Tumgik
semluz · 17 days
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Que bom que ainda podemos sorrir apesar de tudo. Através de tudo. Desses muros cheios de lanças e dos olhares que penetram com uma moral suja e distorcida sobre mim. Que bom que ainda posso atravessar esses dias doentes e febris e ainda admirar alguma tentativa de fé que surge, coitada, no fim da noite. Eu vandalizei meu corpo e dei aos porcos meu coração virgem de amor. Comeram minha carne de promessas e só me sobrou o cheiro azedo do fim. Cegaram meus olhos de fantasias e me jogaram venenos com sêmen e verdades puras. Eu era tão pura dos noticiários e pecados carnais, eu era tão pura de contusões e atrofias e bebedeiras e calafrios e visões de morte. Eu era pura de inferno e só queria saber do céu. Mas aquela mão entrou tão fundo que tocou a artéria e os vasos e mediu o comprimento da minha alegria. Que bom que eu ainda posso examinar as pulsações.
Os caminhoneiros me ofenderam na esquina da mercearia, na padaria o de bigode lambeu os beiços com o vão dos meus seios pequenos, e a senhora falou baixinho que eu era uma ‘mulher da vida’. Sem pudor, me elogiaram com as presas de um animal enfurecido e pronto para dar o bote. Até que enfim, senhor, seis anos tentando agradar aos futuros maridos e vizinhas da igreja, e família de respeito, e bíblia embaixo do braço, até que enfim sou mulher da vida e tenho função nessa terra. Amém.
Eu tenho uma vida dentro de outra vida, estou grávida do meu destino vulgar, dois seios a mostra e o peito do pé aparecendo, e o sutiã vermelho, e o arfar de um homem perto do ouvido molha todas as extremidades desatentas. Suor, aperto, distância, lento, solidão: vida. Admira a minha impureza se corroendo no gemido de dor. Quando saio de casa ninguém percebe os buracos e ecos. Que bom que ainda podemos sorrir apesar de tudo.
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semluz · 17 days
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exagero na mão quando é sobre mim.
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semluz · 17 days
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Todo dia o barulho da cartela do remédio para gastrite dá bom dia aos meus tímpanos, parece música aos meus ouvidos. Eu convocaria um coral de minúsculas cartelas se pudesse. Depois disso a capsula dissolve no copo de água. Efervescente. Parecem pequenos fogos de artifício explodindo naquele espaço tão pequeno e logo entrando no portal riscoso que é o meu estômago. Meu médico disse que a minha garganta parece um vulcão: corroído e esburacado. Isso é por todo estresse. Isso é pelas horas de sono perdidas por alguma paranoia difícil. Isso é pelas neuroses costuradas de madrugada. E dos problemas que carreguei embaixo do braço sem nenhuma necessidade. Isso é pelo perdão que por tanto tempo eu me forcei a dar. E por aquele que eu tanto esperei receber. É por ter endeusado demais o outro a ponto de não enxergar qualquer traço meu. Isso é por ter insistido em amizades tóxicas e relacionamentos fadados ao fracasso absoluto. É por não ter reconhecido o abuso só pelo simples fato dele existir em um ambiente familiar. Isso é por todos os sapos engolidos no trabalho - e aqueles que ainda levei pra casa e servi no jantar. Quando o assunto vira pauta da sua vida. E a sua vida vira o próprio assunto. Isso é por todas as vezes que me encolhi em mim mesma por medo da vida ser muito grande. Por ter faltado nas aulas em que nos ensinam a brigar. E, principalmente, por pedir desculpas excessivamente pelo simples fato de ser quem sou. Não foi nada disso o que ele disse. Na verdade acho que ele só me explicou o caminho que o alimento faz no meu organismo até virar essa bola de meteoro que arde meu estômago e me provoca azia, e depois me prescreveu qualquer coisa que perderia o efeito três meses depois. Mas foi isso que eu ouvi. Então eu volto pra casa com mais esse gosto amargo indo e voltando do meu próprio vulcão interno. Alimentando um demônio de cada vez.
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semluz · 17 days
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escrever às vezes é como lavar a alma. construir pontes. costurar remendos. 
sou grata por ainda ter as palavras. 
não é você que escolhe como vou usá-las. 
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semluz · 17 days
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Há também um esconderijo do corpo com as minhas densas camadas de tinta no rosto e as roupas que façam eu parecer outra coisa que não essa não a de hoje.
