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O corpo sem fundo
Feche os olhos e sinta a vertigem… Quando foi a última vez que não tentei escapar de mim? Subir o íngreme e pedregoso despenhadeiro, cegar-se com o suor abundante ensopando os olhos, sentir o grito borbulhando malignamente na garganta e... silêncio. Minhas mãos estão cortadas, minhas pernas estão extenuadas, porém existe um caminho impossível e infinito à frente. Como eu poderia saber que um dia eu viria a ser a minha própria carcereira que jogou as chaves em algum lugar dentro da cela e com um sorriso terrível me espreita? Ainda ouço o tintilar do metal à medida que era tragado impiedosamente por minhas entranhas esfomeadas. Recobro o desespero de procurá-lo em desvario, de me cortar em pequenos pedacinhos, de revirar cada minúsculo canto negligenciado, de me enfeitiçar com súbito brilho opaco nas trevas. Todo aquele esforço, toda aquela pressa apenas para me cansar um pouco mais. A cada momento, questiono-me se persisto na escalada a fim de que a próxima queda seja fatal.
Então, de repente, estou caindo, estou flutuando, estou descansando. Minhas belas asas se abrem e me conduzem involuntariamente em movimentos suaves e puros. O sol timidamente desponta no céu anuviado, empurra com certa graça as nuvens escuras e ardentes. Flores violetas nascem das sombras, melodias cristalinas invadem pacientemente o meu ouvido machucado. Contudo, recebo esta graça iridescente de maneira muda e inerte. Trata-se de temporário alívio, de calculado repouso. Vejo a mão cruel da carcereira entre meus fios de cabelo, sussurrando canções de ninar. Com a outra mão ossuda e velha, ela segura um copo de água e gentilmente o vira sobre meus lábios. Sabemos que desta vez o incêndio durou por tempo demais, que pode ser perigoso persistir mais um segundo na caminhada tola e árdua.
Estamos esfriando, amolecendo… finalmente adormecendo. E meus sonhos… ah, como são belos. As pontas de meus dedos tocam o firmamento, nada é pequeno ou grande demais, as coisas pertencem, nenhum boca vomita a outra, nenhuma mão expulsa a outra, estou deslizando em tudo o que existe e tudo sorri para mim e diz: sim, as maravilhas são infinitas, venha até nós, ceda ao nosso chamado, navegue placidamente em nossas peles radiantes e alegres. Sôfrega, ainda ressentida, eu me mantenho a certa distância, perscrutando os arredores, certamente existe uma cilada. Meu coração ainda bate quente, ligeiramente raivoso, odioso.
Porém o véu delicado começa a descer sobre meus olhos fracamente atentos e eu me rendo incondicionalmente à miragem que mais uma vez nós criamos para mim. Eu danço entre as pedras recobertas por musgos e heras, meu vestido longo e azul balança ao morno vento, como se feito de cinzas azuladas e nostálgicas, essas cinzas foram colhidas de um dos impérios mais vigorosos e opulentos. A infância escondida no peito irrompe surdamente, ah, lindos cabelos pretos, ternos olhos morenos, meu pescoço se contorce e se acalma, minha memória se apaga e eu estou livre dentro de uma cela infinita.
Sinto que posso ficar aqui dentro. Sinto que não estou mais fria e solitária ao relento. O dia irradiará para sempre em meu corpo, não há mais necessidade de clamar por socorro. Sigo no encanto, na armação, me fortaleço, meus membros recebem uma cura, tornam-se sadios e preparados, meus olhos brincam e procuram os ângulos mais variados, podemos criar um balanço velho, um casa vermelha com potes de flores na janela e uma estranha e amável senhora que nos acena da porta, com um curioso e engraçado coelho entre as pernas. Que mundo magnífico é este? Que espaço mais inusitado e simples… Pois cá estou, perdida entre as áreas mais afáveis da imaginação, convalescente, tristemente dormente…
Volto-me para a senhora num súbito pressentimento angustiado e contemplo sua carranca, sua boca retorcida e má. Andei fazendo coisas horríveis, ela me diz. Fecho meus olhos devagarinho e peço para que ela se cale, que entre em sua aconchegante casa e vá cuidar de preparar bolinhos, café ou chá, qualquer coisa que uma decente e boa senhorinha faria para o pôr do sol. O pôr do sol existe?, ela me pergunta com uma risada ainda mais perversa enquanto estremeço ao recordar que eu desconhecia o significado daquela expressão, mas infalivelmente o sol se poria, seja lá o que estivesse implicado nisso. Sim, minha criança, estamos nos lembrando, as coisas estão se quebrando, olhe em volta, tudo isto não dura tão pouco? Eu me recuso a abrir os olhos, bato os pés no chão e sinto a poeira encher minhas narinas, sinto que o mundo está oscilando, mas de forma sutil, quase imperceptível. Não vou olhar, não vou olhar, entre, fique muda, fique quieta, seja mais gentil, não posso sofrer. Por que você gosta me pisotear, por que gosta de me desfazer? É tão difícil e horrível me recosturar, pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, me alimente, me trate bem, não me deixe com esse seu rosto horrendo, não ouse evaporar meu pequeno orvalho. A senhorinha vem até mim, ouço seus passos quase cálidos. Ela segura meu rosto entre suas mãos calosas e me diz que o tempo está acabando, que estamos acordando. Abro lentamente os olhos e uma cena devastadora e silenciosa me recepciona. A tinta que recobria o mundo está escorrendo através de um chuvisco que se aproxima, as graminhas se despedaçam, a carne dos pequenos animais pastando caem sobre o chão, numa mistura de sangue e gordura, porém eles seguem comendo, vejo os pedaços de ossos rastejando, os olhos derretidos refletindo confusamente algum pensamento horroroso, meu vestido rasga e revela um corpo cheio de cicatrizes e manchas, a senhorinha segura meu ombro e começa a se fundir a mim, estou velha, sou velha, meu Deus… O que fiz de mim? Um riso perverso ameaça a estourar minha boca, que fiz de mim, eu que num sonho fui um delicado jasmim? Andei fazendo coisas horríveis, digo a mim mesma. O sol irá se pôr e nenhum companheiro comerá comigo, segurará minha mão ou cuidará de mim. Vejo as pernas da ilusão se levantando, sacudindo a poeira, me esquecendo em algum chão. Ah, adeus… Digo com lágrimas nos olhos. Adeus… Não venha de novo, me deixe, odeio cada boa sensação que você me traz, criatura imprudente, indecente, não sabe como tudo isto é custoso? A ilusão não tem ouvidos, se vai garbosamente, deixando um rastro de destruição.
Eu sobro. Eu e meu despenhadeiro. Eu e meu céu nublado. Eu e meu silêncio desesperado.
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