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Carta a Sicrano
Estimado amigo Sicrano,
Escrevo-te uma carta, coisa tão rara nestes dias, porque me apetece e é bom método de medir e calcular palavras. O tempo em que me demoro escrevendo calmamente cada uma delas me permite pensar na que virá a seguir com mais atenção e faz com que o texto em si seja mais coeso e faça mais sentido ao leitor.
Escrevo-te por apenas um pouco de necessidade. Podia eu muito bem falar-te pessoalmente de minhas angústias e problemas, mas a fala já parece ter perdido grande parte de seu significado a mim. Talvez eu deva atribuir tal perda às excessivas palavras que escuto, que consequentemente perdem seu efeito ao entrar em meus ouvidos. Mas não seria de todo certo: tenho visto palavras muito mais do que as tenho escutado, e a cada dia parece a palavra escrita adonar-se cada vez mais de mim, e agarrar-se a significados de uma maneira que jamais imaginei palavras o fazendo. De qualquer maneira, este é mais um de meus momentâneos desesperos que julgo dignos de serem transformados em prosa. Além do mais, faz tempo que não escrevo para apenas uma pessoa ler sem que seja banalmente, com erros propositais a fim de encaixar-me em certos grupos.
Encaixar-se, na verdade, é uma das coisas que me fez agarrar este papel e tocar a escrita. Sinto-me dividido. Mas não em um grande dilema, daqueles que divide um homem em duas partes até que o mesmo inspira-se e escolhe uma e apenas uma para seguir em frente, mas em várias partezinhas, que aceitam viver em companhia umas das outras, deixando o dono da referida consciência, eu, em uma profunda e duradoura confusão que afeta não apenas uma mas todas as escolhas importantes. Explicarei melhor: sinto-me um Mestre de Nada. Dou-me bem com todo tipo de gente, enfio-me em qualquer roda de conversação e tenho domínio superficial sobre a maior parte dos assuntos, mas disto não passa. No momento em que qualquer um destes grupos tenta aprofundar a prosa, pronto, lá vou eu, boio. E penso às vezes que seria melhor focar em apenas uma de minhas facetas e cultivá-la enquanto vou abandonando às outras. Pois o eu que fica em casa sozinho escrevendo não é o mesmo que comparece aos boêmios eventos noturnos. E este boêmio pedaço de consciência não é o mesmo que comparece às atividades diurnas indispensáveis à sociedade. E este não é o mesmo que conversa privadamente com seus melhores amigos e confidants. E este não é o mesmo que imóvel tolera atividades familiares com pessoas repugnantes às quais deve relação apenas por ter semelhante sangue. E nesta confusão de vários seres, pergunto-o: sou o único?
Sicrano, perdoe-me por minha aporrinhação, mas devo sinceramente perguntar-te: sou apenas eu assim? São assim todos os homens e mulheres da Terra? É assim apenas um grupo de pessoas com as quais eu devo identificar-me? Espero de ti resposta mas compreendo a ausência de tal. É difícil entender-me, e é justo por isso que estimo tanto tua fiel amizade. A faceta que te mostro neste pedaço de texto é a mais verdadeira que me atrevo a invocar cá de dentro, e a certeza de que a mesma não há de o assustar é o que me dá tranquilidade para seguir ao teu lado.
Dando uma conclusão a meu problema, devo dizer que estou farto! Mas mesmo farto ao ponto de pôr-lhe um ponto de exclamação na frase anterior, tenho receio quanto à maneira de proceder a partir de tal conclusão. Pois forçar-se a mudança não é nada mais do que assumir uma efêmera, passageira máscara que não tardará a sumir revelando a boa e velha carranca a qual todos já se acostumaram, isto tudo dando motivo a futuras vergonhas do eu passado.
E o meu drama muitos já conhecem, tendo testemunhado aquela faceta minha que é alterada pelo álcool ou por outros vícios (sabes ser esta uma das mais verdadeiras, infelizmente). Meu drama de achar alguém com quem dividir minhas mágoas, minhas alegrias, desejos, lágrimas e cama se põe mais difícil a cada novo pensamento. Como hei eu de achar uma para mim se sou mais de um? Devo achar mais de uma? Isso não deve funcionar, lhe dou o testemunho, pois sabes que dentre estas minhas facetas não há a de nenhum santo. Mas sigo, esperando um dia acalmar-me e recorrendo, por meio desta e de outras, a alguns bons e velhos amigos que cumprem alguns dos requisitos e preenchem algumas das lacunas. E a vós, amigos fiéis, levanto a bebida que tenho agora em mãos, e que pelo teor deste meio sabes não ser a primeira da noite. Sois benção que estou longe de merecer.
Sou bom para poucas coisas: e escrever é uma delas. Mas rogaram-me praga parece, pois a habilidade que tenho mostra-se inútil fronte à falta de ideias e de vontades. A verdade é que por isso que te escrevo. Pois assim como um gato gasta e afia suas garras esfregando-as em árvores, eu tenho de gastar esta minha habilidade com algo, e nem sequer um dos pedaços de minha consciência tem as ideias das quais preciso para escrever ou a paciência para maturá-las. Então espero que tenhas aguentado esta faceta minha que escreve como no século XIX tentando copiar um Eça ou algo parecido. Mas espero que me entendas, que sintas por mim e que amanhã não mencione isto a ninguém, muito menos a mim ou mesmo a ti.
Meu sincero carinho,
D. Fulano.
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Larvas de Mosca
Se nem eu mesma me entendo, não espero que tu o faças. Lembro ainda da noite em que te conheci, e de como foi fácil sorrir em tua direção mesmo quando tudo dentro de mim dizia o contrário do que diz um sorriso. O prazer de arreganhar os dentes não por ação, mas por reação, por consequência de um olhar ou de similar arreganho era algo que eu tinha certeza jamais sentir. Depois de toda essa merda, de tanta dor e tantas fissuras que arrecadei dentro de mim, não faço ideia de quem é e quem foi mais bobo nessa história: eu, tu ou nossos sorrisos. Aquela noite era prova e evidência concreta de que eu podia botar tudo pra trás, desde que estivesse disposta a reagir a sorrisos, a olhares...
