Vivências de quem acompanhou o companheiro em 16 meses de internação, entre janeiro de 2015 e abril de 2016. Oito deles em uma UTI.Miguel Rios (www.facebook.com/miguelitorios e [email protected])
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“Tudo começou no dia 4 de janeiro de 1998. Dias depois, ele veio morar no meu quarto no Janga. Tempos depois, a gente foi para Buenos Aires. Tempos depois, a gente comprou um Uno usado. Tempos em que saíamos muito pra boate, bares, praia e tudo mais que é canto onde tenha álcool e a galera animada colorida. Tempos depois, compramos um apartamento onde tinha uma geladeira, um fogão, um chuveiro elétrico, uma TV 22 polegadas, um colchão no chão e um guarda-roupa feito de caixas colhidas em supermercado. Tempos depois, a gente viajou para a Europa e tocamos o terror em Munique, Madri e Paris. Tempos depois, foi a vez de reconhecer que o tempo voa e cobra o preço da passagem. Foi quando resumimos as saídas mais ao período diurno, já que o sono é agora companheiro insistente. Neste meio tempo, ainda andamos batendo perna pelo mundo e fazendo uma porrada de selfies que os carrancudos devem odiar e nos chamar de exibidos. Tempos depois, assinamos o papel no dia 15 de março de 2012. Neste meio tempo, o mais importante, fomos perdendo cada vez mais o medo de sermos quem somos, o que somos e tendo consciência de que assumir palavras como gay, homossexual, viado, seja qual for (palavras não ferem, pessoas sim), é uma atitude política, e um banho de descarrego na alma. Tempos depois, brigas depois, tivemos uma séria que nos levou a romper e preocupar vocês. Um tempinho atrás, tudo voltou às boas. Neste tempinho, eu descobri o valor do Rivotril e do carinho que uma TL pode derramar sobre você de graça. Tempos no futuro, ainda vamos estar por aqui sorrindo, esperneando, sujando e limpando.”
Eu achava que seria assim quando escrevi o texto acima. Mas não foi assim. Ao menos, não tanto tempo. Em 6 de janeiro de 2015, Cristiano Santos internou-se com febre e dificuldades respiratórias no Hospital Esperança, no Recife. Subiu para o quarto. E não desceu com vida. Foram 16 meses de internação entre UTI e quarto particular. Diagnóstico de Síndrome de Guillan Barré. Uma doença autoimune que ataca o sistema nervoso e que no caso de Cristiano lhe lesionou o cérebro de forma drástica. Foi desenganado, optamos pela ortotanásia, mas ele desafiou os prognósticos, recuperou-se um pouco, recuperou-se mais, surpreendeu médicos, desafiou a letra fria da neurologia. Saiu do coma, do estado vegetativo. Saiu da UTI.
Dividi com ele um quarto de hospital como acompanhante durante oito meses. Morei em um hospital. Entre melhoras, pioras, já percebia o ambiente e interagia vez por outra conosco, mas com a incógnita de como nos percebia, Cristiano morreu em 18 de abril de 2016, quando os médicos e nós familiares não acreditávamos mais que morreria.
Os posts abaixo, que não estão em ordem cronológica exata, são um pequeno recorte da nossa história nessa época. Quando convivi com um Cristiano desconhecido e ainda íntimo, sem saber se me reconhecia e se sim, o quanto e quando, já que sua mente parecia flanar em um limbo de flashes e apagões. Sem fala, definhado e só com olhares que me fugiam a compreensão.
Não é uma história alegre. Mas é a que eu melhor tentei contar. Não só dele, mas minha com todo o entorno de uma UTI, um local que nos pede couraça quando temos apenas a carne viva, a alma ralada e forças que arrancamos de uma bateria invisível e em lugar desconhecido.
