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tu me olha e eu sinto como se tu tivesse separando feijões defeituosos. os bons, que são poucos, tu gentilmente desliza pra dentro de uma vasilha impecável. os ruins tu joga fora ou usa alguns pra atirar em mim. eu atiro de volta e digo que eu não plantei os feijões, e que não é minha culpa, tu discorda e diz que eu envenenei as raízes, apodrecendo tudo de pouco em pouco.
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hoje eu chorei no ombro da minha mãe. não vou censurar o título que ela exerce na minha vida, nem usar codinomes. é minha mãe.
eu desci as escadas em câmera lenta e minhas lágrimas vieram correndo atrás, e por mais vergonhoso e extremamente íntimo que isso soe, minha mãe olhou pra mim e sabia quem me acompanhava. nós somos um monstro de duas cabeças, gêmeas siamesas, uma boneca russa onde cada uma puxa uma faceta da outra. enquanto minhas lágrimas caiam, minha mãe não pôde fazer nada além de seguir o mesmo rumo.
eu senti as mãos dela gentilmente acariciando minhas costas, sussurrando elogios e consolos, e no momento, foi como um delírio, uma alucinação de um viciado, eu ainda não tinha descido os degraus, mas de alguma forma estava pairando no andar de cima, observando uma mãe abraçar a filha, a filha abraçar a mãe.
diversos pensamentos vieram à mente, ambas as mentes envolvidas, a do andar se cima achava que aquilo, na verdade, não estava acontecendo. e a do andar de baixo pensava como foi relaxante ser segurada. sou dura com a minha mãe, ela foi comigo, de vez em quando, e ali naquele momento eu pensei, ela não está mais sendo dura comigo, e então subitamente, eu vi ela em meio a abraços, abrir a palma das mãos, em uma, ela estendia o coração, e no outro, minha mãe soltou, jogou no chão melhor dizendo, uma adaga.
ela me soltou, nos olhamos. ela passou as mãos pelas minhas bochechas úmidas. eu desviei o olhar e saí da loja, deixando minha mãe para trás e me encontrando no reflexo do lado de fora. me observei, e depois de algum tempo, um segundo, talvez 5 minutos, notei que não sentia mais o calor materno, e que não tinha sonhando, entrei novamente e procurei minha mãe. procurei ela como sempre procurei. uma boneca russa tentando desvendar a si mesma, uma gêmea siamesa fugindo do reflexo da outra. a alice fugindo do coelho.
avisei ela, finalmente.
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eu acho que o sal do mar grudou em mim, e então nosso beijo começou a doer.
de guerras de mangueira e idas ao mercado, olhares cruzados, bochechas queimadas e picolés de limão, no meio de alguma dessas coisas, o maldito sal me envenenou. e eu acabei te envenenando junto.
apesar de novos, nossos pais brigavam, e de tantos gritos ecoados eu e você começamos a gritar um com o outro também. lágrimas rolavam e eu sentia uma amargura se instalar na boca do meu estômago por que amanhã não teria praia, nem brigas de água. amanhã tinha sido arruinado e a gente era tão, tão novo.
eu demorei muito tempo pra aceitar que cada pedaço disso que eu acabei de descrever, era amor. eu gostava de ti. amar é coisa de adulto, significa compromisso, casamento, uma palavra madura. eu gostava de ti, e continuei gostando, e nunca, nunca me vi livre desse sentimento puro e infantil que eu só senti contigo. fizemos festas do pijama e usávamos o frio do verão como desculpa pra dividir a rede, eu sorrateiramente colocava minhas mãos no bolso do teu casaco, não que você não estivesse esperando, tua palma estava aberta esperando o calor da minha.
mas o sal ia e vinha, e entre aparições e sumiços a gente se beijava escondido.
eu queria poder te explicar que eu queria me soltar daquela coisa arenosa que me machucava tanto, eu queria explicar que eu morria de medo. ainda morro. mas por favor, se um dia, decidir me perdoar, eu gostaria que soubesse que eu me livrei do sal, e que eu não vou mais segurar tua mão somente debaixo do casaco.