Talvez tu sejas o bobo, é o que penso quando me lembro do teu passo atrapalhado atravessando uma multidão dançante, vindo em minha direção com os olhinhos balançando de um canto pro outro dentro de suas órbitas, evitando-me sem me evitar, contrariando totalmente a ação das pernas que seguiam em minha direção. Nisso tudo não me lembrava de responder e muito menos de escutar o que alguém que estava do meu lado falava, só me lembrava de dançar, de te balançar os cabelos, te convidando pra mais perto. Pelo que achei ser sorte minha, tu sabias bem melhor que eu quem era que falava do meu lado, e do que este quem falava. E foi só assim que me lembrei de escutar, de responder, reconhecendo o método tímido de se infiltrar em uma conversa qualquer para só assim chegar em alguém. A conversa se estreitou mais e mais, os sorrisos alargaram mais e mais, os olhares se aprofundaram mais e mais, quando vê já está excluído da prosa o terceiro elemento, talvez tendo voltado a dançar ou achado alguém pra continuar uma conversa trivial. Eu aqui e tu ali. Não achei que ia demorar muito pra que deixasses de lado a máscara de timidez e de boa-pessoíce, moda entre os caras desde pelo menos muitos anos, me agarrasses pela cintura ou pelos cabelos ou pelos dois e me amassasses em um beijo etílico e rápido. Não que eu não quisesse tal coisa, foi justo pra isso que saí de casa, mas me surpreendeu e agradou que não foi assim, bruto, interrompendo uma provável conexão real de pessoas. Quando vê já foram todos às suas casas e eu saí de lá só com minha saliva dentro de minha boca, e com o teu número no meu telefone.
Talvez eu seja a boba, é o que penso quando me lembro das três semanas em que nossas conversas atravessavam quilômetros de telas e milhões de pixels, da atenção boa e não exagerada que recebi, e das saídas que demos. Quando fomos ao cinema, quando fomos almoçar, jantar, sair, falando e falando e sorrindo e sorrindo em algo que parecia não ter fim, e agora, apesar de ainda esperar um beijo, esperava ele chegando bem mais leve e calmo, respeitando todos os sinais e faróis, vindo com uma mão suave no lado do pescoço, com a outra ainda mais suave porém firme apertando meu corpo contra o teu e fazendo minhas costas se angularem em um arrepio, com os lábios lentos saboreando e se inebriando de cada pequena dose de desejo dentro da boca, com os narizes que se demoram enquanto se observam, com os olhos que se esquecem enquanto se fecham. Mas o beijo não veio, não veio e custava a vir, e quando vê já era um mês que eu tinha me esquecido de toda a vida antes de te ver e ainda não tinha te dado a porra de um beijo. Minha vontade agora era de te agarrar, te empurrar numa parede e te esmagar, de te amassar, de te privar de todo e qualquer direito de falar qualquer coisa, quase te engolindo, te insultando, daquele jeito que quando eu faço deixa qualquer malandro sem dormir por noites e noites. E foi aí que não aguentei mais aquela tua lerdice e aquelas tuas desviadas que faziam meu nariz pechar o lado da tua bochecha, foi aí que perdi a cabeça, me beija porra! Me agarra de uma vez e faz o que quiser, tu já me ganhou! Tu baixaste a cabeça meio derrotado e me deste um beijo com gosto de vergonha, de monotonia, com gosto de vontade mal atendida, sem mão em lugar nenhum, com dentes se batendo quase que em um engavetamento, narizes se empurrando ao estilo briga de bar, com língua tão morta que quase fiz um velório dentro da tua boca. As sortes de beijos que imaginava e desejava não eram as tuas, e perdi toda a vontade. Esqueci das voltas que demos, das conversas que tivemos, das vontades que havia tido. Da tua timidez e boa-pessoíce, da sinceridade que tu tinha me mostrado, e minha vida voltou a ser como era antes, uma bosta: e toda bosta atrai mosca.
Talvez ele seja bobo, mesmo que não seja essa palavra suficiente pra descrevê-lo. A mesma mosca que me corroeu com suas larvas e me deixou fraca, pronta pra desistir de tudo, volta a zunir do lado da minha orelha. Ele. Ele que tinha me tratado mal por anos, ele que tinha cagado pra mim e me dado plena certeza vez atrás de vez de que não se importava comigo de maneira nenhuma, ele que me proibia, que me usava, que só faltava me bater, que me falava o que queria e me botava de joelhos figurativa e literalmente, voltou pra me atucanar e terminou-se o outono da minha vida. E o teu sorriso já não me dava nada, tua conversa já era fria, tuas ideias e metas e problemas eram cada vez mais alheios, de repente eu já não via mais aquele pedaço de mim em ti, e enquanto isso a conversa dele ainda era muito bem calculada pra me eriçar, mesmo comigo sabendo de sua falsidade, e o sorriso babaca dele ainda fazia eu me molhar, e o jeito escroto dele ainda fazia meu olhar e minha cabeça de refém, e quando eu menos percebi já estava lá eu, dando pra pessoa que eu julgava mais odiar na minha vida. E voltei a me ajoelhar, voltei a ser proibida de tudo e para tudo e voltei a ser apenas mais uma boneca na estante daquele filho da puta.
Ninguém consegue me tirar disso, e eu acho que eu mesma vou desistir. Na próxima vez que ele estiver me beijando, me fodendo e me arrepiando de ponta a ponta do meu corpo, eu vou fechar os olhos e pensar em ti pra não me culpar tanto assim. Da próxima vez que ele me bater, me trancar, me xingar, vou fazer o mesmo: só pra ver se esqueço de que um dia já quase fui feliz. As larvas caminham sobre a superfície pútrida de mim, com dificuldade pra achar qualquer resto de qualquer coisa que ainda sobre pra comer, e eu sinto o meu próprio fedor, enquanto sumo.
Mas a culpa não é tua.
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Água e Lua
Não havia como ficar muito tempo sem pensar no que havia acontecido. Um lugar, um cheiro, um som ou um gosto lembravam Ian de tudo. Com dezesseis anos, o garoto se encontrava num estado de completa apatia. Apesar de mal se levantar da cama, não dormia bem há tempos, pois no sonho, a memória ganhava um retoque de vida, e por melhor que ela lhe parecesse, findava com o despertar. E com o despertar vinha a realidade, implacável e cruel.
Ian, em uma bela noite de novembro, deixou-se levar. Fazia calor, e dependurada no céu estava a maior lua que ele já tinha visto. O garoto morava num sítio, mais afastado do centro da cidade onde estudava, e tinha bastante espaço para caminhar.