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semluz · 17 days
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Tenho medo da dor involuntária e não assistida. Daquilo que não é escrito e por isso ferve. Tenho medo que a ação de me ouvir falar provoque um movimento brusco e eu nunca mais volte para o plano anterior. Mas há quanto tempo tenho vivido longe de mim?
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semluz · 17 days
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Entramos em setembro. Daqui a pouco o sol estará em libra e eu farei 25 anos. Se preparem para textos neuróticos com crises existenciais alarmantes, afinal, cada vez mais próxima dos 30. Ou se preparem para uma ausência de textos porque a crise é tanta que atingiu a escrita.
muito
animada.
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semluz · 17 days
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Clarice Lispector, “Água Viva”.
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semluz · 17 days
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Nesses tempos de ódio extremo, penso nas cartas que caio trocava com hilda. Ele, muito desapontado, revelava que mais um livro dele foi proibido pela ditadura. E de tantos outros amigos, inclusive, a própria hilda. 
Em um conto dele, “Garopaba mon amour”, caio escreve:
“Mar, ainda não te falei de ontem. Talvez não haja mais tempo. Não sei se sairei vivo. Ontem lavamos na fonte os cabelos um do outro. Depositamos a vela acesa sobre o muro. Pedir o que agora, Mar? Se para sempre teremos medo. Da dor física, tapa na cara, fio no nervo exposto do dente. Meu corpo vai ficar marcado pelo roxo das pancadas, não pelo roxo dos teus dentes em minha carne.”
 Isso te lembra algo?
Eu lembro do medo. Esse mesmo medo que estou sentindo pós domingo. Esse medo que vai continuar mesmo que, por um lado, consigamos nos reerguer. Porque descobrimos, mais uma vez, que casa nem sempre é sinônimo de proteção. E que nem toda família é lar. 
E se você nesse exato momento se percebe sem medo saiba que você é alguém privilegiado. Em todos os sentidos: não ter medo é um privilégio.
“(…) sabemos que o mundo não vale a nossa lucidez.”
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semluz · 17 days
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lembrarei desses dias com uma dor apertada no peito. arrastarei meu corpo pela casa. móveis. cômodos vazios. sairei tentando cobrir a parte estranha que você descobriu em mim. e são como essas coisas que não podemos fingir a inexistência: não há volta do que já foi visto. então eu abraçarei outros corpos. e outras bocas vão sentir o mesmo gosto que você sentiu. eu não. e vou fingir como nunca fingi antes que estou tão dentro e tão fundo que posso contar as camadas de pele. pulsações em lugares estranhos. aberturas em 180 graus. e todo o resto reduzido ao pó. 
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semluz · 3 months
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No alto do seu pedestal você não me enxerga. Você me estende a mão com cuidado para não cair de tão alto, mas eu não te alcanço daqui. No alto das suas cem mil curtidas amorosas e das trinta e cinco que já dormiram contigo, eu não consigo enxergar quem é você. No meio das suas fotos esplendorosas, que belas fotos, você diria, e os comentários reafirmando o que você já tem em mente, eu não te encontro de jeito nenhum. Do alto do pedestal, onde os passarinhos competem por espaço com o seu ninho de prioridades, a academia, o chopp na quinta, e o filme com a galera, a ligação que você não fez para o seu avô, ninguém consegue te encontrar. No alto do seu pedestal o seu ego inflama e ameaça cair, mas você é forte e resiste passivamente. Logo postará algum vídeo motivacional no seu perfil, ou recorrerá para alguma legenda com desabafos reais. No alto do seu pedestal você acena para mim. Você é inalcançável, eu gritei, e pela primeira vez sorri ao dizer isso.
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semluz · 3 months
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Porque nós íamos assistir La La land com você achando engraçado o nome e até bonitinho, mas só tinha uma sessão para 20h e já era 19h30 e ainda não tínhamos comido, e a gente então se conversou pelo estômago priorizando a refeição, enquanto pensávamos o que iríamos pedir no caminho, e todos os problemas do mundo se transformam em grãozinhos de arroz, porque eu sei, eu sei, amar às vezes pode ser egoísta, mas ai você pede um lanche com umas tirinhas de frango e eu peço sem porque vou comer a sua quando chegar, e a atendente fica rindo da nossa discussão por comida. Porque no final você coloca nossas batatas juntas para comermos juntos e talvez o amor não seja tão egoísta assim.
