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O Observador
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"O homem não nasceu para trabalhar, mas para criar." Professor Agostinho da Silva. "The hardest freedom to maintain is the freedom of making mistakes." Morris West. Blogue de André Abrantes Amaral
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oobservador2 · 7 years ago
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Uma Europa francesa: balanço de um ano de Macron
Ensaio no Jornal Económico sobre o plano de Macron para a Europa.
Uma Europa francesa: balanço de um ano de Macron
Macron é presidente da França há um ano. E, como é normal, os franceses fizeram o balanço destes 12 meses de mandato com sondagens e alguns textos sobre o que já se fez e o que ainda se pretende levar a cabo. A maioria considera-o agora mais de direita que de esquerda e já não tanto ao centro como alegava quando se candidatou. A luta contra os sindicatos dos ferroviários é considerada a sua grande oportunidade para mostrar ser capaz de pôr em prática a mudança que a França votou em 2017.
Por cá, o presidente francês é visto, como em tudo o que foge da normalidade – Macron trucidou os partidos tradicionais –, com um misto de assombro e desconfiança. E, como também é frequente em Portugal, não se lhe dá a relevância que o assunto merece de forma a que, dessa maneira, seja como se não existisse. Lê-se um ou outro texto, não mais que um ou outro pequeno artigo num jornal, e o mais resume-se a frases de circunstância e às imagens na televisão, que o homem é telegénico.
Mas Macron tem algo que em Portugal devíamos dar muita atenção. E essa particularidade não tem que ver com a sua personalidade, não se trata de nenhuma qualidade sua especial, mas com o programa, a visão que o Eliseu tem para a Europa e que, se concretizado, vai alterar, e muito, a União Europeia. Uma mudança que já se fez sentir no novo orçamento plurianual da União Europeia, que tanto desagradou aos partidos portugueses e deixou Marcelo apreensivo. Porque Macron visa dar um novo impulso à UE e, por arrasto, devolver à França a glória e influência do passado.
O discurso na Sorbonne
Foi a 26 de Setembro último que Emmanuel Macron apresentou, no Grande Anfiteatro da Sorbonne, o seu projecto para a Europa. Lá fora os protestos do costume, enquanto lá dentro o espaço era pequeno para os que o queriam ouvir. E o que disse Macron foi repetir o que já escrevera no livro “Révolution”, um verdadeiro programa para o seu mandato enquanto presidente. E no que consiste o seu projecto? Antes de mais, uma defesa comum para a Europa. Macron não pretende apenas dotar a UE de mais meios financeiros para a defesa (como é o caso com o novo orçamento comunitário), mas também que se preparem forças armadas comuns. Nesse sentido, naquele dia na Sorbonne propôs abrir as forças armadas francesas a militares de outros países da União para que participem na obtenção de informações, planificação e apoio às operações militares francesas. Macron, e este ponto é fulcral, quer uma União Europeia dotada de uma força militar comum e que a França seja o seu principal sustentáculo.
Outro ponto foi a defesa de uma taxa comum sobre as transacções financeiras de forma a financiar uma política única de asilo político, o policiamento das fronteiras europeias, um programa de apoio à formação dos refugiados, bem como uma política europeia de desenvolvimento direccionada à África, onde a França lidera com as suas forças militares o combate ao terrorismo islâmico. No seu entender, a UE deve passar a ser um instrumento por via do qual os países europeus terão acesso a África e que Portugal, em virtude dos laços que tem com alguns países africanos, não deve deixar escapar.
O presidente francês defendeu ainda a taxação das receitas dos conhecidos GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon) em vez dos lucros. O objectivo é que a UE adopte leis que obriguem estas empresas a pagarem mais impostos e não que se refugiem em países como a Irlanda e o Luxemburgo.
Uma Europa a várias velocidades
Mas a grande proposta de Macron para a Europa é na área financeira. Um orçamento comum para a zona euro, direccionado ao investimento público estratégico, que também de apoio aos países cujas contas públicas coloquem em risco a estabilidade da zona euro. A par deste orçamento pretende-se também que a zona euro tenha um verdadeiro ministro das Finanças com mais poder sobre os seus colegas dos respectivos países, que o agora líder do Eurogrupo. A acontecer, estaremos perante uma verdadeira união fiscal que se acentuará com a libertação dos fundos desse orçamento a depender da implementação de reformas estruturais, no Estado e na economia, ditadas por Bruxelas.
A partir daqui é inevitável falar-se de uma Europa, não a duas, mas a várias velocidades. Tão-só porque, a partir do momento em que os fundos desse novo orçamento forem libertados sob condição da implementação de certas reformas, o conceito de igualdade como o conhecemos hoje deixará de ser a pedra de toque da União. Os países não implementarão as referidas reformas ao mesmo ritmo, com a mesma amplitude e, naturalmente, o acesso a certas ajudas comunitárias não será igual nem atribuído ao mesmo tempo.
Mas a UE será ainda a várias velocidades porque Macron tenciona que França e Alemanha assinem um novo Tratado do Eliseu, renovando o de 28 de Janeiro de 1963. Nesse dia, Charles De Gaulle e Konrad Adenauer assinaram um tratado que fixava os termos da cooperação entre os dois países nas relações internacionais, na defesa e na educação, e que muitos consideram como um dos motores da integração europeia. Com esse acordo conseguido há 55 anos, De Gaulle conseguiu retirar a República Federal da Alemanha (RFA) da esfera dos EUA permitindo, desse modo, pensar-se uma Europa não submissa aos interesses norte-americanos. O objectivo de Macron com a renovação deste tratado é precisamente o mesmo.
Será à volta deste novo tratado franco-alemão que Macron tenciona reconstruir, dentro da UE, uma união mais coesa e próxima. Uma nova parceria porque, como disse o próprio, “L’Europe est déjà à plusieurs vitesses, alors, n’ayons pas peur de le dire et de le vouloir!”. Portugal foi mencionado no referido discurso como fazendo parte do pelotão da frente, pelo que caberá ao nosso Governo decidir o que fazer com esta proposta.
Uma soberania reinventada
Terça-feira, 17 de Abril de 2018. O novo presidente francês estreia-se no Parlamento Europeu, onde apela ao que chama de “soberania europeia”, uma soberania reinventada para fazer face ao autoritarismo que ameaça o projecto europeu. No seu entender, os desafios de hoje são globais, não podem ser tratados a um nível meramente nacional, e a UE só em conjunto conseguirá fazer-lhes frente. O terrorismo, os fluxos migratórios, a defesa dos interesses comerciais, a luta contra a fraude fiscal e as próprias relações internacionais (como temos visto no que diz respeito ao Irão) devem ser tratados pela UE como um todo, de forma a que os países europeus sejam bem-sucedidos. Bem-sucedidos no que diz respeito a esses desafios, mas também no combate aos extremismos políticos (quer à esquerda quer à direita) que nos últimos acto eleitorais têm alcançado bons resultados.
Mas o mais interessante não foi o discurso de Macron (que só durou vinte minutos, ao contrário do da Sorbonne com uma duração de mais de hora e meia) mas o debate que se seguiu. Um debate que juntou Florian Philippot, o até há pouco tempo estratega da Frente Nacional, a Manuel Bompard, do La France Insoumise, em oposição a Emmanuel Macron. Os dois primeiros foram veementes na afirmação de que não há soberania europeia e na acusação de que o presidente francês visa apenas substituir a soberania da França por uma de burocratas. Talvez seja por se sentarem em lados opostos no hemiciclo que os extremismos se acabem por tocar.
