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// a palavra saudade só existe em português //
Hoje acordei com a Saudade queimando.
Ela me cegou e por um momento existiu sozinha no universo. Me lembrou do Sol.
A Saudade é como o Sol, porque tem dias que esquenta até as sombras mais escondidas do meu coração. Não há como fugir da Saudade, assim como não há como escapar do calor incômodo vindo do enorme corpo celeste preso no céu.
Às vezes a Saudade é isso: o astro ao redor do qual todos os outros sentimentos giram, num ciclo eterno que alinha e desalinha mas segue fixo por uma força gravitacional tão complexa que até os grandes pesquisadores têm dificuldade para colocar em palavras.
Outras vezes, tudo parece frio e coberto de nuvens. Parece que o Sol jamais existiu e no lugar dele só faz vento — e quem não ama um dia nublado? Mas, no fundo, você sabe que ele está lá, porque aprendeu assim. Porque você sabe.
E quando dá aquele horário e a noite começa a surgir, você se dá conta que a luz da lua só existe por causa da Saudade.
Hoje acordei com a Saudade queimando.
Ela me cegou e por um momento existiu sozinha no universo. Ontem, ela havia se escondido atrás das nuvens, mas senti-la era como respirar: automático.
Só que quando o calor chega como chegou hoje, é avassalador.
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// telefonema //
love, the sun, and other things that are better in space
Quando o telefone toca à noite, você se lembra. Não é nem o mesmo som, mas você poderia mudar para o som de um passarinho e mesmo assim você ainda se lembraria. O telefone toca à noite e nem sempre é aquela voz que te chama do outro lado; alguns dias, é só o robô da operadora de celular cobrando um senhor que deve ter passado o número errado ou falecido.
Se ele não tiver falecido, você pensa, então dá vontade de matá-lo. Mas só quando o telefone toca à noite.
É sempre no mesmo horário, e parece que o seu organismo já sabe: suas pernas ficam geladas, sua bexiga pede uma ida ao banheiro, seu estômago se contorce e empurra o pulmão contra o seu esôfago até você ficar sem ar. E aí você acorda 5 minutos, ou 5 segundos, antes do telefone tocar.
Quando o estômago resolve dormir, é o cérebro que acorda, e então, os sonhos.
As mesmas imagens de novo e de novo e de novo: o vácuo escuro, sem som. A Terra, numa distância que parece ser de mentirinha (eles avisaram que estaria longe assim, mas ninguém está preparado pra essa visão de verdade, pelo menos não para o jeito que ela tira o seu ar).
O corpo vestido de branco ao seu lado, com um capacete maior que as coxas e botas maior que a cabeça. Você não consegue ver os olhos, mas consegue senti-los sobre você: castanhos, cuidadosos. Olhos que sorriem mesmo que o corpo esteja todo tenso. Olhos que só poderiam pertencer a um ambiente como aquele: escuros, mas ao mesmo tempo brilhantes, como o céu.
Mas o seu cérebro te trai antes que dê para continuar encarando aqueles olhos enquanto eles ficam por cima – por baixo? É difícil dizer no espaço – de você. O seu cérebro te trai e seu telefone também, toda noite com uma música diferente, mas quase sempre com a mesma voz.
É sempre com as mesmas perguntas também. Desculpe, mas é parte do procedimento. Dá para ouvir o arrependimento na voz, mas talvez é só porque você já tenha ouvido todos os outros sentimentos que aquela voz é capaz de sentir.
Depois que você resolve o que precisa pelo telefone, fecha os olhos e tenta voltar a dormir, mas ainda ouve tudo. E você ouvia tudo, lá. É engraçado ouvir algo estando no vácuo, mas o que você ouvia era capaz de romper o frio do espaço.
Quando o telefone toca à noite, tudo vem de uma vez, como a explosão de uma estrela na sua mente. Mas aí você atende, responde quase que no automático, desliga e volta para a cama (às vezes vai ao banheiro antes e joga água no rosto, para separar o real da imaginação).
É madrugada, sempre é, quando você volta para o corpo que já estava na cama. Ele não usa capacete, dá para ver seus olhos: fechados, cansados, absortos em outro sonho.
Você não precisa se aproximar dele para se lembrar que voltou para o chão, onde o Sol é quente e desconfortável. Mas é mais perto dele que você lembra do que precisa fazer quando o telefone toca à noite.
#nepent3#brazil#historias#writing#poesia#poetry#brasil#poesiaemprosa#astronauta#espaço#historiadeamor#lovestory
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// fim do mundo //
boy bands, the end of the world, and other inexplicable phenomenon
Adele não sabia ao certo no que prestar atenção.
Havia as crianças correndo, as perninhas trançando entre as mesas da lanchonete cada vez mais rápido e desajeitadamente, os gritinhos agudos e irritantes a medida que a distância entre elas e os pais aumentava.
Havia os pais, que tentavam não correr nem falar alto enquanto perseguiam os filhos com hambúrgueres pela metade nas mãos.
Havia os adolescentes, que riam alto demais e gritavam alto demais e falavam alto demais, deslizando pela lanchonete e dançando a música brega que tocava no alto-falante e os preparava para a balada que com certeza seria o próximo destino – depois do lanchinho.
E então havia a perna esquerda de Levi.
Aquela era mais uma sexta-feira normal para Adele, nessa altura do campeonato: sair da aula, trocar de roupa e esperar do lado de fora do prédio de quatro andares pelo carro vermelho que ela já ouvia da esquina. Passar na lanchonete com os três garotos e pedir a única opção vegetariana do cardápio, e depois sair correndo para o bar onde a banda deles se apresentaria. Depois, pegar carona de volta para casa.
Seria mais uma sexta-feira normal.
Se não fosse o ar, que estava diferente. E a perna esquerda de Levi.
Ali, sentada na mesa de quatro lugares na lanchonete, Adele deu mais duas mordidas no lanche enquanto tentava ao máximo focar no que quer que Tobias e Hugo estivessem discutindo no outro lado da mesa. Não que fosse uma discussão, com vozes altas e acusações ferozes, nada disso. Nada nunca seria isso entre Tobias e Hugo, principalmente porque estavam conversando de mãos dadas.
– Você não acha, Del? – Tobias desviou o olhar de seu namorado brevemente e fitou a amiga, com as sobrancelhas erguidas.
– An?... Ah, uhum.
Tobias sorriu satisfeito, e Adele desejou ter concordado com algum argumento coerente. Os amigos não voltaram a chamá-la para o assunto, e isso foi o suficiente para que ela voltasse a mergulhar em seus pensamentos.
Deu mais uma mordida no lanche e tentou olhar de esgueio para o garoto sentado ao seu lado. Levi ria do que quer que Hugo tinha acabado de falar, a boca cheia de uma mordida bem dada no lanche que claramente não era vegetariano. Sua franja caía nos seus olhos castanhos, mas dava para ver o brilho travesso que vinha deles. Seus braços estavam apoiados na mesa e, assim como o joelho esquerdo, o cotovelo esquerdo encostava em Adele. Bem de leve.
Por baixo da mesa, a perna de Levi se mexia quase como se fosse independente do seu corpo. Em uma batida descompassada, seu pé e sua coxa esquerda subiam e desciam e subiam e desciam e subiam, trombando incessantemente com o joelho e a coxa de Adele.
Ela queria que isso incomodasse, e incomodasse tanto que ela teria que pedir para que ele parasse, ou ao menos se afastasse. Mas tudo em que Adele conseguiu pensar era que justo nessa sexta-feira ela tinha escolhido usar sua minissaia amarela favorita, que deixava suas coxas e seus joelhos completamente nus, o que significava que só uma camada de tecido, os jeans surrados de Levi, separava as peles dos dois.
E isso foi o suficiente para que ela não pensasse em mais nada até saírem da lanchonete.
– Mas eu não consigo fazer isso.
– Del, por favoooooor.
– Não entendi por que o Tobias não faz em vocês dois.
– Não vai dar tempoooooo.
Os três garotos estavam sentados no sofá do camarim do bar, e Adele estava em uma das cadeiras em frente ao espelho, retocando o batom. Ela olhava para frente e pensava em como poderia não ter comentado que a luz daquele camarim era ótima ou que o delineado na linha d'água de Tobias estava especialmente lindo, porque uma discussão – uma de verdade, dessa vez – irrompeu no local. Uma em que ela teve que participar.
– Nós temos que otimizar o tempo. – Hugo falou, metodicamente, levantando do sofá e se colocando na frente dos amigos, no meio do caminho entre Adele e os meninos. – Tobias faz o delineado em mim, e Adele em Levi.
Ao falar o nome dos dois assim, um tão perto do outro, um arrepio passou pela barriga de Adele. Um arrepio que ela conhecia muito bem, mas tinha aprendido a lutar contra. Ou pelo menos a tentar lutar contra.
– Eu tenho medo de machucá-lo – Adele se levantou da cadeira, se juntando aos seus amigos. – Não sou muito boa nisso. Não tanto quanto Tobias.
– Vai ficar ótimo. Confio em você.
Foi Levi quem falou, as poucas palavras fazendo o arrepio voltar para a barriga de Adele. Ele a encarava agora, de baixo para cima, a franja afastada dando mais destaque aos olhos. O delineador ia cair muito bem.
Adele sentia que estavam sendo observados. Sabia que Hugo e Tobias queriam que algo acontecesse entre os dois – talvez tanto quanto ela queria. Mas não ia acontecer, por Adele já havia tido essa conversa com ela mesma. Sobre como a amizade é muito mais importante nesses momentos. Não importa o fato de que agora só haviam os dois naquele camarim, trocando um só olhar, que ia além de uma opinião sobre delineador.
– Pessoal, quinze minutos, ok? – o dono do bar nem bateu na porta antes de dar o aviso, dando um susto em todos.
O braço de Adele estava numa posição esquisita que dava cãimbra no pulso.
– Del, preciso piscar, preciso piscar…
– Não ouse. Eu tô acabando. – o nariz da garota estava há pouquíssimos centímetros do nariz de Levi, e ela tentava não pensar no fato de que ele cheirava a limão e vagamente a fritura, por causa da lanchonete.
Havia levado cinco minutos para aplicar delineador em um olho, o que eram cerca de quatro minutos e trinta segundos a mais do que Adele levava para fazer em si mesma. Em parte, era porque o garoto não parava de piscar. Mas, na maioria do tempo, ele usava das mãos para fazer cócegas em Adele e tirar sua concentração.
Não que Adele estivesse concentrada. Desde que Tobias e Hugo haviam deixado ela e Levi sozinhos no camarim para ir checar o palco, seu coração estava tão acelerado que ela tinha medo que desse para ouvir.
– Del, eu não tô brincando. – Levi murmurou, entre dentes. – Se você não parar eu vou ser obrigado a fazer cócegas na sua costela.
