pop. A Wakanda, país fictício localizado na África, do filme "Pantera Negra", fez muita gente sonhar como seria viver ali, naquele paraíso tecnológico de um local que não sofreu com as crueldades da colonização. Também fez muita criança preta ver pela primeira vez um super-herói da mesma cor que elas. Já na mais recente obra visual da cantora norte americana Beyoncé, "Black is King", o afrofuturismo é quem abre espaço para dizer que o negro é lindo e pode ser realeza.
Não dá para negar que esse é um movimento em que a estética apresentada passa a ser facilmente consumível. É só ver que as duas obras citadas acima foram realizadas por duas grandes e famosas corporações: Marvel e Disney.
"Vislumbrar outro futuro, com outras relações sociais passa pelo fim do capitalismo porque ele é feito em cima das desigualdades, inclusive racial. Mas ao mesmo tempo, a gente não tem como tocar uma varinha mágica e acabar com isso. O capitalismo faz isso mesmo, captura movimentos estéticos e produz com ele. O que não é necessariamente é ruim, é melhor que você tenha grandes produtores, diretores e diretoras negras que tenham a capacidade de fazer filmes caros porque assim existe uma penetração, um alcance que só os grandes produtores conseguem ter", diz Kênia Freitas.
No entanto, como explica a pesquisadora, a discussão final não pode ser representada apenas por essas produções. Elas precisam servir como parte de um debate maior, que propague outras obras que vão tratar o assunto de maneira mais aprofundada, possibilitando uma maior compreensão do movimento.
"Acho que é uma questão ambígua, né? É claro que nem todo mundo vai se conectar com essas complexidades da cultura africana, nem todo mundo vai conseguir fazer um processo de retomada ou ter acesso a essas discussões. Mas pode gerar uma influência muito grande em outras áreas que também são importantes, tipo a política", comenta Morena, rememorando que em 2017, com o slogan "Detroit é o Futuro", a candidata Ingrid LaFleur concorreu às eleições para prefeita da cidade usando o afrofuturismo de base para o projeto político que pretendia implantar.
Não é impossível e nem é fora da realidade. O afrofuturismo faz essas discussões. Pensar o futuro das políticas públicas colocando raça como elemento central é algo que pode, de fato, ajudar a resolver as questões no Brasil. Porque numa realidade em que a maioria das é pessoas é negra, se você não trata a raça como questão central, você está enxugando gelo.
Morena Mariah, pesquisadora
https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/reconstrucao-afrofuturismo/#page16
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Metodologia dos cafés, Parte 1
(PARTICIPARAM: TANIZE, TAIS, CLAUDIA, PATRÍCIA, SIMONE)
Explicar, na proposta de método comparativo de Strathern:
- quais pressupostos teóricos da proposta?
- como a autora considera o feminismo para o trabalho antropológico?
Marilyn Strathern é uma antropóloga britânica conhecida pelos estudos de gênero e feminismo. A autora realizou suas pesquisas de campo em Papua Nova-Guiné, entre os Hagen, com foco para nas relações de gênero entre este coletivo, mas seus trabalhos incluem também estudos culturais e pesquisas sobre pós-parentesco.
No texto Gênero da dádiva, traduzido para o português brasileiro apenas em 2006, Marilyn Strathern a partir dos campos do conhecimento do Feminismo e da Antropologia faz um exercício de pensar as práticas e os discursos do Feminismo e da Antropologia, bem como as incidências que cada campo pode ter um sobre o outro. Neste percurso, mostra como os métodos antropológicos - construídos sob lógicas ocidentais - podem desconsiderar pressupostos dos interlocutores não ocidentais.
Mas as minhas intenções eram o oposto – não a de completar os termos faltantes nas conceitualizações nativas, porém a de criar espaços que faltavam na análise exógena. Não se trata de os melanésios não terem representações de unidades ou de entidades totais, mas de as obscurecermos em nossas análises. (STRATHERN, 2006: 38).
Um dos primeiros pressupostos que a autora questiona é o de Sociedade, pautado em uma lógica ocidental de estruturação social, onde a sociedade pressupõe a cultura e o indivíduo. Logo, o indivíduo nasce envolvido pela Sociedade, e por meio da cultura é socializado.
Logo nas primeiras páginas, a autora destaca como a categoria Mulheres muitas vezes é pensada como algo estático. A contradição é, ao mesmo tempo, perceber que a Sociedade ocidental reconhece a existências de diversas formas de sociedade e, antropologicamente, a produção do conhecimento atesta que os seres humanos são socioculturalmente distintos, porém, a categoria Mulheres não era devidamente contextualizada no espaço e no tempo das pesquisas etnográficas. Dessa forma, a autora problematiza algumas etnografias britânicas clássicas realizadas, dentro do mito antropológico, pelos “pais fundadores” do campo, como Malinowsky e Radcliffe-Brown, por exemplo..