Mas não caminhava. Para ser mais exato, Ian vagava pelo sítio, ignorando os pequenos grilos, gafanhotos e anfíbios que dele fugiam para encontrar abrigo debaixo da grama molhada. Os pés de Ian o levavam pelo perímetro de seu terreno, mas os olhos dele não se mexiam, fixos no horizonte.
Ainda vagando, Ian começou a caminhar para oeste, onde ficava um açude, no fundo de suas terras. Assim que pensou em mudar de direção, ele viu em meio às arvores e ao mato, um distinto brilho cinza. Encheu-se de calafrios, e foi necessário toda sua atual indiferença quanto a sua própria vida para que ele seguisse a luz.
O mato ia fechando mais e mais enquanto ele chegava perto, mas ele abria caminho de qualquer jeito. A luz ficou mais forte, e um cheiro de gelo seco apareceu. Foi então que Ian chegou a luz, e ficou incrédulo.
Muito tempo antes desta noite de novembro, Ian era normal. Não era assombrado por nenhum fantasma do passado e tinha uma vida promissora em sua frente. Além de tudo isso, Ian também era apaixonado.
Ah, como era apaixonado. O nome dela era Paula. Era inteligente, linda, gentil e tinha o sorriso mais perfeito do universo. Apesar de tentar, Ian não conseguia achar um mísero defeito na garota. Ele nunca havia se apaixonado de verdade por ninguém, mal havia gostado de alguém antes, e todo esse sentimento caiu sobre ele como um balde de água fria.
Mas Ian nunca soube o que fazer. Ele nunca havia revelado o que sentia. Não que não deixasse transparecer. Qualquer pessoa com dois neurônios chegava à rápida conclusão de que ele era louco por ela no exato instante em que via como ele falava com ela, como ele olhava pra ela e como ele a cumprimentava. Quando mencionavam o nome de Paula, Ian dava uma rápida franzida na testa, como um tique. Quando ela passava por ele, ele fechava os olhos e inspirava forte, tentando catar um pouco do cheiro dela no vento.
Não era um amorzinho clichê daqueles que existe desde o primeiro olhar. Era um sentimento forte, insistente, construído lentamente através de pequenos momentos banais que os dois haviam compartilhado. Pouco sabia-se sobre a possível reciprocidade, mas ela ainda não havia sido descartada.
Pediu ajuda a seus fiéis amigos, que o convenceram a abrir seu coração pra ela. Ele então se decidiu, se determinou, e em uma segunda-feira de sol, foi à escola certo do que ia fazer. Ia se abrir com ela, falar como ele se sentia, e cada passo o levava mais perto do decisivo momento.
Chegou na escola, entrou na sala. Vasculhou com o olhar a turma para encontrar o dourado dos cabelos dela. Não a viu. Ficou um pouco mais nervoso e sentou-se em seu lugar. Já sentado, perguntou à Joana, sua amiga, onde estava Paula. Ela não havia vindo.
Cabisbaixo, Ian aguentou as quatro horas de aula. Saiu, foi pra casa e almoçou. Deitou-se em sua cama para dar uma cochilada quando recebeu uma mensagem no celular. Paula havia se envolvido num acidente de carro pela manhã. Estava morta.
Ian faltou a escola por uma semana. Não foi ao velório, não foi ao enterro. Chorava e sentia culpa. Perguntava a si mesmo porque não havia se aberto antes, e tinha dificuldades de pensar que ela nunca iria ouvir dele como ele gostava dela, como ele queria ter ao menos se despedido. Depois, sentia-se culpado pois pensava em como a família dela estaria sofrendo e como apenas um crush adolescente era fútil comparado à perda de um pai e de uma mãe. Seus pensamentos se enrolavam, e ele viajava neles, dia e noite.
Um mês se passou e Ian começou a mostrar sinais de depressão. Raramente saía de casa, e quando o fazia, dava voltas no sítio. O que nos leva de volta ao gigantesco luar daquela noite de novembro.
Na frente de Ian, pálida, com um brilho acinzentado, cheiro de gelo seco e flutuando meio metro acima do chão, estava Paula. Ela o olhava, quase tão incrédula quanto ele, que havia parado completamente, e não tinha capacidades de mexer um músculo que fosse.
“Eu finalmente te achei!”, ela disse, com lágrimas nos olhos, “Eu achei que não ia conseguir”.
“P-Paula?”, balbuciou ele. “Como? O quê?”
“Eu morri. Foi horrível. E então apareci de novo, do nada. Como se tivesse acordado de uma longa noite de sono. Procurei minha família, todos meus conhecidos, mas nenhum deles pôde me ver. Você consegue?”
“Sim! Consigo!”, disse Ian com a voz trêmula e os olhos lacrimejando.
Eles conversaram durante horas, de um jeito que nunca haviam conversado quando ela era viva. Ainda era madrugada, mas os pássaros anunciavam a eminente chegada do sol. Eles terminaram a conversa.
“Você pode voltar aqui amanhã?”, ela perguntou. “Você é o único com quem consigo conversar.”
“Eu irei. Prometo.”
Todas as noites, Ian ia até o açude para ver Paula. Eles sentavam na beira da água, ela flutuando centímetros acima da pedra, e a luz que ela emitia se confundia com a da lua refletida nas pequenas ondas. Ele a ouvia, ele conversava com ela, e ele a admirava. Seu sorriso arrebatador, seus olhos grandes e chorosos, seu cabelo, antes dourado e agora esbranquiçado tremulava como se estivesse submerso. Tudo nela continuava perfeito. Não havia feito ainda um mês de sua morte, mas Ian já estava se esquecendo de seu rosto. Agora, via-o sempre.
As noites com Paula deram ânimo a Ian. Ele voltou a frequentar as aulas, voltou a sair com seus amigos, voltou a rir e a se divertir. Seu quadro melhorou bruscamente. O verão chegou e Ian se sentia feliz, pois sabia que ia encontrar o fantasma de Paula lá no açude, e os dois molhariam seus pés para se refrescar.
Mas por melhor que ele estivesse, algo ainda o incomodava. E não, não era o fato de que ele conseguia se comunicar e mantinha uma amizade com uma pessoa que já havia morrido, por incrível que pareça. O que o incomodava era que ele não sabia se devia falar pra ela que ainda a amava.
