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Arquivo pessoal. Tiago Martins de Morais @mon.ge_
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notassobreliteratura · 5 years ago
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Os Demônios - Dostoiévski
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Foi um fato que gerou esse romance do Dostoiévski. Em novembro de 1869, um quinteto de membros de uma organização política clandestina de esquerda, a Justiça Sumária do Povo, executou um estudante chamado I. I. Ivanov que, por ter passado a divergir da organização, resolveu se desligar do grupo. O comandante desse quinteto, Nietcháiev, ganhara, na época, a simpatia de Bakúnin e recebera dele a incumbência de organizar, na Rússia, uma sociedade revolucionária para divulgar o programa e os ideais bakunianos. Nietcháiev, no entanto, ao voltar para a Rússia, abusa de seu “poder” e dirige os vários quintetos que forma com autoritarismo.
Segundo o posfácio do Paulo Bezerra – presente na edição que li da editora 34 – o assassinato gerou bastante comoção na Rússia da época e essa comoção se alastrou pela Europa Ocidental. Era por entre alguns países dessa região (Alemanha, França, Suíça) que o Dostoiévski errava nos fins dos anos 60. Devido à pobreza e às dívidas, para fugir dos credores, viveu alguns anos exilado de sua terra natal. Ao se colocar a par do assassinato, parece que abandou outros projetos que tinha para acompanhar de perto o desenvolvimento do caso e se sentiu, então, impelido a escrever um romance no qual ofereceria o seu molde de interpretação ao contexto sócio-histórico da Rússia. Ele não dedica, portanto, o romance ao caso isolado do assassinato, mas se utiliza do episódio do crime para mirar a situação política mais ampla.
O fato do crime em particular interessa a Dostoiévski porque ele mesmo fez parte de um grupo clandestino de esquerda, isso nos anos de 1840. Foi por ter participado do círculo socialista de Pietrachévski que ele foi, em 1849, condenado à morte e que depois teve sua pena inicial modificada para dez anos de trabalhos forçados na Sibéria. Gostaria de ler a biografia que o Joseph Frank fez sobre ele para me inteirar de detalhes das práticas desse grupo. 
Mas no final da década de 1860 e início da década de 1870, os tempos são outros e as células políticas clandestinas começaram a se disseminar com muito mais intensidade pela Rússia. Algumas dessas células realizavam atividades entendidas como “terroristas”. Um exemplo dessas ações foi o episódio no qual uma estudante chamada D. V. Karakózova matou a tiros o czar Alexandre II em 4 de abril de 1866. O assassinato do czar e mais o assassinato do estudante deixam Dostoiévski em profunda tensão e reflexão sobre as práticas desses grupos. Ele se pergunta, acima de tudo, sobre o destino dos movimentos de esquerda na Rússia, e o romance “Os Demônios” é fruto dessa preocupação e, também, uma dura crítica.
Seu olhar pessoal, em relação a esses movimentos, era ácido. Isso percebi nas cartas que ele trocou com amigos em períodos próximos à escrita do romance. Em carta enviada a Apollon Nikolaievitch Maikov, poeta e grande amigo do autor, em 1867, por exemplo, ele escreve, em relação aos socialistas, que chama, por vezes, de liberais:
“Já ouviu até hoje uma ideia sensata de algum de nossos liberais? Não sabem fazer mais que mostrar os dentes em qualquer ocasião; é algo que impressiona muito os meninos em idade escolar” [p. 131 de Dostoiévski – Correspondências. Editora 8Inverso].
Em outra carta, de 1870, escrita ao mesmo Maikov, escreve que, quanto ao romance que está produzindo, no caso o próprio Os Demônios, quer “falar abertamente neste livro, sem medo das críticas das novas gerações” [p. 188]. Para ele, a Rússia vive um momento de profundo abalo da capacidade de julgamento crítico.
O que me chamou principalmente a atenção no romance - com um olhar interessado na presença do pensamento autoritário em grupos de revolucionários - é o fato de que o autor se debruça justamente sobre o surgimento de práticas totalitárias em meio a esses grupos e isso já em 1871. Também me chama a atenção o fato de que o autor está construindo uma crítica ao próprio espectro político com o qual se identifica: a esquerda. Dostoiévski deixou de participar de grupos revolucionários e se tornou um grande questionador dos liberais socialistas. Não acreditava em suas ideias, em sua retórica, em seu niilismo. No entanto, nas cartas do autor, percebi que suas concepções políticas continuam aliadas à margem esquerda, isso se entendermos esquerda como a abordagem política que considera, acima de tudo, a redução das desigualdades sociais. A partir disso, Os Demônios pode ser entendido como um grande alerta ao totalitarismo. Mas ele certamente é muitas coisas para além disso. 
É um romance em que a incrível polifonia do Dostoiévski fica extremamente clara. São muitas vozes no livro, discursos diversos que representam os muitos eixos de ação e de pensamento que circulavam pelo país naquele momento histórico. É um texto bastante complexo. Para o colocar a luz de seu contexto histórico seria necessário um profundo estudo sobre a Rússia da época. Busquei encontrar algumas coisas, especialmente as concepções políticas do autor, nas cartas que ele trocava com amigos durante a virada da década de 1860 para 1870. Inicialmente, com algum estranhamento, percebi que ele possuía alguns valores e crenças que hoje poderíamos entender como conservadoras. No entanto, analisados à luz daquele momento histórico, não creio que a análise seja de tão simplória conclusão. O Dostoiévski, por exemplo, tinha um forte amor à pátria e aí já há uma cisão entre ele e os niilistas que pregavam a destruição de todos os valores tradicionais como pátria, família e religião. Além disso, como se sabe, ele foi um homem profundamente cristão (ao mesmo tempo que um grande crítico do catolicismo) e sua complexa relação com a religião não é algo que caiba aqui ou sobre o qual eu tenha condições de escrever agora, mas é um tema que me interessa muito. Há de se considerar que ele, quando estava preso, ficou anos e anos lendo e relendo os Evangelhos, pois parece que a Bíblia era o único livro permitido. O Aliócha dos Irmãos Karamázov, que eu preciso reler, traz muito das concepções religiosas do autor e é um personagem incrivelmente ético e bondoso. Enfim, em relação ao nacionalismo do autor, num primeiro momento, pensei que isto estivesse em diálogo com a questão da formação dos estados nacionais, mas lendo um pouco mais atentamente suas cartas, percebi que talvez o exílio forçado a que ele se submeteu, vivendo anos vagando pela Europa sem poder voltar para seu país, forjaram nele uma espécie de sentimento patriótico. Além disso, Dostoiévski criticava com afinco as pessoas que iam para a Europa e passavam a adorar e a adotar os costumes europeus, entendendo o povo russo como bárbaros e pouco civilizados. O personagem de Karmazinóv, um escritor afetado que seria uma espécie de sátira a Ivan Turguiêniev, representa essa subserviência à Europa, especialmente à Alemanha. Outros temas aparecem indiretamente no romance como a questão da lei que promulgou o fim da servidão em 1861. É um texto altamente em diálogo com seu tempo. Um tratado político. Lênin teria lido Os Demônios quatro vezes considerando-o repulsivo e colossal. Já Stálin baniu tanto Os Demônios, quanto O Idiota quanto Os Irmãos Karamazov da Rússia. Dostoiévski foi considerado, por muitas décadas, um autor perigoso a ser lido pelos trabalhadores.
No calor da leitura concluída – vamos ver se esse sentimento se estende ao longo dos anos – Os Demônios fica sendo um dos melhores livros que já li. Certamente é um dos melhores do Dostoiévski. Mesmo que às vezes pareça um pouco panfletário, é um livro incrivelmente bem construído. A primeira parte é muito engraçada, cheia de ironias às vaidades e às futilidades das classes altas russas. Todos os personagens são magníficos e altamente complexos, nunca são apenas o que se parecem, por mais fúteis que sejam e mesmo os mais densos em nível filosófico e psicológico são capazes das ações mais toscas.
O romance, enfim, me colocou diante de uma crucial questão política: poderia a certeza de que estamos do lado certo, a certeza de que estamos do lado dos “bons��, aplastar o nosso senso crítico, a nossa capacidade de análise e de autoanálise? Se estamos do lado dos bons, então infere-se que não podemos incorrer na ignorância, na superficialidade, no antiético, no manipulador, no desejo de poder, no desumano, na censura e no anti-pensamento? Quer dizer, com olhar lá no passado e cá no presente: estar no lado esquerdo da ação política nos isenta automaticamente de comportamentos autoritários, de condutas que, enfim, podem trazer à luz o mais vil de que o humano é capaz?
Uma vez que, para mim, a literatura é uma ferramenta de crítica da sociedade, inevitavelmente fiz paralelos de um dos questionamentos mais fortes do romance (a acusação da fragilidade do pensamento crítico dos jovens revolucionários) com o momento presente, com a igualmente atual falta de senso crítico entre jovens e adultos que se colocam à margem esquerda e que às vezes me parece que apenas repetem ideias prontas simplesmente porque elas lhes parecem “progressistas”, “novas”, “desconstruídas” e que rosnam, que gritam, que acusam. Por repetirem ideias sobre as quais não se dedicaram com olhar atento, reproduzem discursos tortos. Isso é comum no meio acadêmico com os filósofos pós-estruturalistas e comum, de forma geral, em relação a pensamentos que andam circulando com força pela sociedade.  
Um exemplo particular que me ocorre - e que vivenciei já - em relação à assimilação acrítica de ideias se refere ao binarismo com o qual muita gente se utiliza do conceito de “lugar de fala”. É claro que a vivência de indivíduos pertencentes a grupos historicamente subalternizados dá acesso a uma dimensão do social e de seus conflitos que nenhuma abordagem teórica de pessoas sem essa vivência poderia nos dar. Fica claro, hoje, que não é mais possível discutir seriamente o social sem levar em conta as formulações de indivíduos que foram silenciados. No entanto, o uso rosnante e raivoso desse conceito, apaixonado e acrítico, faz com que muitos desqualifiquem previamente qualquer intervenção, no debate público, por parte de pessoas que não pertencem a grupos subalternizados. Quer dizer, me pergunto, a capacidade ética e crítica que um indivíduo pode desenvolver no sentido de pensar e agir para além de seus próprios interesses não é levada em conta mais? Isso não é mais uma possibilidade? Enfim, a ideia de lugar de fala é uma ferramenta crítica incrível, mas que pode ser utilizada de maneira acrítica e usada muitas vezes para calar e para censurar.
I.
A história de Os Demônios se desenvolve no seio de uma pequena e pacata cidade do interior da Rússia, e o narrador do romance se coloca como uma espécie de cronista social. Ele vive na cidade e frequenta, de forma geral, a chamada alta sociedade. É amigo íntimo de um dos personagens principais, Stiepan Trofímovitch. O cronista-narrador tem uma capacidade bastante aguçada para enxergar o comportamento humano e para enxergar a extrema vaidade e superficialidade do comportamento das classes altas, mesmo circulando entre elas ou talvez justamente por isso. O narrador relata, e daí o seu romance-crônica, os acontecimentos estranhos e peculiares que possuíram a cidade em que vive.
De forma geral, os personagens de Os Demônios [e são muitos!] podem ser divididos entre aqueles que pertencem à “camada superior” da sociedade e aqueles que não pertencem. A fissura que existe entre essas duas camadas é mostrada com naturalidade. É com naturalidade, por exemplo, que o narrador descreve a diferença na maneira como pobres e ricos se protegem do frio, na maneira como pobres e ricos se alimentam. Essa fissura não está ali por acaso como se pode julgar por outros romances do Dostoiévski que sempre fazem questão de mostrar a desigualdade social absurda da Rússia. Aliás, a naturalidade com a qual o cronista olha para a divisão entre ricos e pobres pode falar muito sobre como essa divisão foi naturalizada, assimilada como normal.
Um núcleo específico dos personagens do romance – a maioria pobres funcionários públicos ou estudantes – engajam-se às células revolucionárias russas da década de 1860. Eles são descritos como indivíduos apaixonados que se atiraram apressadamente a algumas ideias consideradas “progressistas”. No entanto, a falta de capacidade crítica ao aderir a essas ideias é responsável, no livro, por atrocidades.
É terrivelmente assustador ler sobre as pessoas, tanto das classes baixas quanto das classes altas, aderindo às chamadas “novas ideias” somente para não se sentirem antiquadas. Inclusive, circulava na Rússia, no tempo de ação do romance, a expressão nóvie liudi, os novos, para indicar as pessoas progressistas ou representantes dos novos modos de pensar. Interessante observar, de hoje, como, no romance, está presente uma lógica binária. Ou se era novo ou se era antiquado e era muito fácil que os jovens acusassem (rosnando) outras pessoas de antiquadas apenas ao ouvir uma frase ou uma palavra que superficialmente indicasse que o interlocutor pertencia ao grupo oposto.
Tanto no seio dos grupos revolucionários quanto no seio das classes altas fica claro que as pessoas aderem com fervor às novas ideias muito mais movidos pelo desejo de não parecem obsoletos ou desinformados, para se sentirem na crista da onda da inteligência política do que propriamente porque analisaram e ruminaram e leram e tresleram essas chamadas novas ideias. Me parece que desse mal sofre-se hoje no presente brasileiro tanto do lado esquerdo quanto do lado direito. Não seria a urgência um grande estímulo a superficialidade do pensamento? 
Como escreve Paulo Bezerra, no posfácio, voltando os olhos para o século XIX:
“ideias grandiosas e generosas, uma vez manipuladas por indivíduos sem consistência cultural nem princípios éticos, podem se transformar na sua negação imediata, assim como a utopia da liberdade, da igualdade e da felicidade do homem pode degenerar na sua negação, no horror, na morte, na destruição. Ideias grandiosas não podem ser geridas por mentes pequenas”.
No romance, no episódio em que o quinteto assassina o estudante dissidente – que aqui no livro se chama Chatóv e é um personagem interessantíssimo e pelo qual é muito difícil não se encantar – é marcante a reação de um dos elementos dessa célula revolucionária logo após ajudar no assassinato. Tomado pelo choque, Virguinski se dá conta daquilo que fez, daquilo que foi levado a fazer pela “causa”.
“Quando as pedras foram amarradas ao cadáver e Piotr Stiepánovitch se levantou, Virguinski foi subitamente tomado de um pequeno tremor por todo o corpo, ergueu os braços e exclamou amargurado a plenos pulmões:
- Não era nada disso! Não era nada disso!”.
Essa cena diz muito especialmente do posicionamento do Dostoiévski. São dois os crimes políticos movimentados por células revolucionárias que o rondam no momento da escrita do romance. O assassinato do czar, em 1866, e o assassinato do estudante I. I. Ivanóv, em 1869. E aqui é como se Dostoiévski estivesse nos dizendo, ao menos é a minha leitura: cuidado, muito cuidado com a ideia de que qualquer meio vale para chegarmos a um fim específico, pode ser que descubramos tarde demais que “não era nada disso”. É arrepiante – se pensarmos em uma leitura feita hoje, no século XXI, – o quanto podemos enxergar aqui dos demônios que assolaram o século XX e em se tratando de ficar pela terra do autor, o quanto não se vislumbrou – para não dizer que ele profetizou – o stalinismo.
II.
Piotr Stiepánovitch, no romance, é o cabeça do grupo, o organizador do quinteto. Um lunático e um dos personagens mais nojentos com os quais me deparei. Piotr tem sede de poder e nada mais. Essa sede por poder é disfarçada sob a máscara da causa revolucionária. Ligado à Internacional Socialista, ele dissemina ideias revolucionárias pela via de panfletos, organiza grupos e nesses grupos busca criar quintetos que estejam mais firmemente dedicados “à causa”, que nunca fica tão exatamente clara qual seja. É a chegada nele na pequena cidade na qual se passa o romance que desperta todos os demônios. Seu objetivo, como ele confessa a Nikolai Vsievolódovith - também chamado de Stavróguin e que é um dos personagens mais interessantes do Dostoiévski – é:
“Mais uns grupos assim e terei passaportes e dinheiro em toda parte; pelo menos isso, não? Pelo menos isso. E ainda terei esconderijos seguros [...]”.