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Sequelas não se resumem a cicatrizes. Não são simples lembranças. Muito menos mazelas que o tempo cura. Sequelas duram. Perenes. Desagradáveis, intoleráveis. No meu caso, invisíveis aos olhos que me circulam e me investigam. Mas presentes a cada acordar, a cada adormecer, a cada cadeira vazia ao lado, a cada imaginar de como seria se estivesse ali, o que diria, o como se comportaria, como me agradaria, como me irritaria. Um ano sem Cristiano neste 18/4/2017. Um ano que o buraco grosseiro escavado se recusa a fechar. Que a erosão, silenciosa e matreira, mina por baixo, me ilude. Quando dou por mim, está mais amplo. Sem retroceder. Coleciono recordações constantes e involuntárias, caço esperanças de que, ao menos, vou me acostumar. Dor sem novidade é dor menor. Torço para que seja. Vou catando sorrisos e contentamentos, os distribuindo como posso e insisto. Mas é inegável que sou sequelado. E, ao contrário do que pensam, não é um autocondenação. É um reconhecimento para lidar melhor e conviver, se, por acaso, nuncar superar. Superar nem sempre é se curar por inteiro. É conseguir carregar. Viver com. Se há as sequelas físicas, há as do espírito. Quem garante que ele se reestrutura 100%? Sequela é um termo forte que incomoda à ditadura do alto astral. Inconcebível no mundo maravilhoso das interrupções de fala, para que os aconselhamentos sobre o que se nem deu direito a se expressar reluzam como alegres verdades ao Sol. Não sou bem-vindo se me defino como sequelado. Não importa se eu passei oito meses visitando uma UTI, dia após dia, no mínimo duas vezes, tempo bom ou tempo ruim. Não importa se eu vivi na gangorra de Cristiano melhorar e piorar, melhorar e piorar, ortotanásia ou distanásia, resistir ou desistir, cansaço físico e psicológico. Se vi umas nove pessoas morrerem, se compartilhei dores e esperanças com gente companheira de antessala. Se morei oito meses em um quarto de hospital, acordando de hora em hora durante a noite para velá-lo, ajudando na higiene pessoal, carregando no braço, dando banho, conversando sem receber resposta, me entusiasmando com os rompantes de comunicação rudimentar. Não importa se vi Cristiano melhorar, sair de um estado vegetativo, desafiar a letra fria da neurologia, me encher de valeu a pena, para depois escolher não mais permanecer. Se tive de encontrá-lo sem vida, se tive de parar a inócua persistência médica em ressuscitar e declarar “Não mais. Ele tá morto”. Não importa se o enterrei, se vi 18 anos de convivência, dormindo e acordando juntos, sepultadas. Não importa que a viuvez seja uma casa vazia que mesmo quarto e sala ficou imensa e de silêncios estridentes. Importa, me dizem, é que eu devo reagir mais do que reajo. Sorrir mais do que sorrio. Sair mais do que saio. Trepar mais do que trepo. Miguel com sequelas incomoda. Ok. Entendi a mensagem. Não falo mais. Não desabafo mais. Me nego a inventar um conto sobre um Miguel que desconheço para ser aceito. Sou o Miguel possível. Nem um filhote de gato molhado, com frio e com fome, necessitado de socorro, nem um efusivo, abnegado e nirvânico ser de luz desprendido das angústias terrenas. Prazer, Miguel que consigo. Me nego a enterrar Cristiano de vez se me é impossível. E se nunca conseguir, não vou forçar. Vou carregá-lo comigo. E sem culpas. Nem adianta me dizer que é atraso espiritual. Não vou me culpar por um peso que não provoquei, que me caiu como uma avalanche e me soterrou, a qual escavo na velocidade que posso e dou os intervalos que mereço e concluo necessários. De onde vier essa mensagem de mais esforço, só respondo: “Se esforce também daí em compreender, em não me depositar mais carrego. Dá pra transformar toda essa boa intenção em empatia? Se houver esforço, daí você consegue, irmãozinho iluminado”. Nem se todos os orixás se unissem, me tirariam a compressão. E confessam serem incapazes. Me oferecem ombro e braço. Eu os amo por isso. Sem a presunção de superpoderes, de perfeição. O ideal perfeição é que fode o ser humano. A ideia de santidade, de purificação, de suportar cruzes e calvários. De alcançar o inalcançável. Por isso, se cobram e nos cobram tanto. Por Cristiano não sinto qualquer vibração complicada. Sempre sonho com ele. Às vezes, mais chateado, às vezes mais alegre. Não fala muito, mas me diz demais com o olhar. Me conforta a informação que me passaram que foi uma escolha dele, diante de uma situação inesperada, que foi tratada, mas que não havia mais perspectivas de grandes melhoras e nem tempo certo para elas, caso viessem. A vida era dele, a escolha foi e tinha de ser dele. Se nosso compromisso tiver de seguir que siga. Mas, por agora, estamos em rumos bem diferentes e não me cabe cobrar presença, nem espera, segura essa aliança. Se tiver de viver outras sensações viva. Não me apego para impedir de ir. Me apego para acolher e deixar claro que fique se quiser, que sou porto seguro, cápsula protetora. Sou rocha. Me apego por não ser de amores líquidos, projetados para o descartável. Nenhuma receita sei para uma xícara de amor frio. Sou dos relacionamentos intensos e inteiros. Mesmo que breves. Que se façam eternos em uma música, um filme, uma palavra marcada, um sabor. Me sentir grato por ter tido aquilo com alguém. De acordar e adormecer ao lado. Na guerra e na paz. Seja na cama cotidiana de casa, aventureira do hotel ou desgastante do sofá do acompanhante.