– Isso foi uma ameaça? – a garota afastou a mão que segurava o lápis, mas não afastou o rosto nem o corpo do menino. Com pouquíssimos centímetros de distância entre os dois, ela sorriu um sorriso malicioso.
– Vem aqui! – Levi gritou e rapidamente envolveu Adele em um abraço, pulando para fora da cadeira. Os seus dois braços prenderam a cintura da garota e a tiraram do chão, e depois levaram-na até o centro do camarim.
– Me solta, me solta! – Adele gritava entre risos, cruzando as pernas no ar e tentando segurar a saia no lugar, mais por instinto do que qualquer outra coisa. Levi girou a garota até ficarem frente a frente antes de colocá-la no chão, mas não soltou sua cintura.
Os dois estavam ofegantes e sorrindo.
– Idiota. Você tá todo manchado. – o primeiro reflexo de Adele foi segurar o rosto de Levi com as duas mãos, usando os dedões para ajeitar o delineado borrado nos cantos dos olhos. Ela só percebeu a posição em que estava quando sentiu o abraço do garoto trazê-la para mais perto.
– Suas mãos estão tremendo. – Levi observou, sua voz um sussurro agora. Se antes os rostos deles estavam a pouquíssimos centímetros de distância, agora estavam a pouquíssimos milímetros. – Tá tudo bem?
Silêncio. Levi fechou os olhos, mas Adele se recusou a copiá-lo.
– Não. – a garota se afastou tão rapidamente quanto haviam se aproximado. – Mas vai ficar, assim que você for fazer seu show.
– Del... – as mãos dos dois se encostaram na maçaneta da porta que levava para o palco. Os olhos de Levi encontraram os de Adele e, nossa, o delineado deixava as pupilas castanhas dele muito mais intensas. – Eu queria te dizer...
– Eu sei o que você quer me dizer. E, acredite, eu quero também.
Mais silêncio. As sobrancelhas de Levi se ergueram até um ponto que Adele nunca vira antes.
– Mas você nunca parou pra pensar… – ela tentou formular a frase certa, mas as palavras pareciam entaladas na garganta, como comprimidos engolidos sem água: amargos. Duros. – Nunca pensou em todas as chances que isso tem de dar errado?
O garoto deu um sorrisinho antes de responder.
– Mas… e a chance de dar certo?
Eles se encararam de novo, e o arrepio que percorreu o corpo de Adele foi diferente dessa vez.
Que sensação esquisita, ela pensou, sentindo o arrepio sair da boca do estômago e parar na ponta da língua. Por um momento, Adele teve certeza de que ia começar a chorar. Ou começar a rir. O corpo dela começou a batalhar para escolher entre esses dois, o que tornou tudo mais excruciante. Mas, um segundo depois, foi como se a batalha parasse. E depois começasse de novo.
Olhar para os olhos de Levi era, Adele, concluiu, o último segundo de silêncio antes do caos. Era como olhar nos olhos do fim do mundo.
– Desculpa, eu não posso ter essa discussão. – a garota fez o máximo para não trocar mais olhares com ninguém ao cruzar a porta e depois a pequena escada de serviço entre o palco e a plateia. Ela não ia aguentar ficar para ver o show, não com o que tinha acabado de acontecer.
Mas, merda, ela não podia voltar sozinha.
Do lado de fora do bar, ela viu as luzes de dentro se apagarem e o show começar. Ela conhecia o setlist dos meninos de cor, mas não conseguia evitar o sorriso toda vez que Tobias cantava o "one, two, three, four!" de I saw her standing there, dos Beatles. Depois desse breve momento de paz, todos os pensamentos do dia voltaram para a mente de Adele, e tudo que ela estava sentindo fez seu coração bater mais rápido, num ritmo pesado que a deixava quase sem ar.
Nada disso teria acontecido se Levi tivesse se sentado tão perto na lanchonete, e eles não tivessem ficado encostados durante todo aquele tempo. Mas, até aí, aquilo podia ser coisa da cabeça dela, não podia? Era isso que Adele sempre afirmava para si mesma. Que tudo era coisa da sua cabeça, que ninguém, principalmente Levi, seria capaz de sentir o mesmo que ela, de perceber as mesmas coisas que ela. Porque era simplesmente maluquice ficar prestando atenção em coisas do tipo joelhos esquerdos que ficam encostados em joelhos direitos.
A segunda música – ou seria a terceira? – começou lá dentro, e a voz de Tobias assumiu um tom mais romântico. Adele conseguia visualizar o palco, se fechasse os olhos: Tobias debruçado sobre o microfone, Hugo já suado e com as sobrancelhas franzidas, prestando atenção no compasso, e Levi abraçado na sua guitarra verde escura, que só ficava da sua cor verdadeira quando ele ousava ir para a frente do palco, onde tinha mais luz, e fazer algum solo super complicado.
Adele se perguntou se hoje Levi tinha resolvido entrar na frente de algum tipo de holofote. Como se ele sempre tivesse sentido alguma coisa por ela, mas escolheu esse dia específico para se colocar no centro da atenção dela e fazer alguma firula. Ela se perguntou se aquilo era um show para ele, ou se realmente significava algo a mais, algo mais parecido com os sentimentos dela.
– Meu deus, eu devo estar ficando maluca. – Adele falou para si mesma, em voz alta, para ter certeza de que não estava ficando maluca por começar a comparar cada pedaço do show a um aspecto da vida dela. E então decidiu entrar no bar novamente, mas só para pegar algo para beber.
O ambiente interno estava significantemente mais quente, o que a garota considerava uma vantagem para seu corpo pequeno e com poucas roupas, e também estava bem mais cheio do que quando havia chegado. O público era um pouco mais velho do que ela, na faixa dos 25 anos, talvez, e curtia o show em pequenos grupos ou em casais.
Adele tentou não olhar para o palco enquanto se dirigia à bancada alta no centro do bar, mas era difícil pois ele era o único foco de luz fora as mesinhas com cabines perto da porta por onde ela havia entrado. Enquanto ela pedia uma cerveja para o barman bonitinho, seu olhar sem querer pousou em Levi, enquanto ele terminava a música com um solo de guitarra complexo.
Ela gostava de vê-lo assim, não pelo foco que ele ganhava no show, com os holofotes e tudo o mais, mas pelo fato de ele ter confiança no que ele estava fazendo. Levi tocava guitarra como se estivesse sentado assistindo TV, ou dando uma volta no parque no domingo. Dava para ver o prazer sendo transmitido em cada nota.
Adele aplaudiu junto ao resto da plateia quando finalizaram, e ela notou que houve uma rápida troca de informações entre seus amigos no palco. A garota deu um longo gole da cerveja enquanto via Levi assumindo o lugar de Tobias no centro, ajustando o microfone para a sua altura, e Tobias saindo e voltando rapidamente com uma segunda guitarra das coxias.
– Oi pessoal, muito obrigada pela presença! – Levi falou ao microfone, afastando a franja dos olhos. – Essa é nossa última música antes de um intervalinho. Espero que gostem!
Hugo usou as baquetas para contar até quatro e os meninos começaram uma música que não estava na setlist, mas que Adele conhecia muito bem.
A voz de Levi combinava perfeitamente com Jackie and Wilson, a favorita de Adele, que eles já haviam escutados juntos, apenas os dois, centenas de vezes. A música que eles já haviam cantado juntos na varanda do apartamento dela às duas da manhã, com o violão desafinado dele acompanhando. A música que ela poderia curtir sozinha sem enjoar, por toda a eternidade, mas era melhor quando ouvia junto com Levi.
Não era uma música qualquer.
O garoto cantava ao mesmo tempo que buscava os olhos de Adele na plateia, mas ela estava catatônica demais para sair do seu assento no bar. Mal conseguia mexer a boca para acompanhar a letra. Quando cruzaram os olhares, a música já estava chegando no segundo refrão.
A menina havia abandonado completamente a cerveja apenas para assistir tudo aquilo. As luzes vermelhas e a música perfeita e aquele olhar. Ela sentia tudo na boca do estômago dela, a sensação de que o mundo estava acabando e a vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo. O formigamento na ponta da língua.
Adele riu sem querer porque ouvir ele cantar, cantar para ela, aquilo tudo nem parecia tão terrível assim. Na verdade, tudo que Adele queria era mais, queria chegar além do fim do mundo e encontrar coisas novas. Com Levi.
Ela não ouviu as palmas, nem o agradecimento da banda, mas tinha plena consciência dos seus passos enquanto corria até a frente do palco. Quando chegou na porta do camarim, não bateu nem esperou que algum responsável permitisse sua entrada.
– Oi. – Adele disse, baixinho, dentro do camarim. Frente a frente com Levi.
Ele estava suado. Ofegante. Sorrindo de orelha a orelha.
O delineado fazia seus olhos brilharem com mais intensidade.
– Hugo e Tobias saíram. – foi tudo que ele disse.
– Ok. Ótimo.
– Tenho 15 minutos.
– Ok. Ótimo. – Adele repetiu, seus pés grudados no chão. Foi Levi quem se aproximou, um passo de cada vez, as mãos contidas ao lado do corpo.
– Achei que você tinha ido embora – ele parecia genuinamente preocupado. Seus olhos percorriam cada centímetro do rosto da garota, como se ela não fosse real.
– Eu ia. Mas precisava da carona.
– Vai se ferrar.
Os dois sorriram ao mesmo tempo. Levi estava bem mais próximo de Adele agora, como estavam antes de tudo dar errado. Mas dessa vez os dois estavam mais cautelosos, embora Adele pudesse jurar que estava ouvindo o coração do garoto batendo como uma escola de samba – a não ser que aquilo fosse o coração dela.
– Levi, eu…
E então ele a beijou.
Não começou bem como um beijo, se Adele pudesse ser bem sincera – o garoto pressionou seus lábios nos dela, e segurou forte na sua cintura, fazendo-a encostar na porta. Mas então ela segurou o rosto dele com leveza e os dois fecharam os olhos, e tudo ficou mais suave. Em algum lugar, a versão original de Jackie and Wilson começou a tocar.
– Levi, – a garota interrompeu o beijo, mas só porque haviam coisas demais zunindo pela sua cabeça. – Me desculpa. Eu acho que eu fui muito dura quando a gente conversou da última vez…
– Não, você tava certa. – a franja de Levi estava grudada em sua testa, separada e dando mais evidência aos seus olhos. – Eu te entendo, e eu pensei muito no que você disse. Antes mesmo de rolar tudo isso. Mas aí eu pensei…
– Chega de pensar. – Adele interrompeu. E Levi riu. E então eles voltaram a se beijar.