Se já era difícil em carne e osso, o quão mais difícil seria apenas em alma? Tentava não pensar muito nisso, mas falhava. Até que um dia ele reencontrou a coragem que havia tido no dia em que ela morreu. Rumou para o açude em passos largos e determinados, tentando não pensar no que aconteceria depois.
Ela estava lá, branca como de costume, brincando com um pequeno peixinho que viera se aventurar na beira do açude. Ela dava gostosas risadas, daquelas que faziam as pernas de Ian tremer. Foi até ela.
“Paula, eu preciso conversar contigo.”
“Fala Ian.”
“No dia do acidente eu ia te contar uma coisa. Mas daí tudo aquilo aconteceu e eu não consegui.”
“Não me assusta Ian, o fantasma aqui sou eu!”
“Eu te amo.”
Silêncio. O mais desconfortável dos silêncios. Nem os grilos cantavam, com medo de typecasting. O olhar dela estava fixo nele. O dele estava fixo no lodo em que eles pisavam (na verdade, ela estava flutuando). Não queria encontrar indiferença ou pena no olhar dela. Percebeu, porém, que ela também não saberia como quebrar o silêncio, e uma vez que ele já havia falado a parte mais chocante, decidiu continuar.
“Eu não sei quando que eu comecei a me sentir assim mas eu sei que eu me sinto. Eu tive medo, fui burro e não te falei. No dia em que eu ia te falar tu se acidentou e... Eu fiquei horrível. Eu sofri demais. Eu pedi pra todos os deuses que o homem já inventou pra que eu pudesse ter uma chance de me despedir e de poder falar tudo isso pra ti. E então tu aparece, nos fundos da minha casa. Não sei se é um sinal, se é uma coincidência, mas sei que eu não posso desperdiçar essa chance.”
“Eu sei.”, ela disse, deslizando para perto dele. “Todos sabiam, Ian. Tu não sabe esconder.”
Ela chegou perto e tentou encostar no ombro dele. Ele sentiu um calafrio no lugar onde ela o tocou, e olhou fundo nos olhos dela, como se esperando uma resposta para uma pergunta que ele não havia feito.
“Me desculpa. Por favor, me perdoa. Mas... Eu não sinto mais nada por ti. E mesmo se eu me sentisse, o que faríamos?”
“Tu já sentiu algo por mim?”
“Já... Não foi nada demais, não leve a mal, mas eu considerei a possibilidade de te dar uma chance. Mas eu gostava de verdade de outra pessoa.”
Ian soube de quem ela falava no instante em que a frase terminou de deixar os lábios fantasmagóricos de Paula. Ela só podia estar falando do Lucas. Ele não aguentou, deixou Paula parada no açude e voltou correndo para casa, chorando raiva por um olho e tristeza pelo outro.
Na manhã seguinte, Ian não tirava os olhos de Lucas, seu colega bonitão. Odiava-o e odiava a si mesmo. Naquela noite, não foi ver Paula, e continuou não o fazendo pela próxima semana. Começou a regredir para o estado em que se encontrava antes de achar o fantasma. Percebeu que não adiantaria ficar assim.
Quando finalmente voltou ao açude, encontrou Paula chorando baixinho. Ela o viu.
“V-você voltou?”
Ele não respondeu, envergonhado pela sua infantilidade.
“Está tudo bem, eu que tenho que te pedir desculpas.”
Ele se sentou silenciosamente ao lado dela e desejou poder simplesmente abraçá-la, para perder-se no abraço e não voltar nunca mais. Ela chegou o mais perto que podia sem atravessá-lo.
“Eu fui estúpida, eu sei. O Lucas nunca gostou de mim. Eu devia ter te dado uma chance. Mas agora não importa mais...”
“Não importa mais?!”, Ian berrou com raiva. “O que eu sinto não importa mais? Porque, só porque você morreu?”
“Sim!” ela exclamou, assustada com a súbita reação dele. “Não há mais o que fazer, eu já morri. Você tem que seguir com a sua vida, não tem como a gente ficar junto.”
Ela falou isso esperando alguma resposta mal pensada de Ian. Mas ele apenas ficou parado, olhando fixamente para a água. Uma ideia surgiu em sua cabeça.
“Será que não tem?”
Paula entendeu depois de uns segundos.
“Não! Não, Ian! Eu te proíbo de fazer isso!”
Ele saiu do açude em passadas rápidas com um fogo em seus olhos, tomado de raiva e de loucura. Ela, flutuando, seguiu Ian, tentando o parar.
“Por favor, não faz isso!”
Eles saíram do mato fechado e chegaram perto da casa. As luzes artificiais começaram a ofuscar o brilho prata de Paula.
“Ian, eu não posso chegar mais perto, por favor, não faz isso! Tu não sabe como é ruim!”
Ele parou na porta, olhou pra trás e disse, com veneno nos lábios: “Tu também não.”
Ian foi ao banheiro. Olhou para a gilete. Tentou reproduzir a coragem que havia tido nos últimos tempos mas não conseguiu. Levou a gilete para seu quarto, deitou-se e chorou até dormir.
No outro dia, acordou e viu a gilete na mesa. Estava chovendo. Lembrou-se da loucura da noite anterior e de todas as coisas que haviam passado em sua cabeça. Colocou-a na mochila.
Na escola, não prestava atenção em nada que não fosse Lucas. Estava em transe, pensando em qual seria a culpa dele em tudo isso. Os pensamentos se confundiam, davam nós em si mesmos, e apenas duas coisas eram absolutas: o amor por Paula e o ódio por Lucas. Era como se ele, mesmo sem ter percebido, tivesse roubado ela de Ian, pra sempre. E o acaso, com toda sua crueldade, ainda havia achado jeito de fazer Paula assombrar Ian, todas as noites, com momentos bonitos que poderiam ter sido vividos em vida. Ian sentia-se como se fosse um cão, e que alguém estivesse segurando um pedaço de presunto em frente ao seu focinho ao mesmo tempo em que puxasse para trás sua coleira. Não sabia se o malvado adestrador era Paula ou Lucas.
Ian, absorto em seus pensamentos e com o olhar fixo em Lucas e em seu boné ridículo, assustou-se com o sinal. Levantou-se e saiu da sala, junto com os colegas. Atravessou os portões da escola e encontrou Lucas. Já que a chuva havia parado, resolveu o seguir.