eu gosto de ti
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uma idosa não pode, nem poderia ser amiga de uma jovem. a jovem chora e súplica por uma pele lisa e perfeita, que por ora está com manchas, a velha com o cenho franzido, imagina a reação da menina no seu lugar, o rosto repleto de rugas de caminhos andados durante décadas e mais décadas vividas.
a jovem despedaça rosas e fura a própria pele com os espinhos remanescentes, em luto por um coração partido. a mais velha maneia a cabeça, com a lembrança do vestido preto que usou no velório de um amor que nunca mais poderá ver, e as únicas rosas que restaram, descansam em cima do caixão.
a jovem diz: queria ser como a senhora! sábia e elegante.
a velha responde: queria que você tomasse meu lugar! assim eu tomaria o seu, e faria bom uso de tamanha beleza jovial.
no fim as duas nunca se entenderam, determinadas demais a mudarem o pensamento da outra, e preguiçosas demais para mudar o próprio.
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não canso de pensar em como gostaria de ser um homem. não me entendam mal, não me vejo insatisfeita com o meu corpo ou quaisquer características físicas femininas que tenho. digo uma alma masculina, o ar e o espaço que um homem ocupa. acho que passa despercebido como conseguem empregos e crescem facilmente, como são admirados e venerados por ações que mulheres fazem diariamente. meu desejo mais ardente é usar um terno, vestir uma gravata e usar um óculos de armação fina, falar algumas coisas toscas e de conhecimento geral e ser aplaudida. eu odeio a forma como esse tipo de pessoa que encontro em salas de reuniões e discursos de abertura em faculdades me causam uma inveja capaz de pintar meu rosto do tom mais amargo de amarelo. me vejo em chamas e gritando e chutando tudo dentro de mim, por que sinto que sendo mulher eu nunca vou ser vista assim, sinto a extrema necessidade de então, me apossar de todo e qualquer traço masculino popularmente conhecido, e assim abrir mão completamente dos vestidos e brincadeiras de bonecas. sinto a necessidade de me tornar grosseira, e usar roupas com corte afiado como navalha, que caem retas sob meu corpo curvilíneo, que lógico, preciso esconder. meu queixo tem que tocar os céus e assim como os homens bigodudos fazem, tenho que agir como se fosse deus, e tratar os outros com indiferença notável. não posso ler nem aprender coisa alguma por diversão, preciso ler clássicos e saber regra por regra de xadrez, e óbvio, anota-las. minha vida assim se torna um eterno teatro, honestamente, eu anseio engolir manuscritos e fazer meu cérebro inflar até ser reconhecida nas ruas por causa do mesmo, e é uma pena que por ser mulher, isso me exija tanto esforço. veja bem, por ser mulher, o mínimo de deslize nessa personalidade me torna frágil e apaixonada, tosca. um coração partido não muda minha visão de mundo, me traumatiza. minha cobrança e criticismo me fazem amarga, e meus esforços, obsessiva. eu adoraria aproveitar a leveza de um batom aos lábios e o rodopiar de saias, carregar livros sem ser julgada como se "quisesse chamar atenção" desde quando segurar um livro me torna carente? não consigo existir um dia sequer sem sentir o peso da masculinidade que foi imposta sobre mim, meu útero grita e meus cabelos tentam fazer tranças enquanto eu corto cada mecha, mas nada adianta não é? sou baseada em meu coração vermelho sangue e homens não tem coração, sendo assim tenho que arrancar isso de mim mesma também.