Adele não sabia ao certo no que prestar atenção. Havia as mãos de Levi, acariciando seu rosto com tanto cuidado. Havia os braços de Levi, que a envolviam por completo. Havia o rosto de Levi, que ficava alguns centímetros acima do seu, na altura perfeita.
E então havia a boca de Levi.
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// isla //
love, hate and other things I can’t have
Angra entra no meu quarto e fecha a porta atrás de si.
– Hoje foi… melhor.
– Mas não foi perfeito. – Rebato, puxando a saia do meu vestido e sentando na cama. Minha irmã faz o mesmo e se junta a mim. – Tem que ser perfeito.
Olho para as sombras no chão criadas pelo sol do início da manhã. Amo meu quarto nesse horário, quando tudo é tomado por um dourado frio. É minha cor favorita, e na maioria das vezes só eu estou acordada para ver. Preciso me lembrar de acordar cedo mais vezes para aproveitar esse momento.
Não que hoje eu esteja aproveitando.
– Isla, pare. – Minha irmã segura minha mão e faz com que eu me vire para ela. Seus encantadores olhos escuros como piche sorriem para mim. – Olhe pelo lado bom: dessa vez você não fez careta.
– Eu não faço careta! – Exclamo, em choque, e me levanto da cama. Meu vestido vem comigo, o tecido azul esvoaçando ao meu redor enquanto me movo.
– Faz sim. Um pouquinho.
Não sei como lidar com a inocência de Angra às vezes. Mesmo tendo alcançado a maioridade há duas semanas, para mim ela ainda era a criança que crescera comigo; e, em alguns momentos, eu acho que ela também se via assim. Principalmente quando eu a pegava passando a mão pela cabeça recém raspada, como se ainda não tivesse se acostumado.
Eu não tive muito tempo para me acostumar com a cabeça raspada. Estava muito preocupada em me acostumar com a coroa sobre ela.
– Você vai comigo amanhã, não vai? – Aproximo-me da menina para perguntar. Tento manter a postura de regente e não de irmã mais velha.
– Claro que não! – Ela responde, balançando a cabeça. – Não é tradicional.
– Tradição é pressão de gente que já morreu. – Agora me abaixo e abandono a postura real. – Preciso de você, Angra, por favor. Quem é que vai me impedir de fazer careta?
Minha irmã pensa antes de responder.
– Realmente.
Rimos juntas e eu volto a me sentar na cama. O sol avança pelo quarto, e o dourado pálido vira um branco que machuca os olhos.
– Mas dá mesmo para ver quando eu fico…
– Dá. – Angra é honesta. – Mas só porque eu te conheço muito bem, Isla.
Ela se levanta e estende a mão para mim. Eu aceito e me levanto, espantada com o quanto minha irmã cresceu no último inverno. Já está da minha altura.
– Você vai se sair bem. – Ela encosta sua testa na minha. – E eu vou estar lá com você o tempo todo.
Sorrio e abraço a menina. Consigo sentir o espanto em seus ombros quando eu a aperto contra mim.
– Obrigada. – Digo. E então Angra sai do quarto.
Basta eu ficar sozinha para relembrar tudo que aconteceu de manhã. Os oficiais de minha mãe fazendo milhões de perguntas que eu não sabia como responder, as dicas que não eram bem dicas, o aviso terrível: "se você se esquecer disso amanhã, não teremos acordo nenhum".
Haviam tantas coisas que eu não podia esquecer, e mais coisas que eu sequer podia deixar transparecer. E precisava aprender tudo esta noite.
Uma lágrima escorre do meu olho antes que eu possa impedi-la, mas eu a limpo imediatamente.
Não posso deixar que me vejam assim. Não posso.
Caminho em passos largos até minha penteadeira para checar se minha maquiagem foi comprometida, mas está tudo ali: pele perfeita, delineado impecável, cabelo milimetricamente no lugar. Aproveito para puxar mais cachos e deixar o penteado mais arrumado.
Eu preciso pensar em outra coisa, urgentemente.
Ajeito o vestido e saio do quarto. Do lado de fora, encontro dois guardas praticamente idênticos: pele escura como a minha, cabelo ajeitado em um coque alto, as mesmas tatuagens nos braços. Sou quase da altura do homem da direita, mas o da esquerda é quase trinta centímetros maior do que eu.
– Jax, Talin. – Cumprimento, e ambos respondem com um aceno de cabeça. – Irei até a biblioteca.
– Te acompanho, Majestade. – Talin é rápido em se oferecer, prontificando-se em ficar atrás de mim no corredor.
– Eu também, Majestade. – Jax diz, começando a trocar de posição.
– Não é necessário. – Digo, estendendo a mão, com um pouco mais de alarme do que eu deveria. Dou uma olhada pra Talin e seus olhos se abrem um pouco mais, pedindo para eu me acalmar.
– Como quiser, Majestade. – Jax volta a posição na frente da minha porta e ali permanece. Ele não pareceu notar minha interação com Talin.
Sigo caminho até a biblioteca, subindo dois lances de escada e depois virando no largo corredor do quarto andar. Ouço os passos pesados de Talin atrás de mim mas não troco mais nenhum olhar com ele. Continuo até a última porta do corredor, que dá acesso a nossa vasta coleção de livros.
Não estou procurando livro algum, na verdade.
– Cheque se não há mais ninguém aqui, por favor. – Digo bem baixinho para que só o guarda possa ouvir, assim que estamos dentro da biblioteca. Troco olhares com ele de novo e dessa vez há uma faísca.
– Sim, Majestade.
Observo Talin se afastar e eu cruzo o piso de porcelana negra em direção à estante de biografias. Também checo a biblioteca e seu vasto ambiente de pé direito alto e teto abobadado por algum oficial ou talvez até minha irmã, mas não vejo ninguém.
– Apenas nós dois. – o guarda diz ao se aproximar novamente. Está praticamente correndo e não usa o pronome apropriado.
Sorrio e viro-me para a estante de livros. Puxo um deles, vermelho com a lombada vazia, até quase retirá-lo da estante.
Imediatamente um espaço do tamanho de uma porta se abre dentre as fileiras de livros, revelando um espaço escuro, todo feito de pedras. Pego na mão do guarda e o puxo para dentro, empurrando a porta atrás de mim.
O corpo de Talin está grudado contra o meu agora, e de frente para mim, sua cabeça quase a um palmo sobre a minha. Eu seguro suas bochechas com as duas mãos e o puxo para mais perto, fazendo sua boca encontrar a minha.
Eu o beijo com força e urgência, meus dedos colados no cabelo em sua nuca, puxando-o para mais perto do que seria humanamente possível, e Talin responde com igual urgência, até o momento em que seus braços fortes se cruzam sob minha cintura.
Eu me sinto derreter sobre seu corpo e perder todo o controle dos meus sentidos.
Pulo no colo do guarda e ele cambaleia até a parede sem me soltar e sem parar de me beijar. Seus lábios passeiam pelos meus, mas depois descem pelo meu queixo e depois meu pescoço e minhas clavículas.
Desço do colo dele e vou até o pequeno divã colocado bem no centro do quartinho secreto. Algum ancestral deve tê-lo criado para ler em paz, mas eu havia encontrado um uso muito melhor.
Bem na frente do divã, na parede oposta do quarto, há uma única janela e um espelho, nossas únicas fontes de iluminação. O sol da manhã bate no rosto de Talin nos pontos em que eu mais gosto: o alto das bochechas, a testa, a ponta redonda do nariz. Fico pensando nas vezes em que admirei o rosto do homem, esperando pelo nosso próximo encontro.
Deito-me no divã e espero Talin se juntar a mim. Ele vem rapidamente, encobrindo a luz, e continua a me beijar e me acariciar, usando os lábios para traçar o caminho até meu decote e depois de volta até meus lábios e depois de volta mais uma vez.
Quando seus olhos se encontram com os meus da terceira vez, eu seguro seu rosto para que possamos nos ver.
– Oi. – Ele diz, sem ar. Também gosto muito da sua voz rouca.
– Oi. – Respondo, rindo. Ele sorri também, e esse sorriso. O homem pisca seus longos cílios retos para mim e eu beijo sua boca, sem conseguir evitar.
Deixo de segurar seu rosto para pegar suas mãos, que estavam presas nos meus quadris, e levá-las até as alças do meu vestido.
Ele tira as alças dos meus ombros e volta a me beijar, com mais calma dessa vez, e traçando caminhos mais longos.
Levanto-me do divã e subo no colo do guarda, retribuindo os carinhos. Beijo seu pescoço e seus ombros nus, até o momento que sou surpreendida pela imagem de nós dois no espelho do quarto.
Existe uma parte trincada no canto inferior esquerdo do espelho que se estende até a metade dele. O vidro é comprido, então a parte trincada deforma a imagem.
Eu me vejo no colo de Talin, eu de frente e ele de costas, nós dois de troncos nus. Ele perdido em beijos, e eu estática olhando para nossos reflexos.
Sinto as coisas diminuindo de velocidade e parando dentro de mim no segundo em que vejo aquela imagem, como se eu tivesse saído do meu corpo para observar a situação. Mas tudo para só para depois avançar rápido demais.
Eu vejo tudo naquele espelho. As responsabilidades, a reunião de amanhã. Meus pais e Angra. E tudo isso nunca cruzaria com essa vida paralela que eu vivo toda vez que estou com Talin.
Pisco várias vezes, repelindo as lágrimas, e me afasto do homem. Tiro as mãos de suas costas e as uso para puxar as alças do vestido para cima.
– Isla? Está tudo bem? – Talin está atônito. Seus olhos vão da minha boca até meus ombros e depois minhas mãos e então para minha boca de novo. Posso jurar que o vi estendendo sua mão em direção à minha perna, mas ele se detém. – Fiz algo errado?
– Não, não é nada. – Falo rápido demais, e não consigo encará-lo.
– Você sabe… – O guarda se levanta e em seguida se ajoelha na minha frente. – Você sabe que eu amo você, não é? Não faria nada para te machucar.
– Não diga isso, Talin.
Uma lágrima escapa antes que eu possa contê-la, mas eu já estou fora do divã quando isso acontece. Puxo minha saia para correr até a saída e não olho para trás para ver se o homem está me seguindo.
Na verdade, rezo para que ninguém mais me veja até o caminho para o meu quarto, onde eu posso ficar sozinha.
Esse pensamento me perturba mais do que qualquer coisa que passou pela minha cabeça na biblioteca. Porque eu só conseguia me ver com Talin e, se não fosse com ele, a outra opção era sozinha.
***
Passo o resto do dia revisando anotações da conferência, em parte para treinar e em parte para me distrair. Da mesma forma que sei que Talin está do lado de fora do meu quarto, me protegendo apesar de tudo, sei que não posso sair enquanto não tenha todas aquelas informações na ponta da língua.
