Às vezes me foge o prazer subjetivo de estar a olhar a vida por estes torturantes olhos caleidoscópicos. Sinto como se tivesse a náusea de perceber, sobre todas as coisas, brandas como o ruflar das asas de uma coruja, ou pesadas como o das moscas, um desconforto metafísico, como o de quem pusesse na face, por curiosidade, os óculos que fossem de outrem.
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Como foi quando você aprendeu a andar de bicicleta? Quem estava lá? Ele tinha bigode como o meu ou era mais grosso? Qual era a cor do carro dele ou ele andava a pé? Eles te faziam beber o suco todo ou você podia escolher a marca do refrigerante? Como foi quando você sentou pela primeira vez no banco da frente e mudou a marcha? Aquele escorregador era tão grande mesmo ou é distorção da memória? Ele ainda existe ou você o encontra em cada canto? Como foi que te disseram que aquele sangue era normal? Quem estava contigo era sua mãe, sua tia ou sua irmã mais velha? Te prepararam antes para aquilo? Como foi que você se sentiu quando eu me feri na cerca de arame farpado na ida e na volta para pegar e te dar aquele girassol? Como foi o seu meu primeiro beijo nosso? Como a gente nomeou nosso primeiro filho na emoção do girassol que olhávmos pro alaranjado do poente até quase não enxergar mais nada além da gente? No que você pensou quando eu te levei pro topo da árvore mais alta da rua, mesmo você não podendo, sendo menina e usando vestido? Como você lembrou de mim depois que eu fiquei mais velho, com aquele sorriso de vagão de trem? Como foi que os girassóis se abriram pra você sem o gosto laranja do nosso beijo vigem? Como era o nome do seu filho quando seu marido disse? Como vai ser dizer para eles que não, marido e filho? Foi diferente? Foi perto da minha casa? Como você lembra que eram as árvores? Qual o sabor dos frutos que te ensinam o caminho de volta? O que você acha de fechar os olhos e beijar alaranjado de novo? Que tal um filho da gente com nome de Benjamin e olhos de girassol?
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O mar
O mar está proibido
Os sonhos ainda são possíveis
Mas o verão começa ardido
Logo os medos se fazem visíveis
À luz de tudo, do dia, do mundo
Um sentimento, pontudo, doía, mudo.
O mar agora é sonho, desista
Toda a força que eu ponho morre no clarão da pista.
Eu sonhei que o ônibus que eu pegava perdia o controle e caía na ribanceira
De manhã cedo, para meu espanto, nada aconteceu
Fui e voltei do trabalho, em pranto, da mesma maneira
E a noite me conheceu.
O amor não é proibido não
Você acorda como flor que desabrocha
As ondas do mar que nunca pesarão
Batem em delírio contra tuas coxas (rochas).
Perder o tempo, perder o sonho
Ser dado à dimensão da obrigação, do salário
O mar que eu contenho, componho
Vai crescendo até sumir na vastidão — caralho!
O sonho solidificou, agora é um mar de aço
Com esse peso todo, meu deus, o que é que eu faço?
Você desabrochou e me envolveu quando eu quase chorava
Abrindo a estação, inventando a alva (abraço).
Silvestre da Silva
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As minhas pontas são soltas
Eu deixo que se desfaçam
Eu, fogo, deixo que griem
A agonia repetida das almas.
Eu, fogo, deixo que se fumaça
A alegria fugida das taças
Vez que no quintal apareceu espírito
Cara brava, corpo de brasa.
Eu, que sou espírito, deixo que passa
Corpo fugindo, cor de fumaça
Uma vida vivida, ama graça
A menina, o reflexo da garça.
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O deus da criação olhou para dentro de si e riu-se
Que peixe esquisito é esse?
Sem saber o que era, acharam bom dizer
Cavalo-marinho
E ficou sendo assim
Saber deus que se passou
Deixar na boca dos outros o nome da criação
E deus olhou e viu que o mundo ficou bonito
Então foi descansar na praia.