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semluz · 3 months
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Senta aqui. Vamos conversar. Você não é de ferro, “tá”? Embora você tenha vencido aos piores dias como um super-herói faria em uma missão. Embora você tenha se vestido de diversas desculpas e tramado inúmeros boicotes a si mesmo. Você ainda pulsa. Vibra. Bombeia. E, por tudo que é mais vivo e consistente, você existe. Eu sei que você repete incansáveis vezes que está cansado e não aguenta mais. Que mais uma você desiste e fim. E por mais que eu tenha medo do seu fim, eu ainda te encaro com toda admiração e fascínio por alguém que sabemos que carrega cargas enormes e ainda assim consegue emitir luz. Mas você não é de ferro, “tá”? Nem precisa ser, a vida às vezes parece exigir isso, e as pessoas parecem te exigir isso, mas, veja bem, você é de carne e osso. Você precisa chorar em algum lugar, em alguma hora. Precisa conversar com alguém, sentar por um minuto, despejar suas derrotas e confessar suas angustias. Você merece um tempo para cuidar de si. Eu aprendi que sofrer também está ligado a se reconhecer e se encontrar. Esse processo, assim como uma faxina, exige tempo, esforço e cuidado. Não é fácil carregar alguns móveis – assim como não é fácil afastar algumas pessoas ou equilibrar alguns problema. Tem dias que você vai entrar em casa – a sua casa, dentro de você – e não vai reconhecer nada que tem ali dentro. Tem dias que você vai querer voltar para si mesmo porque não existe lugar mais confortável e, ao mesmo tempo, desafiador. E vai ter dias que você vai encontrar alguém que queira te visitar. Te ajudar com a faxina. Comprar novos móveis. Escolher uma nova decoração. Você não é de ferro, mas a sua força é incrível. Eu te admiro por ter chegado até aqui. Se admire também.
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semluz · 3 months
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Ser sozinho não é o problema. Mesmo que você me explique por horas a diferença entre ser e estar. Estar também não é o problema. Veja, eu tenho séries para atualizar, filmes que quero ver, lugares para passear. Meu problema não é sentar em uma praça de alimentação sozinho. O problema é o que eu vou fazer com isso. Eu posso fazer um texto. Eu posso levar para a terapia. Eu posso chorar ouvindo música ou fingir que estou só esperando alguém. Ou eu posso simplesmente comer e encarar isso como uma situação normal que é: eu, como ser que nasceu e logo foi cortado meu cordão umbilical, e logo foi ensinado a andar e existir nesse mundo, eu posso e consigo.
Por mais que as construções sociais me ensinem o contrário. Por mais que socialmente pareça mais aceitável ter duas cadeiras postas em uma mesa. Por mais que as séries que eu queira ver enfatizem tanto os casais e suas cumplicidades. E os filmes com todos os seus romantismos – até no gênero de terror, DEUS. Por mais que na praça de alimentação pareça que todos estão comentando sobre “aquele ali sentado sozinho”. Ninguém está.
Ser sozinho não é o problema. Para mim o mais difícil é ter conhecido o melhor de estar com alguém e agora ter que reformular as antigas vivências. Foi você ter me apresentado um novo cenário e – por única e exclusiva responsabilidade minha – eu ter achado que ali era um lugar bom para morar. Foi ter saboreado o gosto, sentido na pele, experimentado as sensações, e agora ter que desacostumar meu corpo para o modo antigo. Como se eu desconectasse cada conexão que eu criei após você. E não que sejam ruins as lembranças, veja, eu agradeço por todas elas. Mas eu preciso recomeçar do ponto em que você me deixou e eu agora continuo como sempre fui. É preciso continuar mesmo sozinho. Mesmo em pedaços. Mesmo sem forças. A gente desaprende a andar quando alguém nos solta a mão. Mas logo você vai me ver por ai sorrindo.
Até breve.
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semluz · 3 months
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Enquanto eu descasco as batatas Eu deveria estar calma São só batatas E eu estou em casa Mas meu coração está acelerado E eu não consigo voltar para o ponto em que Eu me concentro nas batatas E me desconcentro de mim.
