Tumgik
kaisalveterra · 2 years
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Texto 573 - "O Demônio da Vila Sul"
Escrito 12 anos antes da Terceira Grande Revolução.
Por longos meses eu senti o Arcano tintilar.
Durante todo o verão, quando meus olhos se fechavam e meu corpo começava a meditar eu ouvia o som dos sinos.
Eu não sabia que sinos eram esses, mas eu tinha certeza que algo estava se movendo dentro do Arcano e aquilo incomodava somente a mim. Eu busquei entre os sábios de Alberich (que na época já começara a se erguer como capital dos estudiosos da magia), porém, nenhum deles sentia o que eu sentia.
As sensações iam e voltavam como ondas batendo no litoral, algumas vezes eu os ouvia baixo, quase como sussurros, outras vezes eu os ouvia claramente, como se eu estivesse a, apenas alguns metros deles.
No começo da Garra do Inverno (fevereiro), eu finalmente fui capaz de sentir os sinos novamente, dessa vez eles eram claros, não pareciam tocar como os sinais de aviso quando a cidade de Salim despenca do céu, os sinos tocavam como os das igrejas de Alberich, como se me chamassem ao seu encontro.
Eu, então, respondi o chamado.
No dia 14 da Garra do Inverno, eu cheguei numa pequena vila entre Tatsumari e Norvak. Como o leitor deve muito bem saber, apesar de estar na fronteira entre os dois países a pequena vila pertencia ao reino de Norvak. Eu fui uma das poucas pessoas de fora a visitar a vila de România antes de sua queda.
România era uma cidade azul, mesmo que nevasse dia e noite, principalmente no meio do inverno. As casas e suas pessoas refletiam o azul do rio congelado que atravessava a cidade, as roupas das pessoas variavam em um tom próximo do ciano e as casas eram um pouco mais claras, quase branco, mas ainda azulado. Muitas crianças brincavam no rio durante o dia, já durante a noite alguns casais se juntavam para se deitar por cima das camadas mais grossas e permaneciam olhando o céu.
No dia em que eu cheguei à vila, o povo tirava as decorações do Festival de Inverno que ocorrera dias antes, um pequenino e jovem halfling me recebeu em sua estalagem e me guiou entre os pontos importantes da cidade. Destoante de toda a cidade, o pequeno Alfredo usava roupas avermelhadas, andava de cima a baixo na cidade parecendo uma flor de papoula, mas falava como um Kenku, sempre que possível ele contava sobre o que lhe viesse à cabeça, sua família, seus sonhos, seus medos, não era muito estudado, mas muito disciplinado para os estudos mágicos.
Que a Arquiteta o tenha em seus braços.
No dia 14, Alfredo me levou para uma série de caverna abaixo da vila, ele dizia que entre os moradores da vila, uma lenda corria de que em alguns momentos do dia era possível ouvir o som dos sinos. Quando chegamos à entrada da caverna, Alfredo me disse que não me seguiria mais.
"Mestre, esse local é perigoso até para um poderoso mago como o senhor" me alertou o pequeno, enquanto eu ansiava por saber o que se escondia lá dentro.
O que era forte o suficiente para mover o Arcano sem que ninguém o notasse?
Não se passa um dia sem que eu me arrependa de não ter ouvido o pequeno Alfredo.
Entre as paredes rochosas da caverna, só se era possível ouvir o som do vento assoviando, meus passos eram mais altos que meu coração que batia como cascos de cavalos de guerra.
A cada metro percorrido, meu estômago revirava de uma maneira diferente, eu sentia minhas mãos se tornarem geladas e eu não entendia o motivo, talvez fosse um aviso dos deuses, talvez fosse Salim tentando ajudar seu último servo, talvez fosse meu corpo rejeitando aquele local, ou talvez eu soubesse o que estava por vir.
Se eu sabia o que estava por vir, tudo que aconteceu é culpa minha?
Quando cheguei ao centro da caverna, meus passos já não eram tão altos quanto antes, meu coração não batia tão forte e meus olhos não eram guiados por mim. Mas o que mudou minha vida foram meu ouvidos, ouvidos esses que escutaram os sons dos assovios do vento se tornaram assovios humanos.
Um enorme salão de pedra, esculpido no meio das cavernas, era iluminado por apenas um feixe de luz que vazava do teto, no meio do salão um enorme trono de cristal que nascia de dentro do solo abaixo de si.
Sentado ao trono havia um homem. O homem era alto, seu rosto era belo, parecia ter sido desenhado pelo artista mais habilidoso que já houvera, usava longas vestes escuras, vestes sociais, como se estivesse se preparando para um baile formoso, seus cabelos eram longos e apesar de não estarem organizados, pareciam estar exatamente como deveriam estar, seus olhos eram negros como o mais profundo abismo da terra.