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eu amarrei os cadarços e corri o mais rápido que pude, mas apertei demais e tropecei, e repeti o processo no dia seguinte, pai por quê você não me ensina a amarrar meus cadarços? eu sinto tua ausência como uma viúva que nunca casou. pai você não foi ensinado a amar? minha mãe diz que é culpa de outra mãe, são todas as mães e pais e filhos, são famílias e incêndios que inflamam a cada geração. mãe eu posso amarrar teus tênis. o soco atravessou a parede e atravessou a casa e quebrou tudo ao redor. pai por quê você não para de me fazer sangrar? eu te amo como uma criança que se apaixonou pelo melhor amigo, um amor que nunca passa, uma doença sem cura, te escrevo cartas e te dedico amores de Shakespeare onde nós dois morremos. pai nós podemos ser amigos? a comida esfriou e teu corpo formou um desenho na cama, eu estico o lençol e te compro uma fronha nova, eu faço qualquer coisa, qualquer coisa. mãe eu sinto muito. as paredes apesar de repletas de desenhos e sonhos de criança, estão completamente rachadas por trás, meu banquinho não abraça mais meu corpo crescido e queimado. eu posso despejar água em vocês.
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eu sou um lápis que tu não cansa de apontar, pra no final escolher um material completamente diferente. um filme que tu assistiu um tempo atrás e gostou demais, gostou tanto que não suporta mais a ideia de reassistir. sou uma erva daninha no teu quintal florido, no meio dos tijolinhos, que por pura preguiça você deixa ali, com a promessa de arrancar tudo pela raiz no próximo dia, ou depois, ou mais tarde, ou nunca, mas talvez. sou um poema que tu não teve coragem de arrancar da cabeça e tornar real, um desenho que dói ver. uma arte bruta e feia, que tu mantém escondida abaixo de cada camada de verdade e mentira presentes em ti. eu represento uma infância de esconde-esconde onde tu sempre vai perder, o reflexo no espelho que mostra muito mais que a expressão cuidadosamente planejada. sou uma casa mal assombrada, um vulto nos corredores, uma fita cassete quebrada que travou e te atormenta. estou marcada na ponta dos teus dedos, e teus lábios não resistem a ideia de sussurrar meu nome, minhas digitais estão marcadas em cada fio de cabelo teu. sempre vou ser tua ideia mais intrusiva e perturbadora.
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se você fosse uma peça de teatro, eu iria todas as vezes que entrasse em cartaz. eu testaria o ponto de vista de cada poltrona, e em cada vez eu iria te aplaudir de pé.
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não importa quantas vezes eu mude as paredes do meu quarto, nem quantos textos eu escrevo ou artes eu faço. a quantidade da chuva lá fora aumenta gradualmente, cada vez despejando mais forte, cada gota carregada de ódio, as árvores balançando numa dança odiosa, solidariamente acompanhando todo aquele barulho. o maldito barulho não passa. eu cerrei as janelas e coloquei mais umas três fechaduras na porta, mas nada disso impede das gotinhas quase pretas, corrompidas depois de deuses sussurarem horrores para as nuvens, elas invadem meu espaço, pinicam e coçam, torturam e ferem, brincam de telefone sem fio, falando coisas sem sentido, que na verdade são mil insultos de uma vez, dos quais eu tenho que selecionar um por um e tomar cada partícula de água negra, misturando com as minhas próprias lágrimas.
tudo isso desce e deixa um peso na boca do meu estômago, meus lábios escorrem tinta preta, e uma nuvem paira acima de mim, não depois de tudo isso, não. essa nuvem horrenda sempre esteve aqui. antes eu olhava pra cima a cada tick do relógio, até perceber que tinha um fio me interligando diretamente com aquele pesadelo flutuante. começou a chover ácido e mágoas, eu atirei tudo de volta aos céus, vestindo cada raio horroroso como uma segunda pele, cada movimento meu carregado de uma medida cautelosamente balanceada de ódio e aversão.
nem sempre chove, hoje choveu, mas eu trovejei de volta, então tudo bem.
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eu nunca vou dizer pra ninguém o que eu sinto por você, por que se eu disser em voz alta, tudo vai se tornar real, cada palavra que eu botar pra fora vai ser uma sentença de morte, e um punho socando minhas costelas. e eu me recuso a acreditar que é real.
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tu me pergunta, depois de me mandar mensagem repentinamente num sábado de noite, depois de meses sem conversar:
"ou quer se afastar de mim?".
como se a gente já não estivesse o mais afastadas possível, o que é engraçado, parece que pra ti estamos de mãos dadas e eu sou uma memória doce que derrete como nuvem na língua. enquanto pra mim tu é um machucado feio no cotovelo, que eu fiz depois de tropeçar no asfalto e encarar as rodas de um ônibus, prestes a me esmagar.
o sinal tava vermelho, mas acho que tu vê ele verde.