Para submeter esses grupos de pessoas ao seu poder, Piotr Stiepanóvich se utiliza dos mais ardilosos truques de retórica e manipulação. É ele quem estimula, no quinteto que criou, a necessidade de matarem Chatóv. Ele mente que Chatóv, por ter se desligado do grupo, irá delatá-los e que todos eles irão para a Sibéria. Em nota de rodapé da editora 34, há a informação de que A. K. Kuznietzov, um dos membros do grupo de Nietcháiev que participou do assassinato de Ivanov, escreveu que:
“Não havia nenhum fundamento sério para o ato terrorista contra Ivanov; Nietcháiev precisava dele para nos prender mais fortemente com sangue”.
Em outro diálogo com Stavróguin ele expõe suas práticas de manipulação. Para ele, a força mais importante para manipular grupos reside no fato de que a maioria das pessoas tem vergonha da própria opinião! Existe aqui, para mim, um clamor óbvio, quase panfletário na direção da importância social, da importância democrática do desenvolvimento da crítica.
“A primeira coisa que surte um efeito terrível é o uniforme. Não há nada mais forte do que um uniforme. […]. A força seguinte é o sentimentalismo, é claro. Sabe, entre nós o socialismo vem se difundindo predominantemente por sentimentalismo. […]. Por fim a força mais importante – o cimento que liga tudo – é a vergonha da própria opinião. Isso sim é que é força. E de quem foi essa obra, quem foi essa 'gentil' criatura que se deu ao trabalho de não deixar uma única ideia própria na cabeça de ninguém?! Acham uma vergonha ter ideia própria” [p. 374-375].  
Em outro diálogo digno de nota, Piotr diz para Stavróguin que concorda com as ideias de Chigalióv, um dos membros do grande grupo que expõe um sistema político como solução para a humanidade. Aliás, é muito engraçada e irônica a cena na qual Chigalióv, em uma reunião revolucionária, levanta-se com seu caderno no qual escreveu a grande utopia que deverá ser aplicada à humanidade e, basicamente, quem não concordar com essas novas leis deverá ser eliminado. Já teria Dostoiévski, antecipadamente, derrubado e desconstruído a imposição das utopias ou seria apenas o registro de uma cena comum entre esses grupos à época?  
“No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos taletos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas. Os talentos superiores não podem deixar de ser déspotas, e sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o chigaliovismo. […] Não precisamo de educação, chega de ciência! Já sem a ciência há material suficiente para mim anos, mas precisamos organizar a obediência. No mundo só falta uma coisa: obediência. A sede de educação já é uma sede aristocrática”. (p. 407)
III.
São incríveis as cenas da parte II do livro que se passam no prédio de Filipóv. Um prédio decadente localizado em uma ala pobre da cidade. Nesse prédio vivem Chatóv, Kirillóv e o bêbado capitão Lebiádkin com sua irmã coxa, a Maria Timofêivna. Personagens que se grudam em ti e se tornam inesquecíveis. É no prédio de Fillipóv, na sala do apartamento de Chatóv e na sala do galpão de Kiríllov que acontecem as melhores conversas do livro. Discussões filosóficas e acaloradas uma vez que especialmente Chatóv e Kirílov são talvez os personagens que se dedicam com mais vigor às suas ideias e à construção de uma forma crítica de pensar o mundo, o que não quer dizer que seus pensamentos sejam de fato bem-elaborados. Kiríllov, por exemplo, é um personagem que decide se matar para provar o seu livre-arbítrio e para provar que Deus não existe. Ele, pelo que li, é outra voz-sintoma dos acontecimentos sociais da época. Os suicídios entre jovens na Rússia da década de 1860 eram muito comuns. Mas, enfim, apesar das ideias apaixonadas e completamente bagunçadas e por vezes adolescentes, o movimento de investigação dessas figuras e a intensidade com que mergulham em discussões gera os melhores momentos do livro. Aliás, o personagem de Chatóv é responsável por tiradas incríveis, como:
“Povo nenhum, nenhum povo se organizou até hoje sobre os princípios da razão e da ciência; não houve uma única vez semelhante exemplo, a não ser por um instante, por tolice. O socialismo, por sua essência, já deve ser um ateísmo, precisamente porque proclamou desde o início que é uma instituição ateia e pretende organizar-se exclusivamente sobre os princípios da ciência e da razão. A razão e a ciência, hoje e desde o início dos séculos, sempre desempenharam apenas uma função secundária e auxiliar; e assim será até a consumação dos séculos. Os povos se constituem e são movidos por outras força que impele e domina, mas cuja origem é desconhecida e inexplicável. Essa força é a força do desejo insaciável de ir até o fim e que ao mesmo tempo nega o fim. É a força da confirmação constante e incansável do ser e da negação da morte. O espírito da vida, como dizem as Escrituras, são “rios de água viva” com cujo esgotamento o Apocalipse tanto ameaça”. (Chatóv)
“Deixe de lado o seu tom e assuma um tom humano. Fale ao menos uma vez na vida com voz humana” (Chatóv)
“Ainda não existiu, nunca, um povo sem religião, ou seja, sem um conceito de bem e de mal. Cada povo tem seu próprio conceito de bem e de mal e seu próprio bem e mal” (Chatóv).
Em outro diálogo, dessa vez entre Kiríllov e Stavróguin:
“- Quando o homem em seu todo atingir a felicidade, não haverá mais tempo, por que eu não sei. É uma ideia muito verdadeira.
- E onde irão escondê-lo?
- Não irão escondê-lo em lugar nenhum. O tempo não é um objeto mas uma ideia. Vai extinguir-se na mente”. [p. 238]
IV.
O romance, de quase 700 páginas, tem inúmeros eixos. Apesar de o contexto principal (ou o contexto que mais me interessou) ser o dos grupos revolucionários, da disseminação de suas ideias e das consequências terríveis de suas ações, são muitos oceanos em que mergulhar. Como o próprio autor fala em uma carta, sempre que escreve um romance ele cria várias histórias. Ele via isso como uma falha, eu entendo como uma riqueza.
“Sim, esse sempre foi e será meu maior tormento – não consigo (e ainda não aprendi) controlar todo o material que tenho em mãos. Sempre que escrevo um romance, deixo-o abarrotado de diversas histórias e episódios separados” [p. 193. Carta de abril de 1871 falando sobre Os Demônios].
As personagens de Stiepan Trofimóvitch e de Varvara Pietrovna [protagonistas da genial primeira parte do livro] mereceriam um longo ensaio só para eles. Varvara é uma generala rica, mulher extremamente vaidosa e controladora. Seu desejo de controlar as pessoas fica escondido em uma espécie de máscara de solidariedade excessiva e muito cristã vista com extrema ironia pelo narrador. Varvara, hoje viúva, gosta de salvar pessoas e isso significa tê-las sob seu controle.
Stiepan Trofimóvitch vive com intensidade uma ficção de si mesmo. Se acha maior do que é. Tão contemporâneo que parece que foi concebido hoje. Extremamente afetado, acaba, paradoxalmente, se tornando um personagem muito carismático. Ele cria mentiras sobre si e acredita nas mentiras que criou. Acredita-se um revolucionário que no passado escreveu poemas perigosos e que deu aulas com ideias perigosas e que a qualquer momento pode ser procurado pela polícia e pode ser preso e mandado para a Sibéria. Mas o fato é que ele é um professor desconhecido. Como muitos personagens da alta sociedade e – como muitos personagens de Dostoiévski – é alguém que exagera sua real importância. No entanto, dentro da complexidade dos personagens, temos aqui um personagem fútil, afetado, mas com capacidade de criticar acertadamente algumas das concepções dos jovens niilistas. Especialmente naquilo que se refere ao desprezo à arte. Para esses jovens revolucionários, a arte não era útil para o povo. Um jarro ou um par de botas eram muito mais úteis do que uma pintura. A isso, Stiepan se opõe veementemente, representando, nesse caso, a voz de Dostoiévski que já se manifestara em relação a esses ideias anti-arte em alguns textos.  
Por fim, Nikolai Stavróguin (filho de Varvara Pietrovna) é, para mim, um dos personagens mais interessantes do autor, entra pro hall de grandes personagens junto com Aliócha e Ivan, dos Irmãos Karamázov e junto de Michkín de O Idiota. Sobre ele poderia escrever um longo ensaio, mas vou preferir retomar vez que outra o livro e reler as passagens em que ele aparece e talvez mais tarde escrever sobre. Há muito pano para manga ali. Senhor de si, homem bonito e culto, o jovem Stavróguin flerta todo o tempo com a maldade e com a baixeza. É responsável por episódios hilários quando, em uma festa da alta sociedade, por exemplo, torce o nariz de um homem e o arrasta pelo salão, e por episódios bastante tensos quando abusa de uma menina de mais ou menos doze anos de idade. Afirma ele:
“Não era da vileza que eu gostava (aí o meu juízo estava sempre perfeito), gostava do êxtase que me vinha da angustiante consciência da baixeza”. (p. 666)
Outros trechos marcantes:
“Confesso que quis bancar o bobo, porque é mais fácil bancar o bobo do que aparecer com a própria cara”. (Piot Stiepánovitch)
“Naquele momento eu observei vocês todos: estão sempre zangados, sempre brigando, reunidos, não conseguem nem rir com gosto. Tanta riqueza e tão pouca alegria – tudo isso é torpe para mim”. (Maria Timofêievna).
“Meu Deus, quantas palavras alheias! Lições decoradas! Eles também já puseram seu uniforme em você!” (Stiepan Trofímovith falando a Varvara Pietrovna quando percebe que ela está aderindo sem crítica a ideia dos jovens que andam circulando pela cidade).
Ingressaram “imediatamente no círculo sem a mínima crítica e ao primeiro chamado dele, mal formaram o quinteto, todos pareceram ofendidos, e, como suponho, justamente pela rapidez com que haviam aceitado o convite. Ingressaram, é claro, movidos por um pudor generoso, para que depois não dissessem que não haviam se atrevido a ingressar”;
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notassobreliteratura · 5 years ago
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verbetinho sobre o Bolaño
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Roberto Bolaño Ávalos nasceu em Santiago do Chile em 1953. Começou sua carreira com um livro em dueto (ou a quatro mãos) escrito com A. G. Porta: Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce, publicado em 1984. Bolaño tornou-se um escritor premiado depois de uma vida marginal. Ganhou o prêmio Rómulo Gallegos por Os Detetives Selvagens dentre outros e foi premiado também pela crítica norte-americana por 2666. Segundo Xerxenesky, “Roberto Bolaño é considerado 'um dos escritores latino-americanos mais admirados de sua geração' que, na opinião de Susan Sontag 'assegurou um lugar permanente na literatura mundial'.
Bolaño se mudou para o México aos treze anos de idade. Quando Allende foi deposto pela ditadura chilena em 1973, Bolaño voltou ao Chile para formar parte da resistência, mas foi preso. Um amigo militar o libertou e ele retornou ao México onde criou – ao lado de outros amigos – especialmente ao lado de Mario Santiago o infrarrealismo, movimento de poesia marginal que provavelmente – segundo observação de Xerxenesky – foi representado como o “real-visceralismo” em Os Detetives Selvagens. É sabido que Arturo Belano – personagem recorrente em outras obras – é o alter ego do autor e que Ulisses Lima é seu amigo Mario Santiago, segundo o próprio Bolaño admite em entrevista.
O grande número das produções de Bolaño se concentram em 10 anos de carreira. Bolaño começou a publicar concomitantemente a uma crise hepática, descobriu que seu tempo de vida seria curto e desde de então começou a escrever como uma locomotiva ou como um possesso, expressões que aparecem em Os Detetives Selvagens. Retomando ainda a dissertação de Xerxenesky: “Enrique Vila-Matas […] amigo pessoal de Bolaño – se vale de uma metáfora roubada de Kafka para descrever essa fase da vida do autor chileno: tirar Bolaño da escrivaninha onde escrevia seus livros seria como tirar um morto de sua sepultura”.
Obras:
- A Pista de Gelo (1993) – primeiro publicado, pois Monsieur Pain foi o primeiro de fato.
- A Literatura Nazi na América (1996)
- Estrela Distante (1996)
- Chamadas Telefônicas (1997) – primeira coletânea de contos, são contos que trazem a própria literatura como tema central.
- Os Detetives Selvagens (1998)
- Amuleto (1999)
- Monsieur Pain (publicado apenas em 1999)
- Noturno no Chile (2000)
- Amberes (2002) escrito nos anos 80. Bolaño considera o único romance seu que não se envergonha de ler.
- Una Novelita Lumpen (2002)
- El Gaucho Insufrible (2003) – livro híbrido de contos  e ensaios sobre literatura. Publicado no ano de sua morte.
- 2666 (2004), romance póstumo. O livo foi, ao contrário do que se diz, finalizado por Bolaño, o que sua morte impediu foi que ele fizesse uma revisão estilística mais aprofundada. Considerada sua obra mais relevante conta com 1120 páginas.
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notassobreliteratura · 5 years ago
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Os detetives selvagens - Bolaño
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I
Ah, poeta García Madero, um cara como Ulisses Lima é capaz de fazer qualquer coisa pela poesia – Barrios disse, sonhadoramente. (Os Detetives Selvagens, p. 33).
Li Os Detetives Selvagens no entrelugar fora do tempo que sempre são as viradas de ano (2019-2020). Foi como mergulhar num oceano. Acho que mergulhar num oceano guarde tanto seus prazeres quanto seus cansaços, mas é sempre melhor o cansaço do que morrer afogado na falta de sentido dos entretenimentos embrutecedores. Já fazia algum tempo que não lia um romance tão grande e que demandasse dessa forma. Acho que o último catatau que li talvez tenha sido O Idiota, e isso em 2016. Ou, na verdade, O Jogo das Contas de Vidro, em 2017. No entanto, em um momento em que a secura do deserto do real tem me afetado de maneira meio extremada, dedicar-se com afinco a 622 páginas de ficção é uma glória. Com deserto do real, [não, não li o Zizek, mas tô roubando a expressão] entendo a vida reduzida à informação, a política tornada um sistema de reeducação fascista por um governo de ignorantes e a indigência das redes sociais contaminadas por vaidade, egocentrismo, militância de facebook e uma linguagem violentamente pobre. Enfim, para mim Os detetives selvagens é um livro sobre devoção à literatura, sobre personagens cujas vidas só encontram sentido no universo da ficção. 
A premissa do texto, o ponto-chave do enredo, já fala dessa devoção. Arturo Belano e Ulisses Lima – os protagonistas – buscam informações sobre a poeta Cesárea Tinajero, buscam seus textos, suas marcas, sua existência, sua literatura. Cesárea – poeta fora do cânone da poesia mexicana e que apesar de bem falada entre seus colegas homens nunca foi publicada – fez parte de um grupo de poesia vanguardista da década de 1920, chamado de real-visceralistas. Belano e Lima, nos anos de 1970 (quando são jovens de vinte e poucos anos), refundam o grupo como uma espécie de homenagem e dedicam-se a ler, a escrever e a tentar encontrar o que puderem sobre a poeta.
O nível intenso da dedicação de Belano e Lima em buscar por Cesárea Tinajero ficou claro para mim apenas na terceira parte do romance, quando os dois, acompanhados de Garcia Madero e de Lupe – a prostituta mais legal da literatura - viajam pelo árido Deserto de Sonora, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Eles vão de cidade em cidade, buscando aqui e ali informações sobre os lugares por onde Cesárea passou, perguntando se ela lia muito, se ela escrevia muito e dirigindo horas a fio para fugir do cafetão psicopata de Lupe e na busca de mais indícios sobre detalhes da vida da poeta. Na verdade, são eles os detetives selvagens. Mas também são os interlocutores da longa segunda parte do texto – que não aparecem – e que colheram, é a minha leitura, ao longo de vinte anos, em diversas partes do mundo, relatos sobre Arturo e Ulisses.