Lucas morava duas quadras dali. Na segunda quadra havia um pequeno terreno baldio, cheio de mato, em um nível mais baixo do que a calçada. A rua estava deserta quando passavam por ali, e Ian, sem pensar no que estava fazendo, puxou a gilete de dentro da mochila. A raiva do garoto que, avulso a tudo aquilo, andava em sua frente nunca havia sido maior.
De fones de ouvido, Lucas não percebeu que estava sendo seguido. Foi então que Ian segurou a mochila de Lucas e usou toda sua força para derrubar o outro garoto no barranco do terreno. Foi tudo muito rápido. Ian atirou-se para cima de Lucas, com a gilete na mão, virou o garoto de barriga para cima e montou nele. Lucas, confuso, não soube reagir, e debilmente soqueava o ar próximo ao rosto de Ian. Ian, por sua vez, empurrou a cara de Lucas para o lado com a mão esquerda, e com a mão direita colocou a gilete no pescoço de Lucas. Lucas tentava gritar mas a mão de Ian tampava parcialmente sua boca, de modo que ele apenas grunhia e babava. Sem saber exatamente o que fazer com a gilete, Ian começou a cavar o pescoço de Lucas, bem embaixo do maxilar. O primeiro fio de sangue demorou a aparecer, mas logo que ele apareceu vieram todos os outros. Ian começou a esfolar e cavar mais fundo e mais forte a carne do pescoço de Lucas, que se debatia em espasmos debaixo do agressor. A pele da região começou a descolar e o sangue saía com mais força, pulsando. Por fim, Ian fez um movimento tangente com a gilete, o que rompeu uma artéria e cessou os movimentos de Lucas. O sangue jorrava como um jato no rosto de Ian, e se misturava ao grotesco rubor de suas bochechas.
Ian se sentiu vivo, quente e aliviado. Levantou e deixou o corpo inerte sangrando no meio do mato. Olhou para a calçada lá em cima. Ninguém havia visto nada. Colocou a gilete na mão morta de Lucas, tirou a camiseta suja e a enfiou na mochila. Limpou o rosto com a água acumulada em um pneu que ali fora descartado e foi para casa caminhando.
Morava longe, e tinha bolhas nos pés quando chegou no portão. Seus pais o ligaram no meio do caminho para perguntar o porquê da demora e ele disse que tinha ido almoçar com seus amigos no shopping. Quando entrou em casa, seus pais tinham voltado ao trabalho e ele estava sozinho. Tomou banho, colocou fogo na roupa que havia usado e foi até o açude, antes mesmo de ter anoitecido.
Ficou lá esperando. Ouviu seus pais chegando e os ignorou. Eles não iriam o incomodar ali, o lugar já havia virado uma espécie de retiro para o garoto. Ele esperou anoitecer para que pudesse ver Paula.
Mas aquela noite, pela primeira vez, ela não apareceu. Ian teve medo de que depois daquele dia ela não aparecesse mais. Sabia que não havia feito a coisa certa, mas queria apenas vê-la mais uma vez para que pudesse prosseguir com seu plano. Mas quando percebeu que ela não havia aparecido, voltou a ficar nervoso. Vasculhou o mato a procura da luz prateada e não achou nada.
Bufava de raiva quando sentou-se de novo em frente ao açude. As nuvens de chuva que enchiam o céu durante o dia haviam ido embora junto com o sol, e a lua estava lá, dependurada, tão grande quanto a primeira noite em que Paula apareceu pra ele, ali no açude. A lua fazia um trêmulo reflexo prateado na água calma, e Ian ficou hipnotizado por ele. Projetou Paula na água, tentou fingir que ela fosse o reflexo, e calmamente se levantou. Bem devagar, andou em direção ao reflexo, no centro do açude. A água molhou seus pés, seus tornozelos, seu joelho, coxas, cintura, peito, pescoço, queixo, boca, nariz, olhos, cabelo. Ele continuou andando até que o chão desapareceu.
Ian não fez esforço para sair dali. Deixou a água entrar nos seus pulmões. Começou a ter espasmos e a sentir uma agonizante dor no peito. Tudo começou a escurecer enquanto ele perdia a consciência. A sua cabeça pesou e ele desmaiou, no fundo do açude.
Acordou sem conseguir mexer nada além de seus olhos. Viu-se em uma sala totalmente branca, amarrado a uma cama. No teto, havia um televisor voltado para ele, que estava deitado. Ele tentou chamar alguém, tentou se mexer, mas não conseguiu.
O televisor ligou. A imagem mostrava Paula e Lucas, se abraçando. Os dois brilhavam como prata, flutuando sobre um infinito açude. Se abraçavam fortemente, se encostando, e não saíam do abraço. Ian começou a tremer e a lacrimejar, sem conseguir mexer o corpo.
Tentou afastar o olhar. Foi então que uma voz saiu, masculina e robótica, da TV.
“Olá, Ian. Nós estaremos transmitindo ao vivo todos os movimentos de sua amada e do novo amor pós vida que você proporcionou a ela, vinte e quatro horas por dia, durante toda a eternidade, então não adianta muito afastar o olhar. Enfim, seja muito bem vindo ao inferno.”
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Agenda
Eu te reencontrei No meio da calçada Em ti eu esbarrei Você andava apressada
Disse que a vida Andava tão corrida E que já não sobrava Tempo pra nada
Então saiu andando E sem se despedir Fiquei parado pensando O que diabo aconteceu aqui?
(Vamos marcar um dia Pra marcar um dia Pra gente se ver
Cheque na sua agenda Se há algum horário Livre com você)(x2)
Já faz quase um ano Que a gente não se vê Como é que vão seus planos? Como é que anda você?
Você desapareceu Quis mudar sua vida Ao novo emprego se rendeu Perdeu todos os amigos e amigas
Mas depois de tanto tempo comigo Tu sabe que eu não sou de desistir E que eu vou sempre ser teu amigo Enquanto a gente existir
(Refrão 2x)
Segunda, terça, Quarta, quinta, sexta, No meio da correria
Sábado ou domingo, Nos fins de semana, É só você dizer o dia...
(Refrão)
(Mendes/Silveira, dia 01/07/2016)
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Sem Amor
Eu quero um dia olhar e ver
O amor em todo canto,
E quero que nossos atos de amor
Não sejam motivo de espanto.