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um dos erros que o ser humano mais comete, e comete com frequência, é esquecer, ou melhor dizendo, diminuir a beleza que a simplicidade tem. estamos acostumados ao novo, novas tecnologias, novas teorias, novos programas de tv e formas de entretenimento, um novo livro, novo amigo, nova paixão. amamos e temos vícios e temos tudo. todas as possibilidades e sonhos estão nas nossas mãos, na ponta dos dedos e na curva dos ligamentos, temos tanto que nada mais surpreende, e de onde surgem as coisas mais bonitas, mais sinceras, se não de um calafrio e uma electricidade única viajando como ondas por cada veia nos nossos corpos?
esquecemos tão rapidamente as folhas que cantam histórias para nós enquanto viajam pelo vento, quase como se dissessem: oi, me enxergue. me sinta. veja as estações presentes na textura desse laranja quebradiço. invadimos mares enquanto as correntezas dançam conosco, nos estendendo milhares de bolhas como carícias na pele, que se escutadas atentamente, dizem: me concede essa dança? entrelaçamos mãos como se fosse um tricô infinito, cada dedo tocado como mais um nó insignificante, um nó que temos a arrogância de achar que não se quebra. besteira humana achar que somos reis de nós mesmos, reis de mundos e castelos, governadores de todas as estações e comandantes das próprias águas. tolice. a lua aqui e lá decide que face irá nos mostrar, e o sol não se dá ao trabalho de vestir outro figurino ou mudar completamente seu horário, nós somos os governados, somos ordinários, uma parede cinza e sem graça.
mas como nem tudo é regrado, alguns corajosos mudam a lente, ou até mesmo tiram ela e simplesmente fecham os olhos, e sonham. vivem cada um dos quadros do museu, não ligando que estarão ali amanhã, depois de amanhã, na ponta do dedo. essas pessoas buscam guardar a obra na memória, internalizar cada mínimo detalhe pra si, como um achado valioso que só ela viu. olhar nos olhos, colecionar aspectos, dividir segredos, viver. viver viver viver.
eu iria ver tudo isso no cinema, assistira 2D e 3D, 3D para ter mais perto de mim, veria dublado e legendado, guardaria as palavras desconhecidas como moedas de ouro embaixo do travesseiro. me apresento para as árvores e deixo as estrelas me verem assim como tenho o privilégio de vê-las. deixo as ondas tomarem um pouquinho a mais do ar de meus pulmões em troca de flutuar na imensidão azul. deixaria o sol me beijar até minha pele gritar em vermelho, a lua iria escolher uma forma que encaixaria nas minhas sardas e eu adormeceria, assim como adormeço noite após noite sabendo que vivi com cada célula do meu corpo.
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eu sou a amiga que tu encontra de vez em quando (já fazem 3 meses). eu sou a amiga que te aconselha sempre, somos parceiras (tu só me procura quando convém). eu sou a tua melhor amiga (tem muitas outras "melhores" antes de mim).
nós, na verdade, não somos amigas. eu sou tua amiga, tu é minha amiga assim como um quadro antigo uma vez foi amigo de uma parede que lhe exibia para todos que passavam por ela. tu é minha amiga assim como um poster de um show é grudado até hoje no muro da rua, mas na verdade a data ja passou faz anos, e o poster só fica ali. tu é minha amiga assim como aquela peça de roupa que não serve mais fica guardada no armário. é assim nossa amizade.