Partindo da lógica de que todas as sociedades produzem assimetrias entre os gêneros, a autora aponta como o Feminismo pode transpor estas diferenças tendo como ponto de vista as relações ocidentais de gênero, para um contexto etnográfico melanésio onde as relações seguem uma lógica compósita de gênero.
Mas o movimento feminista tem tão claramente as suas raízes na sociedade ocidental que é também imperativo contextualizar seus próprios pressupostos. O motivo é respeitável, visto que o próprio pensamento feminista busca desalojar hipóteses e prejulgamentos. Levo a sério esse esforço através de questionamento das premissas de seu ataque às premissas antropológicas. (STRATHERN, 2006: 23).
Para demonstrar a ausência de estudos de gênero, Strathern realiza uma análise algumas monografias sobre a produção antropológica na região de Papua Nova-Guiné, e, por meio do levantamento, não deixa de evidenciar o aumento de estudos realizados por antropólogas, mas, também, o privilégio dos interlocutores masculinos nas pesquisas realizadas por homens.
Utilizando a categoria de Ficção, baseado na leitura de Roy Wagner, a autora pensa na produção de etnografias enquanto uma invenção ocidental sobre os povos nativos. Em uma inversão dos polos, a autora usa a produção antropológica para demonstrar o a história do pensamento antropológico, manifestada por alguns de seus autores clássicos. O que não deixa ser um reflexo do contexto de dominação e colonialismo em que nasce a antropologia britânica.
O trabalho Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, sobre as mulheres negras estadunidenses é um exemplo da aproximação teórica feminista dos estudos culturais. Autores homens tendiam a retratar as famílias negras segundo o modelo euro-americano (família nuclear heterossexual), mas Davis destaca que a família negra é uma família expandida, que inclui – além do pai, da mãe e dos filhos e filhas – também os tios, os avós e os não parentes.
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“La Noire de...”: Crítica pós-colonialista no cinema africano
e a colonialidade emergente
O filme de Ousmane Sembène “La Noire de..." (1966) decorre no momento pós-colonial igualmente berço de um neocolonialismo silencioso, indício inicial da colonialidade que se firmaria nas décadas seguintes. É também uma película contundente sobre simbologia (máscaras) e identidade (individual, colectiva, imaginada), exotismo e racismo, fala e lugar, feminismo e interseccionalidade.
"Se os africanos não contarem as suas próprias histórias, em breve a África desaparecerá" — Ousmane Sembène
“Se o branco me contesta a minha humanidade, mostrar-lhe-ei, fazendo pesar sobre a sua vida todo o meu peso (...) não renegar a minha liberdade nas minhas escolhas.” — Frantz Fanon, “Pele Negra, Máscaras Brancas”
1 — Introdução 1.1 EM MODO SINOPSE Poucos anos após a independência do Senegal, na difícil construção social da nação nova, há uma silenciosa servitude para com a antiga potência. França já não é "a Metrópole”, mas permanece como idílico lugar de civilização e agora destino mais acessível para a emigração africana cumprir a utopia do sucesso.
Estamos em 1966, meia-dúzia de anos após o fim do centenário colonialismo francês. O filme La Noire de…, realizado pelo histórico cineasta Ousmane Sembène, decorre nesse momento pós-colonial, contudo igualmente berço de um neocolonialismo silencioso, indício inicial da colonialidade que se firmaria nas décadas seguintes. Sembène, o “pai” do cinema africano sub-saariano, a partir de um conto seu, denuncia detalhes sistémicos de racismo e colonialismo herdados do anterior regime. Descreve-nos as relações de desigualdade da era pós-colonial, o quotidiano de pobreza e discriminações, as dificuldades e as aspirações de melhoria de vida, todas determinadas por escassas oportunidades sujeitas a marcadores de classe, raça e género.
Poderíamos analisar cada cena, cada diálogo, cada silêncio, graças à imensa riqueza do filme. Este ensaio visa explorar a película do histórico cineasta como uma crítica pós-colonialista, e inserido no emergente cinema africano, um grito de resistência e afirmação negras — de mensagem política, da representação da mulher, do sacrifício necessário para conquistar a liberdade. É também um filme contundente sobre simbologia (máscaras) e identidade (individual, colectiva, imaginada), exotismo e racismo, fala e lugar, feminismo e interseccionalidade. La Noire de… é um olhar minucioso e íntimo sobre amarras da história que não desapareceram com a independência, que a liberdade é uma luta constante.
