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Lugar de Fala
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lugardefala · 1 year ago
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Se eu fosse um tomate
Ricardo Azevedo
Se eu fosse um tomate, ia ser duro porque, sinceramente, odeio tomate. A pior coisa na vida, pior que chuva nas férias, nota baixa na escola ou ser pego em flagrante, é a gente não gostar da gente mesmo. Se eu fosse um tomate, ia detestar eu mesmo.
É gostoso comer em lanchonete, mas, quando vem cheese-salada, é melhor procurar bem. Tem sempre um tomate escondido atrás da alface ou disfarçado de maionese. Tenho certeza que eles lá fazem de propósito, só pra ver a careta dos fregueses engasgados. Em lanchonete é comum, de vez em quando, ouvir uma risadinha na cozinha.
Pra falar a verdade, nem sei o que tomate é. Se é cereal, legume, fruta, hortaliça, arbusto, tubérculo ou trepadeira. Verdura não é, porque verdura é verde. Talvez nasça no chão, feito formiga ou minhoca. Talvez dê em cachos. Tudo pode ser. Agora, a vantagem do tomate, isso ninguém descobriu. Perguntei ao meu professor qual é a função do tomate no mundo em que vivemos. Ele mandou calar o bico e prestar atenção na aula. Na minha opinião o tomate não serve pra coisíssima nenhuma.
Tive dois sonhos. No primeiro, vinha voando pelo céu, feito passarinho, assobiando, com aquele ventinho morno soprando no meu rosto. De repente, me deu um treco; comecei a cair, cair, cair até me esborrachar no chão. Quando vi, estava cheio de sangue e rodeado de cobras brancas. Algumas estavam enroscadas por meu corpo. Tremi. Senti o bafo manso da morte. Grite. Aquilo nem era sangue. Era molho de tomate. Tinha caído num prato gigante de macarronada. No outro sonho, a gente estava na classe, alguém miou imitando gato, a dona Antonieta parou a aula, jogou o giz no chão, arregalou os olhos. Foi inchando, estufando, ficando vermelha, e virou um tomate enorme de óculos e rabo-de-cavalo. Depois, puxando uma guitarra não sei de onde, começou a dançar rock’n roll.
Quanta maravilha a natureza nos oferece! Sorvete crocante com cobertura de chantilly. Maçã-do-amor. Chocolate com pranilé. Amendoim doce, aquele vendido em saquinhos compridos nas portas dos cinemas. Telefonei pro meu pai e perguntei quem inventou o tomate. Ele ficou bravo, estava ocupado, mandou eu ir brincar de outra coisa. É difícil entender o que passa dentro de um pai.
A Marisa acha que ser tomate não é nada demais. Se ela fosse tomate, não ia esquentar a cabeça. Ficaria pendurada numa árvore ou empilhada, calmamente, numa barraca de feira. Ela disse também que ia se achar a melhor coisa da pizza. A Marisa senta na carteira da frente. Vivo olhando os cabelos dela. Sentindo seu perfume. Quando ficar grande, quero casar com ela. Vou ser bilionário, comprar uma casa na Disneylândia e ficar lá, beijando a Marisa o dia inteiro.
Contei pro Marcelo que eu queria ser tudo menos tomate. Ele mandou largar mão de ser besta. Perguntou se eu preferia ser papel higiênico. O Marcelo é o cara mais inteligente da classe. Ser tomate, às vezes, pode ser bem melhor!
Se eu fosse pulga, até cócega de alegria ia me dar só de imaginar tanto animal na face da terra e eu, justo eu, tendo a sorte de ter sido escolhido pulga.
Quem vê uma pulga pulando na beira do lençol, nem desconfia o tanto que esse animal é esperto, feliz e discreto. O olho humano consegue enxergar bichos do tamanho de uma vaca, do caranguejo, do elefante, dos cachorros e rinocerontes. Pra pulga, a vista do homem não presta. É fraca. Precisa de lente de ver de perto. Como catar pulga é difícil e pegar lente no armário cansa, fica tudo por isso mesmo e a vantagem da pulga continua sendo desconhecida.
A Bíblia tinha razão: o pior cego é o que não quer ver. Por exemplo. Um sujeito gosta de viajar e conhecer lugares distantes. Se fosse pulga, era só montar num piloto de avião ou em algum marinheiro, pra correr os quatro cantos do globo, com casa e comida grátis. Uma pulga que, por azar, esteja mal em matemática, pode passar um tempo numa professora. Logo vai aprender tudo e muito mais. Pra pulga elegante, que aprecia arte moderna, o ideal é procurar um pianista clássico ou – por que não? – viver nos braços de uma bailarina. Pulgas que gostam de ordens e obediência podem mudar, de armas e bagagens, pro corpo de um general. As fracas e doentias devem procurar um médico. Se a pulga prefere o poder, gosta de aparecer e fazer discurso, é melhor morar num político. Pode ser vereador, deputado, senador e até presidente da república; se bem que aí complica. É que num ser humano do tamanho médio cabem no máximo de três a cinco pulgas. Mais que isso, o corpo estranha e começam unhadas e outras perseguições. Um presidente da República do tamanho normal, em geral anda lotado. Não tem vagas porque presidente só tem um.
