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Um começo depois do fim
Estamos no ano de 2092.
Nossos veículos a combustão tornaram-se meras peças de museu, incapazes de circular porque já não se utilizam mais combustíveis fósseis. Todos os atuais meios de transporte são elétricos, de aviões a bicicletas, e possuem equalizadores de ar, visto que nossa atmosfera foi parcialmente destruída pela poluição, tornando o ar natural nocivo para o corpo humano, o que impediu também grande parte das atividades ao ar livre.
A vida é cada vez mais virtual. As telas agora estão em nossos óculos, capacetes e as lentes de contato passaram a ser de uso comum até para quem ainda conserva a visão perfeita, porque necessitamos do auxílio permanente de sensores que medem tudo com o qual temos contato, a fim de garantir que estejamos em ambientes habitáveis.
Numa sexta-feira qualquer, Lúcio abre os olhos pela manhã um pouco atônito pela bebedeira da noite anterior.
Sim, mesmo com toda essa tecnologia, não inventamos ainda uma fórmula para nos livrar da jurássica ressaca.
Lúcio é um acadêmico, um dos poucos que resistiu à grande investida das IAs, que tornaram sua profissão obsoleta.
Por sorte, fez fortuna escrevendo livros nos anos precursores e hoje goza da liberdade de poder escolher seu modelo de vida, ainda que este seja um tanto quanto dissidente.
Ele se levanta lentamente, seguindo o ritmo permitido pelo latejar da enxaqueca, e se esgueira até a cozinha para preparar manualmente seu café. Nada de cápsulas, máquinas automáticas ou quaisquer outros facilitadores.
Sem qualquer pressa, Lúcio retira do freezer um pequeno pote recheado de aromáticos grãos marrons, que ele mesmo torrou na pequena torrefação que montou nos fundos da propriedade, junto ao sucinto cultivo da iguaria que já foi a mais consumida do universo, e hoje existe apenas na forma de réplicas artificiais produzidas em laboratórios. Pesa um punhado de 15g e começa a girar a manivela que movimenta os dentes internos, esmagando os grãos que liberam aromas atualmente desconhecidos.
É um prazer à parte. Corrigindo, é um privilégio. Lúcio compreende que pouquíssimas pessoas teriam recursos para produzir uma câmara grande o bastante para estruturar uma produção tão sensível e complexa, isso sem falar na imitação climática, replicando as doses de sol, chuva, calor e frio com cuidadosa programação. Algo como retornar 30 anos no tempo, quando o planeta era capaz de produzir vida e equilíbrio sem a necessidade da intervenção humana.
Por isso mesmo, Lúcio guarda esse segredo a 7 chaves, impedindo que qualquer pessoa tenha acesso ao seu paraíso particular.
Feito o café, Lúcio retorna com 2 generosas canecas ao quarto, onde dorme serenamente Mariana, uma mulher que Lúcio conheceu enquanto palestrava sobre replicações de espécies de plantas extintas pela má qualidade de ar.
Que cheiro bom... - balbucia ela, entre bocejos.
É café, pura e simplesmente.
Mas isso não tem cheiro de café - ela protesta ainda em tom matinal.
Talvez você não conheça o real aroma de um bom café, meu bem.
Ela então se senta na cama e em seguida leva a caneca ao nariz, aspirando com mais propriedade a aromática fragrância, sentindo como se automaticamente o ambiente ganhasse um tom amadeirado, como num filtro sépia, e as cores do dia se reduzissem em respeito ao ritual.
Não beba ainda! - adverte Lúcio.
Por que não? - questiona Mariana ainda olhando a caneca.
Em poucos minutos chegaremos à temperatura ideal para a percepção completa e também porque acredito que você não vai querer queimar a língua, não é mesmo?
Tenha certeza que não! - retruca.
Não mais que cinco minutos depois, Mariana beberica seu café e percebe a facilidade com a qual seu corpo recebe os sabores, acidez rasgada, uma doçura amadeirada, algo que passa lá pela ameixa, algum licor, quem sabe... e de repente sobe, abre um cítrico, azedinho na medida, tipo caju, maracujá... é difícil de explicar... e a energia vai crescendo ali nas veias, bombeada por um coração que vinha ganhando força na missão de levantar o corpo, além da sensação que droga alguma antes conseguira produzir.
Não é possível que isso seja só café! - ela protesta, enquanto Lúcio se diverte com a reação inesperada.
Na verdade, isso é café de qualidade, coisa fina. É a substância mais complexa do universo, mas os detalhes eu te conto depois, porque essa é uma longa história.
Aluno: Denicio Martins
Disciplina: Diálogos Intermídias - 2023.1
Professor: Gustavo Naves
Unirio - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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