Foi a primeira e única vez (acho) que li um romance em que os protagonistas só aparecem diante dos leitores a partir dos olhos de outras pessoas, a partir dos pontos de vista das dezenas de narradores. Romance radicalmente polifônico, aliás. Não há um narrador onisciente dizendo “a verdade” sobre os protagonistas, e as impressões e narrações em relação a eles se contradizem. Ora alguém diz que eles sequer eram poetas, que eram vendedores de drogas, que eram jovens arrogantes e metidos a besta, ora dizem que eram pessoas completamente dedicadas à literatura. Ulisses Lima chegava a ler durante o banho e Arturo Belano nos últimos relatos do livro, já em 1996, quando ele já tem quarenta e poucos anos, é retratado como alguém disciplinado que depois de já ter publicado dois romances está escrevendo o seu terceiro. Em outra narração ainda, Belano está nas regiões mais perigosas da África escrevendo textos sobre a situação de guerra civil e enviando para um jornal Espanhol. Aliás, esse é um dos momentos mais incríveis do livro. Enfim, se pudermos confiar nesse último narrador, ao contrário dos descrentes, Bolaño dedicou a vida à escrita e à literatura.
A primeira e a terceira parte do livro são narradas pelo jovem Garcia Madeiro, um poeta de 17 anos. Na parte 2 do romance é que temos esse sem fim de narradores relatando episódios em que aparecem Belano e Arturo. Às vezes os narradores tiveram apenas uma pequena experiência com os poetas, às vezes tiveram grandes experiências e outras vezes conviveram com eles mais longa e intensamente. Além disso, para mim, muitas vezes o relato desses narradores funcionavam como contos dentro de um romance. Muitos dos relatos não se limitam a registrar Arturo e Ulisses, mas falam da vida e das experiências dos próprios narradores; o que torna o livro um calhamaço cheio de histórias. Alguma coisa para se ler e reler isoladamente de vem em quando.
Os Detetives Selvagens é um livro que não se acaba. É um quebra cabeças que não pode ser completado.
Um paralelo se pode traçar, me parece. Enquanto Arturo e Ulisses dedicaram-se com afinco a buscar todos os detalhes possíveis sobre a vida de Cesárea Tinajero, essas pessoas que não aparecem, os interlocutores com quem os narradores da parte II falam, também estavam em busca de detalhes sobre essa nova geração de real-visceralistas. Os interlocutores invisíveis, os detetives selvagens.
II
“Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia”
O narrador que mais tem voz no romance é Juan García Madero. No entanto, ele é o único narrador que não está falando com os invisíveis interlocutores. Nós, leitores, acessamos Juan pelo seu diário. Jovem de 17 anos, órfão, que está vivendo em um momento de encruzilhada em sua vida, sem saber qual rumo tomar, quer fazer Letras, mas o tio-tutor insiste que ele faça Direito. Para compensar sua pulsão pela literatura – que vamos ver aparecer logo nas primeiras páginas – decide fazer uma oficina de poesia com um cara chamado Julio César Alamo, um cara chato e um acadêmico clichê. Um dia, na oficina, conhece Belano e Lima que o convidam a participar do bando do realismo visceral. Ironicamente, o bar para onde ele vai com Belano e Lima após se conhecerem ganha o nome de Encrucijada. Um bar mexicano na rua Bucareli - rua que também é citada em A Pista de Gelo - uma rua de bares frequentados por poetas na Cidade do México. É Madero quem diz que “todos os livros do mundo estão esperando quem os leia”. Ele diz isso após assumir, em seu diário, sua total ignorância em assuntos literários uma vez que nunca tinha ouvido falar nos visceralistas. No entanto, o primeiro indício de devoção à literatura aparece por meio do personagem de Madero. Seu dia-a-dia, não importa o que esteja acontecendo, é dedicado à leitura e à escrita. Apaixonado, vivendo pelas primeiras vezes relações sexuais e vivendo pela primeira vez a intimidade de morar com outra pessoa, sentindo-se sem rumo na vida, perdido ou triste, ainda assim, a maior parte dos seus dias são dedicados à literatura. Ela serve, para ele, como uma espécie de guarida. Creio que os leitores que tem uma relação tão intensa com o texto literário, sentem o estranho prazer de se sentirem menos estranhos e menos sozinhos ao lerem sobre a rotina de alguém que lê e escreve como uma locomotiva.
“Hoje não fui à universidade. Passei o dia inteiro trancado no quarto escrevendo poemas” (p. 20).
“Enquanto os esperava, comecei a ler e a escrever” (p. 20).
“Terminei o livro de Louys, Afrodite, e agora estou lendo os poetas mexicanos mortos, meus futuros colegas” (p. 23).
“Descobri um poema maravilhoso. Sobre seu autor, Efrén Rebolledo, nunca me disseram nada em minhas aulas de literatura” (p. 23).
“Esta manhã perambulei pelos arredores da Villa pensando em minha vida. O futuro não parece muito brilhante, ainda mais se eu continuar faltando às aulas. No entanto, o que me preocupa mesmo é minha educação sexual. Não posso passar a vida batendo punheta. (Minha educação poética também me preocupa, mas é melhor não enfrentar mais de um problema de cada vez)” (p. 33).
“ - Leu? - María perguntou.
- Claro – respondi –, nem dormi de noite, lendo” (p. 46).
“O dia todo deprimido, mas escrevendo e lendo como uma locomotiva” (p. 103).
“Depois li William Burroughs até o amanhecer” (p. 103).
“Reys poderia ser minha guarida. Lendo somente ele ou os autores de que ele gostava, a gente poderia ser imensamente feliz” (p. 108).
“Agora me desloco a pé, leio muito, escrevo muito, faço amor todos os dias” (p. 109).
Nessa primeira parte do livro, todas as relações que se estabelecem entre os personagens  estão misturadas com literatura. O núcleo central dessa primeira parte é inesquecível. As visitas de Juan a casa dos Font é muito interessante. Maria e Angélica Font são poetas. Elas são filhas de Quim Font, um ex-arquiteto, também amante de poesia, que depois acaba por enlouquecer, mas que, na verdade, não parece nada louco. Quim, a mulher, um filho e as duas filhas vivem em uma casa luxuosa, porém são uma família em decadência econômica, e as duas filhas vivem sozinhas em uma edícula anexa à casa. O núcleo literário, no entanto, é um núcleo marginal. Eles são devotos à literatura, mas não são famosos, não circulam por entre os meios universitários e nem são publicados por grandes editoras.
Se ao longo das mais de 100 primeiras páginas do relato de Juan, me apaixonei pela vida devota desses personagens que respiram literatura, quando começa a segunda parte do livro, uma série de narradores que não gostam de Arturo ou de Ulisses e que nem acreditam que eles são poetas de verdade trazem um interessante desconforto, eles colocam em cheque tudo o que Madero diz e, afinal, quem está falando a verdade? Qual é a verdade? Será que o relato de um jovem de 17 anos, ultra-sensível e cheio das paixões e fantasias pode ser levado em consideração? Ao longo da narrativa, como um detetive, fui aprendendo a olhar, também, para a visão de mundo daqueles que estavam narrando. Geralmente as pessoas que se posicionavam de forma a depreciar os jovens poetas eram pessoas em quem eu não, na vida real, não confiaria muito.
Foi impossível não pensar, durante a leitura, como será que eu enxergaria a mim mesmo se pudesse ler um relato de umas 30 pessoas que já passaram pela minha vida. Que espécie de mosaico não seria composto? Como eu veria a mim mesmo a partir desses relatos?
Apesar de a parte II se passar ao longo de vinte anos, entre 1976 e 1996, o relato de Amadeo Salvatierra é o único relato que durante toda a parte II se repete no mesmo momento temporal. Em uma noite de janeiro de 1976, Amadeo, que fora amigo de Cesarea Tinajero, conversa com os poetas. Uma noite inteira que é fragmentada ao longo das 400 páginas da segunda parte.
Buscando outras perspectivas sobre essa identificada devoção à literatura, encontrei um editorial da revista norte-americana N + 1. O editorial é citado na dissertação de mestrado de Antônio Xerxenesky:
Na obra de Bolaño, a literatura é uma compulsão indigna e não particularmente agradável, como fumar. Em certo momento você começou e agora não consegue parar; se tornou um hábito e uma identidade. Nada é tão consistente na produção de Bolaño quanto a suspeita de que a literatura é, de modo geral, uma bobagem, racionalizando o sofrimento, as ilusões e/ou o narcisismo de vários carreiristas, excêntricos e perdedores. E, ainda assim, Bolaño consegue, de alguma forma, tratar a literatura como a única desculpa para que ele e seus personagens existam.
Esta aporia básica de Bolaño – literatura é tudo que importa, literatura não tem a menor importância – pode ser um paradoxo volúvel […] (N + 1 MAG, 2008).
Xerxenesky, na dissertação escreve que essa aporia da qual fala o editorial aparece com força nos contos de Chamadas Telefônicas e em Os Detetives Selvagens. Diz ele que nesses livros os “personagens são obcecados por literatura. Os livros e a poesia são a força-motriz ambígua que movem aqueles seres” (p. 103). No entanto, a presença da suposta falência da literatura estaria, segundo Xerxenesky, marcada na morte patética, segundo ele, de Cesária Tinajero.
É difícil de abandonar Os Detetives Selvagens. Dá vontade de ficar lendo sobre ele e escrevendo sobre ele infinitamente. Ao término do livro – lá pela página 500 começou a me dar uma ansiedade louca para terminar – fiquei triste, como se tivesse me despedido de alguém que não queria que fosse embora. Mas sei que vou reler. Ou reler o livro inteiro ou reler os meus relatos preferidos dos narradores sem fim que contam a história.
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notassobreliteratura · 5 years ago
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A Pista de Gelo - Bolaño
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Decidi travar o meu próprio percurso por entre à obra de Bolaño, vivendo uma espécie de bolañomania tardia. A linguagem dele me chama há tempos, me faz um convite irrecusável. Ainda mais quando leio em uma obra de escritos sobre o autor, chamada Toda a orfandade do mundo, que para o escritor chileno “o exercício com a linguagem aparece como compromisso essencial ao pensamento crítico”.  
“A tarefa da forma é cumprida não só como exigência estética e escolha pessoal, mas como compromisso antes de tudo político e ético: repropor a representação, repensar a linguagem e a técnica são partes essenciais do pensamento crítico e da ação política, uma vez que permitem compreender o mundo novamente, com outros e distintos olhos”. (p. 15)
Começo o percurso por A Pista de Gelo, o primeiro romance publicado, em 1993. Antes, entre 1976 e 1984 ele publicou livros de poesias, mas foi a partir de seus romances e contos que passou a ser notado e a poder viver de literatura. A Pista de Gelo ganhou um concurso provinciano na Espanha. A bolañomania começou mesmo em 2007 quando Os Detetives Selvagens ganhou uma tradução para o Inglês. O reconhecimento nos Estados Unidos e na Europa tornaram-no reconhecido por aqui. Com 2666, chegou a ser comparado, por críticos, a escritores como James Joyce, Marcel Proust, Thomas Pynchon. Segundo artigo Os Labirintos de Bolaño do Jornal Rascunho, direta ou indiretamente a violência das ditaduras latino-americanas é presença em quase todos os seus livros. Bolaño é de uma geração a qual eu não pertenci. Uma geração que viveu a experiência da ditadura, que viveu sua violência (Bolaño foi preso por quase dez dias durante a ditadura chilena e só deixou a cadeia devida a influência de um amigo do exército). Bolaño acreditou na causa do comunismo, foi trotskista a partir dos 19 anos, mas como muitos dessa geração também se decepcionou com “os líderes corruptos, covardes” como disse em discurso que fez em Caracas em 1999 ao receber o prêmio Rômulo Gallegos. Disse também: “Toda a América Latina está semeada com os ossos desses jovens esquecidos”. Em seu primeiro romance, o esquecimento aparece em personagens desterrados e invisíveis.      
I
Apesar de ser comum falarem da estrutura policial de A Pista de Gelo, eu não enxerguei o romance por essa ótica. Não foi por aí que eu entrei no texto. Pra começar, o livro me fascinou, provocou um efeito meio hipnotizante, um encantamento com os personagens que se tornaram tão reais que senti um profundo afeto por eles. Ao mesmo tempo, a escrita do Bolaño – e isso aconteceu comigo já na primeira página e foi se intensificando – te puxa, te suga para dentro de outra realidade, é um convite a levar a ficção a sério, a mergulhar nela como um detetive, que precisa pensar sobre a obra, tentar preencher lacunas ou montar um quebra-cabeça ou inventar o seu próprio livro a partir do livro. Bolaño convida que a leitura seja um trabalho, convida a um investimento no ficcional. Sua escrita e o seu universo não dão margens para a pergunta sobre a utilidade da ficção em um mundo reduzido a utilidades.
Se desenha na minha mente a imagem da pista de gelo, dentro de um palácio antigo, abandonado, em uma estrada ao lado de um precipício que termina no mar nas selvagens e lindas (e desconhecidas para mim) praias da Costa Brava da Catalunha. As imagens são importantes em uma narrativa. Tem poder sobre o leitor. E Bolaño constrói imagens incríveis.
Os narradores do romance são três. Três vozes, três sujeitos constituídos de maneiras distintas, três visões de realidade distintas. Uma riqueza de leitura. Textos polifônicos são sempre ricos.  Remo Morán, Gaspar Heredia e Enric Rosquelles. Personagens que ficam. Ficam mesmo. Dum jeito que se cicatrizam em ti.
O Gaspar Heredia é o personagem que mais chamou para junto dele. Ele é apresentado, por Remo, como um poeta, e durante o livro inteiro não fala de poesia, não escreve poesia, apenas em um momento do romance, se não me engano, é que ele pega um livro de poemas para ler e em outro momento comenta que não havia novos poemas em sua vida. E é isso o que é incrível: se no período em que se passa a narrativa, ele não escreve, o que me faz confirmar que ele é, de fato, um poeta é a sua própria existência, é a sua grande sensibilidade, que vai florescendo à medida que a narrativa avança, dum jeito muito lindo. A maneira como ele olha para os seus companheiros de trabalho no camping, a forma como ele se afeta a primeira vez que ouve Carmen, a cantora de ópera, a maneira como ele passa a procurar Caridad e a cantora pelas ruas de Z, revelando-se apaixonado por Caridad, tudo isso vai nos mostrando – sem dizer – o quão sensível é Gaspar, o quanto ele é capaz de ver beleza em tudo, dum jeito muito simples, sem excessos, sem sentimentalismos. O Gaspar é um personagem incrível.
No primeiro capítulo, narrativa de Remo Morán, Gaspar é apresentado, e há algo de destaque dado a essa figura (ou eu que o vejo com destaque?). É muito provável que o livro, que certamente não tem apenas um protagonista, não destaque nenhum deles.
Eu o vi pela primeira vez na rua Bucareli, na Cidade do México, isto é, na adolescência, na zona indistinta e vacilante que pertencia aos poetas de ferro, numa noite carregada de neblina que obrigava os carros a trafegar com lentidão e que predispunha os pedestres a comentar, com regozijada estanheza, o fenômeno brumoso, tão incomum naquelas noites mexicanas, pelo menos até onde me lembro. Antes de ser apresentado a ele, na porta do café La Habana, ouvi sua voz, profunda, como de veludo, a única coisa que não mudou com o passar dos anos. Falou: é uma noite sob medida para o Jack. Referia-se a Jack, o Estripador, mas sua voz soou evocativa de terras sem lei, onde qualquer coisa seria possível. Éramos todos adolescentes, adolescentes cheios de energia, isso sim, e poetas, e ríamos. O desconhecido chamava-se Gaspar Heredia, Gasparín para os amigos e inimigos gratuitos. […] Agora estamos a milhares de quilômetros do café La Habana, e a neblina, feita sob medida para Jack, o Estripador, é mais densa do que então. Da rua Bucareli, na Cidade do México, ao assassinato!, pensarão… O propósito deste relato é tentar persuadi-los do contrário.