Há quem considere que o plano de Macron foi derrotado ainda antes de ter sido colocado em prática, devido ao fraco resultado de Angela Merkel nas eleições alemãs de Setembro passado. Na verdade, foi no referido discurso na Sorbonne que Macron desafiou a chanceler alemã a renegociar o dito Tratado do Eliseu e, a partir daí, refundarem juntos a Europa. No entanto, não só Angela Merkel se mantém como líder do governo alemão, como o enfraquecimento político da chanceler é encarado por Macron mais como uma oportunidade que uma perturbação.
Com a saída do Reino Unido da União Europeia e o enfraquecimento político (mas não económico) da Alemanha, Macron considera que a França tem o caminho livre para refundar a Europa à sua maneira. Por isso a proposta do novo Tratado do Eliseu, inicialmente assinado quando a Alemanha não liderava; por essa razão a proposta de uma Europa a várias velocidades, em que os países por ele mencionados são mais próximos da França que da Alemanha; por esse motivo o seu discurso no Congresso norte-americano, no passado dia 25 de Abril, precisamente 58 anos depois do proferido por Charles De Gaulle naquele mesmo dia, naquele mesmo lugar. Um novo tratado como o De Gaulle para renovar a Europa; um novo discurso como o de De Gaulle para cimentar as relações franco-americanas. Macron já não vê a França como o pilar de um exército europeu (como tencionava Manuel Valls), mas o suporte à volta do qual gira a Europa e em torno do qual esta se relaciona com o outro lado do Atlântico.
A França e os Estados Unidos
Como Macron é um homem da globalização, o seu discurso em Washington foi em inglês. Recordou o papel da França na luta da independência dos EUA contra o Império Britânico; a visita de Benjamin Franklin a Paris, em 1776, para obter os apoios internacionais (o que conseguiu devido à extrema simpatia que os EUA tinham não só entre elite francesa mas também entre as suas classes mais desfavorecidas); a chegada aos EUA do jovem Lafayette para combater contra os Britânicos, ou a de Alan Seeger a França: o poeta norte-americano que, com 28 anos e um amor por aquele país europeu, morreu no dia 4 de Julho de 1916 a combater pelos franceses. Um verdadeiro rendez-vous com a morte, mas também com o destino. Porque é o destino, como salientou Macron, que une estes dois países e se nada o pode pôr em causa, a saída do Reino Unido da UE é um excelente motivo para o reafirmar.
A mensagem a passar é que a França se tornou no parceiro privilegiado dos EUA na Europa. Aquele com quem os norte-americanos podem falar (a posição um tanto dúbia de Macron quanto à saída dos EUA do acordo nuclear com o Irão é prova disso mesmo). Um país aberto à globalização, mas disposto a combater as distorções criadas do livre comércio por regimes totalitários e que prejudicam as economias liberais.
Concordando-se ou não com o pensamento de Emmanuel Macron, não deixamos de estar perante um estadista com um pensamento muito completo, uma visão muito ampla do que pretende para a França, de como encara o papel da França no mundo e dos passos a dar para que Paris se torne novamente num peão indispensável, e não negligenciável, das relações entre as grandes potências mundiais. É neste sentido que se compreendem as reformas que pretende levar cabo em França, a urgência que tem para vencer o embate com os sindicatos ferroviários, a necessidade de refundar a UE e a relação de cumplicidade que quer estabelecer com os EUA.
Há muitos anos que não víamos a França ser governada com tamanha ambição. Podemos mesmo arriscar que ainda mais que a de De Gaulle, quanto mais não seja porque este viu os seus sonhos de grandeza comprimidos pelo choque entre os EUA e a URSS, que caracterizou a Guerra Fria. Nessa altura, o espaço deixado à França era muito pequeno e o alcance de qualquer das suas acções, curto.
Agora, com a China a criar problemas comerciais aos EUA, a que se juntam as suspeitas quanto às suas ambições militares, com uma Rússia sem a força da URSS, sem, no fundo, a existência de um mundo bipolar, mas com vários actores internacionais, com uma UE fragilizada com o alargamento que favoreceu a Alemanha, a França de Macron talvez possa finalmente chegar a bom porto na concretização dos seus sonhos de grandeza. Talvez os olhares de Robert de Sorbon e de Richelieu, debaixo dos quais proferiu o dito discurso na Sorbonne, no meio de Paris, no novo centro da Europa, o tenham inspirado.
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oobservador2 · 7 years ago
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Um mundo espiritual sem Deus
Hoje no i.
Um mundo espiritual sem Deus
Em “Silêncio na Era do Ruído” (Quetzal), o norueguês Erling Kagge conta como, no dia seguinte ao da sua chegada e do explorador Borge Ousland ao Polo Norte, apareceu no céu um avião-espião norte-americano. Talvez por terem ficado surpreendidos com a presença de dois exploradores, o avião atirou-lhes uma caixa de alimentos antes de seguir viagem. Quando a abriram, viram que continha um almoço de sanduíches, sumo e arenque. Como estavam há 58 dias com temperaturas de -58 oC, Kagge diz que se preparava para devorar a sua parte quando Borge lhe sugeriu que, antes de comer, fizesse uma pausa. Contaram até dez e depois comeram. Mataram a fome e usufruíram da refeição.
Numa entrevista há dias ao “Público”, um engenheiro de nome Mo Gawdat, que trabalhava para a Google e de onde saiu para escrever sobre a felicidade, afirmava que a tecnologia e o dinheiro não fazem as pessoas felizes. No seu entender, são muitos os que procuram o bem-estar nas suas grandes casas, belíssimos carros e telemóveis que os ligam a toda a gente, a toda a hora. Para este engenheiro, a felicidade não está nesses objetos mas dentro de cada um de nós, sendo “preciso parar de acreditar nas promessas vazias do mundo moderno. Parar de acreditar que o sucesso, o ego, a imagem, os gadgets ou o dinheiro são mais importantes do que a felicidade”.
Há muita gente com um ego enorme e que depende de o alimentar. Uma alimentação constante que os torna permanentemente insatisfeitos, numa contínua comparação com terceiros que até podem ter outras prioridades ou desvalorizar tudo o que eles consideram como sucesso. Uma insatisfação permanente que acentua invejas, incompreensões, rancores, e um mal-estar indefinível e incompreendido por quem acha que tem tudo para ser feliz, mas não se sente bem.
Mas um dos aspetos mais interessantes de Kagge e Mo Gawdat é o que dizem, ou não dizem, sobre Deus. O segundo (e na mesma entrevista), à pergunta se podemos ser felizes sem religião, responde: “O nosso verdadeiro eu não é físico. As pessoas confundem espiritualidade com religião. A religião tem muitas regras.” Já Kagge não menciona Deus no seu livro, mas conta como, quando “a caminho do Polo Norte, imaginava o homem da Lua a olhar lá para baixo, para a Terra”. Lá de cima, esse homem conseguiria ver todo o nosso planeta e, no extremo norte, um rapaz, Kagge, de “anoraque azul, que seguia sempre na mesma direção”. Kagge usou esta imagem para se questionar quem seria mais maluco, se ele a caminho do Polo Norte ou se todos os restantes milhões de pessoas que, mais abaixo na Terra, o homem da Lua via levantarem–se de manhã e seguirem a suas vidas rotineiras até morrerem. Pensar nisso ajudou Kagge a continuar.
O que estes dois homens dizem é interessante porque, depois de um período materialista, vivemos uma época espiritual, mas sem Deus. A contagem até dez antes de comer era (é) a oração antes da refeição. O homem na Lua é Deus, que nos recorda que o mundo é um todo uno e que não estamos sós. O que Kagge e Gawdat dizem é o que a religião, qualquer delas, refere há milénios: que a vida somos nós, não as nossas coisas.
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oobservador2 · 7 years ago
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Um ministro da economia devia mandar menos
A minha crónica no i de hoje.