1.2 ÁFRICAS PÓS-COLONIAIS: SENGHOR E SEMBÈNE O Senegal é resultado individual e colectivo da(s) história(s) de África. Como tantos outros territórios sob domínio colonial, os seus capítulos antes e após a independência em 1960 foram titulados por nomes consagrados também além-fronteiras. Léopold Senghor foi um deles, o primeiro presidente do país, após falharem as tentativas de federações com outros territórios pertencentes às colónias da África Ocidental Francesa. Poeta e escritor, com Aimé Césaire foi um dos fundadores do conceito da Négritude*, e o seu contributo para a independência e reconstrução africana preconizava, de forma pragmática, uma relação próxima com o antigo colonizador. O “modo africano de socialismo” aliava as suas crenças iniciais da Negritude, a sociedade negro-africana tradicionalmente socialista, para edificar, e para manter vivo, o fervor da alma negra, agora com planeamento científico e tecnologia (Adi & Sherwood, 2003).
* Négritude surge como um movimento contra a discriminação e alienação do colonialismo, por estudantes africanos, caribenhos e outros mais, na francofonia, entre 1930-50. Césaire e Senghor lideraram um largo grupo que reforçaria debates cruciais: contra o racismo e a assimilação cultural; o fim do colonialismo e consequentes independências; o pan-africanismo; e principalmente, a ideia de valor e orgulho da história, cultura e identidade negra africana.
Por outro lado, Ousmane Sembène, escritor e recém-cineasta, no decorrer dos anos iniciais da independência, cedo se tornou crítico de Senghor, “um grande poeta de língua francesa, mas um mau político”. O presidente era “in a sense the foe Sembène loved to hate and his antithesis” (Gadjigo, 2007:26). A sua antipatia estendia-se à própria Negritude, o movimento foi para ele um período da história de África para depois se tornar "a fuss between intellectuals”. O caminho do Senegal independente espelhava relações neocoloniais e de falhanço na afirmação da cultura africana em si mesma. O tempo pós-colonial, que Sembène foi testemunha, cumpria os receios de um dos maiores nomes da consciência africana, Frantz Fanon:
“A cultura negro-africana condensa-se em torno da luta dos povos e não em redor dos cantos, dos poemas ou do folclore; Senghor, que é igualmente membro da Sociedade Africana de Cultura e que trabalhou connosco nesta questão de cultura africana, não vacilou tão-pouco em ordenar à sua delegação que apoiasse as teses francesas sobre a Argélia. A adesão à cultura negro-africana, à unidade cultural de África, exige primeiro um apoio incondicional à luta de libertação dos povos. Não pode desejar-se o esplendor da cultura africana, se não se contribui concretamente para a existência de condições dessa cultura, quer dizer, para a libertação do continente.” — Os Condenados da Terra (1961) p.247
Na pluralidade da construção de uma comunidade, Senghor e Sembène divergiam no entendimento do projecto político africano. Por caminhos paralelos, ambos desenharam ideias para fazer do futuro, com o legado imenso que o passado ancestral lhes dava, um país e um continente renascido e renovador.
1.3 OUSMANE SEMBÈNE E O CINEMA COMO ACTIVISMO POLÍTICO Ousmane Sembène é considerado por muitos como o “pai” do cinema africano. Na verdade, do cinema feito a sul do Sahara, negro portanto, diferente e autónomo das produções do Magrebe, principalmente no Egipto. O carácter inovador da sua obra era objectivo e incisivo, desconsiderando aqueles que opinavam como deveria ser o cinema negro africano.
Nascido na região de Casamansa, no actual Senegal, em 1923, território colonial francês, foi destacado para combater na Segunda Guerra Mundial. Entre Dakar e França, onde volta para trabalhar nas docas de Marselha, o calor e produção da escrita (contos e romances) emergem a par da aproximação ao Marxismo e às lutas sindicais. De regresso ao Senegal, entregou-se como escritor e cineasta. Com as independências conquistadas a África francófona virou o seu olhar para si própria, antes das ex-colónias britânicas e a muitos anos de distância da libertação dos territórios lusófonos. A literatura africana já tinha conquistado lugar, mas faltava a magia do cinema para captar a essência e a consciência dos povos livres do colonialismo. A urgência de filmar tomou pioneirismo no talento e activismo de Sembène.