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Cristiano decidiu. Decisão dura por demais para mim, para nós. Mas eu respeito. Mais consciente, ele passou uma segunda-feira em alto estresse pela situação em que se encontrava, tentou arrancar a sonda gástrica e até o tubo que levava uma lufada de oxigênio ao traqueóstomo. Seu rosto carregava uma nítida expressão de descontentamento, de tristeza, de pouca esperança em uma situação melhor. Muito provavelmente, ele não seria o mesmo de volta e carregaria sequelas as quais não concordou. Estava insuportável. Curativos, picadas de agulha, procedimentos quase 24 horas por dia. A vida era dele. E ele colocou um ponto final. Eu insisti em uma conversa, onde ele mostrava raiva e dor no olhar, que os ganhos eram visíveis e inegáveis. Mas quem sou eu pra escolher por ele? Quem sou eu pra insistir por ele? Persistimos até onde ele ganhou consciência suficiente para reivindicar seu protagonismo. Tranquilizou, adormeceu e eu cochilei ao lado. Despertei com a sensação de uma espetada no ombro. Conferi meu companheiro de 18 anos e ele estava morto. Correria de médicos e enfermeiros, tentativa de reanimá-lo. Eu, mesmo soterrado em nem sei o quê, com noção sei lá de onde, determinei o óbvio. "Ele está morto". O daqui pra frente nem me perguntem, nem esperem a força que me desejarem. Quando voltarei a dormir e quando voltarei Miguel, me é impossível determinar. Sei que a palavra final foi dele como tinha que ser. Agradeço os melhores anos da minha vida, uma relação que será sempre nossa e indestrutível. Vou chorar cada dia após o outro. Pra chorar dispenso lágrimas. Cristiano me será sempre lembrança pétrea e viva, nunca ausente mesmo que sem toque ou visão. Me será sempre a pessoa que se jogou comigo na aventura de um amor que dizem ser infértil e jamais me sugeriu tempo ou separação. Será muito além de fotos ou lugares marcantes ou a cadeira vazia ao lado que me doerá nos lugares. Será Cristiano. O nome dele é suficiente nesse oco escavado e em corrosão.
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6/6 - Cristiano chegava ao hospital. Andando, falando, interagindo, consciente. Dia 13/1, foi para UTI. Dia 16/1, foi sedado, entubado. Não mais recobrou a consciência. 18/4 - Cristiano morre. Datas que vão me perseguir como cães de caça até o fim da minha vida.
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16/4 - Terceiro mês de inconsciência de Cristiano. Chegamos a ele com a alma mais leve. Ganhos ocorreram nas últimas semanas. Reconhecidos até pelos médicos que conversaram conosco sobre ortotanásia, agora um assunto que dá sinais de ter ficado pelo caminho. Não há nada resolvido. Não há perspectiva próxima de alta. Não há, muito menos, a fantasia do levanta-te e anda. Mas bons ventos sopram. Em conversa com a neurologista, ela confirmou a mudança de quadro e até, de maneira menos formal, comentou sobre o caso de um antigo paciente. Ele tinha meningite fúngica. "Pelo que eu vi, não dei nem 12 horas de vida." Pois ele não apenas viveu, como voltou a se consultar com ela tempos depois. Entrou pela porta caminhando com dificuldades, com sequelas de fala, mas disposto a amenizá-las e até mesmo vencê-las. Como Cristiano sairá dessa não sabemos. Sequelas? Quais? De que proporção? Uma nova luta (ninguém disse que seria melzinho na chupeta), mas tamo aí pro fight. Apesar do nosso mundo projetado para os "perfeitos", com deficiências se vive e se é feliz. Peço que ele tenha as mínimas e corrigíveis. Caso algumas persistam, permanecerá meu Cristo. E voltará para reviver nossa casa, que agora nem minha é. É uma outra casa no mesmo endereço.