Um ministro da economia devia mandar menos
O caso Manuel Pinho, que enquanto ministro da Economia terá favorecido a EDP e o BES, tem sido apontado pelo Bloco de Esquerda e pelo Partido Comunista como um exemplo das ligações perversas entre o Estado e as empresas. Para o BE e o PCP, um alerta (mais um!) contra as empresas privadas que têm em vista o interesse próprio em detrimento do geral.
É interessante, para não dizermos que tem graça, que a interferência do Estado nos negócios por via de um ministro da Economia leve a que se conclua que o problema são os negócios, e não a dita interferência estatal. O problema é que, apesar de absurda, a conclusão do PCP e do BE, que dão ênfase à perversidade intrínseca dos negócios e das empresas privadas (ao gosto pelo lucro), ao invés da interveniência do Estado em assuntos que não são da sua lavra, continua incólume – absurdidade que não choca se nos recordarmos do que o PCP ainda pensa de personagens como Estaline e do gosto disfarçado que o BE nutre por políticas que, em nome de uma liberdade geral e abstrata, limitam a pessoal e concreta.
Assim, o choque não com o atavismo destes dois partidos políticos, mas com a forma como tantas pessoas se deixam iludir por estes. Na verdade, a promiscuidade entre Estado e empresas só existe porque o Estado tem poder para decidir negócios, detém a última palavra relativamente a certos negócios. Não há anjos nesta Terra, como já o dizia, em 1788, James Madison no 51.o ensaio do conhecido “Federalist Papers”: “If men were angels, no government would be necessary. If angels were to govern men, neither external nor internal controls on government would be necessary. In framing a government which is to be administered by men over men, the great difficulty lies in this: you must first enable the government to control the governed; and in the next place oblige it to control itself.”
A exposição de Madison versava sobre a separação de poderes e a forma como cada poder deve limitar os restantes de modo a que o Estado não esmague a liberdade dos cidadãos, não se torne totalitário. Madison escrevia essencialmente sobre liberdade política, pois a económica não era discutida na época como fazemos hoje. Mas a consciência, que pressupõe humildade da nossa parte, de que não somos anjos obriga-nos a compreender que a promiscuidade entre Estado e negócios só pode ser controlada caso o Estado não se envolva.
Até porque a solução preconizada pelo PCP e BE questiona a fórmula de Madison: se o Estado controlar os negócios deixa de haver promiscuidade porque deixam de existir privados. A luta passa para o interior do próprio Estado (não somos anjos) e a separação de poderes começa a ser questionada como em qualquer Estado totalitário.
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oobservador2 · 7 years ago
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A grande mentira
Hoje no i. O brasileiro Rubem Fonseca escreveu, e muito bem, sobre a grande arte. Eu, sem a mesma mestria, sobre a grande mentira.
A grande mentira
O governo aprovou o Plano de Estabilidade 2018-2022. Nele prevê a redução do défice já este ano para 0.7% do PIB e um excedente em 2020. Isto, claro, relativamente ao PIB, que cresce devido ao turismo, que beneficia de uma lei das rendas que a esquerda critica, mas não altera.
A grande pergunta que se devia colocar à esquerda é a seguinte: onde está a espiral recessiva que a austeridade ia provocar? Nunca ouviremos a resposta porque não interessa. Há assuntos demasiado delicados para que se possa falar deles. A dívida pública é outro; não a dívida face ao défice, mas em números. Já o referi neste jornal, mas volto a repeti-lo: o que se passa com a dívida pública que em 2015 era de 231 mil milhões de euros e em fevereiro de 2018 atingiu os 246 mil milhões, mais 2,4 mil milhões que em janeiro deste ano?
Mas isto não interessa. O que temos de ouvir, a narrativa aprovada pela extrema-esquerda, é que a dívida pública vai descer (face ao PIB, que cresce sem o governo perceber como) e que como nós, verdadeiros campeões europeus, povo único à semelhança do tempo da outra senhora, só a Bélgica.
A Bélgica. O PS já nos quis transformar na Suécia, depois na Finlândia, agora na Bélgica. Ora, o que se passou na Bélgica? Em 1993, o país do Tintim tinha uma dívida pública de 303.816 mil milhões de euros, 138,14% do PIB. Em 2005, uma dívida de 366.891 mil milhões de euros, 94,7% do PIB. A dívida desceu? Não. O problema estrutural da dívida foi resolvido? Não. E tal não foi que , em 2015, a dívida totalizou os 482.519 mil milhões de euros, 106% do PIB. A Bélgica reduziu a dívida face ao PIB quando os ventos corriam de feição, mas tudo ficou na mesma quando estes mudaram de sentido.
Já vimos este filme tantas vezes que até enjoa. Compara o que os belgas fizeram com o que nós queremos fazer; o feito com a intenção, a realidade com o sonho e, nesse devaneio, discutem-se aumentos dos salários na função pública, mais dinheiro para a cultura (porquê apenas 1% e não 1,1% do PIB – o que interessa é parecer culto, não honesto) e descida nos impostos, como se os erros do passado não aguardem que o crescimento abrande para que os seus custos se sintam outra vez.
O país vive tão anestesiado com a política monetária do BCE e com o turismo que parece que está tudo bem. A grande mentira é esta. É a mentira que explica por que motivo o Bloco e o PCP criticam o Plano de Estabilidade, mas não o submetem a votação no parlamento sob pena de terem de votar a favor. O silêncio da esquerda perante o que se passa nos hospitais está aqui.
Há um livro de Rubem Fonseca chamado “A Grande Arte”. Neste, a arte era o manejamento da faca, a forma de melhor a utilizar para matar. Vivemos em Portugal, a grande mentira, a forma como melhor se saca do Estado sem se assacarem responsabilidades. A primeira é uma obra de ficção; a segunda, a nossa realidade.
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oobservador2 · 7 years ago
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Vencer o tédio é uma arte
O meu filho passou as férias da Páscoa no meu escritório; foi bom ver uma criança saber vencer o tédio. A minha crónica hoje no i.
Vencer o tédio é uma arte
Por razões várias o meu filho passou as férias da Páscoa no meu escritório. Uma pessoa vê-se perante esta inevitabilidade, planeia o que pode, convence-se de que tudo correrá bem, ao mesmo tempo que receia venha a ser o caos. Prepara-se para tudo, menos para a surpresa do que verdadeiramente acaba por acontecer. Levar o filho para o trabalho por falta de alternativa e acharmos que o miúdo merecia melhor é esquecer o que é ser criança. Que uma criança, o que mais gosta, o que mais valoriza, o que mais deseja, o que mais quer é estar com os pais.
Tomamos o pequeno-almoço, vestimo-nos, eu pego nas minhas coisas, e tu, já tens as tuas? “Sim, e levo também a carteira que hoje pago eu o almoço.” Entramos no elevador, descemos e vamos a pé pela rua, vais a pé pela rua de mão dada à tua mãe, o que uma criança mais deseja na vida, andas enquanto pensas, talvez sobre o que vais fazer, apercebo-me disso quando te ouço: “Papá, posso usar a tua máquina de fotocópias?”
Podes fazer tudo o que quiseres desde que não seja correr e falar alto e interromper quem está a trabalhar. Não peças colo às minhas colegas, embora saibamos que te vais aproximar delas, assim como quem se encosta, lança uma pergunta, deixa um comentário, faz um sorriso, deita uma gargalhada, quem é que não se desarma com uma? e depois se rende, primeiro quando te abraça, depois quando te empoleiras e sobes e lanças mais perguntas. Um sorrisinho, uma gargalhada curta, que já as tens no colo, no teu, quando é o delas que te dão.