Quero que todos tenham a chance
De provar um pouco de carinho.
E eu só não quero nessa história
É acabar sozinho
[Refrão:
Não se vive
Não se morre
Não se existe sem amor
Te revive
Te socorre
E acalma toda a dor]
Não sei quem foi que disse
Que o amor tem que doer
O que dói é a tua razão
Brincando com você
Porque sentir e pensar
Devem estar em equilíbrio
Viva e aprenda meu bem
Essas coisas não estão em livros
[Refrão]
Insista, não desista
Nem é tão difícil
Saiba que é só começar
Amar tende a virar um vício
[Refrão]
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Escrevo o primeiro parágrafo depois de escrever o texto inteiro abaixo: ele é eu. O que sinto agora. Meu medo, o que me deixa sem sono durante a noite. É uma confissão, um grito. Eu sei que ele vai ecoar sem rumo e ser abafado, mas desejo profundamente o contrário. É claro, não é tudo. Alguns tópicos não devem ser expostos, o fazer seria tolice. De qualquer jeito, aproveitem: O dia deixou um rastro para trás. Uma longa cauda de nuvens carregadas que se recusam a largar suas águas. O outono começou a menos de uma semana, mas já se faz presente. Com seu vento frio que tem certo fetiche por pés e com sua umidade (o que será de meu nariz?), ele veio impondo um respeito que eu jamais fui capaz de impor. Muitas vezes em meu quarto tenho diálogos. Diálogos lindos, longos, fortes e impiedosos. Da minha boca saem as vozes fortes, imponentes, importantes. Mas no fim, a voz é sempre minha, e ponto final. E o interlocutor? Com quem insisto em dialogar? Comigo. Quem mais seria? Sento, depois de longos minutos de conversa, em minha cadeira. Por vezes, durante estes diálogos, derramo lágrimas, ou improviso frases de efeito que permanecem em minha mente por uns tempos. Mas sempre quando paro e me sento, me sinto como um ator que acabou de sair do palco. Estive no palco algumas vezes e amei o fazer. Gosto do jeito que as pessoas reagem a cada ação minha. Gosto de sentir o calor das lâmpadas sobre minhas bochechas cheias de feridas e gosto da adrenalina que corre por todo meu corpo, fazendo minha barriga ficar mais leve do que o ar. Gosto de olhar para a plateia, e depois de ter meus olhos acostumados com a luz ofuscante, reconhecer algumas faces amigáveis. Mas estive poucas vezes em palcos. Eles sempre foram bons para mim, mas como quase tudo que me é bom, costumam aparecer aqui e ali, em longos intervalos, apenas para me tomar por inteiro em um frenesi que me faz repensar todos os meus conceitos sobre a vida, o universo e tudo mais, além de tomar todas as minhas decisões e resolver todos os dilemas que já tive ou terei. E depois que esse torpor se vai, não sei para onde ir. Não sei onde ficam as agências, onde ficam os cursos, onde estará todo o dinheiro que isso me custará. Não sei o meu futuro, não sei o que preciso para ter tal futuro, simplesmente, totalmente e absolutamente: não sei. Mas sou ator. Disso tenho certeza. Depois daqueles diálogos, minha cadeira vira o camarim que absorve a energia louca que me possui. E eu percebo que depois das lágrimas derramadas, depois das vozes imponentes, depois das palavras ditas e depois de interpretar tantos personagens, acabo por também não saber quem eles são. O sentimentalista chorão. O tirano implacável. O gênio arrogante. O tolo apaixonado. Chorei, vivi e falei por todos. Mas não sou nenhum deles. E em seguida, tudo que eu sinto é sono. Não o sono que me aparece depois de um longo dia acordado, mas o sono que aparece quando simplesmente me falta a vontade de estar acordado. Quando não sei mais distinguir os problemas reais dos forjados e moldados na grotesca bigorna rosa e mole dentro do meu crânio. Quando tudo que quero é que o novo dia chegue e me obrigue a ir para a escola, e para o trabalho, e para a cama outra vez. Também desejo que esses sonos, quem sabe, tragam sonhos reveladores, que me presenteiem respostas, ou que me presenteiem mais perguntas. Que me ofereçam qualquer coisa diferente da realidade. O sono que na verdade nada mais é do que um suicídio brando. Eu até já compus uma música sobre isso. Já compus músicas sobre as mais diversas coisas. Sobre uma cidade coberta de lama, sobre uma colega e sua viagem de intercâmbio, sobre um dicionário, sobre a infindável dúvida que concerne a vida, o universo, e tudo mais, sobre as dificuldades que existem nas relações humanas, sobre amores não resolvidos e sobre a incerteza dos dias que virão. Já escrevi textos, vários deles. Escrevi textos sobre machismo, sobre preconceito, sobre famílias, sobre o cotidiano. Escrevi textos sobre textos e sobre os sentimentos mais estranhos, que consigo de algum jeito que ainda não descobri, colocar exatamente do jeito que eu os sinto, em palavras. Já atuei, como dito antes. Fui um ex-palhaço que se tornou um maléfico rei. Fui Jesus Cristo depois de um novo corte de cabelo. Fui um irmão ausente, um YouTuber ridículo, um investigador policial. Um pai superprotetor e um péssimo amigo que atropelou um gato, certa vez. Já fiz bastante. Já tirei notas na minha escola que deixariam a maioria das mães e pais com inveja. Já tive amizades que perdi e amizades que mantive e que nunca vou deixar de ter, todos eles invejáveis. Já amei, de jeitos estranhos e distintos, do jeito que muitos desejaram amar um dia. Sou um adolescente oleoso e desengonçado, afogado em existencialismo. Isso eu não nego e não posso negar. Todos somos assim, seremos assim, ou fomos assim. Mas esses todos, eles não são exatamente como eu. Eu os vejo. Não me percebem, mas eu os vejo. Vejo que em seus olhos já não há aquele mesmo brilho. Que suas bigornas rosas e moles não forjam a tamanha variedade de metais que forjaram certa vez. Consigo sentir cada vez que um deles deixa de pensar em transformar sonhos em realidade e começa a transformar realidade em sonho. Quando deixam de almejar ganhar a vida atuando, cantando, jogando futebol, salvando