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Cristiano, cada vez mais, se segura melhor nos banhos de chuveiro que toma. Já posso me dar ao luxo de usar as duas mãos para lavá-lo. Foi tirá-lo da zona de conforto, impor um desafio, e ele correspondeu. Por enquanto, de modo desengonçado, mas eficaz. Ajeito, dou um equilíbrio, mas quem bota força é ele. Daí, não só me emociono com os ganhos, mas com a capacidade humana de se reinventar e reagir. As pessoas com deficiência precisam de cuidados, de interesse, mas também de quem acredite que elas podem, de quem não as superproteja, as considere inválidas. Fora casos extremos, como me disseram que ele seria, não as tutele como bonecos de massa. Não as subestime. Podem sim expandir, cada qual no seu tempo, nos seus limites, mas estes tempo e limites tendem a ser flexíveis. Tenho agora alguém com sequelas e com deficiências para cuidar. Sou cuidador, ele precisa de mim, de sua família e amigos. Ele precisa de ajuda. Mas não de paternalismo, de coitadismo. Ele pode. E prova. Apostar na capacidade dele é mais trabalhoso e cansativo. Melhor seria chegar com a fórmula pronta de tutela para quem consideramos sem força. E deixá-los na mesmice. Só que assim decidimos por eles e não com eles. Pergunte a eles, mesmo que de forma não convencional. Procure perceber. Cristiano me responde, me diz que pode. Os conformados não sofrem de ansiedade. Mas não se alegram com as surpresas e as expectativas realizadas.
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Soube que houve gente que saiu mais animada da junta médica sobre Cristiano Santos. Apesar do quadro grave, os tratamentos vêm sendo aplicados corretamente, os órgãos dele correspondem bem e as infecções devem retroceder. A grande charada ainda é neurológica: vai haver sequelas? Se sim, quais? Quando acorda? Esperar, insistir e ter paciência. Angústia ainda vai caminhar do lado, quando não sobre os ombros. Por enquanto é somente o que eu sei.
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No começo do ano passado, achei que os 41 anos de Cristiano, completados neste 16/1/2016, me fariam lacrimejar sobre o túmulo dele, cheio de descrença e rancor, revolta e de anestesia, daquelas de cristalizar face e membros, reunindo as gotas restantes de ânimo para levantar da cama. Miguel partido ao meio por uma foice cega, a cortes que desrespeitam assimetria e arrancam mais do que deviam. Miguel sem Cristiano. Reviravolta. Cristiano confirma sua rebeldia e suas doses arrogância que tanto me irritavam. Desconstrói prognósticos pessimistas, dribla e desarma as armadilhas do destino, persiste em permanecer, em renascer. Longe da morte, longe da semimorte do vegetar. Interage. Reage. Drena força sabe-se lá de onde, mas que sempre desconfiei haver quando lhe dizia que ele é minha ossatura, quem me mantém em pé, escorando minhas vergadas e desfaleceres, minhas entregas de vida. Sou o mais chorão, o mais dramático, o mais esperneador, o mais vento nas folhas. Ele, o mais emburrado, o mais ranzinza, o mais raiz. Cristiano teima em ser indestrutível. Pode ser sequelado, sugado, mastigado. Vencido? Quem foi desenganado, descrito como candidato a murchar sobre uma cama, insiste em pisar nos livros de medicina. Um sistema nervoso que tinha tudo para perder a energia se re-energiza de tempos em tempos. Acende e ascende. Arranca sorrisos surpresos de doutores, lágrimas felizes de parentes, disposição do companheiro de 18 anos para entrar e sair da máquina de moer quantas vezes for necessário. Aos 40 anos,em 16/1/2015, ele foi sedado e teve fios inseridos da boca ao pulmão, ao estômago, pela uretra. Desacordou, a consciência se esvaiu. Eu o olhava tal qual quem admira uma amputação de si mesmo. Cosme e Damião despedaçado. World Trade Center derrubado. Siameses separados a machadadas. Eu acordando dia a dia diante do inacreditável. Comprovando o desespero em rotina de UTI. Um gancho preso a um cabo tensionava a minha coluna cervical de cima a