Ao terminar o livro, fazendo a conexão com esse comentário do capítulo um, parece fazer sentido a afirmação de Morán. Parece que ao fim do romance somos convencidos de que a ordem das coisas é, de fato, inversa. Do assassinato à rua Bucareli, pois quando Morán encontra o corpo (na pista de gelo) da vítima deste romance policial esquizo e quando, logo depois, encontra Gaspar no terceiro andar do Palácio Benvingut junto com Caridad, naquele momento de extremos em que os dois se encontram, a ação de proteção e de companheirismo e de profunda amizade que Morán demonstra talvez seja a conexão com a adolescência dos personagens, com sua amizade pretérita que não aparece no romance. A ligação entre Remo Morán e Gaspar Heredia é brumosa para os leitores tal qual era a noite em que se conheceram. Quando se reencontram adultos –  Morán tendo oferecido a Heredia um emprego em Z, balneário da Catalunha – não conversam. Morán não consegue estabeler uma ponte afetiva com Gaspar e eles passam o romance inteiro distanciados até o final, quando do assassinato.
Sobre a placa de gelo que abate Remo Morán e que o impede o mínimo contato, a mínima abertura com Gaspar:
[…] Quando ele apareceu na porta do Cartago, a duras penas o reconheci. Os anos não tinham passado em vão. Nos abraçamos e ali acabou tudo. Muitas vezes pensei que, se então houvéssemos conversado ou dado um passeio pela praia, depois tomado uma garrafa de conhaque chorando, ou se houvéssemos rido até o amanhecer, agora as coisas seriam diferentes. Mas depois do abraço uma placa de gelo se instalou em meu rosto e fui incapaz de esboçar um mínimo gesto de amizade. Eu o sabia desamparado, pequeno e só, sentado num tamborete junto do balcão do bar, e não fiz nada. Tive vergonha? Que tipo de monstros sua repentina presença em Z despertou? (p. 15)
E é bonito de observar que o romance não vai nos explicar o porquê dessa impossibilidade de amizade, de contato. É bonito de observar que várias pontas, detalhes, observações que nos chegam envoltas em mistério não se resolvem, não são explicadas. Há um comentário muito interessante que Morán faz sobre Gaspar, mas essa percepção que um tem do outro não é mais retomada no restante do romance e não há explicações para isso nem no desenrolar da história de Gaspar.
Às vezes eu me informava com os garçons: o vigia veio comer? […] o vigia escreve?, vocês o viram enchendo de garatujas as margens de algum livro?, olha para a lua como um lobo, o vigia? Insistia pouco, isso sim, porque não tinha tempo… Melhor dizendo, dedicava meu tempo a assuntos que não tinha nada que ver com Gaspar Heredia, distante, apequenado, como que dando as costas para o mundo todo, ocultando quem ele era, como se arranjava, com que coragem havia caminhado e caminhava (não, corria!) para a obscuridade, para o mais alto… (p. 17)
Morán se mostra um sujeito bastante ético e isso transparece não em sua própria narração, mas como parte da percepção de Heredia que compartilha que Morán paga salários melhores aos seus funcionários e é compreensivo com os empregados quando surgem problemas. Seus empregados são, em maioria, imigrantes. Diz Heredia:
Problemas entre empregados e patrões não existiam. Uma das causas possíveis dessa harmonia podia ser o caráter atípico do grupo que trabalhava ali: três estrangeiros sem visto de trabalho e três velhos espanhóis a quem em nenhum outro lugar queria dar trabalho, e o quadro estava quase completo (p. 35)
Escritor que desistiu da escrita, Morán torna-se comerciante. Foi casado tem um filho. Dono de um restaurante, de um camping – o Stella Maris – e de uma loja de bijouterias, tornou-se um sujeito bem de vida em golpes de sorte. No final do livro, ele dá um dinheiro extra para Heredia para que ele consiga deixar o país e parece que faz isso com outras pessoas ou paga a mais para que elas possam juntar dinheiro para deixar o país ou resolver suas situações.
Enric, o terceiro personagem-narrador, é um grande deboche ao poder e uma grande provocação, um irônico lembrete: a esquerda não é isenta de autoritarismo, um sujeito de esquerda não está ileso de carregar em si a tirania, o desejo de poder. Sobre Enric, Morán diz:
Repelente. Um tiranete cheio de medos e manias, crente que é o centro do mundo, quando a única coisa que conseguia ser uma um gordinho nojento propenso a fazer cara de choro. Quis o acaso que seu ódio por mim fosse natural e instantêneo. Não fiz nada para alimentar sua birra (só nos vimos três vezes), que eu sabia irracional e constante. […] Sua xenofobia anti-sul-americana tinha um destinatário preciso (p. 44-45).
Enric é um socialista, apresenta-se aos leitores como alguém que acredita no progresso, na justiça e no trabalho. Faz parte da prefeitura como integrante de um partido de esquerda que assumiu o poder pelas mãos de Pilar, a prefeita. Enric é o braço direito dela com um cargo em uma área que trata de questões sociais da cidade. Envolto no véu discurso da esquerda, envolto na personalidade-vitrine do ser engajado com causas sociais, uma persona tão contemporânea, Enric vai falando, em sua narrativa, justificando a corrosão do seu caráter, mas o que conhecemos dele em um momento mais avançado do romance são os seus preconceitos retrógrados. Pregando revolução social, não conseguiu fazer uma revolução em si próprio e despir-se de uma visão de mundo autoritária e hierarquizante.  O personagem é caricato. Um velho babão que se apaixona por uma patinadora, Núria (outra baita personagem), e que desvia dinheiro público para construir para ela uma pista de gelo, uma vez que ela perde a bolsa esportiva que garantia que ela treinasse. Sofre de complexos terríveis. Ama Núria numa espécie de amor sublimado. Torna-se seu amigo indispensável, mas não consegue deixar que ela percebe que ele a ama. O que me fez descobrir, ao longo da narrativa, a impossibilidade de confiar no que Enric diz sobre si mesmo foi descobrir que ele é néscio de si. Ele constrói a pista de gelo para Núria, por seu desejo incialmente, pelo encantamento com sua beleza. E em momentos posteriores, nota-se que a máscara que ele apresenta a si mesmo para tornar invisíveis suas ações tresloucadas é uma máscara na qual ele acaba acreditando. Ao falar de Morán, Enric diz:
Não, nunca gostei de Morán; como se constuma dizer, nunca consegui engoli-lo; tenho uma capacidade inata para julgar as pessoas e desde o primeiro momento soube que se tratava de um farsante, de um rematado fingido. Houve quem disesse que eu o odiava porque era um artista. Artista! Adoro arte! Do contrário, por que teria jogado minha segurança e meu futuro na pista de gelo? (p. 92-93)
E mais tarde:
Não gosto de negros. Menos ainda quando são muçulmanos. Em certa ocasião, como quem não quer nada, sugeri à minha equipe de trabalho do Departamento de Serviços Sociais um projeto para inserir todos os jovens marginais de Z num amplo leque de trabalho de terra, semear, colher, dirigir tratores e até vender no mercado todas as manhãs; teria sido sensacional ver essa leva de futuros marginais, quando não de drogados, levrando a terra. É claro que a ideia foi rechaçada quase como se eu houvesse dito uma piada. […] Não sei, tinha um quê de trabalho escravo, disseram, publicidade negativa (p. 93).
Fica tão escrachado o comportamento de Enric aqui, e no seu desejo de manutenção de estruturas de poder, que é quase como se fosse um convite para olharmos para as sutilezas da reprodução de estruturas autoritárias na esquerda.
Um elemento central desse livro – que tem momentos profundamente tristes – é que nos coloca diante das vidas incertas de imigrantes ilegais, da incerteza de qualquer possibilidade de  ter um trabalho, uma casa, terra firme para pisar e não estar sempre em vertigem.  
A violência é personagem presente. Uma violência que de alguma forma aparece como algo inevitável na existência desses personagens. O assassinato da cantora indigente fala da violência a que estão sujeitos essas pessoas que vivem do outro lado da lei que não os alcança. Há violência, mas também há amor como um refúgio. Ao final do livro, Gaspar diz uma das coisas mais linda ao partir de Z com Caridad. Fala de Caridad em um momento de pós-tensão quando Gaspar achou que a polícia irá abordá-los: “Caridad, pensei, era estrangeira para Deus, para a polícia, para si mesma, mas não para mim” (p. 195).
A situação “desesperadora” de Gasparin como ilegal o coloca em uma espécie de “purgatório indefinido”, como ele mesmo diz. Não ter lugar é um purgatório, a deriva que ele vive, impossibilidade de pisar em terra firme, de ser um sujeito visível, acaba sendo experienciada então como uma ante-sala do inferno. As perspectivas para Gaspar, como ele mesmo relata, “eram negras como um barril de petróleo” (p. 10).  
Cheguei a Z no meio da primavera, numa noite de maio, vindo de Barcelona. Não me sobrava quase nada de dinheiro, mas isso não me preocupava, pois em Z me esperava um trabalho. Remo Morán, que eu não via fazia muitos anos mas de quem constantemente tivera notícias, salvo naquela época em que dele nada se soube, me ofereceu, por intermédio de uma amiga comum, um trabalho para a temporada, de maio a setembro. Devo esclarecer que não pedi o trabalho, que nem então nem antes tentei entrar em contato com ele e que nunca tive a intenção de viver em Z. É verdade que tínhamos sido amigos, mas isso fazia muito tempo, e não sou dos que vão atrás de caridade. Até então morava num apartamento que dividia com outras três pessoas, no bairro chinês, e as coisas não iam tão mal para mim como se poderia imaginar. Minha situação legal na Espanha, salvo nos primeiros meses, era, para dizer de uma forma suave, desesperadora: não tenho visto de residência, não tenho visto de trabalho, vivo numa espécie de purgatório indefinido à espera de conseguir dinheiro suficiente para bater as asas ou pagar um advogado que legalize minha situação. Claro, esse dia é um dia utópico, pelo menos para os estrangeiros que, feito eu, pouco ou nada possuem. De todo modo, as coisas não iam mal para mim. Por muito tempo andei fazendo uns bicos, vendendo numa lojinha da Rambla ou costurando numa Singer caindo aos pedaços bolsas de couro para uma fábrica clandestina, e assim comia, ia ao cinema e pagava a moradia (p. 9-10).
O olhar sereno de Gaspar me encantou, a maneira como ele olha para os outros, olhando para o correr de suas vidas sem tecer julgamentos.
Das mulheres da limpeza só Miriam, a senegalesa, dormia fora do camping. As outras duas, Rosa e Azucena, eram da periferia de Barcelona e dormiam numa barraca de dois quartos perto do banheiro principal. Irmãs e viúvas, completavam o orçamento com faxinas em domicílio arranjadas por uma agência de aluguéis de apartamentos. [...] Apesar de cada uma trabalhar uma média de quinze horas por dia, ainda lhes sobrava tempo, à noite, para tomar umas e outras à luz de um lampião a gás de botijão, sentadas em cadeiras de plástico à entrada da sua barraca, enquanto espantavam os mosquitos e conversavam sobre as suas coisas. Basicamente sobre como os seres humanos são porcos. (p. 36-37)  
Não sendo parte do trio de narradores, a cantora de ópera e Caridad são personagens geniais e a cena em que Gaspar as conhece é também genial. A velha cantora de ópera estava sendo acusada pelas faxineiras do camping de esfregar merda pelas paredes do banheiro. Quando Gaspar aproxima-se dela e de outra moça, no bar do camping, para conversar surpreende-se com a cantora e também com Caridad, a moça de olhos vagos.
Uma atmosfera de estranha dignidade as cobria, protegendo-as. A mora era silenciosa e obscura. A velha, pelo contrário, era faladeira e tinha a cor da lua, de ma lua cheia de farpas que despencava. […] Com nitidez, com extrema nitidez, só aparecem as risadas da velha e os olhos vagos da moça. Como se olhasse para dentro? Talvez, talvez. E a velha enquanto isso falava e sorria, palavras enigmáticas, como que em código, como se tudo que ali havia, as árvores, a superfície irregular do terraço, as mesas desocupadas, os reflexos perdidos na marquise do bar, estivessem se apagando progressivamente e só as duas percebessem. Pensei que uma mulher assim não poderia ter feito aquilo que lhe era imputado e que, e de fato houvesse feito, teria as suas razões. […] Entao a velha começou a cantar, nem muito alto nem muito baixo, […]. Uma voz estudada. Embora eu não entenda na de ópera, acreditei distinguir trechos de diferentes árias. Contudo, o mais notável era que também cantava em diversos idiomas, fregmentos diminutos que ela encadeava sem dificuldade, borboleteios para o meu exclusivo deleite. […] Por um intante senti uma coisa semelhante ao arrebatamento: as sombras se encompridavam, as barracas se inchavam como tumores incapazes de se soltar do cascalho, o brilho dos carros se metalizava até a dor pura. (p. 38)
Há um sentimento de orfandade em todo o livro. Para mim, começa na primeira narrativa de Gaspar quando ele deixa Barcelona ainda se recuperando da pior gripe que tivera e indo sozinho para outra cidade na esperança de encontrar melhores condições de vida. A orfandade também está em Caridad e também está em Carmen e no Recruta. Carmen, a cantora de ópera, conheceu o Recruta em um acolhimento de mendigos e desde então eles andam juntos por Z. Ela prefere um pouco mais de liberdade, mas “o Recruta queria dormir todas as noites com Carmen, e a gente notava os receios, as raivas, o sentimento de orfandade que sua negativa lhe causava”. (p. 102-103).  
Tinham fé no futuro: a Espanha caminha para a glória, costumavam dizer. E tinham fé também em seu futuro particular. Tudo ia se arranjar, quando chegasse o outono não precisariam ir embora de Z, nem quando chegasse o inverno, ao contrário, iam ter uma boa casa com lareira ou com estufa elétrica para não passar frio e uma televisão para se distrair, e o Recruta, com paciência, conseguiria um trabalho, nada rotineiro, nada de se esfalfar todos os dias porque essa era uma escravidão que já não toleravam, porém estável, talvez limpar vidros de lojas e restaurantes; talvez vigiar edifícios de apartamentos vazios, talvez ser jardineiro na casa dos ricações da comarca […]. O Recruta arregalava muito os olhos quando Carmen pintava o futuro com essas cores. E, você, vai fazer o quê, Carmen? Vou dar aulas de canto, cultivar a voz das crianças, levarei a vida no sossego” (p. 103).
Carmem ia muitas vezes a prefeitura pedir auxílio e “tinha medo de morrer sozinha e desamparada” (p. 104).
Conheci todas as víboras da administração pública! Todos os chacais e abutres! Democratas desde criancinha dispostos a me deixar morrer, sem se compadecer nem sequer sorrir quando eu fazia uma piada ou imitava Montserret Caballé para eles (p. 104).
Talvez o tema central mesmo do livro seja o sentimento de orfandade, talvez seja o habitar um não lugar, ser um não sujeito e não ser visto pelas estruturas de poder que não deveriam nos proporcionar a existência indefinida em um purgatório.
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notassobreliteratura · 5 years ago
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Reparação - Ian McEwan
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Romances são quebra-cabeças, por isso são tão deliciosos, mas bons romances são aqueles que desafiam a nossa necessidade de totalidade, são aqueles nos quais não conseguimos amarrar todas as pontas, aqueles que não se prestam a serem consumidos e, logo, como uma espécie de resistência, não se deixam reduzir a objetos de consumo. Os bons romances não permitem o seu esgotamento. Há ainda, agora em fins da década de 2010, um outro eixo de resistência. Ler grandes romances, ler mergulhando, é subverter a fragmentação do tempo, a euforização do tempo.