Se eu fosse o Einstein, ia inventar mil coisas. Uma máquina eletrônica de fazer lição. Um aparelho de comprar presente. Uma máquina de lavar gente; daquelas que a pessoa entra de um lado e sai do outro pronta: lavada, penteada, de unha cortada e dente escovado em cerca de um minuto. Que tem isso a ver com a pulga? Meu melhor invento, o mais caprichado, ia ser uma pomada ou vacina pra fazer gente ficar do tamanho de pulga, ou, se não desse, pelo menos fazer diminuir de altura, até uns vinte centímetros mais ou menos. Ia ser uma Revolução Francesa. Um sorvete com duas bolas, que hoje em dia só dá pra uma pessoa, daria pra umas oito, fácil. No mesmo jardim onde hoje oito pessoas jogam bolas, jogariam sessenta e quatro pessoas com folgas. As praias iam ficar vazias. Gente pequena quase não ocupa espaço. Em vez de cavalo, todo mundo ias passear de cachorro, que é o melhor amigo do homem e, por coincidência, da pulga. A poluição ia acabar porque a fumaceira ia virar fumacinha. Chupar uma uva ia ser como comer uma melancia inteira. Pra encher o tanque do carro bastaria apenas um conta-gotas. Uma caixa de chicletes tutti-frutti ia dar pra tanta gente, tanta gente, que ia parecer que o paraíso tinha chegado.
Eles dizem que na terra tem gente demais. Aumentar o tamanho do mundo não dá. Proibir as pessoas de namorar, casar e ter filhos é triste. O jeito é seguir o exemplo da pulga, diminuindo o tamanho da raça humana. Deixa comigo. Só que tudo isso ainda leva tempo. Afinal, eu sou pequeno e o Einstein, pela cara, devia ter uns noventa ou cem anos no mínimo.
Se eu fosse o tempo, ia ficar meio assim, porque o tempo ninguém sabe o que é, onde começa, onde termina, nem de onde vem, nem muito menos pra onde vai. O tempo é um enigma do mundo em que vivemos. E olha que o mundo é cheio de mistérios! Por que unha cresce e dedo não? Por que tem gente que não quer sorvete? Por que peixe não fecha o olho? Como o vaga-lume acende a luz? Onde fica o universo? Só dúvidas, dúvidas e mais dúvidas. Sobre o tempo, então...
Pra começo de conversa, existem muitos tempos. Tem o do tipo manhã, tarde e noite, madrugada e alvorecer. O ontem, o hoje e o amanhã (e no amanhã o hoje sempre vai ser antigamente). Tem a meteorologia. Hoje fez sol, anteontem ventou forte, depois de amanhã o tempo vai ser nublado, sujeito a chuva e trovoadas no decorrer da tarde. E o tempo das estações: verão, outono, primavera, inverno. Tem também os segundos, os minutos, as horas, os dias, as semanas, os meses, os anos, as décadas, os séculos, os milênios.
Os relógios passam a vida tentando medir o tempo, mas não conseguem. Como por exemplo: ano passado nasceu um furúnculo na minha perna. Veio meu pai e espremeu. Furúnculo é fogo. Se fosse contar no relógio, a espremeção não durou nem dois minutos. Doeu barbaridade. Foi tão horrível que para mim durou séculos. Quando a gente tá atrasado, o tempo voa. Quando se não tem nada pra fazer é um tédio. A gente vai lá, volta, senta, coça a cabeça, olha pro teto, futuca o nariz... Quando vai ver não passou meio minuto.
O tempo a gente pode ganhar ou perder. Pegar, nunca. Na prova de matemática, se o sujeito erra na conta, tem de apagar e fazer tudo outra vez. Perde tempo e, às vezes, está quase na hora de entregar a prova. Quando a pessoa está no quarto fazendo besteira e alguém bate à porta, a pessoa fala: “Hã? Sim? Como? Quem? Onde? Espera um pouquinho. Já vou indo”, e ganha tempo enquanto dá um jeito de disfarçar a bobagem. Depois, abre a porta como se não tivesse nada acontecido. Tudo tem seu tempo próprio. Um ser humano normal, até fica grande, demora dezessete anos. Menos o Carlão, que tem vinte e três e continua o mesmo. Cachorro demora dois. Mosca, horas. Um elefante de quase trinta anos é quase um recém-nascido.
E o tempo dos sonhos? Uma vez, depois do almoço, sonhei que tinha ido viajar no lombo de uma borboleta. A viagem durou noites e dias. Cheguei num castelo parecido com a casa da minha avó, só que de pedra, cheio de bandeirolas no telhado e não bem maior. Abri a porta. Entrei num quartinho. Achei uma poltrona e um espelho. Olhei pro espelho. Eu estava todo enrugado, com cara de velho de mais de cem anos. Encostei a bengala, tirei o chapéu, botei minha dentadura num copo e acendi o cachimbo. Fiquei na poltrona falando sozinho, lembrando e rindo de coisas passadas. Acordei e olhei o relógio. Tinha dormido exatamente quinze minutos.