E, sinceramente, é muita coisa para se pensar.
Não saio para comer, e varo a noite estudando. Pego no sono quando já está quase amanhecendo. Quando Angra vem me acordar, já está desperta e completamente vestida da forma correta, para minha surpresa.
– Isla. Levante.
Resmungo, mas obedeço. Minha roupa já está separada na cadeira em frente a penteadeira, e eu a visto quase que no automático. Minha irmã me ajuda a arrumar meus cabelos e prender a coroa neles.
– Não quero ir. – Digo baixinho, porque gostaria que só eu ouvisse, mas minha irmã está perto demais. Seus olhos encontram os meus no espelho da penteadeira, e eu noto que sua cabeça está superior a minha porque estou sentada, mas não posso evitar sentir que, depois do turbilhão de emoções de ontem, ela merece ser superior.
Eu estou quase me desmanchando porque não sei lidar com as responsabilidades e com o amor. Angra está mais tranquila do que eu jamais a vi.
– Se você for, prometo que assaltaremos a cozinha depois. – Minha irmã se afasta de mim para indicar que acabou, mas continua me olhando. – Independente do resultado.
Quando eu saio do quarto, evito olhar para Talin, mas sinto seus olhos sobre mim. Sinto seu corpo me protegendo quando desço escadas, subo escadas e abro portas, e espero que ele entenda que é isso que nos mantém afastados, mesmo que tudo que eu quisesse nesse momento fosse estar com ele.
Entro na sala de reunião com Angra ao meu lado direito e Talin ao meu lado esquerdo. Todos os Generais já estão presentes: alguns enfezados por acordarem cedo, outros enfezados por eu ser jovem, outros enfezados simplesmente porque é assim que as coisas são. Empino o nariz e cruzo a sala até o trono.
– Bom dia, senhores. – pronuncio, em alto e bom som. – Agora daremos início à Conferência Oficial dos Clãs. Obrigada por aguardarem nosso período de luto, – coloco a mão sobre a de Angra quando menciono meus pais, – e posso afirmar que agora poderemos voltar a fazer acordos. Vamos começar?
– Majestade, o que essa criança faz aqui? – um General vestido de vermelho e de longas tranças no cabelo dispara assim que acabo meu pronunciamento. Ele aponta para minha irmã com fogo nos olhos.
Engulo em seco.
– Essa, General, é a Princesa Angra, minha irmã, que se tornou imprescindível nas discussões políticas do Reino desde que se tornou uma mulher e passou pelos ritos de passagem.
Há mais alguns segundos de silêncio antes da discussão começar de fato. O resto dos Generais parece respeitar minha irmã, e as perguntas e assuntos no geral são todos casos que eu já havia treinado.
Mas então vieram perguntas novas, sobre assuntos que eu li nos jornais, mas não sabia responder. Só conseguia pensar no fato de que minha mãe saberia, e talvez Angra também, mas ela fora aconselhada a se manter em silêncio.
– Majestade? O que fará quanto a isso? – A General de armadura de cobre me chama, mais alto dessa vez, achando que não a ouvi de primeira. Meus olhos se enchem de lágrimas porque eu quero mais tempo de pensar, porque eu estudei o que responder nessa situação, mas não me lembro.
Franzo meu nariz levemente tentando reverter as lágrimas, mas me lembro de Angra falando sobre minha careta. Com a maior sutileza possível, levo minha mão até a de minha irmã e a aperto, e noto os nós dos meus dedos ficando brancos.
– Francamente, General, não tenho essa resposta. Podemos descobrir juntas.
A sala fica em silêncio por 3 segundos inteiros. Cada um parece durar um ano.
– Com o perdão da sua Majestade, – a General se levanta, – mas a senhorita só pode estar de brincadeira com o meu Clã. Como ousa não propor algo a nosso favor nesse acordo?
– Estou propondo… propondo nossa união a fa… favor… – começo.
– A senhorita claramente não está pronta para assumir essas responsabilidade, Majestade. – uma General que não havia se pronunciado até agora dirige sua palavra a mim, sua voz firme fazendo com que todos voltem sua atenção a ela. – Talvez seja melhor acabarmos a discussão por enquanto.
– Senhores, por favor. – Engulo em seco e me levanto do trono. Faço como minha mãe me ensinava: mordo o lado direito da língua, empino o nariz, jogo o vestido para trás e me direciono ao centro da sala.
Não deixarei que vejam meu medo. Não deixarei que vejam minha raiva.
– Essa é minha primeira Conferência Oficial, diferente de todos vocês. – inicio, olhando para cada um dos Generais, mas demoro mais em Angra. Ela balança a cabeça positivamente, mas vejo suas mãos cruzadas sobre o vestido, brancas como as minhas alguns minutos atrás. – Gostaria que me dessem uma chance de aprendermos juntos o que fazer sem o Rei Avi e a Rainha Lirio aqui. Agora que sou Rainha, proponho um novo formato de liderança, mas para que isso aconteça sem problemas, precisarei da ajuda de todos os Clãs. Precisarei da ajuda de vocês.
Mais silêncio. Não aguento o silêncio.
– Bonito discurso, Majestade. – o General vestido de vermelho diz, finalmente, levantando-se também. Noto que sou mais alta que ele, mas sua voz e seu olhar ameaçador o tornam bem maior. – A senhorita claramente é filha de seu pai, mas nunca será sua mãe. Desculpe-me, mas meu Clã não fará parte do acordo.
Ele caminha para fora da sala, e outros três Generais o seguem.
Um silêncio atordoador se segue. Sem quatro dos dez Clãs, o Acordo praticamente não existe mais. Minha vontade é de chorar, gritar, sair correndo da sala, ou todos os três juntos, mas ao invés disso eu só olho para os Generais restantes, esperando uma decisão. Esperando para ouvir a resposta que eu já sei.
– Perdão, Majestade. Te desejo todo o sucesso. – A General de armadura se levanta e leva cinco junto com ela. De uma vez.
Respondo com um aceno de cabeça. Na sala só restam eu, Angra, Talin e a General da voz firme. Ela se levanta e se aproxima de mim, e consigo notar que, apesar da voz firme, seus olhos são castanho-escuros, da mesma cor do chocolate da minha pele, e parecem me abraçar.
– A senhorita se saiu muito bem, Majestade. – Ela diz. – É uma pena que as coisas tenham sido dessa forma, mas não pense que é definitivo.
Ela sai sem esperar minha resposta.
Não vejo quando Talin e Angra se juntam a mim, pois estou ocupada analisando a sensação quente das lágrimas descendo pelas minhas bochechas.
– Talin, quer se juntar a mim e a Rainha Isla no nosso furto de sorvete? – minha irmã limpa meu rosto suavemente.
– Se a Rainha Isla permitir, – o Guarda diz, baixinho.
– Eu ia adorar.
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// canfânico //
boy bands, tarot cards and other signs of vampirism
– Aposto que te convenço a ir hoje à noite.
– Boa sorte. – Digo, dando passos mais rápidos para parar na frente dos dois garotos. Cruzo os braços e encaro os trinta centímetros de vantagem que eles têm sobre mim.
– Vai ser legal, Coz! – Roscoe dá um passo à frente e coloca um braço sobre meus ombros ao mesmo tempo que abre seu sorriso brilhante.
– Quase me convenceu, Ros, – saio do abraço, – mas vocês pareceram se esquecer de que hoje tem lua cheia.
– Grande coisa. – Parker dá uma corridinha para me alcançar. – Como se a gente não estivesse acostumado.
Dou uma olhada no céu a minha frente. O sol começou a se pôr faz alguns minutos, talvez no momento em que saímos da sorveteria. Os raios laranjas aquecem a pele da minha barriga e das minhas pernas expostas, e faz meus olhos doerem. Desvio o olhar, em direção aos meus braços.
Desde a manhã meus pelos estão eriçados com a sensação da lua cheia chegando, mas agora que a noite está próxima demais, é como se um calafrio percorresse minha espinha sem parar: para cima e para baixo, como a marcha de um exército.
É disso que tento alertar meus amigos. Será que eles não sentem também?
– ... loja de conveniência? – Ouço a voz de Roscoe terminar o pensamento.
– Você tá brincando? – Parker indaga em seguida. – Acabamos de sair da sorveteria.
– Precisamos estocar para hoje à noite. – Eu e Roscoe dizemos juntos. Viro-me para trás, onde os garotos estão, e eu troco olhares com os dois.
Os olhos escuros de Ros me observam com preocupação. Ele sabe que estou certa. Que precisamos de comida e um lugar seguro.
O olhar de Parker, no entanto, é ríspido. Fagulhas parecem sair de seus olhos azuis, e os cílios grandes e semicerrados me dão a impressão de que ele ainda não desistiu de me convencer a ir nesse show.
– Ok. Vamos até a loja de conveniência, então. – Ele fala por entre os dentes, sem tirar os olhos de mim.
Avançamos pela calçada em silêncio, à medida que o sol avança pelo céu, dando lugar a lua. Meus pelos se eriçam e eu consigo notar que os dos meninos também. Talvez o humor de Parker não estivesse à flor da pele só pela minha teimosia; afinal, a lua cheia nos torna mais favoráveis a algumas emoções.
Atravessamos a rua bem na frente da escola. Agora, no período de férias, ela parece abandonada, as portas trancadas com correntes dando a impressão de que ninguém entra lá há anos.
No estacionamento, vejo um grupo do que parecem ser moradores de rua. Homens e mulheres, alguns jovens e outros um pouco mais velhos, todos ao redor de sacos de lixo, cochichando entre si e passando comida de mão em mão.
E aí Parker e Roscoe começam a rosnar.
É então que eu noto: as peles pálidas demais, os lábios sem cor, os dedos e braços rostos ossudos e angulares. Um deles olha para mim e as olheiras roxas, não, cinzas deixam seus olhos mais vítreos. Vampiros.
Parker dá a mão para mim com a intenção de me puxar para longe, mas eu não sinto vontade de me afastar. Os vampiros estão nem aí para o que está acontecendo na rua, então não há razão para nos preocuparmos com eles.
Há um par deles que está especialmente afastado da rua; dois garotos, que julgo terem não mais do que dezoito anos. Um é tão pálido que o sol refletido contra sua pele machuca meus olhos. Seu cabelo é tão claro quanto, e ele veste shorts verdes, uma regata vermelha e um tênis de corrida combinando.
O outro é o completo oposto do amigo: a pele oliva e o cabelo cor de piche fazem um contraste tão grande que eu preciso admirar a cena por um tempo. Parece que ele fez questão de se opor até nas roupas: onde o loiro era uma explosão de cores, esse veste uma mistura de cinza e preto.