A síndrome do pânico é uma mulher egoísta Que so pensa em si Enquanto o mundo clama lá fora E batatas precisam ser cortadas aqui dentro Alguma coisa parece explodir.
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semluz · 3 months
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só repete pela última vez que está tudo bem mesmo, que daqui eu viro a esquina e sigo sozinha. claro que eu to bem, claro que eu aguento mais uma partida, isso aqui é só pra eu convencer alguma parte em mim que ainda esteja guardando certa esperança nisso. eu sei que agora é duro reduzir a “isso” ou “aquilo”, mas eu preciso ir descaracterizando a força do nome pra ver se com isso ele perde um pouco do poder sob mim. agora vamos. não desvie o assunto para outro lugar, assim como você faz com o seu corpo. daqui a pouco eu não te vejo mais e acabou. sua imagem indo embora para nunca mais. quando te esperar voltar falando que esqueceu alguma coisa é inútil e doloroso (…) eu quero olhar pra sua boca dizendo que está tudo bem que você não está sentindo essa coisa destruindo seu cérebro e todas as memórias boas, incinerando o seu estômago junto com todos os gostos bons que ficaram no céu da boca. eu quero saber qual é o truque, mágica, feitiçaria, atuação de quinta ou efeito de alguma substância ilícita que te faz pensar tão r-a-c-i-o-n-a-l-m-e-n-t-e a respeito do amor e de nós e de tudo isso que vivemos. a gente viveu tudo isso mesmo? você viveu tudo isso comigo ou foi só acumulando os dias porque era confortável demais continuar? porque talvez eu esteja entrando naquela fase amarga que é se questionar onde terminava a nossa realidade e entrava a minha fantasia..
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semluz · 3 months
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Parece que muito ficou para ser dito.
Toda vez que penso em você sinto um engasgo. Tento cuspir ou mandar para dentro de novo e a “coisa” nunca sai. No final do dia vira azia.
Lembro daquela última vez que nos vimos na casa de uma amiga. Nem sabíamos que seria a última vez. Já não sentávamos em cadeiras próximas, era sempre uma de frente para a outra. Combate. Lembro que fizemos nosso prato preferido. Deixa que eu corto as cebolas e você tempera o molho. Me passa o pano de prato. Tá bom de água? Acho que está no ponto. Você arruma a mesa, deixa que eu limpo a pia. O gosto tá bom mesmo? Acho que perdi a mão (…) Experimentamos no mesmo garfo, mas já não dividíamos salivas – nem conversas profundas. De repente, escolhemos ficar só onde a onda não pega: daqui eu consigo correr caso algo aconteça.
É mais fácil ir embora quando prevemos?
Lembro de ligarmos uma música qualquer enquanto limpávamos os pratos. A cozinha minúscula fazia com que os nossos corpos se debatessem. Perdão, perdão, perdão. E eu sempre queria perguntar, como quem não quer nada, pelo que nós precisamos nos desculpar tanto? Já éramos dois desconhecidos dividindo uma intimidade que incomodava.
Antes não. Antes era natural.  Agora as nossas vozes tremiam com qualquer pergunta que pudesse ser definitiva. Existe um momento nas relações que qualquer gatilho se torna fatal.
Enquanto comíamos percebi que, pela primeira vez, nosso silêncio estava sendo constrangedor. Será esse um aviso prévio de um fim? E pensar nisso me deu aflição. De repente o engasgo voltou. Foi o molho? Quer água? Quer ajuda? E você não saia da cadeira. Não se movia. Não se afetava mais.
Depois disso a comida já tinha esfriado e você tentava puxar algum assunto isolado: Como está em casa? E sua mãe? A faculdade? Sua gata? – qualquer coisa que fizesse a gente sentir, ou se enganar, sobre as conexões que ainda mantínhamos.
Você já não sabia de mim mesmo me vendo todos os dias.
Lembro que na hora de ir embora você quis me levar até o metrô. Na rua extensa dividimos um sonho em comum. Você repetiu diversas vezes: nós vamos fazer isso dar certo. E eu não sabia se era uma afirmação ou pergunta.
Em mim ficava a dúvida. Vamos mesmo?
Após esse dia tudo mudou. Você nunca mais escreveu nada sobre mim. Nunca mais leu algo que eu escrevi. Nos limitamos entre um parabéns atrasado ou um feliz ano novo pra você e sua família.
Fomos longe demais.
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