Espreitas para ver quem entrou, quem se senta na sala de reuniões e aguarda pelo teu pai. Uns têm um ar sério, outros até parecem felizes, cumprimentam-me, contentes, e sentam-se; uns aceitam um café, outros não, nem sequer um copo de água, que se atiram logo ao trabalho; alguns nem português falam, vêm de outros sítios, de lá longe, para estar aqui perto, mesmo ao lado da sala onde estás agora a escrever, ou a fazer desenhos que fotocopias, sei que o fazes porque ouço, no meio da minha reunião, o barulho da máquina a ligar-se e a puxar o papel que vais receber, deliciado.
O dia acaba, mais um, menos um para que as férias terminem, menos um em que vais gostar de ficar naquele sítio onde se trabalha e se trata de coisas sérias, excepto quando lá estás; mais um para guardar na memória, mais um contigo, mais um inesperado, ao todos foram dez, dez dias inteiros, preenchidos, inesquecíveis. Dias que antevi com preocupação, mas que cedo percebi ser o que mais desejavas.
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oobservador2 · 7 years ago
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A Legacy of Spies
Para a minha crónica de hoje no i pedi ajuda a George Smiley.
A Legacy of Spies*
Diplomatas dos dois lados da nova cortina fazem as malas e regressam a casa. Cansado, George Smiley respira fundo e afunda-se na cadeira. É em Freiburg, no sul da Alemanha, que nos diz adeus, precisamente agora que os espiões do seu tempo regressam.
Há precisamente dez anos leu “The New Cold War”, do jornalista Edward Lucas, e percebeu tudo. Primeiro, a negação; depois, a indiferença; a seguir, a raiva e a desorientação habitual dos governos que não se prepararam para a visão que Putin tem da Rússia. Presentemente, com o envenenamento de um ex-espião russo que trabalhou para os britânicos, ouve os noticiários, comentadores incluídos, a falarem do medo.
Olha pela janela e recorda-se do medo que serve para definir tudo. Sentiu-o em plena Guerra Fria, mas cedo o transformaram em certeza perante a incerteza do novo mundo. Sem URSS, e com os EUA como única potência mundial, a ameaça terrorista fazia isso mesmo: aterrorizava. De acordo com o que se dizia, o medo do tempo de Smiley era seguro, certo, concreto. Houve quem, no mercado livre que conquistava o mundo, no crescimento da China e na redução da pobreza em África, nas novas democracias no leste da Europa, visse uma ameaça mais grave que a que pairava na Guerra Fria; na sua guerra.
Tudo passa menos o medo, que é uma constante, nem damos valor ao que temos excepto quando o perdemos. Verdades eternas que se ignoram. Os que clamaram contra a abertura dos mercados chorarão os efeitos do fecho das fronteiras e do aumento das tarifas aduaneiras. A falta de diálogo conduzirá ao armamento, com dinheiro que podia, devia ser usado noutros domínios. Espiões serão mortos em Londres e em Paris (em Moscovo também), vidas secretas caminharão ao nosso lado, com a pequena grande diferença que são as novas tecnologias.
E enganem-se os que acalentam que o novo equilíbrio mundial porá termo ao terrorismo islâmico. Numa guerra fria, de nervos, tudo vale. Na primeira, EUA e URSS combateram no chamado Terceiro Mundo guerras indiretas com soldados que não eram seus. Nada nos garante que os extremismos islâmicos não sejam utilizados como novas armas para novos ataques numa nova guerra fria sem envolvimento direto dos seus principais intervenientes. Uma certeza podemos ter: George Smiley não terá saudades. Acena-nos da janela, deixando o legado para outro.
*Título do último romance de John le Carré
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oobservador2 · 7 years ago
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A caixa
A minha crónica no i da passada quinta-feira.
A caixa
No meio das minhas arrumações deparei-me com uma caixa no fundo de um armário. É de cartão e suficientemente grande para conter papéis, recortes de jornais e de revistas, jornais inteiros e revistas inteiras também, e outras coisas que quem guarda sabe que segredos se guardam com elas.
Cartas, muitas cartas, com envelopes e selos, cartas que recebi quando adolescente, de uma época em que não havia email nem redes sociais; cartas que podemos ler anos mais tarde, reviver as trocas de ideias, as impressões, as certezas, as promessas, cartas escritas e lidas por quem tudo esperava nesta vida e cujo conteúdo mais ninguém sabe, mais ninguém pode conhecer que não nós - neste caso, eu.
Revistas d’“O Independente” quando “O Independente” era “O Independente”. Uma revista do “Expresso” com o prof. Agostinho da Silva, crónicas do MEC, uma do Vasco Pulido Valente, de 13 de outubro de 1989, com o sugestivo título “O Problema Alemão”, uma edição comemorativa do n.o 1000 do “Expresso” com as mil figuras do séc. xx. Esta regressou ao lugar que merece na estante.
Recortes de artigos sobre BD franco-belga, não tivesse eu cerca de 700 álbuns. Mapas de passeios feitos no passado, de carro, de bicicleta ou a pé. E muitos outros segredos que ficam para mim. Olho para o conteúdo da caixa e pergunto-me o que pensará o meu filho de mim quando vir os recortes do que foi a minha vida antes de ele nascer. Os nossos pais e avós, antes de nós existirmos, são um mistério que a informação adensa ainda mais.
Porque a caixa, esta caixa, a caixa que cada um de nós pode ter arrumada no fundo de qualquer armário é nossa, de mais ninguém, esconde-se, é o nosso retrato, do que fomos e do que quisemos ser. Os nossos sonhos estão lá. Olho para dentro da caixa, para a privacidade que guarda neste tempo em que a vida é devassada pelas redes sociais, em que nos expomos e aos que nos são mais queridos (até as mensagens, as antigas cartas, ficam na posse de alguém virtualmente virtuoso, porque incógnito, perdidas para não mais serem lidas, recordadas, sentidas), e revejo o poder que tínhamos sobre nós.
Com as redes sociais, perdemos a privacidade, o direito ao que é íntimo, pessoal. Mas perdemos também a possibilidade de retomar a posse do que vivemos, de voltar ao que fomos; de recordar. Que é também acordar. Andamos a dormir porque não temos segredos; já não guardamos caixas dentro dos nossos armários.
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oobservador2 · 7 years ago
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Os novos inimigos
A minha crónica hoje no Jornal Económico.
Os novos inimigos
A possibilidade de uma organização no Reino Unido ter tido acesso aos dados pessoais de cerca de 50 milhões de utilizadores do Facebook, e de os ter utilizado para formatar as suas opiniões ajudando Donald Trump a vencer as eleições presidenciais de 2016, puseram o Ocidente alerta.
Esquemas semelhantes poderão também ter beneficiado o Brexit, a Frente Nacional nas presidenciais francesas de 2017 – à saída de um encontro a dois em Versalhes, Macron acusou Putin de ingerência – e, quem sabe, até nas eleições alemãs e italianas. O Facebook sabe tanto de nós que quem tenha acesso à informação que este vai recolhendo pode governar o mundo.
O Facebook sabe o nome dos vossos filhos, netos, pais, avós, onde moram, onde estudam, onde trabalham, o que gostam de comer, que livros leram, filmes viram, viagens fizeram, onde estiveram, com quem, o que pensam do que se passa no vosso país, quais as vossas tendências políticas, em quem votam.
Mas não é apenas o Facebook. Experimentem trocar um e-mail da conta gmail sobre um passeio que estejam a planear, vamos supor, a Bragança e depois abram o Google Maps. É mesmo o centro de Bragança que aparece, não é? Não escapa nada. O que sucedeu por via do Facebook, pode acontecer através da Google. Google que, aliás, com o seu motor de busca determina que empresas podem e devem vingar, podem e devem fracassar. “A Case Against Google” é uma excelente  reportagem do New York Times sobre os riscos que corremos.