Continuo observando e noto que o primeiro entrega uma espécie de cartão para o outro. Em seguida, faz uma breve explicação, e então o cartão é guardado pelo garoto de cinza com uma velocidade impressionante. Se eu não estivesse intrigada, não teria visto.
Depois dessa troca, os dois retornam para o grupo maior, como se nada tivesse acontecido.
– Coz, – Parker chama meu nome e me tira a atenção, – pensa rápido: sim ou não?
– Hum… – ainda estou tentando entender a interação dos vampiros quando respondo: – Sim.
– Há! Eu sabia que você diria sim para ir ao show.
– Espera aí...
---*---
Eu aceito ir, afinal, com algumas condições.
Primeiro: nenhum entorpecente.
Segundo: voltamos para casa à meia-noite.
Terceiro: voltamos para casa à meia-noite.
Coloco um alarme no meu celular e depois um lembrete, só para prevenir. Pego as chaves do carro, apago as luzes do quarto e saio.
Meu pai está na cozinha, comendo seu terceiro prato de macarronada. Ele me pergunta se quero mais um antes de sair, mas apenas faço que não com a cabeça e vou em direção a porta, não sem antes lembrá-lo de que estarei de volta logo.
Dirijo até a casa de Roscoe e encontro os meninos na entrada. Parker está com uma calça jeans excessivamente justa e uma camisa xadrez desabotoada sobre uma camiseta do Led Zeppelin, que definitivamente não é a banda que vamos ver hoje. Seus cabelos loiros estão penteados estrategicamente e caem em ondas sobre seu ombro.
Consigo ver que não foi Roscoe que escolheu a roupa que está vestindo: uma calça cáqui e uma camiseta azul de gola que não só contrasta com sua pele negra, mas também segue o formato de cada um de seus músculos, como se ele fosse um boneco Max Steel.
Não espero nem entrarem no carro para falar algo.
– Roscoe, o quanto do que você está vestindo é de Parker?
– Puta merda. – Roscoe xinga baixinho, encolhendo-se e sentando no banco da frente. – Eu falei que essa blusa está justa demais. Você ainda tem aquela que eu deixei na sua casa mês passado?
Rio e faço que sim com a cabeça, puxando a camiseta do banco de trás, claramente prevendo o momento. Aproveitando que estamos parados, viro-me novamente e dou uma bagunçada no cabelo de Parker.
– Ei! – Ele reclama, ajeitando-o imediatamente.
– Está duro de gel, Parker. Como uma pedra.
– Você fala como se estivesse bem vestida. Estamos indo para um show, Cosima.
Dou uma olhada no meu reflexo no espelho. Metade são os cabelos vermelhos; a outra metade sou apenas eu: sem maquiagem, jóias ou decote. Eu ia estar de volta em casa logo, então para que me arrumar?
– Nem um blushzinho? – Parker aperta minha bochecha.
– Cala a boca. – Tiro a mão dele de lá e ligo o carro.
---*---
Eu não aguento mais a música.
O público também não é dos melhores: homens, em sua maioria, e os que não estão acompanhados estão em busca de alguém para levar para casa. Quase mostro meus caninos para três deles, mas com a lua tão alta no céu, não quero saber o que aconteceria se eu chegasse a esse ponto.
A banda entra com uma cover de alguma banda emo que Parker parece conhecer, e depois segue com suas músicas autorais, todas sobre “os segredos da noite”.
As luzes da balada machucam meus olhos, mas os meninos parecem não se incomodar. Aliás, eu checo múltiplas vezes se estão sentindo a mesma coisa que eu: os calafrios, a vontade de sair correndo pra longe. Eles insistem que não, mas Parker também insistiu em pegarmos bebidas, então talvez os sentidos dele estejam comprometidos.
Checo o celular: onze horas e quarenta e dois.
Mais um pouco e estarei em casa.
Segura.
Guardo o celular no bolso e checo meus amigos pela centésima vez. Roscoe dança ao meu lado, um pouco sem graça. Parker se move a nossa volta, gritando a letra da música usando a garrafa de cerveja vazia como um microfone. Estamos afastados da multidão o suficiente para termos espaço para dançar, e perto do bar o suficiente para Parker conseguir mais bebida, desde que passe pela minha supervisão.
– Nós somos as criaturas da noiteeee! – Parker grita a última nota junto com o cantor da banda e para de pular.
Resolvo dar uma olhada no público da balada, para entender até que horas o show vai rolar. E é quando eu os vejo.
Os vampiros que eu vi mais cedo estão no meio da multidão, de cabeça baixa, tentando se misturar com o resto dos fãs.
– Coz? O que foi? – Parker segue meu olhar e eu queria que não o tivesse, mas ele encontra os garotos. Seus olhos se estreitam. – Ah.
Vejo os vampiros se esgueirando mais por entre a multidão e observo a medida que mais olhos se viram para eles. Mesmo de longe, também consigo ver punhos se fechando e lábios se abrindo o suficiente para mostrar os caninos.
Tudo faz sentido na minha cabeça.
– Boa noite, Abeshore! – a voz rouca do cantor da banda é ensurdecedora e rouba minha atenção por um momento. Os gritos da plateia também. – Obrigada pela presença! Não sei se vocês notaram, mas hoje é noite de lua cheia…
Olho meu celular: onze e quarenta e sete.
– Nas noites de lua cheia, todas as criaturas estão a solta! – A plateia grita novamente, e alguns uivam. Suspeito que não é só um barulho de brincadeira. – Desde os lobisomens… – O público vai a loucura. Parker começa a gritar e a pular ao meu lado, e Roscoe faz um "ei!" acanhado para acompanhar. – …até os vampiros nojentos.
A plateia solta um sonoro "buuuu". Parker olha para mim, esperando que eu faça o mesmo, mas estou apenas em choque, tentando entender como concordei em estar aqui. "Não acredito nisso", digo sem fazer sons, em resposta ao meu amigo.
– Se vocês estão prestando atenção na música até agora, vocês já sabem o que os lobisomens fazem em noite de lua cheia. – O cantor continua seu discurso, caminhando pelo palco. – Mas vou explicar de novo: se você não é um de nós, é melhor correr.
Assim que ele termina de falar, as luzes da balada começam a piscar. Em um movimento dramático, o cantor e o baterista arrancam as roupas e começam a se transformar: os braços e as pernas se alongam de forma grotesca e os pelos crescem junto com os narizes, que se transformam em focinhos compridos. Gritos de horror se misturam com gritos de animação.
E então uivos, de verdade dessa vez. Tenho certeza.
Viro meu celular mais uma vez: onze e cinquenta e um. As pessoas e lobos a minha volta estão correndo em todas as direções.
– Ros, Park, precisamos ir… – começo a falar, mas quando olho em volta meus amigos sumiram. Um arrepio percorre minha espinha, o maior do dia. Curvo-me, desesperada, tentando lutar contra a sensação.
Respiro fundo de olhos fechados três vezes e começo a correr em direção ao palco.
Procuro meus amigos ao mesmo tempo que desvio de ataques dos lobisomens. Tento evitar olhar enquanto humanos comuns gritam e correm sem um rumo. Não tem mais ninguém no palco, a não ser o baixista, deitado sobre o seu baixo. Não fico para checar se ele está ferido, ou sequer respirando.
– Roscoe! – Agora eu grito por eles. Não consigo mais lutar contra algumas partes da transformação: meus caninos já estão à mostra, e meus dedos já estão se alongando daquele jeito dolorido. Sinto minha blusa começar a rasgar nas minhas costas. – Parker! Roscoe! Pelo amor de Deus!
Olho em volta mas as pessoas estão correndo de mim, e não na minha direção.
Quando estou a ponto de desistir, eu vejo um dos vampiros de antes saindo de trás de um pilar e para a saída. Seus olhos apavorados são capazes de fazer o tempo parar por um segundo. Sem nem pensar duas vezes na minha aparência, corro até ele.
– Não. NÃO! – Ele começa a gritar quando eu me aproximo. O garoto é veloz, mas eu sou mais. Seguro seu braço e ele começa a gritar até sua voz começar a falhar.
– Cale a boca. Para. – Eu começo, calma, tentando ser ouvida entre os gritos. Perco a paciência em pouco tempo. – Dá para parar!? Tô querendo te ajudar! Caramba!
– Certeza!? – O menino indaga, colocando sua mão sobre a minha e empurrando, para soltar. – Não confio nisso daí.
Ele aponta para meus dentes.
– Foi mal. Olha, eu não tenho muito tempo, ok? – Puxo o vampiro e ele exclama de dor, ainda insistindo para que eu solte. Sei que minhas unhas estão cravadas no seu pulso, mas tento não machucá-lo mais do que isso. – Preciso encontrar meus amigos, e se você quer sobreviver a essa merda que acabou de acontecer, você precisa confiar em mim.
Estou praticamente arrastando o garoto, mas ele assente quando eu paro de falar.
Espero que ele tenha entendido tudo por entre os caninos.
Sorrateiramente, conseguimos sair da balada, e tudo está silencioso. Olho para o céu para evitar ver os corpos no chão, mas tropeço algumas vezes.
O vampiro não diz nada atrás de mim, e em silêncio seguimos até o estacionamento onde parei meu carro. Encontro o SUV azul e abro o porta-malas com dificuldade. Faço de tudo para segurar minha camiseta no lugar agora, uma vez que sinto o vento bater nas minhas costas.
– Entra aqui. – Aponto para o compartimento pequeno com uma mão e com a outra ainda seguro o garoto.
– Eu? No porta-malas? – O vampiro parece cético. A sua única sobrancelha arqueada parece não ter confiado em mim desde que eu cheguei, mas seu braço solto sob minhas garras aponta o contrário.
– Sim. Sabe dirigir?
Ele faz que sim.
– Ótimo. Então fique até umas seis da manhã e depois me encontre no McDonald's na esquina da escola.
Sinto o braço do menino tensionar novamente.
– Ficou maluca!? Você só está querendo me guardar para depois. – Seus olhos escuros me encaram, com mais vida do que eu esperava encontrar num vampiro.
– Se eu fosse como os outros no show, não estaria te dando essa opção. – Digo, enfiando a mão no bolso dos shorts e oferecendo as chaves. – AH!
Largo o garoto para me abaixar. Levo minhas mãos ao nariz, sentindo os pelos crescendo. Minhas pernas doem, meu tronco dói, eu só quero sumir.
Sinto dedos finos e gentis passeando pelo meu braço e indo até as chaves. O menino as segura e senta desajeitadamente no porta-malas.
Nossos olhares se encontram e ali um voto silencioso é feito. Um voto de confiança, acima de todas as outras coisas horríveis que aconteceram nessa noite. O garoto pisca e é como se estivesse usando palavras para se comunicar.
E então eu me viro e saio correndo a tempo de trocar para as quatro patas.
A última coisa que sinto é o celular no meu bolso vibrando com o alarme da meia-noite.