Num documentário produzido em 1994, Sembène declara a importância do cinema como instrumento de activismo político:
“Aos 40 anos eu viajava por África, no Congo durante o tempo de Lumumba. Tinha 40 anos quando percebi o potencial impacto do cinema. O cinema é como um contínuo comício político com o público. Numa sala de cinema, temos católicos, muçulmanos, gaulistas, comunistas se o filme for bom. Cada um vê o que quer. Fui levado a filmar por ser uma ferramenta mais eficaz para o meu activismo. Mas se perguntarem a minha preferência pessoal, prefiro literatura ao cinema. Mas na nossa época, a literatura é um luxo. Para resumir a história usando a nossa tradição oral, o cinema é uma ferramenta importante para nós. De todas as artes, é a forma de expressão mais acessível e atraente para um grande público. Infelizmente, isso requer um elevado investimento tanto de dinheiro como de esforço humano."
"At the age of 40 I was travelling around Africa, in the Congo during Lumumba's time. I was 40 when I first realised the potential impact of cinema. Cinema is like an ongoing political rally with the audience. In a movie theatre you have Catholics, Muslims, Gaullists, Communists if the film is good. Each see what they want. I was driven to film as a more effective tool for my activism. But if you ask my personal preference, I prefer literature to cinema. But in our time, literature is a luxury. To summarise history using our oral tradition, cinema is an important tool for us. Of all the arts, it's the form of expression that's more accessible and appealing to a large audience. Unfortunately, it requires a costly investment of both money and human effort."
Para Ousmane Sembène o cinema é veículo extraordinário para comunicar de forma rápida e simples numa África de rica tradição oral mas com vasto analfabetismo legado pelo colonialismo. Numa entrevista em 1972, por ocasião do lançamento do seu filme Emitai (“Interview with Ousmane Sembène”, por Harold Weaver, in A Journal of Opinion, Vol. 2, No. 4, Winter, 1972), Sembène realça a importância das histórias e o perigo da ignorância: “Sabemos que antigamente em África (...) existiam histórias de resistência. Parece que durante o colonialismo não houve lutas pela libertação nacional; e isso não é verdade. Durante o período do colonialismo, posso mostrar que não se passou um único mês sem que houvesse um esforço de resistência. Mas o problema era que não havia comunicação entre as pessoas ”. [No original: “We know that in ancient times in Africa (…) there were stories of resistance. It would appear that during colonialism there were no struggles for national liberation; and that's not true. During the period of colonialism I can show that not a single month passed when there was not a resistance effort. But the problem was that there was no communication among the people.”]
O tempo colonial nunca cuidou de filmar as verdadeiras realidades africanas, apenas brancos imaginários, idílicos ou perigosos, a partir de Hollywood. Recordemos a interminável saga de Tarzan (o icónico Johnny Weissmuller em 12 filmes de 1932 a 1948); em 1951, The African Queen era somente nome de barco que Humphrey Bogart aventurosamente pilotava num rio sem nome entre a ameaça da selva e de povos “selvagens”; e o “technicolor adventure/romantic drama film” Mogambo (1953) repetia o rude charme de Clark Gable sobre as deslumbrantes Ava Gardner e Grace Kelly, algures em África (nunca nomeando o Quénia, onde foi filmado, o continente como lugar uniforme). O cinema expandiu a infantilização, selvajaria e inferioridade negro-africana, uma lavagem psicológica contínua de colonizador sobre colonizado, e romantizou o território virgem africano como palco de afirmação narcísica da branquitude. Em síntese, “A civilização branca, a cultura branca, impuseram ao negro um desvio existencial” (Fanon 2017:11), a supremacia colonial legitimava a presença e todas as suas acções.
O cinema feito por Sembène, e outros realizadores negro-africanos que virão, elimina os estereótipos. Neste novo tempo das independências coloca-se ao serviço do povo e das suas histórias. “How do you speak to a people? How do you raise people’s consciousness? Through cinema.” (entrevista ao Philadelphia Inquirer, 2004). O cinema é o novo meio de comunicação para partilhar, denunciar e celebrar a cultura africana. Sérgio Dias Branco, Professor Auxiliar de Estudos Fílmicos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, cita Sembène no seu ensaio que em cada filme seu, a intenção política é clara, para ele cultura é política, na “arte, és politico (…). Em cada etapa da vida, o povo cria a sua própria cultura, marca a sua era, e avança! Portanto, quando eu descobri a cultura, eu fiz uso disso. Política. Não a política do político” porque nunca quis ficar refém das linguagens pré-feitas da liderança do Senegal, “mas falar em nome do meu povo" (Branco 2020:154). O cariz revolucionário, como de Fanon, coexiste na sua cinematografia, desde a luta de classes à denúncia da hipocrisia do poder. A literatura e cinema de Sembène “adoptam uma estética e um modo de narração realista social, límpido e livre. Os seus filmes fortalecem retrospectivamente a causa da libertação da opressão colonial, mas também a necessidade da luta pelo progresso social no presente.” (Branco 2020:146). O cinema é veículo para demonstrar os anseios, aspirações e culturas africanas, e até mesmo literalmente a voz do povo quando progressivamente abandona o francês para utilizar os idiomas Wolof e Joola (Senegal), e a língua Jula (Burkina-Faso e Mali).