baixo, drenando esperanças, injetando a inominável substância desanimadora que desencadeia o longe-perto, a rainha das angústias chamada mãos atadas e sua irmã gêmea incerteza. Lidar com um luto que não finalizava, a prestação. Um ano depois de um Cristiano que se negava a abrir os olhos e que ao abri-los nem reflexo de piscar tinha, lê-se outra pessoa. Outro aspecto, outras atitudes. Face e braços com expressões, mostra disposição ou abuso para os exercícios fisio e fono, para higiene pessoal, para mirar os visitantes. Um Cristiano ainda debilitado. De massa muscular esvaída. Ossos mais que carne. Mas que me olha quando abro a porta do quarto, que faz cara de dor e raiva quando incomodado, que agita as mãos para chamar minha atenção, que põe a língua para fora quando o provoco com o mesmo ato, que assiste a futebol no SporTV, que passou mais de 90 minutos no jogo em que o Santa Cruz garantiu presença na Série A 2016 e gruda na tela quando passa O Mundo Incrível de Gumball. Que vez por outra ainda dorme horas e horas, até mesmo mais de 24 se deixar. Que fixa o olhar no teto por muito tempo sem que saibamos o motivo. Um Cristiano que me é outro, mas idêntico. Cristiano que nunca levantou dúvidas se queria ficar comigo, nunca me pediu tempo, nem cogitou separação. Nunca. Que segue me olhando com a força decisiva de quem parte para resolver. Dependo dele. De sua rede de arrasto a me levar, de sua lanterna a me guiar, de sua confiança a me encorajar, de sua voz alta a me empurrar, de sua amostração para me constranger, do imenso orgulho de me gabar que sou companheiro da pessoa mais forte que conheço. Cristiano me foi implantado cirurgicamente como radar e GPS. Com ele, decolo. Sem ele, pânico de aterrissagem. Espero por ele, seu tempo e seus limites, com calma exaltada e agonia disfarçada. Com esperança revigorada. Vou com ele até onde der e vier. Do jeito que ele e eu estivermos aos 42, 43, 44, 50, 64, 78...
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Cristiano, após 11 meses deitado, sentou. Controle cervical muito bom. Tronco e pescoços durinhos. Terapia ocupacional dando muito certo.
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Fui passar cotonete nos ouvidos de Cristiano. Ele fez cara de protesto e agitou a cabeça. Argumentei: "Tá sujo. Tenho que limpar". Ele me olhou, balançou o braço esquerdo e tentou balbuciar palavras. Não saiu som, nem deu pra perceber o que pretendia expressar, pois foi um articular de boca ainda difícil. Mas, de novo, senti claramente uma busca de comunicação. De novo, meu coração acelerou. Tô precisando de cardiologista urgentemente.
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Agradeço demais a vcs, meu povo, que tanto me parabenizaram hoje e elogiaram minha relação com Cristiano. Vocês são responsáveis por grande parte do meu levantar diário. No entanto, quero defender que meu amor por Cristiano não é a única maneira aceitável de ser homossexual. "Quem dera se todos os gays fossem como você", "Vocês são exemplos de como um homem deve se relacionar com outro". Não, gente. Nós somos um tipo de relação, se brincar, no meio de milhões de possibilidades. Por estarmos dentro do que se convencionou como amor ideal, romântico, de novela, ganhamos status de exemplo, de respeitáveis. E, acreditem, em 17 anos, boa parte não foi açúcar, nem passou perto. O gay que faz pegação é respeitável. O que faz suruba também. O que transa com garotos de programa, o que tem um relacionamento a três. Não existe jeito certo para homossexual, nem transexual, nem bissexual. Noves fora, o que o Inmetro do moralismo teima em propagar. Existem formas de amar, de ter prazer, de ser. Muitas. Minha fórmula com Cristiano é a que deu certo para nós. Ela pode ser aguada ou tóxica para outros. Desde que os envolvidos sejam responsáveis, conscientes e de acordo, nenhum comportamento ou estrutura de envolvimento é ruim. Cada qual que encontre como e escolha o número de quantas e quantos vai pro fight.