Tudo fica escuro depois disso.
—-*—-
– Quer o meu? – O vampiro oferece um pacote ainda fechado de café da manhã empurrando-o por cima da mesa.
Faço que não sem falar nada, uma vez que minha boca está cheia com o terceiro hambúrguer. Eu deveria ter aceitado aquele prato de macarronada do meu pai.
– Como você chegou aqui mesmo? – Ele continua a conversa, bebericando o café, sem ânimo.
– Você quer mesmo saber todos os detalhes sobre entrar pelada pelos fundos de um McDonald’s? – Respondo, abrindo o pacote que o garoto me ofereceu e pegando o conteúdo.
– Mas você acabou de explicar.
– É mais complexo do que parece. – Rebato, mastigando. – Você nunca disse seu nome, aliás.
– Não me pareceu relevante. – O vampiro desvia o olhar e recosta em sua cadeira de metal com um sorriso caindo da ponta de sua boca. Não há mais ninguém na lanchonete além de nós e os atendentes, então o som que a cadeira faz com o movimento do garoto ecoa pelas paredes e me causa desconforto.
Eu sorrio também, entre uma mordida e outra. Demora um pouco até que algum de nós finalmente fale outra coisa.
– Bastian. – O garoto estende a mão na minha direção.
– Cosima. – Dou a mão para ele. É engraçado segurá-la assim, quando estou na minha própria pele, e suja de maionese.
Assim que soltamos as mãos, o silêncio retorna. Chego a comer mais uma porção de batatas e o que quer que Bastian tenha pedido, mas quando o observo de novo, noto que ele não chegou nem na metade de seu café.
– Quer também? – O garoto pergunta, oferecendo o copo.
– Não gosto de café. – Minha resposta parece meio incoerente, se considerar a quantidade de comida que eu acabei de ingerir. Não posso evitar uma risadinha, e o menino se junta a mim. É bom rir com ele, mais um contraponto em relação à noite anterior.
– Nem eu. – Bastian afirma entre o riso.
– Desculpa, eu acho que aqui não tem exatamente… – começo a dizer. – Bem, você sabe...
– Sim…? – O garoto se inclina como quem quer fazer parte de uma roda de fofoca.
– Existe algum tabu sobre dizer "sangue"? Nunca sei como agir…
– Como você sabe? – Bastian pisca algumas vezes. – Não sobre o tabu, eu quero dizer. Nem existe tabu. Eu quis dizer…
– Ontem eu te vi na frente da escola. Antes do show. – Admito, sem conseguir olhá-lo nos olhos. – Mas eu não teria notado se meus amigos não tivessem dito algo.
– Algo preconceituoso, eu aposto.
– Não… bom, sim.
A rixa entre vampiros e lobisomens é idiota, mas é verdadeira. Sempre foi. Não que seja algo no nível do romance adolescente que não ousamos nomear, mas fingir que não existe preconceito entre os grupos é ingênuo e simplesmente errado.
O silêncio volta, e eu demoro até conseguir olhar para Bastian de novo. Noto como seus olhos parecem cansados, e como isso vai além da aparência de vampiro. Seu corpo magro e ossudo não é uma consequência sobrenatural, e eu sei disso porque a magreza só fica mais evidente por causa das roupas largas demais. Roupas que não pertencem a ele.
Penso nos vampiros que eu já encontrei: em frente às padarias, nos becos tarde da noite; mesmo Bastian, em um grupo no estacionamento da escola.
Dou uma olhada para mim mesma, para minha camiseta novinha, que eu pude vestir depois de perder as roupas da noite passada. Dou uma olhada na refeição à minha frente e sinto meu estômago dar um nó.
– Eu nem gosto de sangue. Pra responder sua pergunta. – Bastian diz. E então, como se estivesse lendo minha mente: – E por acaso todo lobisomem faz… isso?
– Isso, – respondo, apontando para as embalagens na mesa, – foi descuidado. É normal comermos antes de anoitecer, ou até mesmo estocar, porque perdemos muitas calorias durante a transformação. Eu geralmente resolvo com macarrão, mas tem gente...
Deixo a frase morrer na esperança de que Bastian entenda. Sei que a imagem exterior dos lobisomens é de monstros assassinos, mas quero que ele veja que não somos todos assim. Mais do que tudo, eu não sou assim, e mereço confiança.
A mesma confiança que compartilhamos noite passada.
– Eu entendo. – O garoto parece ler meus pensamentos novamente. – Também tem gente que não liga pra isso de beber sangue, tipo...
Ele para por um segundo, extremamente tenso, e coloca a mão sobre a coxa, por cima do bolso. Seus ombros rapidamente voltam a relaxar
– É seu amigo, não é? – Estou quase sussurrando. – O loiro.
– Isso. Você o viu? – Seus olhos fundos me observam, suplicantes. Tenho vontade de mentir e dizer que sim, ele está a salvo, e tudo está bem. Mas aí seria pior.
– Desculpe. Depois que a música parou, só vi você.
Bastian afunda na cadeira de novo.
– Desculpa mesmo, – continuo, limpando os dedos, – eu realmente só vi você. Perdi meus amigos de vista também, e tenho medo do que eles possam ter feito.
– Que pena. – o garoto cerra os olhos e os dentes, e por uma fração de segundo consigo ver suas presas. – Perco meu amigo e minha saída desse buraco de cidade; você perde seus amigos e eles se tornam um risco para as pessoas. Que engraçado.
Ótimo, Cosima.
– Não foi isso que eu quis dizer… – algo me intriga nas palavras de Bastian. – O que você quer dizer com sair daqui?
Ele puxa uma de suas pernas compridas para a cadeira antes de começar a falar.
– Vampiros não têm o mesmo estilo de vida de lobisomens. Eu acho que você sabe disso. – Eu assinto para mostrar atenção. – Alguns de nós conseguimos contatos para redes maiores de cuidados, que tiram a gente da rua. Chris, o cara loiro, era meu contato. – Bastian enfia a mão no bolso e arranca o cartão que eu tinha visto no dia anterior.
Dou uma olhada no cartão e vejo o desenho nele. Parece uma pintura barroca, com um anjo com cabelos vermelhos descendo do céu em direção a três pessoas completamente nuas em volta de uma mesa no chão. Na parte de cima, dois X excessivamente ornados, e na parte de baixo, as palavras le jugement.
– Uma carta de tarot? – Pergunto, incerta.
– Sei lá, o cara era meio estranho. – Bastian se inclina e examina a carta, como se estivesse vendo-a pela primeira vez. – De qualquer forma, ele ia me contar mais sobre, antes dos seus amigos estragarem o show.
– Aqueles não eram meus amigos. – Devolvo a carta. – E vamos encontrá-lo. Chris. E Roscoe e Parker também. Esses são meus amigos, para sua informação
– O quê? – Bastian franze as sobrancelhas.
– Roscoe e Parker. Devem estar perdidos por aí, aposto que...
– Estava falando de encontrarmos Chris. – O sorriso do vampiro agora é de incredulidade. Suas sobrancelhas franzidas e olhos escuros me analisam de cima a baixo.
–Você precisa de ajuda para sair daqui. – Sem me abalar, levanto e começo a organizar a sujeira que eu fiz na mesa. – Chris vai te ajudar. E agora eu vou também.
O primeiro cliente entra na lanchonete.
– Obrigada, mas eu passo. – Bastian se inclina na minha direção. – Eu ainda não confio tanto assim em você. Ainda está no prazo para me guardar para mais tarde.
– Esperar um mês por um vampiro? Me poupe. – Estendo a mão para o garoto.
Dessa vez, não há dor passando pelos meus ossos e meus músculos. minha mão não tem garras, eu não forcei Bastian a ficar e conversar comigo. Nossos olhos estão presos um ao outro agora, os dele pretos como o céu à meia-noite, os meus da cor do mel. Cores que nunca veríamos juntas, mas que aqui estão, entrelaçadas.
Minha mão permanece estendida no ar por três segundos. Eu sei porque eu conto, e cada um deles passa como se fossem horas.
Chego no quatro.
A mão fria de Bastian encosta na minha.
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// café com verão //
macchiatos, the sun and other side effects of being 16
Logo que o café chega a minha boca eu fecho os olhos e afasto o copo rapidamente.
– Vai mais devagar, para não queimar, boba. – Avi me encara, cético, e dá mais um gole no seu frapê de manga. Dá pra ver as gotículas de água se acumulando do lado de fora do copo de plástico, do gelo do frapê se encontrando com o calor do verão que entra na cafeteria mesmo com as portas fechadas e o ar condicionado.
Eu apenas dou de ombros e assopro minha bebida, que agora está repousada na mesa entre eu e meu amigo. Dou uma olhada na janela atrás do garoto e o sol machuca meus olhos; na rua, as pessoas pareceram esquecer dos carros, e chegam à praça em que estamos à pé e de bicicleta.
– Quer esperar o clima dar uma trégua para voltarmos para casa? – Avi pergunta, após seu último gole.
– Eu não acho que vai ficar muito melhor do que isso, – respondo, experimentando o café com leite mais uma vez. Os goles, agora numa temperatura mais agradável, atingem a minha língua bem no ponto onde eu me queimei da primeira vez. – Mas podemos ficar aqui até eu acabar. Vai levar um tempo.
O garoto ri, cobrindo a boca ao fazê-lo. Eu sorrio para acompanhá-lo, e dou uma olhada em volta, para o público da cafeteria.
Acho que somos as únicas pessoas de 16 anos ali. A maioria são pais e babás que precisam desesperadamente ocupar o tempo das crianças, que por sua vez tomam copos enormes de frapês e sundaes e correm pelo local. Consigo ver a porta, que está do lado oposto da cafeteria. Alguém está entrando.
Uma garota da minha idade, talvez um pouco mais velha, passa pelo batente, fazendo um sininho soar. Ela está usando um vestido curto, roxo escuro, de estampa florida e alças finas, que deixam à mostra suas tatuagens nos braços. Seu cabelo preto é tão curtinho que mal chega a fazer cachos, e eu imagino que ela não deve estar sentindo nem uma fração do calor que eu sinto.
Dois garotos entram atrás dela – parecem estar todos juntos – e ela passa seus olhos pelo local, até que os pousa em mim.
E acena.
Franzo as sobrancelhas e me viro para Avi, para perguntar por que uma estranha (linda) estaria acenando para mim, mas quando vejo o garoto, ele está dando um "oi" tímido na direção da menina.
– Quem é? – Pergunto, sem torneios.
– É a Anna. Uma amiga da minha irmã. – Ele responde com naturalidade, enquanto se levanta para jogar seu copo vazio no lixo. – Achei que vocês já tinham se encontrado.