Mas o problema não é apenas político. É também económico. A Google recebe tanto dinheiro de publicidade, chega diariamente a cerca de dois mil milhões de pessoas, que nada teme. Armazena informação, sem escrutínio, e nada teme. Como lidar com isto? Além da Rússia e da China, como lidar com estas ameaças, verdadeiras quintas-colunas no seio do Ocidente? Porque o perigo de empresas como Facebook e Google não é apenas o armazenarem informação sobre nós que pode ir parar às mãos da Rússia e da China, não é apenas o não sabermos quem pode mandar nestas empresas daqui a uns anos, mas os monopólios que impuseram e dificultam o sucesso dos que querem ter iniciativas que chocam com os seus interesses.
Como liberal que sou não aprecio as grandes empresas por aí além. O risco de se tornarem poderosas como os Estados sem escrutínio e esmagarem o poder dos cidadãos é elevado. A inovação vem da troca de experiências e conhecimentos. Precisamente o que a Google e o Facebook dificultam. Não esqueçamos que estas duas empresas outrora já foram diminutas e beneficiaram da ausência de monopólios. A destruição criadora do mercado que é a reacção dos consumidores, cidadãos, deve começar por algum lado. Mas, para isso, deve estar informada. Esperemos que sim.
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oobservador2 · 7 years ago
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Deram cabo do futebol
A minha crónica hoje no i.
Deram cabo do futebol
Outro dia, na papelaria onde compro os jornais, um homem dizia para outro que um dirigente de um clube estrangeiro qualquer vinha a Portugal falar com eles. “Eles” não eram o que falava e o que estava a ouvir, mas o Sporting. O mesmo fenómeno se passa entre os benfiquistas e os portistas: a ideia que somos todos um clube. “O Benfica somos todos nós” é uma frase que eu, benfiquista, já ouvi arrepiado. Porque eu não sou o Benfica nem o Benfica sou eu. Eu não sou mais que eu próprio, e o Benfica apenas um clube que aprecio, influenciado pelo meu avô, que nem ia aos jogos. Nada mais.
É importante que as pessoas tenham hobbies. O problema é que o único hobby que a grande maioria tem é o futebol. Não há jardinagem, colecção de selos, leitura, pesca, passeios ao ar livre, nadar na praia ou no rio, ver hóquei em patins, que os valha. Só o futebol. E centenas de milhares de pessoas a pensarem e a discutirem a mesma coisa dá nisto: uma irracionalidade que alimenta dirigentes desportivos que, juntamente com os seus comentadores, precisam do ambiente crispado e podre em que vivem.
O facto de tanta gente gostar de futebol está a estragar o futebol porque são demasiados os que vivem o chamado desporto-rei como se não existisse mais nada na face da Terra. E os poucos que não alinham nesta paródia ficam alheados: não têm conversa possível. Quem não tem uma opinião sobre os emails do Benfica, o equilíbrio mental do Bruno de Carvalho ou o ar de malandro do Pinto da Costa não tem conversa, não tem escapatória. Podem até gostar de futebol, mas isso s�� já não chega.
Um desporto que vingou devido às suas regras lineares, o ser tão simples que não dá azo a discussão: é correr e chutar a bola que o guarda-redes está lá para a tentar apanhar; é o jogo de equipa, a estratégia, o espírito de camaradagem entre os jogadores, a capacidade de puxarem uns pelos outros e não se deixarem afectar pelo mau dia de um. O grupo a apelar ao melhor de cada um, escondendo o pior. Os golos e as grandes defesas, mais os jantares em frente ao televisor, o beber umas cervejas com os amigos enquanto se vê o jogo. Agora, para o conseguir e ter assunto é preciso saber de processos judiciais que eu, jurista, sei que não vale a pena comentar.
Naturalmente, a única forma de alimentar esta loucura é com mais loucura. A discussão vive da discussão, o ódio do ódio. Sem os emails, o Bruno de Carvalho e o Pinto da Costa, os comentadores desportivos ficam com pouco para dizer: foi golo; grande defesa; belíssima jogada; excelente passe; grande treinador. Cinco minutos depois, o programa terminava e os canais noticiosos podiam dar o que se esperava que dessem: notícias. Informação. Mas isso já é pedir muito. Assim como assim, fiquem-se pelos chutos na bola, sff.
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oobservador2 · 7 years ago
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50 anos do Maio de 68: a vitória de Raymond Aron
O meu ensaio no Jornal Económico sobre o Maio de 68.
50 anos do Maio de 68: a vitória de Raymond Aron
Falar do Maio de 68 implica recordar o Movimento de 22 de Março desse ano. Nesse dia, alguns estudantes de extrema-esquerda ocuparam a Universidade de Nanterre num protesto contra a guerra no Vietname. Os seus organizadores, Daniel Cohn-Bendit e Jean-Pierre Duteuil, foram detidos por terem participado na redacção de uma brochura de propaganda que ensinava como preparar cocktails Molotov. As autoridades libertaram-nos pouco depois.
O começo
No primeiro de Maio de 1968, Daniel Cohn-Bendit, que nem sequer era francês, foi a faísca que tornou tudo possível quando, ao serviço da CGT (uma confederação sindical comunista), se envolveu em alguns confrontos. A partir daí assistiu-se ao deflagrar de uma série de manifestações que abalaram a França. Perceber isto, o que está na base dos acontecimentos que marcaram os meses de Maio e Junho de 1968, é indispensável para, 50 anos depois, sermos capazes de analisar friamente o que se passou naqueles dias, o que aconteceu nas décadas seguintes e o que estava planeado mas acabou por não suceder, como alguns idealizavam.
Como também é importante reconhecer que o Maio de 68 não se deu em Maio de 1968 por acaso. Nesse ano, precisamente nesse mesmo mês, passavam 23 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Os jovens de então, esses jovens que encheram as ruas de Paris, não tinham vivido a guerra mas estavam fartos das limitações que esta impunha. A eles, aos pais, a todos. Quem sobrevive ao horror dá graças por estar vivo contentando-se com o que há. O problema não era a falta de ambição – afinal os 30 anos gloriosos deram-se depois da guerra e não mais se repetiram – mas o viver-se de forma contida, sem efusões de maior que o maior era mesmo estar vivo.
A Universidade e as greves
O forte progresso económico francês do pós-guerra levou a um aumento do número de estudantes universitários. Se em 1960 eram 200 mil, já em 1968 atingiam o meio milhão. Um crescimento que resulta não só do aumento da população no seu todo (46 milhões, em 1960 – 51 milhões, 1968), mas também da Universidade ter passado a ser o destino possível de qualquer jovem francês e não apenas dos filhos das classes médias-altas. A estratificação social diluiu-se nas universidades francesas e as expectativas dos estudantes mudaram.
Com o sucesso económico, o Estado precisa de quadros formados nos moldes que se conhecem então: futuros servidores, jovens bem-educados, respeitadores das regras sociais, cumpridores dos deveres que uma sociedade contida precisa. Mas esses jovens que nunca viram a guerra, esses jovens que já não pertencem apenas à classe média-alta que servia o Estado, não estão para aí virados. Querem mais. Houve quem o tenha pressentido, alguns deles professores com um contacto directo com a nova realidade universitária, como Paul Ricoeur e Raymond Aron. Por sinal, dois dos filósofos que ficaram à margem do movimento, que percebendo as críticas dos estudantes não aceitaram o condicionamento político a que estes foram depois submetidos.
O facto da Universidade não estar à altura das aspirações dos jovens foi o pretexto para o acender do rastilho. Cohn-Bendit usou o Vietname, onde a França não estava, utilizou a violência e depois o controlo perdeu-se para gáudio de muitos e desespero do Estado. A Universidade mudou, mas de forma informe, quase sem nexo, com professores vexados, uma democratização e igualitarismo extremos que apenas a desprestigiaram.