Não sei se é exagero dizer que Reparação é um dos melhores livros que já li, mas é certo que é um dos melhores textos contemporâneos que eu li, um livro que reverberou muito em mim. Li pela primeira vez por volta de 2008 e o texto ficou ecoando forte. Reli o romance agora em final de 2019. Algo me chamou a ele. Algo me lembrou de sua existência e a memória pediu releitura. É incrível ter o corpo cheio de histórias, algumas delas nos chamam anos depois.
Reparação é um romance que captura em tantas dimensões que é como se ler o livro fosse viver dentro dele. E viver dentro de um livro continua sendo uma forma de resistir à secura do real, de não se deixar reduzir à pobreza do mundo, à falta de vida e de cor. É isso que a protagonista faz. Ela mergulha na literatura, na fantasia, na ficção, para não sucumbir à “dura massa do real”, quase como uma resistência ao real. Precisamos resistir à realidade, então? Resistir – resistência não é negação – para nos relacionarmos com ela de outras formas? Distanciar-se do real para sentir que o real não é tudo e escapar desse fetiche pela realidade das redes sociais, das mídias tradicionais.
Se no início do livro a imaginação de Briony é perigosa e às vezes meio doentia, ao fim da obra e olhando-a como um todo, parece que sempre, para Briony, a ficção foi um meio para não sucumbir. O que ela vive desde o início da adolescência é uma pulsão criadora, imaginadora, ficcionadora, e o romance acabou me dizendo muito dos usos dessa capacidade de fabulação, e, logo, da função ética da fabulação, de seu potencial destrutivo ou construtivo.
Difícil não aceitar o que mais se diz sobre o romance. Reparação é um romance sobre o poder da ficção, é, portanto, um romance meta-literário, característica que para Linda Hutcheon é parte comum de muitos textos ditos pós-modernistas. Diria, ainda, que é um romance sobre a capacidade da literatura de reparar a existência sem deixar de falar da barbárie. Reparação me convidou, fortemente nas duas leituras, a meditar sobre a literatura como produtora de realidade, e não da literatura como mímese da realidade, como representação do real.
Reparação foi publicado em 2001. Início do século XXI. McEwan abre o século olhando para o século passado e não só olhando, pois a forma do texto é bastante século XX. Novelas modernistas são caracterizadas pela ausência da onisciência em suas narrações. O narrador que tudo sabe ou que pelo menos quer nos convencer de que tudo sabe é substituído por uma variedade de fragmentadas perspectivas subjetivas. A primeira parte de Reparação, situada em 1935, parece incorporar justamente a estética modernista. Muito embora entregue por um narrador em terceira pessoa, cada capítulo é narrado a partir ou através da consciência de um personagem.
A apreensão subjetiva que Briony, adolescente, faz da realidade – calcada em seus medos, em seu desejo de ordem, em sua moral incrustada – está muito distante daquilo que Robbie e Cecília estão vivendo. Na visão de Briony, Robbie é um psicopata, é um estuprador, talvez porque em sua perspectiva existe algo de criminoso na sexualidade, algo de estrangeiro e se estrangeiro, digno da sentença.
Se na primeira parte do livro, Reparação é um típico e delicioso romance psicológico,  com o narrador entrando na cabeça dos personagens, na segunda parte temos quase um outro romance. Uma narrativa de guerra, mesmo que a câmera continue perspectivando, agora a partir de Robbie, no front, indo, com dois cabos, para o norte da França, trocando cartas com Cecília, resistindo por ela, para revê-la. Na terceira parte, segue-se o mesmo, agora na visão de Briony novamente. Uma enfermeira de guerra. No epílogo, quando ela, aos 77 anos toma a narrativa, falando sobre o romance que escrevera, a literatura como reprodução do real é questionada. Em seu romance, Briony manipula o real para deixar o amor vencer a barbárie. Essa manipulação me parece uma ação ética. Não foi isso que aconteceu nos anos da Segunda Guerra Mundial. Ali, o amor não venceu a barbárie, a violência.  
II.
Briony – que, na longa primeira parte do livro, 225 páginas nas quais apenas dois dias se passam – começa sendo uma personagem em relação à qual é fácil sentir-se compelido a odiar, mesmo sendo uma criança de 13 anos. Seu universo interior não é um universo colorido. Ela demonstra atividade mental excessiva, aguda obsessão para consigo mesma e desejo de controlar tudo aquilo que não entende e que lhe parece caótico. O crime que ela comete no final da primeira parte, a falsa acusação, fruto de raiva, medo e ignorância, produziu em mim um efeito inicial bastante negativo em relação à personagem. A maneira como a narrativa está construída ajuda a criar uma visão de Briony mais áspera, uma vez que o narrador está dentro da cabeça dela. É para controlar o mundo que, inicialmente, ela escreve. Escreve para reduzir a realidade ao familiar. Pensando por um ponto de vista psicológico, é interessante observar os desdobramentos do comportamento de alguém que afasta do seu campo de visão aquilo que não conhece, aquilo que está fora dos limites de sua consciência.
“Briony era uma dessas crianças possuídas pelo desejo de que o mundo seja exatamente como elas querem. Enquanto o quarto da irmã mais velha era um caos de livros abertos, roupas jogadas, cama desfeita e cinzeiros sujos, o de Briony era um santuário erigido a seu demônio controlador: a fazenda em miniatura, espalhada no largo parapeito da janela, continha os animais tradicionais, porém todos virados para o mesmo lado – para a dona –, como se estivessem prestes a começar a cantar […]. O gosto pelas miniaturas era um dos aspectos de seu espírito organizado”. [p. 13]
“Aos onze anos de idade Briony escreveu sua primeira história – uma bogagem, imitação de meia dúzia de narrativas folclóricas; […]”. [p. 14]
“As páginas de uma história recém-terminada pareciam vibrar em sua mão, de tanta vida que continham. Também conseguia desse modo satisfazer sua paixão pela organização, pois o mundo caótico ficava exatamente como ela queria. Uma crise na vida da heroína podia coincidir com uma chuva de granizo, vendavais e trovões; já os casamentos eram normalmente abençoados por sol e brisas suaves. O amor à ordem também estava por trás dos princípios de justiça: a morte e o casamento eram seus principais instrumentos de implementação, aquela reservada exclusivamente aos que eram moralmente questionáveis”. [p. 16]
A sexualidade, a complexidade da sexualidade humana, é algo desconhecido para Briony, e, sendo desconhecido, ameaçador. Quando vê Robbie e Cecilia na fonte, não sabe que vê dois jovens apaixonados e desconfortáveis que ainda não se sabem apaixonados, mas que já agem como tal. Ali, na nudez da irmã, talvez na nudez da irmã diante de outro homem, ela vê ameaça, e vê ameaça na cena em que sua irmã e Robbie estão transando na biblioteca, assim como vê sombras na obscenidade da palavra boceta escrita na carta de Robbie. O sexo, na mente de Briony, é, naquele momento, algo obscuro, um universo que assusta e do qual ela precisa se proteger; num ímpeto heroico, proteger a irmã também. Essa ameaça vai aumentando de tamanho até que ela cometa a sua falsa acusação.
A dimensão moral como algo que se incrusta nos corpos e molda os olhares, a tradição como entidade subjetivadora, não é algo irrelevante em Reparação, é algo que aparece em outros momentos. Me marcou bastante a relação de Cecília as proibições do pai em relação a descompostura de uma mulher fumar em público.
“Ainda lhe restava um maço, e foi só depois de vários minutos de busca exasperada em meio à bagunça que ela o encontrou, no bolso de um robe de seda azul jogado no chão do banheiro. Acendeu o cigarro enquanto descia a escada em direção ao hall, cônscia de que não ousaria fazer tal coisa se seu pai estivessem em casa. Ele tinha ideias muito firmes a respeito de onde e quando uma mulher podia ser vista fumando: não na rua, nem em qualquer outro lugar público, nem ao entrar numa sala, nem em pé, e apenas quando alguém lhe oferecesse um cigarro, jamais um cigarro seu – ideias que lhe pareciam evidentes, ditadas pela natureza das coisas. Apenas dos três anos vividos entre as pessoas sofisticadas do Girton College, ela não havia criado coragem suficiente para enfrentá-lo. Os comentários levemente irônicos de que ela se valeria entre suas amigas evaporavam na presença do pai, e sua própria voz, ela percebia, ficava frágil quando arriscava alguma contradição suave. Na verdade, quando discordava de seu pai a respeito do que quer que fosse, mesmo o mais insignificante detalhe doméstico, sentia-se incomodada, e nada do que a grande literatura fizera no sentido de modificar sua sensibilidade, nenhuma das lições da crítica prática, conseguia libertá-la da obediência filial. Fumar na escada enquanto seu pai estava no ministério, em Whitehall, era o máximo de revolta que sua educação permitia, e mesmo assim isso lhe custava um certo esforço”.  
É interessante observar que nem uma educação forte foi capaz de fazer com que Cecilia se despisse dos grilhões da tradição. Outra cena interessante é quando Emily está pensando sobre sua filha e mostra toda a sua insatisfação com o fato de ela decidir cursar uma Universidade e até de arranjar um trabalho. Para Emily, sua filha deveria seguir o inescapável destino das mulheres. Casar-se e dedicar-se à família. No entanto, parece, para mim, muito sintomático que a grande matriarca não consiga dedicar-se à família. Enxaquecas violetas, descritas como um monstro que habita a cabeça de Emily, a fizeram passar muitos anos tendo sempre de se recolher na solidão de seu quarto e administrar a casa de forma distante.
Mas é incrível como, na terceira parte, com pouquíssimas explicações-ponte sobre a transição de sua personalidade, encontramos Briony, uns 5 anos depois, no meio da Segunda Guerra Mundial, sendo enfermeira e exercendo outro papel, transmutando-se em outra pessoa à medida que a violência da guerra aparece nos leitos. De menina mimada, vivendo protegida no seio idílico e rico do interior da Inglaterra, carregada, sem saber, da moral restrita de seu tempo, Briony renasce. Há uma cena incrível, quando ela e outra enfermeira voltam para o hospital depois de uma tarde de folga e encontram, esperando por elas, centenas de macas com soldados feridos. Briony trabalha doze horas a fio tirando estilhaços profundos da perna de um soldado, fazendo curativo em um rosto quase sem pele de outro, e vendo um jovem de 18 anos com parte do cérebro aberta morrer. Ao final das doze horas de trabalho, Briony sente que não é mais a mesma.
O trabalho no hospital, o treinamento duro pelo qual as estagiárias a enfermeiras precisavam passar, vai estancando o seu excesso de introspecção. Em alguma medida me parece que é como se a protagonista buscasse por isso, como se ela buscasse algum tipo de vida que a retirasse de dentro de suas fantasias. Como se ela desejasse negar, destruir a sua forte capacidade imaginativa. Na primeira parte, quando Briony ainda é adolescente, é muito interessante a cena em que ela está furiosa com o desastre da peça de teatro que queria apresentar para o irmão e, tomada de raiva, começa a açoitar urtigas com um galho. Essa ação vira pauta de imaginação da menina.
“Em pouco tempo, era o ato em si que a absorvia, isso e mais a reportagem que ela redigia ao ritmo dos golpes. Ninguém no mundo era melhor nisso do que Briony Tallis, que iria representar seu país no ano seguinte nas Olimpiadas de Berlim e que certamente ganharia a medalha de ouro. As pessoas a examinavam atentamente e se deslumbravam com sua técnica, sua preferência por ficar descalça para melhorar seu equilíbrio – coisa tão importante nesse esporte exigente –, cada dedo do pé desempenhando seu papel” [p. 94]
No fim da vida, Briony – que não conseguirá abafar a sua capacidade criativa, escreverá para reparar a dor e a tragédia, escreverá para dizer que o amor vence, que ele não é destruído pela barbárie, pela guerra, mesmo que tenha sido. No romance que Briony escreve – que é o próprio Reparação (e isso só se descobre no final)  - ela reinventa a história de forma que Cecilia e Robbie tenham experienciado o amor em meio à Segunda Guerra Mundial. Mesmo que eles tenham morrido em 1940 durante a Guerra. Ela, no entanto, em sua escrita, não apaga seu erro, não apaga seu crime. O crime está lá. É função ética da literatura apontar os crimes para que possamos entender suas reverberações, seus efeitos maléficos, para não apagá-los da história. Mas também talvez seja função da literatura fazer com que nós não sucumbamos à barbárie, fazer com que o realismo mais árido não seque a existência…
Outro elemento importante na discussão sobre o realismo e a ética é a questão de ressaltar o ponto de vista, ressaltar que aquele que vê é tomado de perspectivas de mundo. Briony não tem condições de lidar com o estrangeiro, com o não familiar e isso faz com que sua escrita seja antiética.
Ao final, a realidade morte de Robbie e Cecilia é muito pesada para que Briony a escreva, Agora sua imaginação, sua capacidade fabular está a favor de contribuir na luta contra uma realidade árida que nos tira o fôlego da vida. Importa o que é a verdade? Se algo existe, mesmo não sendo verdade, não produz efeitos? A literatura, em princípio, não é real, a ficção não é a realidade, mas ela produz impactos na existência. E produzindo impactos não se torna real? Briony escreve, no epílogo: “Se eu realmente me importasse tanto assim com os fatos, teria escrito um outro tipo de livro”.
“Houve um crime. Mas houve também um casal apaixonado. Essa noite toda estive pensando em casais apaixonados e finais felizes […]. É só nesta última versão que o casal apaixonado termina bem, um ao lado do outro, numa calçada da zona sul de Londres, enquanto eu vou embora. Todas as versões anteriores eram impiedosas. Mas agora não posso mais achar que meu objetivo seria atingido se, por exemplo, eu tentasse convencer meu leitor, por meios direitos ou indiretos, de que Robbie Turner morreu de septicemia em Bray Dunes no dia primeiro de junho de 1940, ou que Cecília foi morta em setembro do mesmo ano pela bomba que destruiu a estação de metrô de Balham. Que eu não cheguei a ver os dois naquele ano […] que Briony, acovardada, voltou mancando para o hospital, incapaz de encarar sua irmã, que ainda se recuperava da morte recente de seu amado. […] Como o romance poderia terminar assim? Que sentido, que esperança, que satisfação o leitor poderia extrair de um final como esse? […] Quem iria acreditar nisso, a menos que fosse em nome do realismo mais árido?”
Ainda sobre a formação de Briony e sua relação com a escrita:
A visão de mundo pueril de Briony, mostra de sua formação moral, já em evidência aos 13 anos. Quando os “primos do Norte” vem passar uns dias na casa da família Tallis, porque seus pais se divorciaram, Briony observa o divórcio como parte do caos do mundo. O casamento é a ordem. Nesse sentido, sua formação moral está em mais completo diálogo com a moral dominante em 1935. Emily, mãe de Briony, não só aguarda ansiosa para que sua filha se case e se adapte à vida que uma mulher deve ter, como vive a obrigação de seu casamento, mesmo sabendo que o marido mente sempre que diz que precisa dormir em Londres, a trabalho.