La Noire de… não foi o primeiro filme de Sembène, mas sendo a primeira longa-metragem (na verdade média, com 55 minutos) ganhou alcance internacional logo no ano de lançamento, ao participar em festivais e revelar-se diferenciador, fulgurante e incisivo. Até hoje. Ousmane Sembène publicou nove livros e realizou onze filmes. Morreu em 2007, com 84 anos, na sua casa em Dakar.
2 — “La Noire de…”
2.1 PÓS-COLONIAL E NEO-COLONIAL Quando foi o pós-colonial?, pergunta Stuart Hall. Na cinematografia de Ousmane Sembène é claramente uma lógica temporal, o chamado tempo de diferença logo após a queda dos regimes coloniais. Será obviamente erróneo colar a futura crítica do pós-colonialismo neste imediatismo, toda a reflexão produzida nas décadas seguintes são interpretação pertinente das relações e comportamentos que prolongaram desigualdade. Sembène é "apenas" o justo primeiro crítico da transformação/estagnação que acontece no Senegal, e em África no geral.
Em La Noire de… o pós-colonial é o tempo presente que, apesar da liberdade senegalesa, expõe quotidianamente resquícios do regime anterior. O pragmatismo político da liderança de Senghor em manter vínculos com França, é uma forma de sustentação e viabilidade existencial para o país, contudo convida a laços desconfortáveis que se traduzem como presença neo-colonial, e igualmente em atitudes sociais que subsistem da relação senhorial-subalterno, seja na ex-colónia, seja na antiga metrópole. No tempo novo e no filme habitam ainda o colonialismo e o racismo, debaixo e à flor da pele. No Senegal e em França, na era colonial e pós-independência, são notórias como as “diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada permanecem profundas”. A alteração de regime não alterou o pensamento e o comportamento das metrópoles (“A independência deles fê-los menos naturais”, diz um dos amigos, branco, dos patrões de Diouana), nem a dependência de quem já estava em posição inferior, pois “sempre esteve profundamente inscrita nelas — da mesma forma como se tornou indelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados” (Hall, 2003:108). Sembène e La Noire de… denunciam o neocolonialismo que impele disparidades sociais e económicas, reafirmam posições de poder e “controle abstractas, indirectas, em geral de natureza económica que dependem de uma forte aliança entre o capital estrangeiro e as elites locais” (Shohat, 2006:42). Que, em silenciosa progressão/manutenção na camada estrutural das sociedades colonizadoras e colonizadas, na própria globalização e no sistema-mundo, se alimenta o que hoje designamos de colonialidade.
2.2 TRAGÉDIA DE UMA JOVEM SENEGALESA
Fosse esta a fraseologia do título do filme, estaríamos perante uma versão à la Shakespeare e conduziria à partida todas as expectativas do visionamento. Não está longe da verdade narrativa, mas a escolha de Sembène é seguramente mais inteligente. O conceito e a robustez das palavras, seja num título ou na primeira e acutilante frase nos livros, deve cativar-nos de outra forma. La Noire de… enuncia “a negra de” alguém, de algum lugar, na falaciosa leveza do anonimato de uma mulher. A graciosidade inicial do filme de rompante se dissipará no seu corpo ignorado — em linguagem, iconografia e exploração que se julgavam eliminados com o fim dos impérios coloniais. Eis os epítetos imediatos para categorizar a personagem mais determinante do cinema de Ousmane Sembène. Mas listá-la desta forma é dizer pouco e não honrar a sua magnitude durante a película. La Noire de… refere-se à bela Diouana (quase uma franco-africanização da nome da deusa Diana, poderosa divindade da lua e da caça da mitologia romana), a história de uma jovem senegalesa que habita num bairro pobre e periférico de Dakar, que diariamente procura emprego e finalmente o consegue como ama de crianças para uma família branca. Algum tempo mais tarde, os patrões regressam a França, e a eles se juntará Diouana para uma nova e desejada vida na Riviera Francesa, uma icónica terra prometida fruto de um “enfeitiçamento à distância”, como diria Fanon. Ela age segundo “um fenómeno psicológico que consiste em acreditar numa abertura do mundo quando se atravessam as fronteiras.” (Fanon 2017:17). A experiência revela-se diferente e inesperadamente dramática.