A reforma da Universidade, a redução de valores a palavras de ordem que mais não exprimem que emoções, conduziram a insatisfação crescente à necessidade de revolta. À afronta, o Estado respondeu com confronto. Em resultado, os sindicatos solidarizaram-se com os estudantes exigindo mais direitos para os trabalhadores. A 10 de Maio têm início as greves que se vão estendendo a todo o país; greves a que nem os acordos de Grenelle (25 de Maio) põem termo. Dividido, o Partido Comunista, que domina vários sindicatos, acaba por ceder à força das manifestações e as greves continuam por mais alguns dias. A expectativa é que o caos lhe seja favorável.
No entanto, a 30 de Maio, De Gaulle dissolve a Assembleia Nacional e convoca eleições legislativas para 30 de Junho. A vitória da direita é avassaladora com perto de 60% dos votos e 394 dos 485 assentos parlamentares. A crise termina, mas deixa marcas.
“Un homme n’est pas stupide ou intelligent, il est libre ou il n’est pas.”
Uma das consequências do Maio de 68 foi o ataque à cultura. Cultura vista como a percepção, a capacidade de apreensão de algo superior que nos une, nos liga a todos e nos permite continuar capazes de sobreviver aos sobressaltos da história. A partir de 68 a cultura passa a ser encarada como uma nova arma política, um mero instrumento para a revolução. Trata-se da ‘banalização da cultura’, usando a expressão de Alain Finkielkraut (“La Défaite  de la pensée” – Gallimard, 1989). Cultura anunciada por todo o lado mas que não existe, não se delimita e se usa como meio para uma agenda política. Propaganda. O homem já não se define por saber ou não saber, por querer saber ou por não querer saber, por conhecer ou não conhecer, ser inteligente ou estúpido ou ignorante, culto ou inculto, mas apenas e tão-só por ser ou não ser livre. O que é a liberdade depois se verá: alguém entre os que reduziram a cultura a pó estará capacitado para definir o que significa essa  palavra.
É também Finkielkraut, desta vez com Pascal Bruckner, que tece a primeira crítica consistente à ‘revolução sexual’ saída do Maio de 68. Em “Le Nouveaux Désordre Amoureux” (Points), os dois filósofos definem o amor como algo demasiado concreto para se poder revolucionar. O amor não é política, nem tudo pode ser política e nem tudo melhora apenas porque se vira o mundo de pernas para o ar. Os dois acusam a revolução sexual de 68 de ser profundamente machista, uma revolução da qual a mulher é a principal vítima. Um trajecto iniciado há 50 anos e que alguns crêem estar agora a terminar com o #MeToo.
Hoje em dia, a imagem idílica que muitos têm do Maio de 68 já se esfumou. A ideia de uma massa de jovens unidos aos trabalhadores e prontos a derrubar a ordem política estabelecida, com De Gaulle à cabeça, uma revolução dos costumes que acabaria na mudança do regime, já não existe. O mito morreu porque a realidade nunca foi essa. Os estudantes queriam mais liberdade, outra forma de ensino, um diferente acesso às carreiras docentes; queriam fugir a uma contenção comportamental que a guerra que não tinham presenciado impunha, mas não queriam a revolução, virar o mundo do avesso, reduzir o passado a pó para que outros amanhãs cantassem. Esse mito foi uma tentativa da extrema-esquerda, partido comunista incluído, de tentar a sua sorte.
Foi precisamente essa ideia que Raymond Aron combateu. Para Aron era necessário diferenciar a luta dos estudantes da dos extremistas. Disse-o na altura e repetiu mais tarde. Aron não aceitou, nunca poderia aceitar, que se confundisse a política com a Universidade, se reduzisse esta àquela. Também para ele nem tudo era política, nem tudo devia ser mudado apenas porque sim, sem regras, porque as regras, desde que justas, nos protegem da anarquia e do totalitarismo.
Hoje em dia parece fácil dizê-lo mas na época foi um atrevimento. Mesmo no início do anos 80, pouco antes da sua morte, Aron continuou, para estupefacção dos que não entendiam porque não reconhecia o que era na generalidade aceite por todos, a separar os estudantes dos extremistas, a Universidade da Revolução, o país dos revolucionários. A liberdade da anarquia, a cultura da propaganda. E se coragem alguém teve na época foi Aron, que disse sozinho o que pensava, não se escondendo atrás dos estudantes que enchiam as ruas.
O que ontem era turvo hoje vê-se de forma límpida. As palavras vãs esfumaram-se, a inflação e o terrorismo dos anos 70 desiludiram e a recuperação económica dos anos 80 trouxe o fim das utopias. Se Mitterrand foi o melhor que a esquerda saída do Maio de 68 conseguiu produzir, Emmanuel Macron – que chegou a colaborar com o outro crítico do Maio de 68 que foi Paul Ricoeur – é a imagem de uma França que já digeriu os acontecimentos de há 50 anos.
Macron que, à semelhança de Michel Rocard – o socialista moderado derrotado por Mitterrand – foi profundamente marcado pela obra de Ricoeur. Este assumia-se como cristão protestante e, tal como Aron, criticou os excessos do Maio de 68 ao mesmo tempo que apoiava as reivindicações universitárias dos estudantes. 50 anos passados, os filósofos que a França lê e ouve já não são Sartre ou Marcuse, mas Bruckner, Finkielkraut e novamente Aron e Ricoeur. Como Phillipe Douroux, antigo chefe de redacção do Libération, escreveu nesse mesmo jornal em Julho de 2017, a razão estava do lado de Raymond Aron. De certa forma, a França deixou de gritar e passou a ouvir a voz da razoabilidade e da objectividade. O Carnaval, como o filósofo definiu aquele tempo, acabou.
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oobservador2 · 7 years ago
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O PSD e a armadilha do consenso
A minha crónica de hoje no i.
O PSD e a armadilha do consenso
A grande novidade que Rui Rio trouxe para a política nacional foi o regresso do país aos consensos. Ao que parece, Rio pretende que o partido que ganhou as eleições ajude o que as perdeu a governar. Naturalmente, o PS está disponível. Subjacente a este contra-senso há uma forma de estar na política, uma armadilha e uma vítima. A forma de estar na política é a habitual na maioria; a armadilha é do PS; e a vítima, o PSD.
Desde que me conheço que ouço falar da importância dos consensos. Com a honrosa excepção, e não é a excepção que confirma a regra?, de Sá Carneiro, que exigia unanimidade na luta contra o comunismo, o consenso de que se vai falando é inócuo. Discute-se desde que isso não faça mossa e não prejudique ninguém, não produza o efeito pretendido, seja inofensivo.
Um bom exemplo disso mesmo é a descentralização. Atenção que não digo que a descentralização não seja importante. É. Sucede que, como qualquer reforma digna desse nome, vale a pena se for verdadeira, se implicar uma descentralização da receita dos municípios, a capacidade de as autarquias cobrarem os seus impostos diretamente e não por via do Estado central; se passar por uma descentralização fiscal.
Como não é o caso, mesmo que PSD e PS cheguem a acordo, o resultado será irrelevante para a resolução do problema que é a concentração dos poderes em Lisboa. Porque o que interessa, o verdadeiro objectivo quando se discute consensualmente a descentralização, é que o país se entretenha com um tema tão amplo quanto vazio e se esqueça dos seus verdadeiros desafios. A economia vai enganadoramente bem e o momento é o propício para que percamos tempo com questões inofensivas em vez de se prevenir a próxima crise. Esta é a habitual forma de estar na política.