– Com certeza não. – Murmuro, voltando ao meu café. Puxo todo meu cabelo para o lado direito e o prendo em um coque antes de dar mais um gole.
– Ah. Ah, Rae. – Avi dá uma olhada no meu cabelo preso e estende sua mão na mesa até encontrar a minha. Seus olhos encontram os meus e ele já está sorrindo antes que eu fale alguma coisa.
Não consigo evitar um sorriso também. Avi me conhece mais do que qualquer outra pessoa na Terra, até eu mesma.
– Rae, ela vai em casa hoje à noite. – Meu amigo está sussurrando agora, olhando fundo dentro dos meus olhos.
– Ai, meu Deus. – Sussurro sorrindo e termino meu café.
Juntos, eu e Avi pulamos para fora da mesa. Eu jogo meu copo no lixo e vou com meu amigo até a porta da cafeteria. Dou uma olhada em volta antes de sair, e encontro Anna em uma mesa próxima, falando com seus amigos.
Ela segura um copo de bebida quente com as duas mãos.
---*---
Dou uma última olhada no espelho.
Consigo ver que ganhei uns quilos desde a última vez que usei esse vestido. Também consigo ver que não estou nem um pouco bronzeada mesmo que já estivéssemos na metade do verão. Na verdade, é possível estar mais pálida?
Tenho medo que ela veja tudo isso também. E mais coisas que eu não estou vendo agora.
Encontro meus olhos no espelho e respiro fundo. Puxo meu cabelo para o lado e o prendo em um coque, e então saio do quarto.
Dou de cara com Avi no corredor.
– Achei que você tinha morrido lá dentro. – Ele diz, genuinamente preocupado. Assim, quando nós dois estamos de pé, ele precisa me olhar com os ombros curvados para baixo. Fico imaginando se falar comigo dá dor nas costas.
– Desculpa, – murmuro e faço uma pose desengonçada: – Tá bom?
– Tá ótima. – Avi sorri. – Quer descer? Ninguém chegou, mas minha irmã está colocando as cervejas no freezer e a pizza no forno.
Concordo com os ombros e descemos as escadas sem pressa. Na cozinha, Lily, irmã de Avi, tira garrafas de vidro verdes de engradados e as coloca na horizontal dentro do pequeno freezer da geladeira.
É engraçado ver as semelhanças entre os dois. Sei que quando somos só eu e Avi, é comum questionarem se somos irmãos, porque nosso cabelo é o mesmo tom de loiro-escuro e nossos olhos são o mesmo tom de castanho-claro. Mas eu não tenho o corpo esguio de Avi e Lily, nem o nariz e os dedos ossudos. Os lábios finos e os cílios grossos. Avi e eu somos semelhantes, mas Avi e Lily são idênticos.
– Amei seu vestido, Rae. – Lily diz ao nos ver ali. – Ainda bem que estão aqui. Conseguem terminar as coisas na cozinha enquanto busco mais bebida no mercado?
– Quer que eu vá? – Avi pergunta, ansioso para usar sua habilitação recém conquistada.
– Obrigada, – Lily ri, imediatamente notando a intenção, – mas achei que você e Rae iam preferir ficar e… montar uma playlist?
Meu amigo demora para responder.
– Tudo bem. – Ele dá de ombros, já sacando o celular e abrindo o aplicativo de música.
Eu e Lily rimos. Ela sai, e eu e Avi nos ocupamos na cozinha: terminamos de guardar as cervejas bem a tempo de tirar a pizza do forno, e eu a corto em pedaços quadrados enquanto o garoto termina de montar a playlist perfeita.
A música ainda não começou a tocar quando a campainha toca, anunciando os primeiros convidados. O dono da casa vai recebê-los enquanto eu termino o que estava fazendo.
Algumas pessoas que eu não conheço passam pela cozinha e acenam para mim com sorrisos genuínos. São duas meninas e dois meninos, todos usando roupas mais casuais do que eu. Prendo o coque mais firmemente por cima da minha orelha.
Avi não volta para a cozinha pois a campainha toca mais vezes, e Lily também não dá sinais de chegar tão cedo. Começo a transferir os pedaços de pizza para pratos de porcelana.
Enquanto estou fazendo isso, a música começa a tocar na sala ao lado.
Começo a murmurar a letra e marcar a batida com o pé esquerdo e o garfo na mão direita. O refrão chega e o garfo vira meu microfone, e eu giro em volta da bancada, mudando a pizza de lugar como se aquilo fosse parte do meu show. Fecho os olhos e canto o solo de guitarra.
E então a geladeira ao meu lado se abre.
Eu me viro com um pulo e encontro Avi pegando uma cerveja. Atrás dele, está Anna. Sinto meu pulmão virar uma ervilha.
Ela está usando jeans e uma camiseta de Star Wars agora. Seu batom vermelho combina com os brincos de argola, que combinam com seu cabelo super curto. Tanto Anna quanto Avi parecem estar fingindo que não viram minha performance exagerada, mas as bochechas e orelhas devidamente vermelhas do meu amigo evidenciam o contrário.
– Oi, Rae. – É ele que quebra o silêncio e fecha o freezer, entregando a cerveja a Anna. – Essa aqui é a Anna. Ela estava na cafeteria hoje a tarde.
– Oi. – Digo, minha voz uma oitava acima do que ela costuma ser. – Eu lembro de te ver por lá.
– Eu lembro de você também! – Anna diz sorrindo, e ah, eu não sabia que ia ter que lidar com esse sorriso. – Eu amei seu vestido, aliás.
– Obrigada! – Respondo, aliviada. – Eu amei sua camiseta.
– Obrigada. Você vai ficar só por aqui?
Faço que não com a cabeça.
– Ah. Ainda bem! – A garota sorri mais uma vez antes de sair com sua cerveja e um pedaço de pizza.
Fico parada no mesmo lugar por alguns segundos antes de voltar para a realidade. Avi só consegue piscar para mim com um olho só e repetir "ainda bem, ainda bem".
Juntos, levamos a pizza para a sala, bem a tempo de Lily e mais alguns de seus amigos chegarem. Agora estamos em um grupo de 7 pessoas e temos bastante cerveja, comida e música.
As pessoas mais velhas não ligam de falar com Avi; pelo contrário, já o conhecem muito bem, e até falam comigo também. Descubro que um dos amigos de Lily faz faculdade na Irlanda e está aqui para as férias, e outra já está trabalhando em uma grande empresa de design – essa até me mostra alguns de seus projetos.
A situação é completamente nova para mim, mas aparentemente meu amigo está super confortável.
O que é estranho é que a única constante da minha vida é que Avi é tímido; desde que o conheço ele tem dificuldade de falar com qualquer um. Mas, de alguma forma, nesse exato momento ele está tão a vontade que parece não precisar de mim. Não sei nem o nome da garota ruiva com quem ele está falando, e eu sei que não é ciúmes que eu estou sentindo, mas sei que não quero atrapalhar aquele momento.
Meu pulmão vira uma ervilha de novo.
Saio da sala com a desculpa de que quero um copo d'água e vou até a cozinha. Daqui dá para ouvir a música sem a conversa, e eu não sei quando, mas alguém tirou a playlist de Avi. Não sei a letra da música que toca agora e isso está me deixando pior por algum motivo.
Eu realmente tomo um copo d'água e começo a contar os ímãs na geladeira. Cheguei no 12 quando ouço alguém se aproximar.
– Tudo bem, Rae? – É Anna no batente. Ela se aproxima e passa por mim, se dirigindo ao filtro d'água. – Você estava com uma cara lá na sala…
– Ah, não é nada… – Respondo, sem olhar para a garota. – Só não estou acostumada a ficar com toda essa gente de uma vez.
Eu dou um sorriso amarelo, mas ela ri. Há uma bancada entre nós, mas Anna se apoia nela para falar mais baixo e ficar mais próxima.
– Fica tranquila. Dá vontade de fugir, não é?
– Pois é. – Olho para meus pés.
– Qualquer coisa pode falar comigo, ok? – Anna diz, ainda mais baixinho.
– Ok. – Sorrio de novo, e nossos olhares se encontram. Os olhos dela são tão escuros quanto seu cabelo, mas eles brilham como um farol de caminhão.
Ela volta para a sala. Termino de contar os ímãs e vou atrás.
O grupo está jogando alguma coisa que envolve baralho. E bebida. Duas coisas que eu não costumo me envolver, mesmo que eu já tenha tentado. Vejo Avi no meio do jogo, um pouco reservado, mas com a garrafa de cerveja metade vazia. Lily está ao lado dele, claramente sóbria e tomando conta do irmão.
Sento-me atrás dos dois, e Anna fica de frente para mim, mas do outro lado da roda. Não participamos do jogo, mas logo entendemos o que está acontecendo e em poucos minutos estamos rindo junto ao grupo.
Avi tenta falar comigo entre as partidas, mas é difícil com todas as regras sob as quais está submetido, então fico apenas em silêncio. Minha mente começa a devanear e eu começo a imaginar eu mesma me assistindo participando dessa noite, como se minha alma estivesse viajando por aí enquanto meu corpo estivesse na situação, de fato.
Uma vez eu li que isso era um sintoma de ansiedade.
Tento focar meu olhar em algum lugar e encontro o rosto de Anna logo a frente. Ela está me encarando e assim que consegue minha atenção, sussurra "quer fugir?"
Faço que sim com a cabeça sem muita certeza, mas quando meu olhar cruza com o dela de novo, ela me pede para segui-la para fora da sala. Digo para Avi que já volto e saio.
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– Espero que eu tenha acertado. – Anna diz, me entregando um copo de bebida quente.
Eu sorrio e a sigo para uma mesa. Estranhamente, não somos as únicas na cafeteria às 23h, mas o público mudou desde que nós nos vimos aqui durante a tarde. Não há nenhuma criança a vista, para começo de conversa.
Observo Anna enquanto ela dá dois goles na sua bebida sem nem esperar esfriar. Ela se senta e coloca os cotovelos sobre a mesa, aproximando o rosto de mim, e eu não sabia que aquele negócio de "sentir o rosto esquentar" que colocavam nos livros era verdade até esse momento.
Conversamos enquanto a garota termina a sua bebida – eu descobri que era um cappuccino – e eu deixo meu capuccino – que eu resolvi não comentar sobre – esfriar. Falamos de tatuagens e faculdade; eu digo que quero fazer cinema e descubro que ela faz artes. Também descubro que nós duas fizemos parte do grupo de teatro da escola e que quase não passamos em física no primeiro ano.
Conto a ela que tenho um irmão mais novo e que não sei andar de bicicleta. Ela me conta da vez que sua tia estava na TPM e acabou adotando um gatinho. Uma hora se passa, mas parece mais. Não consegui terminar minha bebida e falar de tudo.
E eu a vi sorrir tantas vezes.