Sembène desenvolve esta história primeiro como conto, publicado em 1961 na revista Présence Africaine, e reunida no livro “Voltaïque” com outros contos seus, em 1962. O papel da mulher, o poder e racismo institucional, a identidade africana e a alienação, são tópicos transversais à sua produção literária. Em 1958, Sembène ainda trabalhava nas docas de Marselha, e esta história inspira-se numa notícia publicada num jornal local, na secção “Les fait divers” (o recorte surge reconstruído nas cenas finais do filme). Assim titulava o artigo: “Une jeune négresse se tranche la gorge dans la salle de bains de ses patrons” (Uma jovem negra corta o seu pescoço na banheira da casa dos seus patrões). Porquê tamanho final trágico, por que provações terá ela passado, de onde era ela originária, quem era ela — seguramente algumas das perguntas de Sembène ao ler estas linhas. No conto, e transposto para filme, ela é retirada do anonimato de “factos diversos”, e a imaginação de uma vida e uma experiência dá dignidade e poder a uma mulher negra africana chamada Diouana.
La Noire de… personifica uma mensagem política: o sujeito/objecto, a condição precária da sociedade senegalesa, as parcas oportunidades que à mulher são permitidas e o sacrifício que lhes é exigido e normalizado. Como mulher e negra, é simultaneamente corpo disponível, exótico, descartável e invisível, combinando todos os contornos imagináveis do que hoje designamos interseccionalidade.
2.3 A INSUSTENTÁVEL INTERSECCIONALIDADE DO SER
Não basta ser mulher para estar na escala mais baixa da sociedade. Diouana está submetida à hierarquia social que o colonialismo semeou, preenchida de marcadores de diferença que a inferiorizam cada vez mais. Como “mulher negra terá experiências distintas de uma mulher branca por conta de sua localização social, vai experienciar gênero de uma outra forma” (Ribeiro 2017:36) que, somando-se (ex)colonizada, analfabeta e pobre, no olhar e pensamento estrutural da branquitude, a sua verdadeira identidade persiste ignorada e insignificante. Na verdade, o seu eu está ausente do mesmo modo que existe unicamente no lugar permitido: o de ama, de criada, de subalterna. O único modo de obter trabalho, sentada numa esquina com outras mulheres negras, assemelha-se a antigo mercado de escravos. A vistoria e escolha de Madame (a patroa branca) assim o replica, e na sua casa de Dakar, as orientações ao cozinheiro (negro) — “Explica-lhes as regras da casa: se ela quebrar alguma coisa, é ela que paga!”—, sustentam a soberba da autoridade. É justamente a “Metáfora do poder. Metáfora também da ideia que certos corpos pertencem a certos lugares (...) Esta hierarquia introduz uma dinâmica na qual a negritude não significa apenas 'inferioridade' mas também ’estar fora do lugar’, enquanto a branquitude significa 'estar no lugar', logo, ‘superioridade’” (Kilomba 2019:56).
Diouana está limitada na sua voz, que deteriora o seu silêncio como subalterna. As impossibilidades de tomar a palavra e o cerco do lugar de fala unem-se ao não dominar o francês. A sua (in)expressão verbal não perturba os patrões, alvo de chacota racista durante a recepção com os convidados dos patrões, no apartamento de Antibes: “Mas ela entende”, diz Madame.“Instintivamente?”, pergunta a amiga. “Suponho que sim…”. A convidada remata, entre risos, “Como um animal!”. Neste discurso sem fronteiras, a cor coloriza imaginário e ideologia supremacista. O colonialismo pode ter acabado, mas o preconceito — o racismo — é provavelmente a matéria mais densa do universo. “Todo o povo colonizado — ou seja, todo o povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade, devido ao enterro da originalidade cultural local — se situa em função da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana.” (Fanon, 2017:14). O lugar e poder da fala entre Madame e Diouana assumem-se nesta herdada dinâmica. Até o facto de Madame não conseguir, ou não se importar em pronunciar correctamente o nome da sua criada (Du-aná em vez de Di-ou-ana) revela o desdém que o idioma civilizado nutre pela fala do inferiorizado.