“Briony tinha uma vaga ideia de que o divórcio era um problema sério, mas não o considerava um assunto apropriado e, portanto, não pensou mais naquilo. Era um desenredo mundano que não podia ser desfeito, e desse modo não oferecia oportunidades para o contador de histórias: fazia parte da esfera da desordem. Já o casamento, sim, esse interessava, uma cerimônia formal e organizada em que se recompensava a virtude, com pompas e banquetes emocionantes, e a promessa fascinante de união para toda a vida. […] Em igrejas rurais e magníficas catedrais na cidade grande, com a aprovação de toda uma sociedade de parentes e amigos, as heroínas e os heróis de Briony chegavam a um clímax inocente e não precisavam ir adiante. Se o divórcio se manifestasse como a antítese vil de tudo isso, poderia facilmente entrar no outro prato da balança, juntamente com a traição, a doença, o roubo, a agressão e a mentira”.  [p. 18]
A visão maniqueísta de Briony coloca tudo o que mal, e, por ventura, tudo o que é estrangeiro no mesmo saco.  Se sua mãe e seu pai vivem um casamento aparentemente sólido, o divórcio é o estrangeiro, é aquilo que está fora da família, mesmo que esteja dentro. Emily e Jack Tallis vivem um casamento distante. Eles, no entanto, vivem o casamento como convenção. Além disso, é legal de observar que Briony, aos 18 anos, na segunda parte do livro, indo ao casamento de Lola, sua prima. Lola casa-se com Marshall, o empresário rico que faz chocolates para distribuir aos soldados da guerra. Lola casa-se com o homem que a estuprou. E aí sua balança é bagunçada. O casamento e a agressão e a mentira ocupam o mesmo lado da balança. Mas aos 18 anos, Briony já é outra pessoa.
Personagem que cresce e ao crescer expande sua consciência e expandindo-a enxergar o mal que fez. Quando Robbie na cena em que a encontra no quarto de Cecília pergunta o que a fez mudar de ideia em relação ao suposto crime de Robbie, ela respondi apenas: “Eu cresci”. E ao crescer ela entendeu que o mundo não é aquilo que está dentro de sua imaginação, o mundo não são as fantasias que ela cria. A pulsão fantasiosa de Briony é bastante destacada tanto na primeira como na segunda parte e mesmo que o livro não diga isso penso que essa pulsão é algo sobre o qual ela não tem controle. É mais forte do que ela. Tornar-se escritora é o destino de sua pulsão.
A dificuldade de Briony em enxergar o outro fica clara no início. Quando ela escreve a peça Arabela em apuros imediatamente pensa que os primos irão encenar sua peça, que, quando chegarem, irão desempenhar os papéis que ela quiser. A sua surpresa com o fato de que nem Lola, nem Pierrot, nem Jackson parecem interessados na peça mostra a incapacidade de Briony de enxergar o outro. É claro, ela é uma criança, mas a profundidade psicológica com que o narrador mergulha em Briony nos faz pensar nesses sentimentos isoladamente, nessa relação com o outro isoladamente. A relação de Briony com o outro é algo que desponta nos capítulos da Primeira Parte, e que também retorna na segunda parte. Quando ela conversa com Robbie, ela consegue ver – devido a sua experiência no hospital - quando seus olhos se voltam para dentro e inevitavelmente ele é tomado pelas ondas grotescas das memórias de guerra.
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notassobreliteratura · 5 years ago
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1984 - George Orwell
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Em 1989, cinco anos depois do ano-distópico criado por Orwell em 1948, Félix Guattari, pensador rebelde, anunciou uma constatação em seu livro As Três Ecologias. Escreveu que:
| os modos de vida humanos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente 'ossificada' por uma espécie de padronização dos comportamentos.  |  (Guattari, 2012, p. 7-8) 
A julgar pelo diagnóstico de Guattari, Orwell – no final da década de 1940, quando escreveu 1984 – previu adequadamente, com seu romance, algo muito importante sobre o futuro dos modos de vida. 1984 é, afinal de contas, um romance sobre a deterioração da vida e é um romance sobre uma existência coletiva completamente padronizada. Além disso, a presença das teletelas dentro das casas é o indicativo de uma vida doméstica sufocada pelo midiático e pelo tecnológico. É claro que as teletelas de Orwell também remetem a um tipo de vigilância excessiva, possível no seio de um governo totalitarista. É claro, ainda, que é muito pouco interessante insistir muito no argumento de uma previsão, como se Orwell fosse uma espécie de Nostradamus. Como escreve Ben Pimlott, também no ano de 1989, em posfácio ao livro: “Apesar de fazer uma espécie de advertência, não é uma profecia (o que Orwell sabia, tanto quanto qualquer um, ser impossível e sem sentido). Ele não está também muito preocupado com eventos contemporâneos. É um livro sobre o presente contínuo: uma atualização da condição humana. O que mais importa é que ele nos lembra de muitas coisas nas quais normalmente evitamos pensar” (2009, p. 386).  (Re)ler 1984 no final da segunda década do século XXI, para mim, não pode se reduzir a ler o livro em diálogo com seu contexto ou em diálogo com o stalinismo. Como escreve Erich Fromm em 1961, em posfácio também presente na edição da Companhia das Letras, “seria lamentável se o leitor, de modo autocomplacente, interpretasse 1984 como mais uma descrição da barbárie stalinista, sem perceber que o livro se refere também a nós”.
No final do romance, quando Winston já passou por um longo processo de tortura no Ministério de Amor e já está muito próximo do cidadão ideal, ele não consegue mais pensar, seu pensamento não pode mais se estender longamente. “Nos últimos tempos, não conseguia se concentrar em determinado assunto por mais de alguns minutos” (p. 336). Interessante diálogo com uma situação particular, com um sintoma dos tempos atuais na verdade. Martin Scorsese, no final de 2019, lança um novo longa-metragem. O filme tem três horas e meia de duração. Na internet, piadas se alastram em relação ao tamanho do filme.
1.
Um dos motivos da angústia – a angústia é talvez o sentimento mais forte e pulsante que Winston Smith vive – é justamente o fato de que a maior parte das pessoas ao seu redor não parecem humanos, por exibirem demasiadamente comportamentos mecânicos. A maior parte das pessoas que cercam Winston – se não praticamente todas, com exceção de duas – deixou-se adestrar, deixou-se padronizar pelos mecanismos do Partido. Muitos têm uma satisfação mística ao repetir slogans. Esse adestramento se dá em várias vias constitutivas dos sujeitos: padronização na experiência do amor; na relação com o sexo e no entendimento-vivência do que é família; padronização da relação com o trabalho, da relação com o tempo, da relação com a arte (ou melhor com a impossibilidade dessa relação), padronização em relação com o entretenimento, padronização, inclusive, da relação com as emoções. Ao ler 1984 pela terceira vez penso menos sobre a relação original do livro com seu tempo histórico e mais nas possíveis relações dessa grande obra do pensamento ocidental com o tempo em que vivo. Se Orwell escrevia o romance em um contexto de crítica a estados totalitários isso não nos impede de ver que é perfeitamente possível migrar 1984 para um contexto novo em que, como observa, mais uma vez, Guattari: “os Estados […] veem seu tradicional papel de mediação reduzir-se cada vez mais e se colocam, na maioria das vezes, a serviço conjugado das instâncias do mercado mundial e dos complexos militares-industriais”. (p. 10)
Como o império do Mercado padroniza as nossas subjetividades? Como a lógica utilitária do mercado – problematizada por literatos e filósofos desde o século XIX – não acaba produzindo mecanismos de empobrecimento da linguagem e do pensamento? Como essas práticas não se tornam tão naturais entre nós que deixamos de problematizá-las? Como instituições de ensino que reduzem o conhecimento produzido ao longo de séculos a um meio para um fim, como ranqueamento de alunos em provas, aprovação em vestibulares, caminho para entrada “no mercado”, reconhecimento social, não se tornaram também mecanismos de redução do pensamento?
O apagamento do pensamento é o objetivo mais importante para o governo totalitário do Grande Irmão, e esse apagamento se dará pela via da lógica do empobrecimento da linguagem. Quando a Novafala é apresentada no livro, ela é apresentada como um mecanismo político-governamental de redução do pensamento a partir de uma esterilização da língua. Syme – um filólogo especialista em Novafala e parte de uma vasta equipe de especialistas encarregada de compilar um dicionário de Novafala – diz para Winston:
| Estamos destruindo palavras – dezenas de palavras, centenas de palavras todos os dias. Estamos reduzindo a língua ao osso” […]. “A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing é a Novafala | (p. 67).
Dizer que a revolução estará completa quando a linguagem for perfeita nos dá a ver a extrema importância da relação entre empobrecimento da linguagem e dominação política.
Em 1984, nos mais altos escalões do poder, no seio daqueles que regem as sinfonias dominantes, é orquestrada, como prática educativa, a inconsciência. Espera-se que, no futuro, por volta de 2050, não aja pensamento. “Não realidade não haverá pensamento tal como o entendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é a inconsciência”, diz Syme no genial capítulo 5 da primeira parte. Nesse capítulo, fica incrivelmente clara a consciência filosófica de Winston, a consciência crítica, problematizadora. O narrador está em sua cabeça no horário do almoço dentro da cantina do Ministério da Verdade. E nesse almoço, Winston conversa com Syme e com Parsons, o homem néscio de si ideal para o partido, e observa outras pessoas ao seu redor. A consciência de Winston faz com que ele praticamente se destaque do cenário que o cerca, é como se ele conseguisse sair da realidade para olhá-la de fora, como um problema. Sair da realidade e estar nela ao mesmo tempo. Recuar na realidade para olhá-la.
| Como podemos ter um slogan como “Liberdade é escravidão” quando o conceito de liberdade foi abolido? Todo o clima de pensamento será diferente. Na realidade não haverá pensamento tal como o entendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência. | (p. 70)
2.
No início de 1984, a solidão do protagonista Winston Smith é uma presença muito forte e  está envolta por uma solidão maior, por uma solidão social, criada, também, como um mecanismo governamental. É uma “era de solidão” como o personagem apontará em seu diário ainda nos primeiros capítulos do romance. O ponto angustiante e particular da solidão de Winston está no fato de que ele se acredita – por não encontrar ninguém como ele – o único que questiona o status quo, o único que olha para o modo de vida predominante e não enxerga, de fato, vida, o único que olha para a cidade que habita e vê degradação e miséria. E por se entender único em sua crítica e insatisfação, ele se sente um monstro.
| Winston tinha a sensação de estar vagando pelas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso em que o monstro era ele próprio. Estava sozinho | (p. 38)
Quando o livro começa, é um dia frio de abril, e o personagem caminha pelas ruas com o queixo enfiado no peito como forma de se esquivar do vento cruel. Que grande sinal de ensimesmamento e reclusão: o queixo enfiado no peito! O ensimesmamento daqueles que têm o questionamento radical como um modo de vida e que, por não encontrarem pares, fecham-se em si próprios.
No início do romance, tem lugar a narração do cotidiano de Smith, o cotidiano de um trabalhador de um órgão do governo da Oceânia, país totalitário e nacionalista, no suposto ano de 1984. Suposto, pois o próprio protagonista não tem certeza do ano. Os trabalhadores do governo que não pertencem ao núcleo do partido vivem vidas extremamente pobres. A narrativa parece ter início para registrar o momento em que uma pequena/grande diferença se produz nessa rotina. No dia 4 de abril de 1984, Smith decide começar a escrever um diário. É por isso que volta para casa em seu horário de almoço abdicando a refeição na cantina do Ministério da Verdade, local em que trabalha. Volta para o prédio das Mansões Victory onde o elevador raramente funciona em função da economia de energia promovida pelo governo. Uma economia austera que faz com que ele, um homem de 39 anos com uma úlcera acima do tornozelo, tenha de subir sete andares para chegar ao seu apartamento. Lá, de cima, olha para a cidade de Londres, uma das cidades mais populosas da Oceânia, e é capaz de enxergar a degradação na qual vive e na qual vivem todos. Como é visível em outros momentos do romance, a lucidez de Smith, a capacidade de ver a degradação da vida, não é partilhada por outros. Nada na cidade tem cor a não ser os pôsteres colados por toda a parte com o rosto do Grande Irmão. Casas estão caindo aos pedaços, janelas são remendadas com papelão e há muitos lugares bombardeados. No entanto, as propagandas têm cor. Nos locais onde as bombam que constantemente caíam sobre a cidade tinham criado espécies de grandes clareiras, como buracos enormes, apareciam “colônias sórdidas de cabanas de madeira”, parecendo, segundo o olhar de Winston, grandes galinheiros. E é essa morte toda que o olhar dele – olhar que ganha vida nas mãos de um narrador onisciente seletivo – vê.
Foi um acontecimento bastante sutil, que ele nem sabia se deveria chamar de acontecimento, o que lhe inseminou a vontade de escrever um diário, algo que, se fosse descoberto, seria punido com a morte ou com vinte e cinco anos de prisão em algum campo de trabalhos forçados. O acontecimento ou o des-acontecimento ocorreu durante a sessão diária dos Dois Minutos de Ódio, algo que merece um destaque a parte.
Os Dois Minutos de Ódio são prática governamental de controle do povo a partir de suas emoções. O governo da Ocêania manipula o ódio do povo. E se o faz, é por ter ciência de que uma vasta maioria de ovelhas, uma vasta maioria de cidadãos é completamente ignorante de sua dimensão emocional. Tudo, nesse evento diário, é construído para manipular. Primeiro, um som agudo, estridente, que mexe com os nervos de todos, dá início à sessão do ódio. Depois, o rosto do inimigo do povo surge na tela, e o inimigo do povo foi escolhido à revelia do povo. A eles é dado um inimigo para direcionar todo o seu ódio. Emmanuel Goldstein: alguém que um dia fora uma das figuras mais importantes do Partido, quase tão importante quanto o Grande Irmão, e que depois passara a questionar o Partido dizendo que a revolução fora traída e denunciando uma ditadura. Goldstein é então condenado à morte e foge. Todos os dias, nos Dois Minutos de Ódio, o principal personagem era sempre ele. A ele, foragido, era aplicada a organização de um grupo secreto contra o Socing, a Confraria.
Os Dois Minutos de Ódio falam de manipulação e de contágio. Contágio de emoções pulsantes em massas de pessoas. O narrador diz: “O mais horrível dos Dois Minutos de Ódio não era o fato de a pessoa ser obrigada a desempenhar um papel, mas de ser impossível manter-se à margem” (p. 25). E não era possível manter-se à margem porque o ódio contagiava.
| Depois de trinta segundos, já não era preciso fingir. Um êxtase horrendo de medo e sentimento de vingança, um desejo de matar, de torturar, de afundar rostos com uma marreta, parecia circular pela plateia inteira como uma corrente elétrica, transformando as pessoas, mesmo contra sua vontade, em malucos a berrar, rostos deformados pela fúria. Mesmo assim, a raiva que as pessoas sentiam era uma emoção abstrata, sem direção, que podia ser transferida de um objeto para outro como a chama de um maçarico. Assim, em determinado instante a fúria de Winston não estava nem um pouco voltada contra Goldstein, mas, ao contrário, visava o Grande Irmão, o Partido e a Polícia das Ideias | (p. 25).
No meio da solidão em que Winston vivia, acreditando-se sozinho em seu ódio àquela ditadura, é a possibilidade de encontrar alguém inortodoxo – que palavra bonita! – o que alimenta suas esperanças. O personagem de O'Brien, um membro do Núcleo do Partido, é alguém que faz com que Winston tenha suspeitas. Talvez ele não seja tão ortodoxo assim! O jeito rude e brutal de O'Brien guardava, também, alguma coisa de delicadeza, alguma coisa de refinamento, e tudo isso fazia com que Winston se sentisse intensamente atraído por ele. “O'Brien parecia ser uma pessoa com quem se podia conversar, se por acaso fosse possível lograr a teletela e ficar a sós com ele” (p. 21). Aí está o desejo de Winston. O desejo de partilhar a crítica, o desejo de conversar sobre outras possibilidades de viver, de pensar. Mas era difícil saber se haveriam outros como ele mesmo, pois naquela sociedade todos se acostumaram – instintivamente - a “dissimular os próprios sentimentos, manter a expressão do rosto sob controle” (p. 27). No dia frio de abril de 1984 em que a narrativa começa, ao fim dos Dois Minutos de Ódio, o des-acontecimento foi que ele e O'Brien trocaram um olhar e nesse olhar, os dois com as guardas instintivas baixas, Winston viu alguma coisa, viu – ou imaginou ver, ou quis ver – que O'Brien pensava como ele. Estimulado por esse incêndio interno, Winston vai para sua casa, pega o caderno que comprou clandestinamente e – recolhido num canto da casa onde a teletela não o pegava – comete o pensamento-crime. O que Winston começa a escrever em seu diário é a formulação de uma crítica, de um questionamento, de uma problematização, é a materialização, em palavras, de uma contrariedade àquilo que é, na sociedade em que vive, aceito como verdade inconteste.
