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Passeio da escola: passará!
Lembro-me muito bem dos dias de passeio escolar. Essas ocasiões sempre agitavam muito as crianças. Eufóricas, todas ficavam extremamente felizes quando esses dias chegavam, inclusive eu. Essa alegria é, talvez, o motivo da minha memória resgatar esses momentos com tanta facilidade. Isso porque, como explica Antônio Damásio e o filme "Divertida mente", as emoções têm papel importante para a formação da memória. Por isso, recordo-me de todos os passeios que minha escola promoveu. Em um desses passeios, os garotos estavam mais agitados do que o normal. Isso porque, pela primeira vez, íamos passar três dias em um acampamento de férias; na época, eu e meus colegas estávamos no quinto ano, essa seria nossa viagem de formatura. Os ânimos estavam à flor da pele, o clima era de final de Copa do Mundo e todos brincavam e faziam piadas. Quando estávamos no ônibus, um grupo de meninos, contagiados pelo clima festivo e pelas brincadeiras, resolveu "zoar" as pessoas que passavam na rua. No auge da infantilidade, eles provocavam os transeuntes e exibiam seus dedos médios. Essa descompromissada brincadeira chamou a atenção de uma professora em certo momento. A educadora, por sua vez, cumpriu seu papel e reprimiu os malfeitores. Marcelinho, Pedrinho e Joãozinho foram sentar-se próximos da sensata tutora, para que ela pudesse monitorá-los e evitar futuras traquinagens. Lembro-me de ter achado a situação engraçada. Não me culpe, leitor, eu tinha apenas dez anos. Pelo menos não participei de nada, fiquei sentado no ônibus admirando a paisagem durante toda viagem. O céu era verde sobre o gramado, a água era dourada sob as pontes.
Hoje, quinze anos depois desse dia, Marcelo Queiroga foi flagrado, dentro de uma van, mostrando o dedo do meio para manifestantes. A imagem do Ministro da Saúde do meu país, exibindo seu dedo às pessoas, automaticamente me lembrou do dia do passeio. Muitas coisas mudaram de lá para cá; milhares de pessoas morreram; as doenças se espalharam; a raiva dominou tudo... Aqueles alunos da quinta série B finalmente tiveram sua vingança. A professora não apareceu. Onde ela está? Durante muito tempo, tentei encontrá-la. Mas ela não aparece! Não aparece, porque a quinta série B tomou conta de absolutamente tudo, está em todos os lugares. Ela não veio. Um genocida mata deliberadamente a população, faz coisas que nem a própria quinta série sonharia em suas fantasias mais loucas. A professora está em casa, com medo de morrer. Hoje, tenho muita raiva das coisas que estão acontecendo, do Ministro dizendo com suas mãos: FODA-SE! Quase seiscentos mil cadáveres. FODA-SE! O comportamento pueril só alimenta chaga. Meu único consolo é saber que as emoções têm papel importante para a formação da memória. Por isso, eu e os milhões de brasileiros revoltados não vamos nos esquecer do que aconteceu. A história cobrará seu preço. Esses dias sombrios passarão com a mesma efemeridade que aquele passeio escolar de quinze anos atrás. A professora há de chegar. Os delinquentes da quinta série serão punidos. Eu espero!
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