Aquele homem me olhava como se eu fosse uma criança inocente, sua face era de pena e de arrogância perante mim.
Lembro-me de pensar como esse homem ousa olhar para último mago da Ordem de Salim dessa maneira?. Mal sabia eu, na época, que ele olharia dessa maneira, mesmo que fosse o próprio Salim à sua frente.
"Você está atrasado" sua voz era grave como tambores de um batalhão de soldados.
Meus joelhos desistiram e me arremessaram ao chão, durante minha queda escapou da minha boca: "Quem é você?".
"Me chamam de muitos nomes, mas para você darei um especial. Me chame de amigo"
"Amigo? Que amigo é esse que não me chama pelo nome e sequer se apresenta-" minha garganta cessou. Quando jovem eu ainda era corajoso, ou burro, de questionar um ser como ele.
"O tipo de amigo que te dará um aviso, que te trouxe aqui para que você testemunhasse o que está por vir, um amigo que busca um favor"
"Que favor um mago ignorante como eu seria capaz de fazer para o senhor?" essas palavras saíram de minha boca, mas não fui eu quem as escolhi.
O homem levantou em minha direção um cetro com uma caveira humanoide escrutada no topo.
"Cuide do meu tesouro e no dia em que seu coração urgir por mim, eu virei ao seu socorro" o homem colocou seu cetro na minha frente e minha mão se estendeu sem que eu pudesse a controlar.
"Por que eu?" questionei.
"Porque eu escolhi assim."
"O que vai acontecer?"
"O mundo mortal desejará coisas que ele não tem controle sobre e esse cetro dará esse poder. Eu não vou permitir que isso ocorra"
"Quem é você?" disparei uma última vez minha tentativa de entender algo.
"Você descobrirá na hora correta."
Meus olhos se fecharam e meu corpo desistiu.
Por dois dias eu estive apagado, por dois dias meu corpo permaneceu imóvel.
No dia 15 da Garra do Inverno, Tatsumari destruiu a vila de România.
No dia 16, eu acordei e descobri que todos lá haviam morrido, exceto eu e o pequeno Alfredo.
No dia 17, Norvak mandou tropas para a fronteira com Tatsumari.
No dia 25, eu voltei para Alberich, junto do meu companheiro pequenino.
No dia 28, último dia do mês, a Guerra dos 60 Dias havia começado.
Por 30 anos o cetro permaneceu comigo sem que saísse do meu lado.
Por 15 anos eu não vi o homem novamente.
E em nenhum dia eu não me arrependi de entrado naquela caverna.
Escrevo essa crônica como um pedido de desculpas, tudo que aconteceu e o que vai acontecer é culpa minha, não porque eu entrei naquela caverna, mas porque eu escolhi não morrer depois daquilo.
Assinado: Mordenkeinen
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kaisalveterra · 2 years
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Texto 204 - "O Cego"
Escrito 34 anos antes da Terceira Grande Revolução.
Depois da Primeira Revolução, todo o continente de Opath entrou num limbo entre medo e curiosidade.
Parte da população temia pelo que iria acontecer com o mundo, agora que, de repente, os grandes magos de Salim não eram mais os donos do Arcano.
A outra parte da população ansiava pelo seu momento de usufruir dessa magia. Por um ano eu vaguei pelo continente em busca de entender melhor quais seriam os efeitos da Revolução nos lugares mais distantes de Salim. Nessa jornada me encontrei numa noite de fria de Inverno, dentro de uma taverna bem no meio de Thur Thur. A taverna era rústica - para não dizer mal cuidada - e seus visitantes também eram. Aventureiros, veteranos da Revolução, escravos, pecadores e seus pecados. Seria uma visão horrenda se não fosse pela criatura no meio do palco.
No meio daquele local bruto e sujo, um pequeno anão sentou a frente de um enorme piano de calda, não tive tempo de questionar de onde aquele piano veio antes que eu ouvisse a primeira nota, uma nota que encheu todo o local, as vozes dos aventureiros, que comentavam sobre a vida, arrependimentos, medos e sonhos, cessaram. O anão esperou até que todos os corações ali dentro estivessem quase urrando pela próxima nota.
Então ele tocou.
Nota após nota, ele tocou.
A música era antiga, triste e suave. Se meu rosto tivesse menos linhas e minhas mãos menos calos, eu provavelmente dançaria ao som do canto do anão. Eu ainda não sabia na época, mas aquela seria a primeira vez que eu ouviria um Bardo.
Enquanto ele cantava surgia pelo salão pequenas esferas luminosas que dançavam no ar como vagalumes em tempo de primavera, ao lado do pianista notas se materializaram no ar, gigantescos blocos púrpura no formato de fá, sí e dó.
Quando o show acabou, todos correram para parabenizar o pianista.
Já eu, me retirei para o lado de fora da taverna. Acendi um cachimbo como o que o meu pai fumava todo fim de tarde.