Seria impossível escapar ao mito do corpo negro enquanto objecto erotizado. Diouana, jovem e bela, é alvo de cobiça onde o ensejo mais primitivo provém daquele que se julga superior. “Permite-me, Mademoiselle? Eu nunca beijei uma negra antes”, afirma na antecipação da conquista, o convidado mais velho dos seus patrões, nesse mesmo almoço. É a concretização do “momento em que o sujeito negro é inspeccionado do exterior como objecto de fetiche, de obsessão e desejo”, sem dúvida Diouana inscreve-se num processo de ‘despersonalização absoluta”, como descrito por Frantz Fanon (Kilomba 2019:125). A violentação do corpo é outra forma de tornar invisível a mulher negra, iluminando a relação de agressão e sexualidade que suporta séculos de abuso e eliminação da sua identidade e dignidade humanas.
2.4 A METAMORFOSE DAS MÁSCARAS
No imaginário da criatividade, e na enorme simbologia que a sustém, as máscaras são sinónimo de personificação de várias entidades e funções. Encontramo-los nos caretos do Nordeste transmontano português, para dar um exemplo próximo e extraordinário. Não será muito diferente a atitude do artesão de Podence ou do Senegal, pois “um povo para o qual a arte, o elemento religioso e a moral tem um poder imediato, e que é dominado e cercado por essas forças, torná-los-á visíveis em si próprio.” (Einstein 2021:51).
No entanto, pela experiência colonial e o seu impacto para o Modernismo no início do séc. XX, a escultura e máscaras negro-africanas firmaram-se icónicas expressões artísticas, gradualmente destituídas do seu propósito ou formalismo iniciais (que aconteceu também com as chamadas artes tradicionais/populares europeias, de algum modo primitivizadas como as africanas). O coleccionismo transformou-as em objectos de outro tipo de adoração, esvaziados do seu contexto inicial, ao figurar em museus de curiosidades, ou nas casas de abastadas famílias brancas nas colónias ou nas metrópoles. Há a metamorfose do objecto, onde utilizador e lugar alteram a natureza simbólica e espiritual, para se contemplarem unicamente em juízos de valor estéticos e exóticos.
A máscara do irmão de Diouana demonstra várias características. Em primeiro lugar, assistimos a um acto de dádiva, como enunciado por Marcel Mauss — Diouana ao oferecê-la à recém-patroa, atribui no gesto e no objecto, agradecimento e generosidade. Contudo, a reciprocidade esperada, na bondade de Madame e a vida prometida em França, é enganadora e torna a patroa indigna da oferta, por isso Diouana reclama de volta a máscara. Um segundo aspecto, é como a máscara em Dakar passa de brinquedo a objecto de colecção; e depois em França, figurando de modo isolado na parede branca, análoga a troféu de caça e ausente de lugar (tal como Diouana). Efeitos perenes de colonialismo e alienação: o branco que se apodera e re-objectifica em desconsideração da identidade, historicidade e dignidade do colonizado. A ética da troca não existe, glorifica-se o privilégio da posse.
Ao longo do filme assistimos ao ocultar e desocultar das máscaras das personagens. “Embora se transforme sempre um pouco, o ser humano esforça-se por conservar uma certa continuidade, por conservar a sua identidade” (Einstein 2021:52). As promessas sedutoras que se esfumam em ilusão e opressão ao revelar-se o verdadeiro carácter de Madame (ou seja, de colonialidade), e a re-emergência simbólica de poder e identidade africana (na recuperação da máscara por Diouana, e na perseguição que o seu irmão faz a Monsieur, com a máscara, no segmento final do filme). O tempo pós-colonial pode ser entendido ao jeito de máscaras teatrais gregas, na dualidade de identidades que representam: a genuína, que personifica a criatividade e a liberdade africanas; e a falsa, nas relações de cooperação das ex-potências que se revelam como atitudes de neocolonialismo.
2.5 SUICÍDIO COMO VOZ E RESISTÊNCIA A opressão progressiva clarifica a negreza da situação. Neste jogo cromático de palavras, os corpos de Madame e Diouana opõem-se pela natureza psicológica de ambas, cujo curso de acontecimentos transformam sonho em armadilha, e por fim em acto subversivo. As breves respostas de “Oui, Madame” e “Oui, Monsieur” são as palavras ideais para estes escutarem. O escasso vocabulário de Diouana cumpre na íntegra parte da sua condição de subalternidade. No entanto, a sua incapacidade de fala não detém a sua capacidade de resistência. Escutamos nos seus monólogos interiores a consciência crescente que a Riviera é um engodo (“Agora compreendo tudo. Madame queria uma criada. Foi por isso que ela me escolheu.”), e um falso paraíso (um lugar sem gente nem felicidade “Onde estão as pessoas que vivem neste país?”, o oposto da sua terra-natal). Na verdade, França é uma prisão (“Sou prisioneira deles”). Diouana afirma-se sujeito e não um objecto: “Jamais serei escrava!”