Quando eu nasci, meu pai tinha trinta anos. Era trinta vezes mais velho que eu. Quando fiz dez anos, meu pai fez quarenta, quer dizer, ficou quatro vezes mais velho que eu! Se continuar assim, um dia eu e meu pai vamos ter a mesma idade? São os truques do tempo.
O doutro Rui, que morava na rua de cima, morreu ano passado com sessenta anos e cinco anos. Eu me lembro do doutor Rui. Vivia resmungando o dia inteiro. Dizia que tudo estava perdido. Que o mundo ia acabar. Que antigamente, sim. Pra ele nada prestava. Xingava, tinha dor nas costas, cuspia no chão. Um dia, foi passear, pisou num chiclete verde, ficou nervoso, disse que a culpa era dos tempos modernos, gritou, passou mal, teve um enfarte do miocárdio e morreu. O seu Roberto lá da loja tem oitenta e dois anos. Em abril casou outra vez. A mulher nova dele tem setenta e sete. Se casaram, é porque namoraram, ficaram apaixonados, se beijaram e tudo. Eu vi. O seu Roberto fala pouco, vive risonho e trabalha até hoje. Quem é mais velho? O doutor Rui, que já morreu e tinha sessenta e cinco anos, ou o seu Roberto, que tem mais de oitenta? Se eu fosse velho, ia ser como o seu Roberto. Ele é vivo! Faz o tempo passar do jeito que ele quer!
Se eu fosse selvagem, ia arreganhar os dentes e sair dando risada, dançando e tocando tambor. Antes eu achava que cidadão era cidade grande. Hoje sei que cidadão é quem mora na cidade e quem vive no campo é camponês, não “campeão”. São mistérios que as palavras têm. O certo é que selvagem mora na selva e ser selvagem é mil vezes melhor que ser da cidade.
O selvagem não faz nada. Passa a vida passeando pela floresta. Se está com fome, chupa uma fruta ou caça um bicho. Se faz calor, pula no rio. Se fica bravo, pega o inimigo, joga num tacho de água quente e come com a família no jantar. De noite, o selvagem não veste pijama, não usa chinelo, nem escova os dentes. Deita na rede e fica coçando o umbigo contando as estrelas do céu.
O homem da cidade usa cueca, calça, camisa, meia, suéter, tênis, correntinha no pescoço, relógio, caneta esferográfica, lenço, carteira, pente, cinto e chaveiro, no mínimo. Um selvagem comum anda pelado. Quando aparece um filme ou livro de fotografia, bota tanga pra não envergonhar pais e mestres.
Cidadão não vive sem sabonete, xampu, aspirina, cotonete, toalha, papel higiênico, xarope, desodorante, fio dental e escova de dentes. Usa prato, copo, garfo, faca, colher, xícara, bule, jarra e panela. As casas da cidade são cheias de bugigangas. É cama, mesa, cadeira, sofá, espelho, poltrona, armário, cortina, cômoda, criado mudo, abajur, fogão, geladeira, ferro de passar, máquina de lavar, televisão, calculadora, telefone, rádio-relógio, aspirador, batedeira, liquidificador, enceradeira, vitrola, computador, vídeo e cortador de unha. O selvagem tem o quê? Uma cabana, um arco, e flecha, a faca, a cuia, uns potes, um cesto, flauta, colares e rede, quando muito. Morar na cidade custo os olhos da cara. Viver na selva sai de graça. Todo cidadão se quiser vencer na vida, tem que ganhar dinheiro. Precisa arranjar emprego, aprender inglês, leitura dinâmica e ver telejornal pra saber das notícias. Um verdadeiro selvagem nem sabe o que é vencer na vida. Ele vive e pronto. Se está andando e vê uma sombra bonita debaixo da árvore, pega e fica lá.
Sabe que passarinho, onça e borboleta existem para enfeitar a mata. Ignora as partes de uma planta, mas conhece todas pelo perfume. Quando fica bravo, grita, faz careta e dá pancada. Alegre, sorri. Com sono, dormi, mesmo às quatro e quinze da tarde. Com preguiça, não faz nada. Com fome, vai caçar. Quando não pega um bicho, passa fome. No dia seguinte, mata a fome. O cidadão vive preocupado com o futuro. O selvagem não se preocupa nem com o ontem nem com o amanhã. Sabe que ontem já passou e amanhã só vai existir no dia seguinte. Gasta toda sua força no hoje, porque perder tempo com o que já foi ou com o que ainda não aconteceu é que nem jogar energia no lixo.
Tem gente achando que selvagem é ignorante só porque não conhece o chiclete, o fliperama, o refrigerante, o raio lêiser e o sorvete de duas bolas com cobertura. Mas ignorante como, se ele estuda de manhã, de tarde e de noite na melhor escola do mundo, a escola da natureza?
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