Até as crianças eram ensinadas a entender que todo e qualquer questionamento às verdades do partido constituíam um crime. Quando Winston vai atender ao pedido de sua vizinha para que concerte a pia de sua cozinha, os dois filhos da mulher, brincando de integrantes da Polícia das Ideias, gritam para ele: “Você é um traidor!”, gritou o menino. “É um criminoso do pensamento! Um espião eurasiano! Eu acabo com você, vaporizo você, mando você para as minas de sal!”. A doutrinação feita nos corpos e mentes das crianças fica subentendida quando a Sra Parsons – como forma de se desculpar com Winston pelo comportamento das crianças – diz que elas estão desapontadas porque não puderam ver o enforcamento. Os enforcamentos de criminosos eram espetáculos públicos bastante populares, e as crianças faziam questão que os pais as levassem para assistir. Assim eram incutidos os dogmas do sistema político vigente. No final da obra, quando Winston está preso em uma cela do Ministério do Amor, vê Parsons chegar. Foi denunciado por sua filha pois durante o sono estava falando: Abaixo o grande irmão! No entanto, ele foi tão moldado pelo partido, tão impedido de tecer críticas, que se sente agradecido por ter sido preso. Cometera pensamento-crime durante o sono. Que bom que o descobriram logo, pensa ele.
As dúvidas de Winston em relação à escrita de seu diário não tem relação com o fato de que ele provavelmente seria preso ou exterminado, a partir do momento em que começa a se manifestar por escrito, a formular um pensamento, a exercer cada vez mais uma crítica, a partir desse momento ele não parece disposto a voltar atrás. O que produz dúvida em Winston é: para quem ele fala? Para quem ele escreve aquelas palavras? Adiantariam de alguma coisa? Por outro lado, há um impulso de vida nele, uma certeza de que era preciso fazê-lo, de que era preciso afirmar a crítica, afirmar o pensamento e que isso, inclusive, ajudaria-o a manter a sanidade.
| Era um fantasma solitário afirmando uma verdade de que ninguém jamais ouviria falar. Só que, enquanto a afirmasse, de alguma maneira obscura a continuidade não se romperia. Não era fazendo-se ouvir, mas mantendo a sanidade mental que a pessoa transmitia sua herança humana. | p. 39
Ser capaz de formular os próprios pensamentos é o que se torna um passo decisivo na vida de Winston.
| Parecia-lhe que só agora, quando começava a ser capaz de formular seus pensamentos, dera o passo decisivo. […] Agora que se via como um homem morto, tornava-se importante continuar vivo o maior tempo possível. | p. 40
É como se agora que ele havia começado a pensar por conta própria, agora que ele começara de fato a enxergar, é que valia a pena seguir vivo!
3.
É incrível acompanhar o processo de expansão de consciência de Winston desde que ele começa a escrever no diário. Esse diário tem um papel bastante importante na obra. É ali que Winston elabora seu pensamento, é ali que ele recua e problematiza a existência em que ele e a maior parte das pessoas ao seu redor vivem. Aquilo que foi naturalizado por todos é alvo de minuciosa observação. A ideia de um recuo, a ideia de um afastar-se para olhar, fica também marcada na questão arquitetônica. Na sala do apartamento de Winston, há um recuo na parede, espaço que muitos anos atrás era usado para uma estante de livros embutida. Nesse recuo na parede de seu próprio apartamento, onde a teletela não o vê, ele toma distância. E não é que ele, antes, fosse um alienado. Ele sempre fora um questionador e sempre sentira um desconforto alerta para a vida que todos levavam na Oceânia. A questão é que a crítica e a capacidade de observação de Winston se infensifica à medida que ele dedica o seu tempo à escrita-pensamento. Winston escreve para pensar e nessa prática vai se transmutando. O narrador, me parece, se confunde com Winston. Narrador-observador, crítico, que vê os detalhes do cotidiano e os põe em perspectiva, todo o tempo, tem o mesmo tom de quando Winston está olhando para os acontecimentos. Um “narrador filosófico” num lindo amalgamamento entre narrador e personagem.
4.
No já citado capítulo 5, Winston encontra-se com Syme, personagem que apresenta a política da Novafala e o seu mecanismo de eliminação do pensamento. As observações de Winston/narador em relação a esse personagem são muito interessantes. Syme é bastante perspicaz, olha o rosto dos outros prescrutando-os como se buscasse vestígios de pensamento-crime. “Num estilo intelectual, Syme era virulentamente ortodoxo”. Para mim, ele é um personagem que diz muita coisa, um personagem que fala da figura do intelectual ou que fala do papel do intelectual em uma sociedade. Syme é um intelectual que pensa o que lhe é dado pensar. Alguém que sente prazer com o uso do intelecto, mas que não desenvolveu a capacidade de problematizar todas as estruturas, todas as verdades. Além disso, talvez ele seja um bom exemplo de um intelectual obediente e de um intelectual sem ética uma vez que ele descreve o quanto gosta de ver os prisioneiros serem enforcados e o quanto gosta de vê-los espernear. Quer dizer, toda a intelectualidade de Syme não faz com que ele recue e questione o Partido e o funcionamento deste partido ao perceber que morte e tortura estão fazendo parte do cotidiano. Syme falava com prazer sobre as execuções que ocorriam nos porões do Ministério do Amor. Winston tinha alguma afeição por ele, mas para conseguir conversar com seu colega, precisava fazer o esforço de desviá-lo desse assunto para que ele falasse de filologia e dos aspectos técnicos da Novafala.
| Que coisa bonita, a destruição de palavras! Claro que a grande concentração de palavras inúteis está nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que também podem ser descartados. Não só os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, o que justifica a existência de uma palavra que seja simplesmente o oposto de outra? Uma palavra já contém em si mesma o seu oposto. Pense em “bom”, por exemplo. Se você tem uma palavra como “bom”, qual é a necessidade de uma palavra como “ruim”? “Desbom” dá conta perfeitamente do recado. […] Ou então, se você quiser uma versão mais intensa de “bom”, qual é o sentido de dispor de uma verdadeira série de palavras imprecisas e inúteis como 'excelente', 'esplêndido' e todas as demais? 'Maisbom' resolve o problema; ou 'duplimaisbom', se quiser algo ainda mais intenso. |
Aquilo que está no cerne da Novafala, como mecanismo de redução do pensamento, é o apagamento das nuances e também o apagamento da oposição. A palavra única reduz a pluralidade. Se observamos a comunicação majoritária que se dá nos espaços que habitamos, a língua é reduzida. O tempo curto e fragmentado, o tempo que não se estende, acaba exigindo falas curtas, frases e reflexões que não vai longe. A língua objetiva, referencial, é preferida. A linguagem conotativa, desobediente, é preterida. A formas de falar e de escrever que se alongam, que se utilizam de um vocabulário variado, que habitam as nuances, essas formas sofrem às vezes a neutralização do deboche ou da impaciência.
Winston, no entanto, não opera com a Novafala tanto quanto Syme gostaria.
| Você não sente muita admiração pela Novafala, Winston”, disse ele, quase triste. “Até mesmo quando escreve, continua pensando em Velhafala. Li alguns daqueles artigos que você publica no Times de vez em quando. São muito bons, mas são traduções. No fundo você preferiria continuar usando a Velhafala, com todas as suas inexatidões e nuances inúteis de significado. Não compreende a beleza da destruição de palavras. Você sabia que a Novafala é a única língua do mundo cujo vocabulário encolhe a cada ano? | p. 68
A exatidão é própria de uma linguagem autoritária na qual as verdades são dadas e as palavras que usamos para nos relacionarmos com essas verdades também já estão postas.  
| Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos. Na Décima Primeira Edição já estamos quase atingindo esse objetivo. Só que o processo continuará avançando até muito depois que você e eu estivermos mortos. Menos e menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor. […] A revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing é a Novafala”, acrescentou com uma espécie de satisfação mística” | p. 69
No entanto, ainda assim, Syme não é o tipo ideal para o Partido. Winston intui que ele seria vaporizado e é isso o que acontece mais tarde. Talvez justamente por entender dos perigos do pensamento que o partido se preocupe com tipos como Syme. A intelectualidade que pensa a partir de um pensamento dado pode facilmente passar a problematizar verdades inabaláveis. O ideal é não pensar, o ideal é não se sentir motivado para pensamentos mais complexos, que demandem mais esforços de nós. O tipo ideal para o partido senta-se à mesa com Winston e Syme, um tipo que o próprio Syme detesta. Parsons é um repetidor de slogans, vive dentro do ideal social, no entanto, e esse é um detalhe incrível do livro, a verdade é que em um nível inconsciente Parsons sente que aquilo não é vida. A presença do inconsciente é marcada no fato de que dormindo, durante os sonhos, ele fala em voz alta: Abaixo o grande irmão! Abaixo esta vida que na verdade é a deterioração da vida. Denunciado pela própria filha, é preso.   
6.
Existe uma revolta do corpo em 1984! Existe uma manifestação ancestral, uma informação contida “em nossos ossos”, uma espécie de protesto mudo, que “informa” que aquelas condições de vida são intoleráveis. Acho que essa dimensão do livro não pode ser ignorada. Winston é sensível o suficiente para sentir esse protesto, para ouvi-lo, mesmo em uma estrutura social programada para a dessensibilização. Como ele mesmo se dá conta, “o que o Partido fizera de terrível fora convencer as pessoas de que meros impulsos, meros sentimentos, não servem para nada, destituindo-as, ao mesmo tempo, de todo e qualquer poder sobre o mundo material” (p. 197).
| Talvez fosse verdade que as condições de vida do ser humano médio fossem melhores hoje do que eram antes da Revolução. Os únicos indícios em contrário eram o protesto mudo que você sentia nos ossos, a percepção instintiva de que suas condições de vida eram intoleráveis e de que era impossível que em outros tempos elas não tivessem sido diferentes. Pensou que as únicas características indiscutíveis da vida moderna não eram sua crueldade e falta de segurança, mas simplesmente sua precariedade, sua indignidade, sua indiferença. A vida – era só olhar em torno para constatar – não tinha nada a ver com as mentiras que manavam das teletelas, tampouco com os ideias que o Partido tentava atingir. Porções consideráveis dela, mesmo da vida de um membro do Partido, eram neutras e apolíticas, simplesmente questão de suar a camisa realizando trabalhos horrorosos, de lutar para conseguir um lugar no metrô, de cerzir uma meia velha, de arrumar um saquinho de sacarina, de economizar uma bagana. O ideal definido pelo Partido era uma coisa imensa, terrível e luminosa – um mundo de aço e concreto cheio de máquinas monstruosas e armas aterrorizantes –, uma nação de guerreiros e fanáticos avançando em perfeita sincronia, todos pensando os mesmos pensamentos e bradando os mesmos slogans, perpetuamente trabalhando, lutando, triunfando, perseguindo – trezentos milhões de pessoas de rostos iguais. A realidade eram cidades precárias se decompondo, nas quais pessoas subalimentadas se arrastavam de um lado para o outro em seus sapatos furados no interior de casas do século XIX com reformas improvisadas, sempre cheirando a repolho e a banheiros degradados. | p. 93
Na minha leitura, faz parte da degradação da vida, do bloqueio ao pensamento, da uniformização e de um impedimento à escuta de si, o fato de que na sociedade da Oceânia, os membros do Partido não disporem de tempo livre.
| Em princípio, os membros do Partido não dispunham de tempo livre e só ficavam sozinhos quando estavam na cama. Supunha-se que quando não estivessem trabalhando, comendo ou dormindo estariam participando de algum tipo de recreação comunitária; fazer alguma coisa que sugerisse gosto pela solidão, mesmo que fosse apenas sair para dar uma volta sozinho, sempre envolvia algum risco. Havia um termo para isso em Novafala: vidaprópria, com o sentido de individualismo e excentricidade |. p. 102-103
É essa excentricidade do protagonista, esse escape do caminhar do rebanho o que faz com que Winston veja a realidade de outra forma. Aliás, talvez escape não seja a melhor palavra, pois o fato é que o personagem cava um espaço para si. No meio de toda uma estrutura alienadora, ele cava um tempo-espaço fora dessa lógica. Isso é importante de ser observado nele. Aí está a sua subversão, a sua força. A força necessária para sair do movimento da manada. 
Em um fim de tarde, ao sair do trabalho, Winston decide não participar na noite do Centro, onde tinha de ir duas noites por semana aguentar brincadeiras enfadonhas, camaradagem forçada e uma noite movida a gym. Nessa noite, momento importante do romance, Winston vai em busca do passado. Anda pelos bairros do proletas, e, casualmente, encontra um homem “muito velho”. Segundo o personagem, deveria ter uns 80 anos. Winston o segue até um bar e paga para ele duas cervejas, tantando arrancar dele informações sobre o passado, sobre, basicamente, os modos de vida do passado. É engraçado observar isso. Diante da padronização dos modos de existência, Winston busca no passado outras formas. Formas que teriam sido apagadas, destruídas. O velho, no entanto, recorda de coisas fúteis e desordenadamente. Todos os fatos importantes estavam fora do alcance de sua visão. Era “como a formiga, que consegue ver pequenos objetos, mas não enxerga os grandes” (p. 114).
Winston, do meu ponto de vista, busca o passado não como uma prática de saudosismo, ele busca o passado para criar, para alternar, para se desuniformizar, para ter outros modos de vida como parâmetro, e por entender, por sentir, que os modos de vida de seu tempo são radicalmente pobres.
A ideia de uma memória ancestral que habita o nosso corpo, que habita o corpo de Winston e que o faz movimentar-se na direção dessa ancestralidade fica bastante marcada na loja do Sr. Charrington. Em primeiro lugar, cabe lembrar que a loja é um antiquário. Cheia de objetos do passado que não interessam a mais ninguém, que ninguém mais diria que são belos. Quando Winston vê, na loja, uma bola de vidro transparente com um coral dentro diz para o dono da loja que o objeto é bonito, ao que ele responde. “É bonito”, disse o outro apreciativamente. “Mas hoje em dia pouquíssima gente diria isso” (p. 117). Outro trecho de importante destaque para olharmos para essa memória do corpo se dá quando Charrington mostra para Winston o quarto onde ele e a mulher moraram até ela morrer. O quarto não possui teletela. É a possibilidade da solidão e do silêncio, é a possibilidade de um local a salvo do barulho molestador, mecanismo de alienação de si.
| O sujeito segurava o lampião bem alto, a fim de iluminar o aposento inteiro, e àquela luz débil e cálida o lugar parecia curiosamente aconchegante. Como um raio, passou pela cabeça de Winston a ideia de que talvez fosse fácil alugar aquele quarto por alguns dólares por semana – se ousasse assumir o risco. Era uma maluquice, um despropósito, uma ideia a ser descartada tão logo concebida; porém o quarto despertara nele uma espécie de nostalgia, uma espécie de lembrança ancestral. Winston tinha a impressão de saber exatamente como seria a sensação de estar sentado num lugar como aquele, numa poltrona ao lado da lareira, com os pés apoiados no guarda-fogo e uma chaleira sobre a chapa lateral, completamente sozinho, totalmente seguro, a salvo de toda a vigilância […] | p. 118
Mais tarde, quando Winston encontrar O'Brien em seu apartamento e quando eles forem brindar com vinho de verdade, Winston fará um brinde: ao passado!