E é precisamente aqui que o PSD corre um sério risco. Como o PS representa o eleitorado que depende inteiramente do Estado, sejam funcionários ou empresários, os socialistas dificilmente perderão votos se tudo fizerem para que os seus eleitores não sejam prejudicados. Ao invés, do PSD espera-se mais porque neste partido votam muitos dos que vivem na economia real. Eleitores que não compreendem por que motivo um partido como o PSD pactua com uma forma de fazer política que não se coaduna com o estado em que o país se encontra. O PS e a extrema-esquerda têm as mãos sujas e tremem só de pensar num PSD com a superioridade moral dos que resgatam o país pela segunda vez. Cair na armadilha do consenso quando o consenso ilude e engana é um erro que o PSD devia evitar a todo o custo.
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oobservador2 · 7 years ago
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A política e a cultura
No i de 1 de Março 2018.
A política e a cultura
Em Outubro, a jornalista Laure Adler, escreveu um pequeno texto na Revue des Deux Mondes sobre as semelhanças entre Macron e Mitterrand. Achei a analogia interessante pois, apesar de todas as diferenças entre os dois – Mitterrand foi presidente aos 65 anos depois de duas tentativas falhadas, Macron com 39 anos e qual meteoro para grande surpresa de todos – desde o princípio também encontrei neles certa semelhanças.
O momento em que a sensação se tornou certeza foi quando Macron, logo depois de eleito, surgiu a caminhar sozinho no Louvre em direcção ao púlpito para falar ao povo. A sua figura, pose, lembrava a de Mitterrand. Seguro de si, andar direito embora diferente da figura rígida que era de De Gaulle, mas acima de tudo consciente do papel que a partir daí desempenhava. Tanto um como outro cedo tomaram consciência que, após eleitos, deixavam de ser apenas Mitterrand e Macron, e tornavam-se presidentes da França.
Porque Adler conviveu com Mitterrand, foi sua conselheira para a cultura, tem mais consciência da parecença entre os dois. Até na percepção da cultura como elemento indispensável para cimentar o prestígio de um chefe de Estado como o francês. Mitterrand preferia a literatura e as artes, Macron a filosofia. Puxar dos galões que se estendem a membros do governo como Édouard Philippe, co-autor de duas obras de ficção publicadas, e Bruno Le Maire, ministro da economia e finanças, o homem que largou os Les Républicains para abraçar a nova geração no poder, já com várias obras publicadas entre elas um romance, “Musique Absolue, une répétition avec Carlos Kleiber” (Gallimard) onde faz renascer o maestro austríaco, que não dava entrevistas, pouco gravava e despachava com respostas secas os mais insistentes.
Mas porque o texto é de Outubro, Macron só era presidente há pouco mais de 4 meses – Mitterrand foi-o durante quase 14 anos –, Adler termina o artigo mais com perguntas que com respostas. Mulher de esquerda que é, apoiou Ségolène Royal em 2007, tem algumas dúvidas relativamente ao actual presidente francês. É que, ao contrário do socialista, Macron não parece querer deixar a sua marca na cidade de Paris, nem em investir 1% do PIB na Cultura. É verdade que os tempos são outros, e neste ponto concreto ainda bem porque a ideia é atroz, mas para certos sectores mais estatizantes levanta dúvidas sobre a veracidade cultural de Macron. Como se ser culto equivalesse a gastar.
Por cá temos um presidente que gosta de ler e está bem assessorado na área cultural. No referido artigo Laure Adler refere que a forma como Mitterrand apreciava a pintura e os livros foi determinante no modo como agiu politicamente. Talvez, o gosto pela leitura de Marcelo tenha ajudado na resposta humana que teve no drama dos incêndios. O que é certo é que esta perspectiva diz-nos muito sobre a importância da cultura: mais que educar um povo com políticas, sempre dúbias, o gosto pelas artes, quaisquer que estas sejam, elevam-nos. Civilizam-nos. A apreciação do belo pode ajudar a decidir em consciência.    
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oobservador2 · 7 years ago
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O que eu te ensino
Para o meu filho. No ‘i’ de 15 de Fevereiro 2018.
O que eu te ensino
Nevava, mas também estava sol porque nevava aquela neve que não sabemos se cai do céu se dos telhados. Falavas de um boneco de neve e de mais outro boneco de neve, e eu a querer mostrar-te que há muito mais que bonecos de neve na neve. Existem montanhas cujos cimos se veem lá de cima e para onde te quero levar.
Não é bem cansaço, nem medo, ou a palavra mais simpática que usamos para o chamar, que é receio. Nada disso. Apreensão, é mais isso, que com medo estou eu com a loucura de te ter aqui. Levo pela mão um miúdo apreensivo com umas pesadas botas calçadas, aqui dizemos postas, mas não deixam de ser botas, e ainda por cima pesadas, mais uns esquis. Esses levo-os eu para ser mais fácil, e aí vamos nós por aí acima sentados em cadeiras, aqui dizemos cadeirinhas, sei lá eu porquê. E aí vamos nós.
Deixo-te na aula com um professor que te ensina. E tu, não me ensinas? Não disseste que esquiavas muito bem? Não tenho resposta. Como é que um pai explica a um filho que, apesar de saber fazer, não sabe ensinar? Mas tu surpreendes como sempre: sem palavras, nada, apenas a aceitação do que tem de ser, que tem muita força – isso, os dois já sabemos –, e dizes até já. Até já.
É depois, no fim dessa semana, que te posso então mostrar aquele meu outro mundo de que te falava e que não percebias. Um que pode ter bonecos de neve, mas também muito mais que isso. São montanhas com neve com vista para outras montanhas brancas com neve e um vento que nos bate na cara porque nos quer dizer que estamos ali, mas também que estamos a descer, que deslizamos, que viramos ora para a esquerda ora para a direita; trava, trava, não te esqueças de travar, curva para controlares a velocidade; assim subimos e descemos quando quisermos, consegues ir lá acima deslumbrar-te com a vista quando te apetecer, nunca te deslumbres com as pessoas, controlas a montanha, impedes o poder dos outros sobre ti, nada te impossibilita do quer que seja e, com o tempo, nada mais te causará apreensão. Isso sei eu ensinar-te.
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oobservador2 · 7 years ago
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O meu muro
A minha crónica no i.
O meu muro
Um dos meus sítios preferidos é junto ao muro da minha primeira escola que sobe à medida que a rua desce. Não sei bem porquê, o local não tem nada de especial, mas quando era rapaz e por lá andava já gostava dele. É numa rua com muito sol e à frente do muro, que desde que me lembro esteve sempre pintado de amarelo, há um prédio com uma entrada para um armazém que tem um candeeiro de iluminação pública posto mesmo no meio de uma porta de correr que, talvez por isso, raramente vi aberta. Logo a seguir existem dois jardins que pertencem a duas moradias, cada uma do seu lado da rua.
Um dos jardins de uma das moradias tem muitas árvores e muitas sombras. Quando era mais pequeno o meu filho dizia que queria viver naquela casa no meio da floresta. Na verdade, o muro naquela rua cheia de luz, frente a um portão de um armazém que raramente se abre porque há um candeeiro no meio, tem sombras de árvores.
E este muro da minha escola de quando miúdo aparece em alguns livros. Não é que verdadeiramente apareça porque verdadeiramente nunca apareceu em lado algum que não fosse naquele sítio, mas aparece porque na minha imaginação há histórias que li que se passaram ali. Sem saber porquê personagens cujas vidas acompanhei durante os dias que duraram a leitura dos livros dentro dos quais elas estavam, viviam ali ou passavam por ali ou trabalhavam naquele lugar.