Resolvemos voltar antes que os atendentes nos expulsassem.
– Ainda bem que Lily mora tão perto. – Anna diz enquanto fazemos o caminho de volta à pé. Já é meia-noite e meia, mas graças ao verão a rua ainda está lotada de pessoas.
Faço que sim com a cabeça, e depois seguimos em silêncio por um momento.
– Eu nunca fugi, literalmente falando. – Eu digo de repente, rindo.
– Eu também não. Mas foi legal! – A garota segura minha mão, e eu me viro para olhá-la. – A gente pode fazer mais vezes. Fugir, juntas.
– É. – Respondo, apertando a mão dela. – Acho que sim.
O silêncio surge entre nós novamente, e eu fico pensando se ela se pergunta o mesmo que eu. Não dá para não pensar nisso. Afinal, parece que já falamos de tudo, menos da pergunta que eu mais queria fazer a Anna. Não que eu simplesmente fosse chegar e dizer "oi, por acaso você também gosta de meninas?"
As luzes brancas da calçada de Avi estão a alguns metros de nós. Dá para ouvir as risadas e os gritos, mesmo a essa distância, e eu não consigo não rir. Anna está rindo também.
Viro-me para vê-la. Ela está próxima o suficiente para eu notar nossa diferença de altura. Eu ainda estou sorrindo quando solto a mão dela para arrumar o coque do lado direito da minha cabeça.
Anna coloca o resto da minha franja atrás da minha orelha depois que eu completo o penteado, e não tira a mão dali. E então ela me puxa para mais perto.
Fecho os olhos e ergo a sobrancelha quando ela beija minha bochecha e depois seus lábios encontram os meus, quentes mesmo com o vento gelado a nossa volta. Eu me afasto por uma fração de segundo, apenas para entender tudo, antes de voltar a beijá-la.
Nossas bocas se abrem, hesitantes de primeira, mas depois com vontade. E depois com mais vontade. E depois Anna sorri, e eu nunca beijei ninguém sorrindo antes, mas eu poderia me acostumar a isso.
– Rae. – Anna diz, se afastando repentinamente. – Acho que alguém quer falar com você.
– O quê? – Meus olhos ainda estão semi-abertos.
– Sua bolsa está vibrando sem parar. – A garota responde.
Separo-me dela e pego o celular dentro da bolsa. 15 mensagens não lidas e duas ligações perdidas de Avi.
– Acho melhor entrarmos. – Digo.
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– E então ela me beijou. – Completo a história falando bem baixinho.
– Anna te beijou? – Avi repete, piscando duas vezes. Depois, desvia o olhar de mim para jogar sua garrafa de cerveja vazia no lixo. – Anna beija meninas?
– Aparentemente, sim. – Respondo, erguendo os ombros.
Ainda estou meio atordoada. Mais uma vez estou na cozinha e a música ainda está tocando na sala. Um casal de amigos de Lily já foi embora e os jogos de carta já acabaram, então os convidados restantes estão conversando. Fico imaginando se Anna está falando de mim: "É, eu levei a garota do ensino médio para tomar café, falei coisas bonitas e aí ela ficou caidinha por mim!"
– Vocês vão sair mais vezes? – Avi me tira do devaneio. Ele está com as sobrancelhas franzidas e os joelhos dobrados, como se estivesse fazendo muita força para estar presente nesse momento.
– Não sei, – digo. – Ela falou que queria. Fugir de novo.
– É, vocês fugiram. – Avi parece mais confuso do que triste. – Perderam todo o jogo. Ben queria mostrar mais fotos da Irlanda para você antes de ir, sabia?
– Desculpe. – Falo, baixinho.
Dou uma volta na cozinha, esperando uma discussão. Quero que Avi brigue comigo por eu não ter sido presente, mas sei que ele não faria isso – parte porque está bêbado, parte porque já conversamos antes sobre nossas zonas de conforto. Ele sabia que essa não seria a minha. Ele sabia que era só uma experiência. Uma experiência da qual eu fugi, mas ainda assim.
– Avi, o fato é que não sei o que foi tudo isso com Anna. – Acabo admitindo, antes que um de nós decida sair da cozinha. – Estou com medo de criar expectativas em cima do que aconteceu hoje.
O garoto se aproxima de mim e coloca os braços em volta do meu pescoço. Encosto a cabeça em seu peito e ouço o som reconfortante das batidas do seu coração: constantes, apesar da noite fora do comum.
– Sem medo de ser feliz. – Ele diz, e então se desvencilha do abraço e sai em direção à sala.
Cubro a boca para rir do conselho confuso.
Saio da cozinha também e sou saudada com palavras de preocupação e alívio. As pessoas que eu acabei de conhecer queriam que eu estivesse ali, e sentiram minha falta. Querem ouvir mais das coisas que eu tinha para falar. Anna também quer, apesar de ter passado a última hora fazendo isso. Seu olhar de ternura é quase tão bonito quanto seu sorriso.
Eu falo por um tempo, até me cansar. Logo os outros convidados tomam conta da palavra e assim a noite segue. Não me incomodo mais. Passo um tempo tomando conta de Avi e o resto do tempo casualmente próxima demais de Anna. Ninguém parece notar.
Meu pai resolve me buscar, no final das contas, quando já é madrugada. Resolvo não me despedir de todas as pessoas que conheci; eu não saberia como fazê-lo. Agradeço a Avi e Lily por me hospedarem pela tarde e dou tchau, e quando é a hora de dizer tchau a Anna, puxo a garota para a cozinha – uma última visita ao meu novo cômodo favorito da casa, eu acho.
– Adorei te conhecer, – admito, – e obrigada pela noite.
– Digo o mesmo. – Anna responde. Ela sorri e torna tudo mais genuíno.
Seguro seu braço direito para não perder o equilíbrio e subo na ponta dos pés para beijá-la mais uma vez. Ela retribui com as duas mãos nas minhas bochechas e os lábios pressionados firmemente contra os meus. Ficamos assim por alguns segundos.
E então eu vou para casa.
---*---
Uma semana após a festa, me aventuro a pedir um cappuccino na cafeteria. O barulho de espanto que Avi faz atrás de mim (uma espécie de chiado) atrapalha a pergunta que a atendente faz logo após o meu pedido. Ela pergunta novamente, e eu preciso escolher entre chocolate ou canela. Escolho chocolate.
Quando meu cappuccino fica pronto, tomo um gole daqueles de queimar a língua. Descubro rapidamente que, na noite da festa, Anna pediu com canela.
Não falo com ela desde aquele dia. Parte de mim fantasiou sobre o momento que eu ia precisar fugir com ela de outra situação, como um príncipe – bom, uma princesa – que resgata outra princesa da torre e aí juntas elas vivem aventuras. Mas a semana passou sem grandes eventos.
Sigo meu amigo até uma mesa vaga e sentamos, eu com meu cappuccino ruim e ele com um frapê de maracujá e morango. Ficamos em um silêncio confortável por alguns minutos, e eu aprecio os sons do dia. A cafeteria está mais vazia hoje, então consigo notar tudo com mais atenção. Até o sino da entrada.
– Olha quem está aqui. – Avi diz antes de dar um longo gole no seu frapê.
Viro-me já esperando encontrar um rosto específico.
Anna está usando shorts jeans largos presos à sua cintura por um cinto preto, e uma blusa de alças finas. Ela enfeitou o cabelo curtinho com uma bandana amarela.
Ela está sozinha, e ainda não me viu. Observo-a ir até o balcão e fazer seu pedido, depois pegar o cappuccino e se virar em direção às mesas. Sua expressão muda quando nos vê.
Faço um oizinho e Avi me copia.
Anna sorri e vem em nossa direção.
– Oi, gente! – Ela comprimenta, dando um abraço no meu amigo primeiro. Depois vem até mim e me abraça também.
Esperançosa como sou, queria um beijo, então meu rosto fica enterrado em seu ombro, um pouco amassado. Seguro nessa posição sem respirar por dois segundos antes de soltar, e um silêncio estranho toma conta do momento.
– Vocês estão aqui sempre? – Anna pergunta.
– Sim. – Eu e Avi respondemos ao mesmo tempo.
– Às vezes. – Digo, rapidamente. Faço Anna rir. – Mas é tão perto.
– Sim, minha casa é logo ali. – Avi complementa.
– Acho que já passei por lá. – Anna continua sorrindo.
O silêncio volta.
– Certo, – Anna o quebra novamente, – vou me encontrar com um amigo agora. Mas foi bom vê-los de novo! Até uma outra festa!
– Até. – Digo, baixinho.
Espero a menina passar da porta para falar de novo.
– "Até outra festa". Sério?
– O quê?
– Aquele dia ela disse que queria fugir comigo de novo.
– Foi só modo de falar. – Meu amigo dá mais um gole em sua bebida.
– Ah, é!? – Digo, um pouco alto demais.
– Hoje. – Avi fala mais alto do que o normal. – O que ela disse hoje foi modo de falar. Meu Deus, Rae. Achei que tinha sido só um momento daquele dia.
Suspiro. Dou um gole no meu cappuccino e lembro do gosto ruim.
– Acho que não.
– Sabe, – Avi olha fundo nos meus olhos. – Às vezes não foi para você, mas foi para Anna. Ou ela só não queria falar sobre isso agora. Não temos como saber.
Dou uma olhada no sol entrando pela janela e refletindo no chão. O calor que chega nas minhas pernas é parecido com o que eu senti no momento em que Anna me beijou naquela noite. Os lábios dela eram tão quentes em contraste com a noite fria.
Hoje, o sol está mais quente do que o abraço de Anna. Senti-me gelada nos braços dela, como me senti quando errei meu pedido. O verão todo foi sempre o mesmo: Avi e eu, e o calor, e café com leite. Talvez Anna fora um ponto fora da curva, e eu não precisava insistir nela assim como eu não precisava insistir no cappuccino.
Verões são para café com leite. E pessoas constantes.
– Avi? Posso dar um gole no seu frapê?
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por quê estou aqui?
férias nada mais são do que dois meses de procrastinação intensa. eu já assisti a todas as séries da Netflix (pelo menos duas vezes), já maratonei até vídeos no YouTube, atualizei meu currículo mesmo tendo ansiedade para enviá-lo para as empresas. eu li, saí de casa e dormi mais do que eu deveria.
então fiquei com vontade de escrever.
eu nem lembrava mais como escrever, mas estava com vontade. nos primeiros dias foi difícil inventar uma história. mas aí eu achei os prompts perfeitos no facebook. bem, no facebook de uma amiga.
as minhas short stories vêm todas de lá. obrigada à minha amiga que proporcionou o post, e obrigada a você que leu essa explicação desnecessariamente longa.
minhas histórias são minhas filhas. seja gentil com elas.
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