7.
Júlia é a possibilidade do amor para Winston. Ao longo da narrativa, sabemos que o relacionamento que ele teve com uma ex-mulher que não vê há anos foi uma impossibilidade. Sua primeira mulher era incapaz de pensar por si própria e era justamente isso que fazia com que Winston a detestasse. Katharine era uma benepensante, palavra em novafala para se referir a pessoas incapazes de terem um pensamento fora das normas. Júlia se concretiza como amor possível porque não é uma pessoa acrítica. Muito pelo contrário, Júlia é uma subversiva e também odeia o grande irmão. Ela não se ajusta e, como diz a Winston, em seu primeiro encontro, é boa em identificar pessoas que não se ajustam. A possibilidade do amor na sociedade da Oceânia tem, no entanto, um significado menos individual e mais social. Naquele momento histórico o amor e o desejo não quase não são mais possíveis, “tudo estava misturado ao medo e ao ódio”. O sexo, dentro da doutrina do partido, existia apenas com fins reprodutórios e o partido precisava aprovar os pedidos de casamento solicitados. Nunca aprovava pedidos entre pessoas que visivelmente sentiam-se atraídas uma pela outra. Nesse sentido, a união de Júlia e Winston “fora uma batalha; o gozo, uma vitória. Era um golpe assentado contra o Partido. Um ato político” (p. 153).
As relações amorosas e familiares em 1984 são padronizadas. Não há, nessas relações, desejo, não há amor. Julia e Winston vive uma relação à margem de tudo isso, e não poderia deixar de ser diferente. É um amor revolucionário. No entanto, a subversão de Júlia, suas práticas de vida são diferentes de Winston. Existe uma forte dimensão intelectual no protagonista da obra. Um forte desejo de entender o mundo que habita, de entender os mecanismos políticos que afetam sua vida. Sua busca pelos porquês, sua busca por aquilo que é verdade ou não, não interessa tanto a Júlia. Ela não era “muito ligada em leitura” (p. 158). “Para ela, a vida era uma coisa muito simples. Você fica querendo se divertir e “eles”, ou seja, o Partido, faz de tudo para evitar que você se divirta. Você faz de tudo para infringir as regras”.
O Partido, no entanto, oferece um tipo de alegria barata, um tipo de prazer barato, que serve para compensar, para anestesiar a falta de vida. Falar em 1984 e não falar do papel que o gym desempenha no livro é não estar atento a leitura. No entanto, o gym como ferramenta anestesiadora aparece sutilmente em alguns pontos. Destaco quatro: 1) Dentro da cantina do Ministério do Amor, havia uma espécie de bar onde o gym era vendido, mesmo durante a hora do almoço, a dez centavos a dose grande; 2) As reuniões dos camaradas do partido, feitas para entretenimento e para criar um senso falso e superficial de camaradagem, eram regadas a gym; 3) No momento em que Winston está apaixonado por Júlia e eles estão tendo relações sexuais intensas, sua necessidade de tomar gym diminuí drasticamente; 4) Ao final do livro, depois que Winston é reeducado, é o gym que o fazia mergulhar no esturpor necessário para esquecer a falta de sentido daquela vida e era o gym que o dava ânimo pelas manhãs para continuar.
Winston se aferra aos seus sentimentos. Júlia também. Assim como o Partido sabe do perigo da força do sentir. Quando Winston é torturado no Ministério do Amor, ele é torturado até que abra mão do amor. O quarto 101 é o quarto que coloca o prisioneiro diante de seu maior medo, algo que o Partido sempre sabe o que é. No momento em que os ratos ameaçam aproximar-se do rosto de Winston na última cena de tortura, ele grita que façam aquilo com Júlia. E aí, nesse momento, sua transformação está completa.
8.
No final da obra, quando Winston tem acesso ao livro de Goldstein, que na verdade foi escrito por O'Brien, ele fica sabendo que a guerra constante também é um mecanismo político. As novas guerras agora não parte de uma causa concreta para lutar. A guerra é feita para manter a sociedade hierarquizada.
| […] também ficou claro que o aumento global da riqueza talvez significasse a destruição […] da sociedade hierárquica. Num mundo no qual todos trabalhassem pouco, tivessem o alimento necessário, vivessem numa casa com banheiro e refrigerador e possuíssem carro ou até avião, a forma mais óbvia e talvez mais importante de desigualdade já teria desaparecido. Desde o momento em que se tornasse geral, a riqueza perderia seu caráter distintivo. Claro, era possível imaginar uma sociedade na qual a riqueza, no sentido de bens e luxos pessoais, fosse distribuída equitativamente, enquanto o poder permanecia nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Na prática, porém, uma sociedade desse tipo não poderia permanecer estável por muito tempo. Porque se lazer e segurança fossem desfrutados por todos igualmente, a grande massa de seres humanos que costuma ser embrutecida pela pobreza se alfabetizaria e aprenderia a pensar por si; e depois que isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde essa massa se daria conta de que a minoria privilegiada não tinha função nenhuma e acabaria com ela. A longo termo, uma sociedade hierárquica só era possível num mundo de pobreza e ignorância. | p. 225-226
| O ato essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é uma forma de despedaçar, de projetar para a estratosfera ou de afundar nas profundezas do mar materiais que, não fosse isso, poderiam ser usados para conferir conforto excessivo às massas e, em consequência, a longo prazo, torná-las inteligentes demais. Mesmo que armas de guerra não sejam efetivamente destruídas, sua fabricação continua sendo uma forma conveniente de utilizar uma mão de obra que não produza nada consumível | p. 227
1984 termina com um alerta ao vício do poder. O'Brien diz para Winston em uma das sessões de tortura: “O Partido deseja o poder exclusivamente em benefício próprio. Não estamos interessados no bem dos outros; só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro” (p. 308). Para Ben Pimlott, no já citado posfácio, 1984 é um obra-prima de escrita política. [...] Disfarçado de ficção de horror cômica, 1984 é na verdade um ensaio de não ficção sobre o poder maligno”. E Erich Fromm, tecendo uma linha entre as utopias negativas mais famosas do século XX traz uma reflexão genial: 
“Há uma questão básica em comum entre as três utopias negativas. A questão é filosófica, antropológica e psicológica, e talvez também religiosa. É a seguinte: pode a natureza humana ser modificada de tal maneira que o homem esquecesse seu desejo de liberdade, dignidade, integridade, amor - ou seja, pode o homem esquecer que é humano? Ou tem a natureza humana uma dinâmica que reagiria à violação dessas necessidades humanas básicas com a com a tentativa de transformar uma sociedade inumana numa sociedade humana? Deve-se notar que os três autores não tomam o partido do relativismo psicológico hoje comum a tantos cientistas sociais; eles não partem da ideia de que não existe algo como “natureza humana”; de que as qualidades essenciais ao homem não existem; e de que o homem, ao nascer, é apenas uma página em branco na qual uma sociedade qualquer escreve seu texto. Eles pressupõem que o homem se empenha intensamente na luta pelo amor, pela justiça, pela verdade, pela solidariedade, e, nesse aspecto, são muito diferentes dos relativistas. De fato, eles afirmam a luta e a intensidade dessas lutas humanas ao descrever os próprios meios que apresentam como necessários à sua destruição. Em Nós, é necessário realizar uma cirurgia cerebral similar à lobotomia para eliminar as demandas humanas da natureza humana. No Admirável Mundo Novo, a seleção biológica artificial e as drogas são necessárias, e em 1984 é a utilização completamente sem limites da tortura e da lavagem cerebral. Nenhum dos três autores pode ser acusado de pensar que a destruição da humanidade dentro do homem é fácil. Todavia, os três chegam à mesma conclusão: que essa destruição é possível, com os meios e técnicas que atualmente são de conhecimento comum”. 
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notassobreliteratura · 5 years ago
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O quarto de giovanni - James Baldwin
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O ponto mais alto do livro, para mim, é o diálogo que Jacques - descrito como uma bicha velha rica - tem com o David, o jovem loiro americano que se auto-exilou em Paris para fugir de seus fantasmas internos. O diálogo que acontece quando já está claro para David que ele está completamente atraído por Giovanni e vice-versa.
“Você acha que a minha vida é vergonhosa porque esses meus encontros são vergonhosos. E são mesmo. Mas devia perguntar a si mesmo por que é que eles são vergonhosos”. 
“E por que é que eles são... vergonhosos?”, perguntei. 
“Porque neles não há afeto, não há alegria. É como enfiar um plugue numa tomada sem energia. Há um toque, mas não há contato. Só toque, nem contato nem luz”. 
p. 86 
Jacques é um homem velho que não consegue resistir a esses encontros mesmo eles sendo vazios. Ele é descrito como alguém que está sempre em busca de um jovem e belo rapaz para transar e sua vida se resume a isso. Mas nesse momento, ele tem um rompante de lucidez, e parece incentivar David a viver a alegria e o afeto. O que é potente aqui é o deslocamento. As identidades sexuais não interessam. O próprio James Baldwin disse em entrevista que, para ele, termos como ‘heterossexual’, ‘homossexual’, ‘bissexual’, ‘lésbica’ não dizem nada. Uma relação sexual qualquer, entre quem quer que seja, será vergonhosa sempre que, e somente se, não houver afeto e não houver alegria.  No entanto, é claro que o livro não apaga dimensões sociais, não se esquece de que são valorações morais sociais sobre pessoas reduzidas às suas identidades sexuais que tornam as vidas de pessoas homossexuais afetivamente miseráveis, alegremente miseráveis. É disso que trata o livro. Há um questionamento da redução do sujeito a sua identidade. Nem David nem Giovanni se enquadram em identidades sexuais fixas. Giovanni vivia na Itália com uma mulher e gostava dela, David transa com homens e mulheres.  O que Jacques parece estar propondo é que David desinstale de seu próprio corpo a moralidade que torna o sexo entre dois homens vergonhoso. 
“Você devia amá-lo”, disse Jacques, veemente, “amá-lo e se deixar amar por ele. Acha que existe outra coisa neste mundo que seja realmente importante? E quanto tempo, na melhor das hipóteses, pode durar? Considerando que vocês dois são homens e ainda têm muita estrada pela frente? Só cinco minutos, aposto, só cinco minutos, e a maior parte desse tempo, hélas!, na escuridão. E se você pensar nesse tempo como uma coisa suja, então vai mesmo ser uma coisa suja - porque você não vai se dar nem um pouco, vai desprezar a própria carne e a carne dele. Mas vocês pode fazer com que o tempo passado com ele não seja sujo de modo algum vocês podem dar um ao outro alguma coisa que torne vocês dois pessoas melhores - pra sempre - desde que não tenham vergonha, que se recusem a se proteger”. “Se vocês ficar se protegendo o tempo todo”, acrescentou, mudando o tom de voz, “vai acabar preso dentro do seu próprio corpo sujo, pra sempre, pra todo o sempre - como eu”. 
Jacques tem consciência de tudo isso, mas essa consciência não é suficiente para que ele faça aquilo que está sugerindo a David. No entanto, David vive, para mim, uma ambiguidade angustiante durante todo o romance. O desejo do seu corpo lhe foi durante toda a sua vida considerado doentio e criminoso, então ele faz tudo o que pode para colocar uma pedra gigantesca em cima do desejo. E quando ele dá vazão ao seu corpo e se relaciona com outro homem tudo fica sujo. Ele sente desejo por Giovani, pelo corpo de Giovanni, mas sente nojo quando eles têm relações sexuais. 
O potente da cena no bar, quando Giovanni está galanteando David e David está deixando-se seduzir, é que o desejo de David é tão forte, está tão acesso, que dissolve sua forte autorrepressão em desejar outro homem. Mas esses momentos de liberdade das toxinas morais são raros no livro.  
A relação desejo do corpo com castração da moral é muito clara e belamente descrita em sua primeira relação sexual com outra pessoa do mesmo sexo, ainda na adolescência.
“Estávamos nus, e o lençol com que nos tínhamos coberto estava embolado em torno de nossos pés. O corpo de Joey, moreno, suado, era a criação mais bela que eu tinha visto até então. Senti vontade de tocá-lo para despertá-lo, mas alguma coisa me deteve. De repente tive medo. Talvez porque ele me parecesse tão inocente, a dormir, com uma confiança tão absoluta; talvez por ser muito menor do que eu; meu próprio corpo de súbito me pareceu grosseiro, esmagador, e o desejo que crescia dentro de mim, monstruoso. Porém, acima de tudo, tive um medo. Um pensamento se impôs: mas Joey é um garoto. De repente vi o poder contido em suas coxas, seus braços, seus punhos tenuemente fechados. O poder a e a promessa e o mistério daquele corpo subitamente me inspiraram medo. Aquele corpo me pareceu a entrada negra de uma caverna dentro da qual eu seria torturado até enlouquecer, onde perderia minha virilidade. O que eu queria exatamente era conhecer aquele mistério e sentir aquele poder e ver aquela promessa realizar-se através de mim. O suor nas minhas costas gelou. Senti vergonha. Até a cama em que eu estava, aquela deliciosa desarrumação, era um testemunho de vileza. Eu me perguntava o que diria a mãe de Joey quando visse os lençóis. [...] Uma caverna se abriu em minha mente, negra, cheia de rumores, indiretas, histórias entreouvidas, semiesquecidas, semicompreendidas, cheia de palavras sujas”.
p. 34
A moral é algo que se impõe como o pensamento se impôs ali e acabou com o desejo e tornou aquele cena antes bela, agora suja e vergonhosa. A moral se impõe ao desejo do corpo e o distorce. É uma manipulação, uma aniquilação da realidade daquilo que dá potência ao sujeito.
Giovanni é imigrante, é pobre e é gay. E qual é o seu final? Ele é guilhotinado. Segundo Hélio Menezes, “Baldwin costurou e entrelaçou sutilmente temáticas raciais a conflites de classe e políticas de gênero e sexualidade, entendendo-as como fatores que e codeterminam décadas antes de o conceito de interseccionalidade ganhar protagonismo no meio intelectual-militante. 
Baldwin, também em entrevista, declarou que o livro era menos sobre homossexualidade e mais sobre “o que acontece quando você tem tanto medo que acaba não conseguindo amar ninguém”. E é interessante perceber como questionar a ideia de identidade gerava conflitos a Baldwin, que queria ser apenas um escritor norte-americano e não um escritor norte-americano negro. Ao falar sobre O quarto de giovanni disse que os personagens principais do livro são brancos porque “Eu certamente não conseguiria - naquele momento da minha vida - lidar com outro grande peso, o ‘problema do negro’. A questão sexual e moral era difícil de trabalhar. Eu não teria como tratar das duas no mesmo livro. Não havia espaço para isso”, disse ele. É interessante observar como a sua decisão de trabalho não é respeitada por uma imposição de se fixar em identidades. Já que ele é um homem negro precisa escrever apenas livros sobre homens negros. Seu primeiro romance fora sobre a vida no Harlem nos anos 30 e tratava da experiência afro-americana. O segundo livro, O quarto de giovanni, foi negado por sua editora que disse que ele não poderia se dar ao luxo de desagradar o público específico conquistado no primeiro livro. Baldwin quebra ou quer quebrar o rótulo de autor negro ou qualquer outro rótulo. Baldwin disse que no dia-a-dia, observando a vida nunca foi capaz de ver onde estava as barreiras que dividiam os seres humanos nesses rótulos. A dificuldade de desconstrução das categorias de identidade fica clara dentro dos próprios movimentos identitários. Um líder do Partido dos Panteras Negras em 1968 escreveu que em O quarto de Giovanni se via o “ódio mais total, sofrido e agonizante contra negros, particularmente contra si mesmo”.  
Baldwin possui um dôssie do FBI de 1800 páginas, com informações coletadas entre os anos 1960 e 1970. Seu cotidiano e seus textos eram vigiados. A sexualidade do escritor era merecedora de dezenas de análises nos arquivos. 
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