Foi o caso de Mr. Chips. Aquele professor, aquele professor benevolente criado por James Hilton, só podia conhecer o meu muro e viver ali defronte, de olho na escola onde ensinava e onde todos os alunos gostavam dele. Li o 'Goodbye Mr. Chips' com 15 anos e sem que nada tivesse feito por isso a imagem do muro, a imagem daquela rua por onde naquela altura já não passava, impôs-se na minha imaginação ao ponto de ser a que ainda hoje guardo quando me lembro ou folheio as folhas amarelecidas do livro de Hilton.  
Mas foi também com 'Souvenirs' de David Foenkinos que ele se impôs novamente, muitos, muitos anos mais tarde. Ou não tivesse sido através da grade daquele muro, naquela mesma rua, com aquela luz e aquelas sombras daquelas árvores, que a avô do narrador, ainda miúda, se despediu dos seus colegas quando fugiu da guerra com os pais; foi também a imagem que me ficou do lar de idosos de onde ela escapou já velhota, e até o prédio em frente da escola (o tal onde está o armazém) o hotel onde trabalha o narrador que nos conta as recordações que Foenkinos escreveu. Ele nunca ali esteve, mas de certa forma as personagens que criou passaram por lá.
É através de imagens deste género, de muros assim, que um leitor prolonga os escritores.
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oobservador2 · 7 years ago
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#MeToo e os limites para o cinismo
Quinta-feira passada no i.
#MeToo e os limites para o cinismo
Samantha Geimer tinha 13 anos quando foi violada por Roman Polanski. Foi em 1977. Quarenta anos antes do movimento #MeToo, que nas redes sociais tem revelado casos de abusos sexuais em que as vítimas são mulheres. Ora, Samantha Geimer surpreendeu tudo e todos quando, na quinta-feira passada, explicou ao “Le Monde” porque defendeu a carta aberta de Catherine Deneuve, publicada naquele mesmo jornal, às mulheres (e homens) vítimas de abusos por parte de homens.
Nessa carta, Deneuve criticava a caça às bruxas em que se tornou o movimento #MeToo, com acusações muitas vezes sem provas, e no qual se equiparam casos de violação a meros flirts ou outros comportamentos que não tornam necessariamente uma mulher (ou um homem) uma vítima pois, nas situações referidas pelas pretensas vítimas, houve a possibilidade de dizer não.
Samantha Geimer alerta ainda que o #MeToo está a tornar as mulheres vítimas e não pessoas fortes, capazes de se defenderem, que é a única forma de conseguirem viver em igualdade com os homens. O que Geimer também diz é que, ao equiparar a gravidade de diferentes tipos de abusos sexuais, muitas das acusações do #MeToo são ofensivas para as mulheres que sofreram verdadeiros abusos sexuais. Na verdade, uma mulher que foi violada não se encontra na mesma situação da que ouviu um piropo ou da que, por livre vontade, se sujeitou a algo para conseguir um papel num filme ou subir na carreira.
Até porque se houve (e há) mulheres que se sujeitaram a tal por falta de alternativa, também houve (e há) quem utilizasse tal estratagema para vingar na profissão. Não cabe aqui fazer juízos de valor – as situações são todas diferentes -, mas é legítimo que se pergunte quantas pessoas (mulheres, mas também homens) para quem uma noite com alguém não foi inoportuna e hoje estão na primeira fila das vítimas? Como não se sentirão as mulheres que sofreram verdadeiros abusos sexuais vendo o seu sofrimento ser equiparado com comportamentos que as ferem na sua dignidade não só de mulheres, mas de pessoas?
Porque o que está em causa no #MeToo é, além da meritória oportunidade de se pôr um ponto final na forma abusiva como alguns homens tratam as mulheres, não só uma caça às bruxas, um apelo ao conservadorismo mais sombrio, mas também uma falta de respeito pelas mulheres que sofreram nas mãos de homens. Umas sofreram; outras, em seu nome, ficam com os louros fazendo-se de vítimas. O que Deneuve e Geimer nos vêm dizer é que há limites para o cinismo.
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oobservador2 · 7 years ago
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Os risco de Rui Rio
A minha crónica no i.
O risco de Rui Rio
Ao que parece Rui Rio está disponível para entendimentos com o PS. Se tal suceder o PSD passará a concorrer com o BE, o PCP e, possivelmente, também o CDS, na aprovação das políticas no parlamento. A confirmar-se, a decisão de Rui Rio apresenta uma razão de ser e representa um risco.
A razão de ser prende-se com a revolução partidária que tem lugar em alguns países, nomeadamente, Espanha e França. Ainda esta semana uma sondagem colocou pela primeira vez os Ciudadanos à frente do PP e do PSOE. Há menos de um ano Emmanuel Macron foi eleito presidente da França sem o apoio dos partidos tradicionais e, um mês depois, o seu partido, La République en marche!, venceu as legislativas.
Há quem, como eu, considere que o PSD deve ser mais liberal, tornar-se numa verdadeira alternativa ao socialismo, em vez de uma peça na mera rotação do poder em prol dos favores estatais. Ao contrário, Rui Rio prefere um partido de menor carga ideológica porque vê que essa é também a marca que distingue os Ciudadanos e o fenómeno Macron que pertencem ao centro político.
O raciocínio de Rio parece também ter em conta o Portugal ser um país avesso à mudança. Na verdade, as possibilidades de o PSD perder o lugar para o CDS são mínimas. O CDS não tem condições para substituir o PSD, não só porque tem tantos anos e vícios como o PSD, como a sua veia ideológica nunca existiu, ou quando existiu foi confusa.
Mas representa também um risco. E o maior é que, caso Rio confirme a sua estratégia de viabilizar uma governação socialista não dependente da extrema-esquerda, o PSD perde contacto com o país a longo prazo. Preso às negociações das medidas de efeito imediato, o PSD perde discurso, legitimidade, para se afirmar mais tarde quando a falta de reformas, os efeitos perversos de uma governação que se cinge a aproveitar a conjuntura internacional, se fizerem sentir porque essa mesma conjuntura se alterou.
Nessa altura, algo como Macron ou os Cuidadanos terá todas as condições para surgir e se impôr na política portuguesa, mas dificilmente o PSD. Porque nessa altura o país precisará de gente sem mácula, liberta dos arranjos partidários para que um partido que não venceu governe. Uma força política deste género, atenta aos reais problemas das pessoas, aos verdadeiros desafios do país, sem passado, mesmo que sem grande carga ideológica pode pôr em causa a predominância do PSD. Por muito que se perceba a razão de ser da sua estratégia esta comporta um grande risco para Rui Rio.
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oobservador2 · 7 years ago
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Viver sem dívida: um salto civilizacional
Já me disseram que sou um chato por estar sempre a falar da dívida pública. A tertúlia no Grémio Literário com Maria de Fátima Bonifácio e Rui Ramos é sobre isso (falarei sobre isso noutra oportunidade, mas podem já tomar nota: 26 de Janeiro, às 19.30). Faço-o porque este é o assunto mais premente dos nossos dias.
Se uma pessoa tem dívidas e morre, os seus herdeiros (filhos, netos incluídos) podem renunciar à herança. Até podia estar em causa um grande património, mas se a dívida for colossal e anular esse património têm sempre escapatória.
Com o Estado isso não sucede. Se o Estado (nós) vive com dívidas, os nossos filhos e netos não podem renunciar a ela, não podem renunciar à sua herança. Ficam de mãos e pés atados. Viver com dívida é uma ofensa e meter na cabeça que o Estado não se pode endividar como se não houvesse amanhã é um salto civilizacional que o país, no seu todo, tem de dar. Se não o fizer, a única forma dos nossos filhos e netos terão de escapar ao que lhes deixamos é ir embora. Isso será injusto para eles e significará o fim do país.
Se quiserem podemos pôr o assunto nos termos das questões ambientais.
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