"Eu sei quem você é, mago." disse o anão saindo sorrateiro de dentro da taverna.
"Se você puder me contar com urgência, eu agradeceria, meus olhos já não vêem o mundo que eu cresci, minha boca já não conta as histórias que eu aprendi quando jovem e minha mente não pensa os pensamentos do homem que eu achei que fosse." talvez eu tenha sido mais rude que o necessário, mas meu humor não era dos melhores na época e me incomodava os velhos que tentavam lembrar demais sobre o passado.
"O que um mago de Salim faz em um bar no meio do nada?"
"Ninguém sabe quem foram os magos de Salim, sequer lembram quem era Salim de verdade. Na época de meu pai não havia uma pessoa dentro de Opath que não se derramava aos chãos somente se saber que Salim estava em terra novamente."
"E agora,"
"Agora meu pai está morto e o futuro é incerto" disse antes que o anão pudesse terminar o pensamento.
"E agora," continuou, como se ele nunca tivesse sido interrompido "as pessoas não se curvam perante poderes misteriosos, agora podemos evocar as maravilhas do universo afora."
Somente o som do vento podia ser escutado naquele momento, um silêncio tomou lugar entre os dois que encaravam as planícies brancas de Thur Thur.
"Você teme ser esquecido" constatou o anão.
"Eu temo o que vão fazer com o Arcano, eu estudei por anos, aprendi os segredos do mundo e achei respostas para as perguntas que só os deuses ousavam perguntar, e agora toda e qualquer pessoa dentro desse continente abusa do Arcano como se fosse uma fonte incessante de idiotices"
"Um fósforo, uma avelã ou um vagalume"
"O que isso deveria querer dizer?"
"Minha mãe era bruxa dentro de Salim, conheceu meu pai que era mago, ele ensinou pra ela que ensinou para mim,"
"As luzes..." minha mente finalmente fez a ligação. O que ele havia usado dentro da taverna enquanto estava tocando, as luzes brilhando pelo salão, nada mais era que magia barata ensinada para crianças. Mas quando ele usou os componentes para tal magia? eu não senti nenhuma alquimia no local.
"Eu aprendi como fazer quando era criança, mas depois da Primeira Grande Revolução, toda vez que eu toco aquela música, toda vez que eu fecho meus olhos e paro de ver as coisas do mundo através dos meus olhos eu sinto as luzes à minha volta"
"Você fez aquilo sem componente nenhum!?" não teria reação adequada senão a de medo e confusão, eu nunca vi ninguém usar magia sem uma varinha feita em Salim ou itens alquímicos.
Como um anão fez aquilo, usando um piano?
"Você fez aquilo com um piano?" perguntei.
"Eu não fiz nada, as coisas apenas aconteceram."
"Você usou magia sem querer?"
"Não saber o que vai acontecer quando eu começar a tocar não é o mesmo que fazer sem querer."
Até hoje eu não me lembro como terminamos aquela conversa. Em um momento estávamos na frente da taverna e no outro eu andava pelas planícies do Reino Vermelho.
Minha cabeça pairava na memória do anão cantando, os globos brilhando em volta dele e as notas se materializando no ar.
E então comecei a cantar.
Cantarolei canções antigas que meu senhor cantava para mim no tempo em que eu ainda vestia minhas vestes de jovem.
Busquei dentro do meu âmago o Arcano e clamei por ele em meio às minhas palavras.
Para o leitor desatento, o Arcano existe entre o Mundo Material, o Reinos dos Sonhos e o Reino das Memórias. Uma dimensão de transição que guarda os maiores desejos e mistérios da existência.
É interessante como o tempo passou desde a Primeira Grande Revolução e mesmo hoje as pessoas ainda não sabem como fazem o que fazem, sequer sabem o que o Arcano é capaz e mesmo assim balançam suas mãos jogando fogo e tentando controlar fenômenos naturais como tolos brincando de deus.
Mas os magos de Salim fizeram o mesmo por anos, sequer estávamos atentos ao que o Arcano realmente era, por anos eu acreditei que eu era digno pelos anos que eu entreguei ao meus estudos, mas hoje eu vejo que a magia que eu uso é bem mais que o produto de alguns movimentos de mão e palavras sem significado. A magia é bem mais que uma arma para mortais ou uma piada para velhos tolos que só querem se sentirem melhores que outros. A magia é o suprassumo do desejo.
A magia é o próprio gosto pela vida, é o caminho entre os céus e o inferno, é a transição da vida e da morte. A magia é poesia. A magia era minha música - o Arcano me respondeu.
Vi brilhando no escuro pequenas faíscas que rodopiavam no ar enquanto eu esvaziava meu pulmão com palavras cantadas.
E então eu entendi pela primeira vez, o que o mundo estava prestes a virar.
Assinado: Mordenkeinen
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