pessoas com seus superpoderes e passam de messias a contador. Trocam, em seus sonhos, as coroas de louros, as medalhas e as faixas por camisas de manga curta, mesas cheias de papéis insignificáveis e problemas de coluna. Não aconteceu comigo. Não vai acontecer. Esse é meu maior medo. Porque logo, logo, não terei mais a escola como meu refúgio matutino, já que falta pouco menos de três anos para que eu termine com ela. Enfrentando a dolorosa verdade: não terei mais os mesmos amigos que tanto prezo para me refugiar e que me confortam tanto (para constar: digo que me confortam e os mantenho com tanta estima apenas para tentar me convencer de que são tudo isso, mas ultimamente não sinto deles o mesmo calor). Minha família vai querer me ajudar com uma faculdade. Uma faculdade de quê? “Seja um ator!” Já fui. Não me leva a nada a não ser dúvidas. “Seja um músico!” Ninguém nunca nem mesmo escutou minhas músicas. “Seja um escritor!” Estou sendo neste exato momento. Vários leram meus textos, e depois os esqueceram. “Então vai à merda!” Ora, ora! Grande conveniência: aqui estou. E o mais engraçado: eu tento. E atenção, agora chega o momento em que falarei coisas absurdas e desumanas... As pessoas ao meu redor conseguem. Não vou citar nomes, mas eu conheço gente que tem os meus anseios e que conseguem tirar deles o que querem. Conseguem fazer seu nome, conseguem aparecer, conseguem começar a fazer o caminho glorioso que merecem fazer. Mas eles não são melhores do que eu. Não são, são iguais a mim. E eu não consigo. Vejo-os conseguindo o que querem e mesquinhamente me enojo. Tenho vontade de mandar tudo à merda e virar um contador com hérnia de disco. Já que nunca vou conseguir. Eu queria que fosse minha culpa. Daria tudo para que fosse minha culpa. Daí eu teria um problema que poderia resolver. Mas não é. Eles conseguem o que querem, com as mesmas chances que eu tenho, ou com chances ainda menores, enquanto eu estou no meu quarto, atirado, me sentindo um tolete de bosta e fedendo como tal. Eu preciso de atenção. Ela me embriaga, dá sentido a minha vida. O clamor, os elogios, o sinal de que talvez eu não desapareça em esquecimento desse mundo. Eu amo tudo isso, eu dependo de tudo isso. Mas eu simplesmente não consigo. Já são três páginas que enchi com meus temores e angústias. Três páginas que definem o personagem mais complexo que já passou por minha cabeça: eu mesmo. Não me vejo como um ser humano. Me vejo como um personagem. Se estou em uma peça, um filme ou em um circo de horrores, apenas o tempo dirá (para constar, odeio esta frase tanto que tenho vontade de arrancar a língua do tempo para que ele cale a boca de uma vez e deixe as pessoas fazerem o que querem). Três páginas que serão lidas pelos meus fiéis leitores que sempre estiveram aqui por mim (vocês sabem seus próprios nomes) e por ninguém mais provavelmente. Palavras que sumiram no tempo assim como eu. E no fim, verei que teria valido mais a pena ter desejado uma casa, um carro, um emprego decente, uma família e um pequeno túmulo onde nas palavras entalhadas residirá tudo que deixarei: meu nome. Vale mais a pena o querer em uma pedra para ser apagado pelo tempo e pelo vento do que continuar o querendo em luzes e em cartazes. Não será tamanho meu desapontamento então. Noam Mendes. Um nome pretensioso, mãe. Incomum. Não existe nenhum nome como o meu em um raio de mil km², com certeza. Não é como os empilhados de consoantes que as mães dão para nomes comuns que a escrita seja única. Não é como as variações toscas de... Bem, talvez seja melhor não citar nomes, de novo. Noam: uma sílaba. Forte. Curto. Ambíguo. Eles me fizeram inconscientemente para ser diferente. Para que eu talvez pudesse fazer com que existissem mais Noams por aí no futuro. Mas eu sinto por antecipação que os falhei, e que os bebês do futuro continuarão sendo pilhas de consoantes sobre nomes comuns. Um brinde! Ao Mateus, ao Felipe, ao Gabriel, ao Jonathan, à Júlia, etc. A todos eles e elas. Vocês não nasceram com nada por trás de seus nomes, e conseguirão tudo melhor do que eu. O show acabou. Vaie ou aplauda, eu sinceramente não sei a diferença e nem mesmo ligo para ela.
Noam Mendes
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Não Vou Te Largar
Eu sei que nunca largaria
Aquela guria.
Mas primeiro ela teria
De ficar mais do que um dia
Na mente minha,
Só ela sozinha,
Em todos os momentos meus.
Na escola, no trabalho,
Na minha cama quando eu me espalho,
Sinto a falta do seu agasalho,
Nesse caminho sem atalho.
É tão difícil
Saber o que sinto,
E não saber o sentimentos teus.
Não é muito bem em todo instante,
Que penso em ir muito adiante.
Mas o mundo não é tão excitante,
Com essa solidão, tão constante.
Vai chegar o dia,
Em que será total a estadia,
Sua em pensamento meu.
{E então não vou te largar,
E vou tentar e conseguir te amar,
Esse dia pode demorar,
Mas eu tenho tempo para esperar.} - várias vezes.
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Tempo-Espaço
Sinta,
Parece areia no pé,
Parece vento no cabelo.
Minta,
Não esconda a sua fé,
Incendeie esse gelo.
É como uma brisa,
De uma manhã no começo do inverno.
Veja como desliza,
Sem distinguir céu, terra e inferno.
Veja as estrelas,
Brilhando sem parar.
Você não pode perdê-las,
Pra sempre nada vai durar.
Veja,
E será que você,
É quem realmente queria?
Esteja,
Preparado para viver,
Outro tipo de agonia.
Nunca se esqueça,
De quem aquela criança sonhava ser.
E não me agradeça,
Se o tempo-espaço inteiro se tornar lazer.
Você é uma estrela,
Brilhando sem parar.
Você consegue vê-la:
A sua chance de começar.
Ó minha constelação, aprenda a amar.
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Física Quântica
Quantas palavras cabem em uma ideia?
Quantas viagens cabem em uma odisseia?
Quantas frutas cabem em uma geleia?
Colmeia, colmeia, colmeia.
Quantas abelhas matam o apicultor?
Quanto mato atravanca o trator?