Palavras mudas, pois a sua subversão está condicionada — como e para onde escapar? A dignidade e liberdade de Diouana aliam-se numa fuga de elevado gesto simbólico. O seu suicídio é escrito em sangue, e o corpo como voz. Contudo, devemos seguir as palavras de Grada Kilomba quando cita Gayatri Spivak que “adverte os críticos pós-coloniais para o perigo de romantizar os sujeitos resistentes” (Kilomba 2019:49). Quem entender o suicídio de Diouana como tal está a falhar a mensagem de Sembène. Ela não escolhe o martírio como acto romântico e ideológico: sendo um acto de resistência (e não desistência) é a única saída para a liberdade e não mais se submeter à opressão. Diouana, a outra, mulher e negra, age determinada e corajosa, mesmo que este suicídio seja sinónimo de “assassinato do eu pelo racismo” (Kilomba 2019:208).
O modo como a cena é composta remete para pinturas que exclamam o exercício da morte de forma heróica. A semelhança com a pintura de Jacques-Louis David, “A Morte de Marat”*, pode ter sido um inteligente artifício de Sembène, não sabemos. A gloriosa França da civilização e da sagrada trindade liberté, égalité et fraternité é atraiçoada, e certamente traiçoeira. Assim o podemos observar na obra de 1793, e na cena final de Diouana, em 1966. A lâmina e a pena, a pose e o destino, são interpretações possíveis para realçar o clímax conceptual do “silêncio gritante” e que o sangue de Diouana escreve de forma trágica.
* Curiosamente, Doyle Calhoun, professor da Universidade de Yale, também faz esta analogia em "(Im)possible Inscriptions: Silence, Servitude, and Suicide in Ousmane Sembène's La Noire de…” (Research in African Literatures , Summer 2020, Vol. 51, No. 2). Faz igualmente outras interpretações interessantes, ao associar a banheira-sarcófago formalmente semelhante a um navio-negreiro.
3 — Conclusão
DO PÓS-COLONIALISMO À COLONIALIDADE Podemos actualizar características de 1966 para a realidade do início do século XXI. O fim do colonialismo e a emergência das independências das ex-colónias não impediram que as relações de poder desigual sedimentassem pobreza, dependência, esquecimento, ilusão e ignorância. O quotidiano revela continuados episódios de racismo, herança estrutural dos regimes coloniais em todas as sociedades. Que não haja dúvida, “No racismo, tornamo-nos sujeitos incompletos” (Kilomba 2019:82) e muitas Diouana’s existirão mundo fora, vítimas de exploração, indignidade e violência (a lista de “infortúnios” é bem maior).
Diouana fez a viagem inversa do barco-negreiro (num paquete branco…) rumo à Europa para a sua condição de escravizada. Na última década assistimos a novos exemplos de escravização, e processos migratórios onde o perigo, o sacrifício e a morte, começam na própria viagem. As fortalezas das democracias da Europa não podem ficar cegas e inertes face às iniquidades, nas suas sociedades e dos países agrupados em Terceiro Mundo, esse lugar inventado não pelas milhões de pessoas que habitam (e fogem) arriscando as suas vidas por um futuro melhor, “mas por homens e instituições, línguas e categorias de pensamento do Primeiro Mundo” (Mignolo 2017:19). Eis o estado do mundo, a colonialidade que se inscreve, como recorda Walter Mignolo, numa “matriz ou padrão colonial de poder”.
Também por tudo isto, La Noire de… é ainda hoje uma referência multidimensional. Como ícone do cinema africano negro (um "terceiro cinema" do Terceiro Mundo, segundo Paul Willemen). Do conceito de cinema como activismo, um instrumento de denúncia mas igualmente de afirmação. De cinema como aproximação e contacto (o audiovisual, agora de modo digital, nunca teve tanto alcance). Do cinema como continuador do conhecimento africano, um auxiliar precioso contra o esquecimento e a revitalização da memória.
BIBLIOGRAFIA
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— Ensaio Final para COLONIALISMO, PÓS-COLONIALISMO E ANTROPOLOGIA 2º ano, 2º semestre • 2020/2021 28 Maio 2021 — Avaliação: 20 Nota Final de Semestre: 20
Licenciatura de Antropologia | Iscte-IUL, Lisboa
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