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"Quando a gente mexe em Cristiano para limpá-lo, a gente sente que ele está recobrando os movimentos. Cristiano está menos agoniado, com a respiração bem melhor. Cristiano nunca teve uma escara. Não tem parada cardíaca. Só falta mais consciência. Mas com o cérebro é demorado mesmo. Aqui já teve gente em pior situação que a dele, que ninguém dizia que ia viver e hoje tá bem. Lembro do rapaz que estava desenganado. Acordou, fez fisioterapia, se recuperou e de tanto ficar deitado enquanto se reabilitava escreveu sobre o coma que viveu. Hoje é escritor." Depoimento de Patrícia, enfermeira, nesta quarta-feira, a um dia de Cristo completar três meses de inconsciência.
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Ontem, Cristiano teve um dia de febre, secreção e máquina de respirar. Nada de anormal. Esses passos pra trás estão no roteiro. Hoje, volta a fazer 12 horas respirando por ele mesmo, calmamente, e com os olhos bem abertos. Notei (minha impressão, de quem o acompanha poucas horas por dia, mas atentamente) que começou a ter o reflexo de piscar quando aproximo um dedo do olho dele. Não o fazia. E, agora, o faz, apesar de algumas vezes falhar. Ainda sinto o, digamos, mau contato. Nem sempre está lá em percepção. Às vezes, me parece ser tudo impulso sem consciência. Mas outras, que vêm aumentando, não. Ele nos encara e, testei hoje, acompanha com os olhos quando movimento a minha cabeça de um lado a outro em relação a dele. Claro, tais ganhos não implicam em um levanta-te e anda. Teremos muito chão e suor pela frente. Mas pra quem vinha ladeira abaixo e parado sem reação, é uma subida.
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Terceiro dia dividindo um quarto de hospital com Cristiano. Noites de sono aos sobressaltos, vigília a sons que julgo estranhos, a temperaturas que se elevam, a movimentos que me desagradam. Noites de luz acesa. Dias de sentar diante de paisagem de janela, de se entupir de Telecine, de cochilos inevitáveis, de auxiliar de enfermagem. Sou um satélite. É o que serei de agora em diante. Cristiano permanece uma máquina de secreção e febre inexplicável. Tem mantido boa a respiração e ganhos neurológicos estacionados. Só na espera do dia após dia e nas aulas práticas do curso intensivo de cuidador.
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A enfermeira me conta que está há 24 horas trabalhando. Veio do Hospital da Unimed direto pro Esperança. - E quando chega em casa vai dormir? - pergunto eu. Sabe de nada, inocente. - Ainda tem casa, filho e marido - responde ela. Pior. Hoje à noite, tem outro plantão. Volta pra casa somente na terça-feira.
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Acordar às 23h20 e à 1h16 para conferir a respiração e a temperatura de Cristiano. É oficial. Eu sou mãe.
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15/3/2016 - Com uma postagem no Facebook, Cristiano avisou a todos. Algo como "agora é oficial". 15/3/2012, a gente assinou nossa união estável. Seria só um papel se a simbologia dele não fosse enorme para a comunidade a que pertencemos. Seria só um papel se não fosse, enfim, o Estado reconhecendo nossa cidadania, nosso direito de nos unir com quem quisermos. Seria só um papel se o víssemos como uma letra fria da lei e não como um vibrante atestado de liberdade, de fim de esconderijo, de que agora é o governo contra os preconceituosos e não contra nós, como sempre tinha sido. Em fevereiro deste ano, assinei a interdição dele e minha responsabilidade de curador. Um papel que me ajuda e muito a resolver problemas que ele não pode. Seria só um papel facilitador se não fosse a simbologia: agora é oficial: Cristiano não tem condições de cuidar de si. Seria só um papel se não fosse doído cada assinatura minha por ele, cada decisão minha por ele, cada vez que dou fé que ele se encontra incapacitado. Tem um papel que guardo com carinho e orgulho. Outro, por necessidade e com vontade de rasgá-lo. Os papéis assinados para nós nunca têm sido só papéis assinados.
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