Quanto mal cabe em um benfeitor?
Amor, amor, amor.
Quanta arte cabe em um traço?
Quanta vida cabe em todo espaço?
Quantos nós cabem em um laço?
Abraço, abraço, abraço.
Quem é que vai contar
Pra quem eu vou contar
Que eu vou poder contar,
Tudo isso com você.
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Pés E Cabeças
Já faz um tempo
Que nada faz sentido pra você.
Já faz um tempo
Que mudei minha vida, você vê.
Uh, eu já parei de me preocupar!
Uh, vi que não há porque tentar!
Uh, agora eu só quero amar
Tudo aquilo que não me odeia!
Nada precisa fazer sentido.
Garota não se esqueça.
O caos, ele é seu amigo.
E nada é obrigado a ter pé nem cabeça!
Você inventa
Que tudo tem regras e dilemas.
Você inventa
Probabilidades e esquemas.
Uh, quando eu era assim,
Uh, nada funcionava pra mim,
Uh, mas eu larguei de mão enfim
Aquelas decepções que me seguiam
Nada precisa fazer sentido.
Garota não se esqueça.
O caos, ele é seu marido.
E nada é obrigado a ter pé nem cabeça!
Nada precisa fazer sentido.
Garota não se esqueça.
O caos já vem embutido,
E nada é obrigado a ter pé nem cabeça!
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Amanhã
Amanhã vai ser melhor.
Amanhã vai ser um ó.
Amanhã nunca vai chegar.
Ontem eu sei onde errei.
Ontem eu não me esperei.
Ontem sempre vai voltar.
Hoje não vou sair do lugar.
Hoje não quero trabalhar.
Hoje não, é melhor deixar pra...
Amanhã vai ser um show.
Amanhã, eu aqui estou.
Amanhã, não demore a chegar.
Ontem esqueci minhas promessas,
Ontem, por favor, não me impeça,
Ontem, deixe assim como está.
Hoje eu prefiro ficar aqui.
Hoje, acho melhor você ir.
Hoje eu espero que...
Amanhã vá ser melhor.
Amanhã vá ser um ó.
Amanhã nunca vai chegar.
Ontem veio pra ficar.
Hoje eu prefiro deixar pra...
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O Grande Aurélio
O grande Aurélio é um cara legal
Mas ele nunca me diz
O que é ser feliz.
O grande Aurélio é um cara legal
Mas ele nunca explicou
Bem o que é o amor.
Setecentas e noventa e oito páginas,
Não conseguem estancar as minhas lágrimas.
Aurélio, você é um baita de um otário.
Mas ainda é o melhor dos dicionários.
O grande Aurélio é um cara legal,
Mas ele nem sempre ajuda,
Quase nunca muda.
Pra quê que eu quero coisa gramatical,
Se não conheço direito
Os meus sentimentos.
Nossa língua tem apenas sete artigos.
Te uso mais pra bater nos meus amigos.
Aurélio você é de outro mundo.
Sendo tão pouco e ao mesmo tempo tendo tudo.
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Solidão Ao Quadrado
Eu não vou sair
Pra me divertir.
Não faço a mínima questão de sorrir.
Meu quarto é meu país,
Com regras que eu mesmo fiz.
E tudo aquilo que eu sempre quis.
E tenho outros bons motivos também:
Não vou deixar minha solidão sozinha,
Sem ninguém.
Não vou me levantar,
Não vou acreditar,
Que todos tem que sempre amar.
Meu quarto é minha nação,
Paredes, teto e chão.
O mundo lá fora é pura confusão.
E tenho outros bons motivos também:
Não vou deixar minha solidão sozinha,
Sem ninguém.
Tenho outros bons motivos também:
Não vou deixar minha solidão sozinha,
Sem ninguém.
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Idiotas
E como pros meus filhos vou explicar,
Se sairmos a passear em plena luz do dia.
E como pros meus filhos vou explicar,
Se a TV nós formos olhar e virmos tamanha heresia.
Idiotas como você?
E se no tempo ficassem pra trás?
E se eles começassem a cagar
Regras como você?
Acho que eu falharia como pai!
E se eles tentassem atormentar,
Até mesmo infernizar a vida de quem nasceu diferente?
E se eles tentassem justificar,
Com algum livro milenar, um ódio tão demente?
E se eles decidissem se tornar
Idiotas como você?
E se no tempo ficassem pra trás?
E se eles começassem a cagar
Regras como você?
Acho que eu falharia como pai!
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Mariana
Ignorei os jornais
Me perguntava “onde estão meus pais?”
O homem me disse “já vai”
E me deixou sentado
Numa cadeira azul
Não fui a lugar algum
Com meu carrinho eu fazia “vrum vrum”
Era plástico alaranjado
Minha roupinha estava suja de lama
Tinha muita saudade da minha cama
E por um nome todo mundo chama
“Mariana”
Eu não te conheço
Mas eu não te esqueço
Teu nome pra sempre aqui
Até depois que eu souber pra onde ir
Em uma sala numa mesa
Homens preocupados com despesa
“Eu não sou a Madre Tereza”
“Não vou gastar dinheiro com pobre”
Ninguém ali pôde me ver
Teu nome falavam na TV
Como isso foi acontecer
Com alguém tão nobre
Rachaduras no concreto haviam
As do meu coração eles não sentiam
Só os seus bolsos eles acudiam
Me ajude, Mariana
Eu não te conheço
Mas eu não te esqueço
Teu nome pra sempre aqui
Até depois que eu souber pra onde ir
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Algumas Vezes
Algumas vezes
Você me disse coisas
Em que eu não pude acreditar.
Em outras vezes
Você ficou quieta
Só pra esperar eu falar.
Algumas vezes eu entendo você.
Algumas vezes eu prefiro não entender.
Algumas vezes fico pensando por que
Eu insisto tanto em traduzir você.
Tem certas vezes
Que eu olho pros lugares
E do nada esqueço como enxergar.
Mas algumas vezes.
Enxergo tudo em você
Sem nem mesmo tentar.
Algumas vezes eu entendo você.
Algumas vezes eu prefiro não entender.
Algumas vezes me pergunto por que
Todo mundo parece meio ET.
Algumas vezes eu não me entendo
Algumas vezes eu o pretendo.
Algumas vezes me vejo fazendo
Coisas de quem tá enlouquecendo.
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