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Evgeni Vasilevich Chuikov - Gathering Mushrooms (1962)
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Perdoaria
Quando você aproxima sua mão à nuca de uma pessoa que está dormindo, mesmo sem tocá-la, ela sente. É uma coisa que eu coloco aqui sem saber. Vai ver você já fez isso, de aproximar o dedo ou a mão ao corpo, aos olhos, às costas, à nuca... de quem dormiu. A pessoa acorda. E olha pra você, olhos de quem sentiu o toque que nunca houve. Eu conto isso porque alguém deve ter uma explicação sobre isso. A energia emana de quem projeta a intenção do toque. Ou a sensibilidade se origina de quem jaz no sonho, receptivo ao toque que nunca houve, no limbo dos sonhos, entre a sujestão e o toque; entre o sonho de tocar e já tê-lo feito no passado ou vê-lo no presente é que jaz a mão pairando sobre a pele sem a necessidade imediata das dermes em estrangeira interação. Ver já é intenção. Tocar mais ainda. Procurar, muito mais. Quando eu te sonho eu já sou tu. Levei um pedaço do pano de tua veste para a cama. No outro dia você me lambeu com os olhos e se atreveu a sorrir. O crime feito. Deitei-me como rei, sangue escorrendo por entre os dedos e o sabor de tua carne em vivo sangue por entre as unhas. Você jamais irá me esquecer. Eu vou manchar de marrom, cor de pele, o crepúsculo. O sol dormente vai te parecer macio, pele de homem, e vai se deitar contigo do crepúsculo até a aurora dos sonhos, um delírio, um limbo, você deitando assim, se esfregando à seda, ao linho, a gente, confundindo nos lençóis, você para mim: alvo, reflexo de luz incidente do dia; eu: crepúsculo dourado-morno, caramelo, queimando. A improvisão do sol dourando as ervas, trigo, cevada e meus olhos castanhos, dourando o horizonte. A sua imaculidade dourando os azuis dos horizontes até ficarem leite e brancos e apagamento de solidão. Bonito é adotar um gato e chamá-lo Goliat por ser cristão sem remédio por berço e colher uma planta do quintal, banhar de sal e depois verter a água da erva sobre mim, mas nem assim esquecer de si/ti/nós, que embranqueceu a tarde. Eu sou melhor depois de você, mas eu prefiro eu com você 490 (70x7) vezes mais — perdoaria.
— Silvestre (Sabiá) da Silva
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Tem gosto de casa
Entra pelas narinas
O pequi café
Tem nome de sonho
O eco do apelido do menino
A pipa que rebola sem tempo no azul turvo sem estação
Tem cara sem nome
Tem peso sem tempo
Tem tempo sem medo
E cabelo de anjo
Enrosca no muro e despeja fruto
Com gosto de chuva
Chuva sem estação
Estação sem tempo
Tempo de menino
Que eu gosto de requebrar nos azuis
Pipa de cachos sem tempo
Com cheiro de café
Eu me confundo no sem tempo
De pequi sem estação
Narinas turvas sem casa nem sonho
O sonho do cheiro
O cheiro do sonho
Choveu
Eu lembrei do céu de quando eu era menino
De quando eu era azul café.
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Me dá teus cabelos, nego, que eu gosto de me afogar
Olha eu assim, céu roxo
Frente a campos de trigos
Céu roxo
Cabelos trigos seus
Eu roxo
Olha eu me afogando assim.
Mente seus olhos, castanhos assombros
Janelas dos sonhos
Promete teus planetas marrons
Vidas sem fim
Eu disse sem fim
Esquece o tempo
Eu disse esquece o tempo
Os milanos os milhões os trilhões
Olha de novo os teus castanhos lá
Diáfanos
Ou quase perdendo a cor
Ou dourados
Eu não sei, muito longe pra se ver no tempo
É marrom castanho dourado
Galhos trigos dedos
Árvore raízes dedos eu presente
Eu todo cafuné
Tu trilhos sonhos
Um trem que passeia
Uns dedos
Me dá teus cabelos, nego, que eu gosto de te afagar.
