" As feridas queimavam como sóis às cinco horas da tarde, e as pessoas quebravam as janelas às cinco horas da tarde. Ai que terríveis cinco horas da tarde! Eram as cinco em todos os relógios! Eram cinco horas da tarde em sombra!" Garcia Lorca
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LIGEIRA INCLINAÇÃO À ESQUERDA
Aquele dia não havia começado bem. Mal fechei a porta do apartamento e me veio a sensação de que esquecia algo.
Cheguei ao cais e já me enfezei com todo mundo. Os companheiros tiraram o dia pra me apurrinhar. Não devia ter levantado da cama. Hoje não tem estiva. O sindicato tá pegando fogo. O mar inquieto.
Caminho a esmo. Não consigo tirar da cabeça a sensação de ter esquecido algo. Não consigo lembrar. A cabeça pende. O corpo dolorido. Deve ser gripe.
Entro num armazém abandonado com a esperança de arranjar um canto pra me encostar sem ninguém pra encher meu saco. O cheiro de mofo e ferrugem está de amargar, mesmo assim resolvo ficar por aqui. No meio da tralha me deparo com algo que faz muito não via. Achei graça. Como poderia estar ali?
Quando eu era menino vivia na casa da vó. Todas as tardes ela sentava ao piano e tocava pro meu avô. Eu sentava embaixo, perto dos pedais. O som ressoava. Às vezes, os primos vinham. A gente brincava no quintal.
“Lá em cima do piano tem um copo de veneno...”
A cabeça continua martelando. Me aproximo, abro a tampa e aquele sorriso careado sorri pra mim. Minha vó bem que tentou, mas nunca quis aprender a tocar. O cheiro de naftalina me veio à mente. Quase me lembrei do que havia esquecido.
“Lá em cima do piano tem um copo de veneno...”
O barulho lá de fora me traz de volta e deixo o piano e a avó que há muito já se foi. Me despeço. Antes de sair, olho pra trás e não o vejo mais.
O pau aqui fora tá comendo solto. Hoje o trabalho não sai. Me junto ao pessoal e decidimos ir beber. Conto a estória do piano e ninguém me leva á serio. A bebida alivia a dor, mas as ideias turvam.
“Lá em cima do piano tem um copo de veneno...”
A carona me deixa no canal e vou andando até a praia. Aquela sensação estranha escorre da cabeça como a água suja do esgoto que escoa pela lateral do canal.
Chego na avenida e viro à esquina. Um bar, três prédios e chego no meu. O porteiro nunca cumprimenta. Nem eu. Aqueles olhos tortos me perturbam. Chamo o elevador e nada. A cabeça e o corpo reclamam. Fecho os olhos. Blecaute.
_ Que merda é essa?
Na portaria, o olho torto está mais perdido que eu. Lá fora as luzes dos carros me ofuscam os olhos e a mente. Hoje tudo acontece...
Doze andares. Me resigno e começo a subir devagar. Os braços escoram as paredes. Degrau por degrau, um pé depois do outro. A cabeça pende. O corpo pesa.
“Lá em cima...”
“Lá em cima...”
Paro pra respirar. Ainda falta muito, mal cheguei na metade. Contei quatro andares ou terão sido cinco? Ouço vozes no corredor. Continuo. Crianças brincando.
“Lá em cima do piano tem um copo de veneno...”
As paredes me comprimem. Os degraus cada vez mais estreitos. A cabeça, a cada passo, espreme mais o pescoço. Mais vozes. Dessa vez são mulheres falando da comida que vai estragar na geladeira. Faltam três andares.
Chego ao décimo segundo andar quase de quatro. A respiração ofegante. Transpiro. Tudo dói. O meu destino está no fim do corredor. Vou me escorando na parede arrastando os pés. O piso parece molhado. A água escorre pela escada como o esgoto no canal.
Mão no bolso, sinto a chave e abro a porta. Fecho os olhos. Os peixes flutuam pela sala. A luz acende. Havia as deixado acesas. O aquário transborda num filete fino de água encharcando o carpete. Em cima da mesa o copo de veneno.
O corpo cai. Estatela no chão. A cabeça faz uma ligeira inclinação à esquerda.
Isabel Domitila de Castro e Melo
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A Modernidade - Charles Baudelaire
Pinturas: Constatin Guys
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Jardim em miniatura.
Imagens registradas por mim no jardim de Óscar Limache, poeta e tradutor de Lima - Peru, em janeiro de 2014.
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"A complexidade crescente da vida moderna e o ritmo alucinante do século XX encurralam o homem em...
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Partindo do filme Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin, o grupo pesquisou fotos e outros filmes da época para chegar a um gestual que promovesse o deslocamento e a desaceleração do tempo. A intervenção ocorre em espaços públicos buscando levar o público a um olhar diferenciado e à percepção de um outro tempo.
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Como adaptar uma pintura, imóvel, formada por manchas e tinta sobre a tela, para outra forma de...
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