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eu tenho todos os ingredientes em mãos, armas em punho, e o fósforo quase tocando o chão encharcado de gasolina. você está parado, bem na minha frente, cenho franzido e dedos se esticando, tentando e falhando em me impedir de explodir TUDO. a voz suplicante como um zumbido na minha cabeça
por favor por favor por favor.
por favor o quê? você me deu a caixa de fósforos, você despejou gasolina todos os dias no mesmo lugar, como se fosse um buraco que era impossível de preencher, e além disso me ensinou a puxar o gatilho, e agora quer que eu pare.
pare como se eu não tivesse construído todo o lugar, especialmente para nós dois colocarmos fogo em tudo. pare, como se você durante todo aquele tempo não tivesse me usado de descarga elétrica, um choque diário, um dedo propositalmente posicionado na tomada, esperando eu deslizar desde a ponta de seus dedos até o último cacho castanho. irônico, você me pedir pra parar, sendo que, quando eu paro e queimo todas as lâmpadas, te deixando num vazio, um breu onde não podemos mais encarar um ao outro, você corre na mesma hora e testa cada interruptor, só para ter certeza que a faísca apagou, estranhando por que geralmente, você se dá o direito de ligar e desligar quando bem entende, por que falta coragem pra decidir manter todas ligadas e se banhar em luz, ou derreter o lugar em meio à escuridão.
no fim, vou deixar você apodrecer no próprio curto circuito, e afogar em meio a toda gasolina que você não teve coragem de acender em chamas.
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eu queria uma mãe e recebi uma crítica, uma inimiga odiosa, um mar revoltado que não suportava minha presença insignificante no meio da sua vastidão azul. mesmo se eu juntasse cada grão de areia do mundo, não seria o suficiente, nunca é, e nem vai ser.
a tempestade volta, e volta, e volta, e bate sem parar, deixa meus olhos ardendo e minhas costas arranhadas, minha garganta seca e meus lábios rachados, ao fim do dia me vejo sem voz, e o ciclo se repete, como uma estação que não passa, uma cena congelada em um filme que pausou e o controle estragou, e agora não tem nem como voltar e nem como seguir em frente.
honestamente não tenho saída, não tenho um segundo controle e nem o poder de multiplicar todos os grãos que eu já juntei, e mesmo se tivesse, não acho que bastaria pra você. não importa o quanto essas ondas murchem meus dedos, e o quanto me ajoelhe e implore que por favor chega. o mar nunca me ouviu, e não tinham salva vidas na praia.
um dia eu vou afogar
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campos verdes preenchidos por marcelas e anjos imaginários, chão de terra e um caminho traçado, levavam à uma casa há muito planejada, e construída com amor, ou não. por dentro, tudo estava lentamente desmoronando. cada dia um cômodo diferente, hoje a cozinha, amanhã o quarto, e depois a sala, as escadas ao invés de levarem para um andar acima, ao sinal da ponta do pé encostando na madeira, desabavam. pedaço por pedaço, aquele sonho arquitet��nico se mostrou mal feito, e portanto, desmoronou, e eu estava lá dentro quando aconteceu.
as marcelas me davam alergia, o nascer do sol me trazia a lembrança tortuosa de que tudo iria começar de novo, o chão de terra batida só me fazia resvalar, e o anjo imaginário era Lúcifer me visitando, se esgueirando em meio à tempestades. eventualmente nos mudamos, mas por anos eu vi nas sombras o reflexo dos teus olhos, e nos ruídos no meio da noite ouvi tua voz, quando dormia, o barulho da casa desabando aos meus pés me perseguia e eu me via caindo no infinito.
eu tentei me convencer que foi feito com amor, e que sem querer falhou, talvez o concreto não tenha secado direito, ou o azulejo era muito sensível, até mesmo a madeira das escadas se mostrou realmente frágil demais, mas não, lá bem no fundo, quase chegando no primeiro andar, ou no lago raso atrás da casa, eu sempre soube. eu sabia que foram as suas mãos que fizeram uma casa ruim, de palha, de ar, quase uma ilusão na verdade, foram as suas mãos que de tanto dar socos enfraqueceram as paredes, e seus pés que muito chutaram e marcharam com ódio quebraram degrau por degrau. e eu posso me mudar pra qualquer outra casa, apartamento, posso ir até mesmo morar num castelo, viver num sonho, nada disso importa, sempre sinto que estou subindo as mesmas escadas forjadas pela raiva, e que irei cair no mesmo abismo.
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