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As flores amarelas e os trovões escandalosos
Às vezes eu chovo
Às vezes sou tempestade
Tempo de chuva é assim mesmo
As coisas mudam
A lama, o desabamento
As coisas mudam de lugar
Os trovões, um escândalo
Depois eu sou orvalho
E garoa fininha, cinzento, triste
E amanheço incerto
Com os brotos desafiando a gravidade
As raízes desafiando a dureza do solo, das pedras
E, de repente, recebo um elogio
Que céu azul que você tem, parabéns pelas flores amarelas
Eu estremeço.
Eu resisti a mais um ciclo impiedoso das estações
Eu fui lua minguante, maré cheia, eu fui geada
Eu insisti em minhas raízes, eu abri mão
Eu insisti nas flores, eu ofereci
A tempestade me prova, eu insisto na vida
A enchente, pesadelo, me afoga
Eu não esmoreço
De repente, eu tenho flores para mostrar ao mundo
Flores amarelas
Eu sei que elas vão murchar, mas isso já não é tão amedrontador assim.
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Inspira e expira
Dançar é um ato de agradecimento
Agradeça a seu corpo por existir.
Respirar é um ato de agradecimento
Agradeça a seu corpo por resistir.
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A terra era vermelha
Digo eu: ainda é
Que a terra é indiferente aos meus sonhos
Se, antes, eu era sonho
Agora não sou
Agora sou amargo, e o amargo sobe à garganta, depois volta envergonhado
A terra não tem culpa disso
Ela era sim feita de sonho
O barro vermelho era onírico algodão
Juro
Era eu botar o pé na lama vermelha
Cobre
Ferrugem
Terracota
O pé afundava no ar
Era voo
Era sonho de quem chuta a bola
Para além dos muros chapiscados, adornados de arames farpados
Era a bola que me levava ao quintal vizinho
Invadido
Onde "oh, moça" nos servia uma pamonha
E nos convidava para o dia de amanhã
Onde o tio Damião Pereira traria, na mala garimpada, mordida de jacaré, de madeira de jacarandá
Histórias mil para contar
E um pandeiro horroroso, furado (deus meu)
E no muro à frete
O cheiro era de feijoada
Era galgar o amianto dos telhados
Arranhar um dos joelhos
Para cair no forró da tia
Que pedia, àqueles guris espertos
A mais rosa das mangas
No alto daquele galho
E a gente ia, galgando, feito macaco
E jamais voltávamos
E a manga era rosa, demasiada rosa, feito bruma de neon, fazia-se tarde a cada galho, escurecia
Que o galho era sonho, demasiado longo
Não dava tempo de voltar.
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Escultura de branco mármore
Eu lembro do peso da sua áurea
Não pesa nada
É uma pena sutil, translúcida, de contornos dourados
Eu queria poder escrever outra coisa:
Que morro de amores por si
Mas ainda me falta saber a cor que você tem
Se penso nisso, me vem um dourado
Que é um amarelo brilhante
Mas acho que você é vermelho
Eu não sei
Porque você ainda não pesa no meu peito
E parece que a sua medida
Ou a cor do seu cheiro
São coisas tais como
As palavras escritas
Ainda sem figura
Eu, menino ainda
Analfabeto de tudo
Cheiro as páginas
Embaralhadas de caracteres
Sem saber que nome te dar
Olho o arranjado de letras indecifráveis
Mistério dos Deuses
Que me esperam num futuro impossível.
Eu queria te escrever um poema,
(Não um quase-poema)
Eu jurei que não escreveria sobre si, porque tenho medo que me devore um dia
A sua tez amarelo brilhante, contornada de carmim, flutuando sobre os lençóis revoltos do mau-sono.
Tudo isso é só porque eu tenho medo
De pronunciar o seu nome
E de te ver ressurgir, refeito nas cores alvas
Na noite em que eu já não saiba seu nome
Na noite d'ausência d'estrelas
Lua negrinha, desfulgurante, perdida no céu
Em que eu balbucie, caduco, seu ressequido nome.
Tudo isso é porque eu tinha medo de escrever
Porém, escrevo, em êxtase anônimo, e assim te sacramento
Feito do branco mármore
De dourados contornos
Milenar escultura
Nos anos de minha mocidade.
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